Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 O modo de governar da Coroa Espanhola nas Índias: as “leyes nuevas” e a Segunda Escolástica na primeira metade do século XVI Rodrigo Henrique Ferreira da Silva A chegada dos europeus à América em 1492, por meio da frota naval liderada por Cristóvão Colombo, causou grande impacto cultural na Europa ocidental cristã. Este feito fez com que diversos membros de cortes, missionários, soldados, e outros, tentassem compreender os novos territórios descobertos bem como as populações indígenas, seres nunca vistos antes, com costumes e crenças considerados “bárbaros” pelos europeus. Do ponto de vista político e jurídico, algumas medidas foram tomadas para solucionar os questionamentos das terras encontradas. Logo um ano depois, em 1493, o Papa Alexandre VI concedeu as “Bulas Papais” (Bula Inter Coetera) aos Reis Católicos da Espanha, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, com a intenção de doá-las e dar-lhes o direito de descobrir e tomar posse dos novos locais. A linha alexandrina recebeu críticas de Portugal e uma nova demarcação geográfica foi criada para realizar as expedições, na qual culminou com o Tratado de Tordesilhas1 em 1494. Desde os primeiros momentos da colonização, a Espanha adotou o sistema de encomienda como instituição jurídica. No entender de Miguel Romero, a encomienda era uma relação tripartida entre a Coroa, os encomenderos e os índios, em que os reis de Castela concediam, por lei, aos conquistadores, um número determinado de índios para que realizem certos serviços gratuitos em troca das funções atribuídas pela Bula pontifícia à pessoa do Rei; ou seja, educar, cristianizar, civilizar e desenvolver socialmente os indígenas2. O objetivo de tutelar os povos indígenas pelas encomiendas logo se transformou em abusos violentos pelos encomenderos, desejosos apenas pela extração dos metais preciosos do ouro e da prata. Para Romero, o sistema de 1 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 encomiendas nada mais era do que uma “escravidão encoberta”3. E no caso dos nativos não aceitarem este regime de trabalho, era permitido o uso da força como meio para alcançar a grande finalidade: a predicação da fé cristã aos povos pagãos. Este modelo jurídico tradicional4 adotado pela Espanha recebeu duras críticas no final do ano de 1511, pelo padre dominicano Montesinos, que estava rodeado de senhores castelhanos e encomenderos em torno de sua igreja. O frade pregou um sermão que foi considerado, por Rafael Ruiz, divisor de águas e o ponto de partida para a reformulação do medievalismo jurídico: Con qué derecho, con qué justicia tenéis en tan cruel y horrible esclavitud a estos indios? Con qué autoridad habéis hecho tan detestables guerras a estas gentes que estaban de manera mansa y pacífica en sus tierras, donde habéis matado y destruido un número infinito de ellos? Cómo están tan oprimidos y cansados, sin comida y sin cura de sus enfermedades? Acaso no son hombres? Acaso no tienen alma racional? Por qué no entendéis esto? Cómo no os dais cuenta? … Tened en cuenta que en el estado en que os encontráis no os poderéis salvar más que si fuerais moros y turcos a los que les falta y no quieren la fe de Cristo.5 Na passagem, percebe-se que Montesinos6 condena a prática da escravidão, da guerra, e interroga sobre uma questão importante da época para as consciências dos europeus: a dúvida se estes seres “estranhos” eram humanos7. Após este fato inusitado, e de toda a discussão que ele gerou na Espanha, foi promulgada a “Lei de Burgos” em 1512, o primeiro conjunto de leis sobre a colonização na América. A partir desta “Carta de Princípios”, os indígenas foram reconhecidos como seres humanos, racionais e livres; o texto também trouxe novas jurisdições para o melhor tratamento dos índios. Mas as encomiendas foram mantidas, pois o Rei Fernando não estava disposto a perder os serviços e trabalhos gratuitos que os nativos prestavam aos encomenderos e à Coroa. Após Montesinos ter relatado seu sermão, os anos posteriores acabam sendo de fortes tensões entre os encomenderos e os dominicanos8. A desobediência dos encomenderos às leis e a manutenção da violência aos indígenas, continuou recebendo acusações dos religiosos, o que fez o padre Las Casas expor toda a 2 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 situação perante o Papa Paulo III. Em 1537, o Papa finalmente reconhece a humanidade e liberdade dos índios, pela Bula Sublimis Deus: Nós, que embora indignos, exercemos na terra o poder de Nosso Senhor, e lutamos por todos os meios para trazer o rebanho perdido ao redil que nos foi encomendado, consideramos, porém, que os índios são verdadeiros homens e que não só são capazes de entender a fé católica, mas também, de acordo com nossas informações, estão desejosos de recebê-la. Desejando prover remédios seguros para esses males, definimos e declaramos por estas nossas cartas, ou por qualquer tradução fiel, escrita perante tabelião público, selada com o selo de qualquer autoridade eclesiástica, às quais lhes será dado o mesmo crédito que às originais, que, não obstante o que se tenha dito ou se possa dizer em contrário, os tais índios e todos os que mais tarde sejam descobertos pelos cristãos, não podem ser privados da sua liberdade por nenhum meio, nem das suas propriedades, mesmo que não estejam na fé de Jesus Cristo; e poderão livre e legitimamente gozar da sua liberdade e das suas propriedades, e não serão escravos, e tudo quanto se fizer em contrário, será nulo e de nenhum efeito.9 Além da Bula Papal, novas leis foram estabelecidas, como as “Leis de Saragoça” em 1518; as “Ordenanças” sobre o bom tratamento dos índios, de 1526; e as Leyes Nuevas, de 154210. Como já dito anteriormente, desde os primeiros contatos, a Espanha manteve os modelos jurídicos medievais para tratar as questões dos territórios e das populações americanas. Ruiz mostra como os sistemas jurídico, filosófico, político e religioso, eram regidos pelo corpo da “Cristandade” na Europa ocidental a partir do século XI. Mesmo assim, era um período de confronto ideológico entre o poder civil (imperial) e o poder eclesiástico (papal). A disputa girava em torno do domínio sobre o mundo. A tese imperialista defendia o domínio temporal de um príncipe determinado sobre todo o orbe; nesse caso, seria o imperador do Sacro Império Romano Germânico. Já a corrente teocrática baseia-se na Bula do Papa Bonifácio VIII, de 1302: “[...] compete ao poder espiritual ‘estabelecer e julgar o secular, [...] enquanto a autoridade só pode ser julgada por Deus’”11. Logo, conclui-se que o poder temporal é submetido ao poder espiritual. 3 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 Alguns autores da época, como Marsílio de Pádua e Guilherme de Occam, defendiam a não dominação mundial do imperador e, também, a independência jurídica do poder secular ao eclesiástico. Uma tentativa de solução a essa polarização entre os poderes foi pensada pela Escolástica tomista. Esta corrente de pensamento separa os campos seculares e eclesiásticos, o que faz com que um seja independente do outro e superiores dentro dos limites das suas competências. Ruiz aponta que, graças à colocação de um dominicano do século XIV, João de Paris, o Papa teria um “poder indireto” nas relações temporais: Se o homem estivesse ordenado somente a um fim natural seria suficiente o poder civil; mas como se ordena também a um fim sobrenatural, inatingível pelas próprias forças e meios naturais, é necessário uma autoridade superior.12 A interferência “indireta” do poder eclesiástico no temporal diria respeito apenas às questões espirituais dentro da ordem civil; mais uma ideia moral do que de domínio, para não prejudicar os fins espirituais do homem. Outro ponto importante da teoria escolástica é a formação de uma sociedade política e a relação da população com seu soberano. Antes de tudo, é preciso esclarecer que a Escolástica tem como um de seus principais pensadores Tomás de Aquino. O teólogo desenvolveu a doutrina com base nos argumentos do filósofo Aristóteles dentro do contexto de uma vida política cristã. Aquino tentou reconciliar a concepção aristotélica da autarquia da vida cívica e as preocupações mais voltadas para o outro mundo do cristianismo agostiniano13. Para Aristóteles, a pólis (cidade-estado grega) era uma criação puramente humana e destinada a atender fins estritamente mundanos. Logo, os cidadãos possuem o poder de eleger um soberano para que governe pelo bem comum. Caso ele se torne um tirano, o povo pode depor o príncipe do governo. Já Santo Agostinho define a sociedade política como uma ordem determinada por Deus e imposta aos homens para remediar seus pecados. Com a intenção de explicar melhor a teoria da sociedade política em contexto de Escolástica, e depois é seguida pelos tomistas, Aquino apresenta o universo regido por uma hierarquia de leis: 4 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 Em primeiro lugar colocaram a lei eterna pela qual age o próprio Deus. A seguir, vem a lei divina, que Deus revela diretamente aos homens nas Escrituras e sobre a qual a Igreja foi fundada. Seguese a lei da natureza, que Deus “implanta” nos homens, a fim de que sejam capazes de compreender Seus desígnios e intenções para o mundo. E por último aparece a lei humana positiva, que os homens criam e promulgam para si próprios com o objetivo de governar as repúblicas que estabelecem. A essência da teoria da lei natural desenvolvida pelos tomistas pode, em consequência, ser expressa em termos das relações por eles identificadas entre a vontade divina, a lei da natureza e as leis humanas positivas promulgadas em cada república.14 Das leis apresentadas na passagem acima, o foco do trabalho está nas duas últimas; isto é, a lei natural e a lei positiva. A primeira, como o próprio nome diz, refere-se às características da natureza do ser humano, sendo a razão e a liberdade as principais. Todo homem no estado de natureza é livre e igual aos outros. Mas, de acordo com a tese aristotélica de que o homem é um animal social por natureza, e para os tomistas de que é inerente à natureza humana a vida social e comunitária, é impossível o homem subsistir sozinho. Por isso, por necessidade natural, o ser humano abre mão de sua liberdade plena para formar uma sociedade política, votando as leis positivas como mecanismo regulador de suas vidas para garantir os ditames das leis da natureza15. Logo, o homem utiliza sua razão para criar os alicerces morais da vida política. Em seguida, a sociedade entra em um consenso e elege um governante para zelar pelas leis e garantir os direitos naturais. Para Tomás de Aquino, ainda existem as chamadas “leis de todas as nações”, que derivam das leis naturais. Cada república tem suas leis positivas próprias de acordo como a sociedade estabeleceu para o governo da comunidade, mas há leis em comum para todas as sociedades políticas, como as práticas do comércio e a propriedade privada. “Como essa forma de lei é conhecida em cada sociedade política, ela tem de poder ser formulada de modo a compor um código legal especial para regulamentar as relações entre diferentes sociedades”16. Toda essa doutrina tomista ressurge no século XVI na Península Ibérica como uma teoria do Estado fundamentada no direito natural, e, segundo Torgal, em resposta aos modos de governar estabelecidos por Maquiavel 17 e pelos Protestantes18. Ambos rejeitavam, ainda que por motivos diferentes, a ideia da lei 5 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 natural enquanto base moral adequada para a vida política. O resgate do tomismo no século XVI fica denominado como “Escolástica Tardia” ou “Segunda Escolástica”. Para este trabalho, focaremos na “Segunda Escolástica Espanhola”. O movimento teria sido criado por dominicanos na Universidade de Salamanca, especialmente por Francisco de Vitoria, que se apegou ao pensamento de Tomás de Aquino. Vitoria nasceu em 1482, em Burgos, e foi estudar na Universidade de Paris19 nos anos de 1510 após ingressar na ordem dominicana. Já na França, estudou a “Suma Teológica” de Aquino, tornando-se grande comentador do filósofo. Vitoria retorna à Espanha em 1523 e torna-se professor de Teologia da Universidade de Salamanca, em 1526, onde expôs as doutrinas tomistas a seus alunos. De acordo com Ruiz, Vitoria não deixou nada escrito; as suas “Relecciones Teologicas” apoia-se em análises literárias e crítica histórica das anotações escolares dos seus alunos20. Francisco de Vitoria teve participação fundamental na resolução dos problemas que envolviam as Índias Ocidentais. Ruiz o exalta da seguinte maneira: Perante a descoberta do “Novo Mundo”, o “Velho Mundo” europeu não encontrava rapidamente a resposta para certas questões. Na ordem jurídica, por exemplo, iniciou-se o encerramento da ordem medieval e a criação de uma nova concepção jurídica. A base jurídico-religiosa medieval que se apoiava numa concepção do homem como um ser com dois grandes deveres, os deveres do serviço divino e os deveres próprios da sua inserção na sociedade civil, de onde nasciam os dois poderes, o imperial e o papal, complementares e suficientes, desaparecia e ficava sem fundamentação alguma diante das perguntas que inquietavam todas as consciências da época: serão homens os índios? Terão alma? O poder do Imperador ou do Papa estender-se-á até essas novas terras? A resposta a essas questões práticas será dada por Vitoria com exatidão, criando uma nova ordem jurídica adequada para a nova ordem do mundo descoberto.21 Percebe-se que a “novidade” do Novo Mundo faz com que Vitoria criticasse os modelos jurídicos medievais, que foram criados para resolver questões europeias, e não faziam mais sentido para o novo território e as populações encontradas. Portanto, Vitoria “cria” novas soluções baseadas no direito natural tomista. 6 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 Ao ficar diante do impasse criado pelas duas correntes extremas medievais e as tentativas de solução por parte dos tomistas, Vitoria desenvolve algumas bases e fundamentos filosóficos e jurídicos para, finalmente, propor suas conclusões. Um deles seria a definitiva distinção entre o poder civil e o eclesiástico, em que as duas ordens constituem duas sociedades perfeitas e soberanas, com fins próprios; mas, o dominicano segue a ideia da intervenção “indireta” do Papa, no caso dos indivíduos ou do príncipe atentarem contra os direitos derivados do fim espiritual, por exemplo, se obrigarem os fiéis a adorar ídolos ou se os forçarem a renunciar à sua fé. Diante da questão das Índias, o Papa não teria poder sobre os infiéis, pois, seu poder sendo espiritual, só pode ser exercido sobre os fiéis, com exceção de alguma injúria contra a fé católica. “[...] el Papa, sin embargo, carece de poder sobre los infieles, no los puede excomulgar ni prohibirles el matrimonio dentro de los grados permitidos por el derecho divino”22. E “si los bárbaros no quisieren reconocer al Papa dominio alguno, no por esto se les puede hacer la guerra ni les pueden ser ocupados sus bienes, y claro está, porque no hay tal supuesto dominio” 23. Portanto, o Papa não tinha nenhum tipo de poder com relação aos índios do Novo Mundo, sempre com a exceção de qualquer injúria cometida contra o direito natural. Vitoria eleva a lei natural à categoria de “direito natural”. O dominicano busca em Aristóteles para definir que tudo o que é bom e justo é natural, e não depende da vontade humana, pois tudo o que é próprio da natureza tem força maior. Para Vitoria, o Direito Natural não é o mesmo que a Lei Natural; é apenas a parte da Lei Natural que realiza a Justiça; porém, isto não significa que seja ideal ou irrealizável, já que, para a concepção realista do Direito, o direito é a própria coisa justa ou, como diz Vitoria, “o justo, pela própria natureza da coisa, chamase Direito Natural”.24 Portanto, o Direito Natural não é um direito moral, mas verdadeiro direito, aquilo que é justo, de acordo com o próprio ser das coisas. Além disso, é o critério do justo natural que determina se uma lei positiva é lei justa ou não. Logo, se uma lei que fizer parte do Direito Natural, for impedida de ser executada por outra, esta será “irracional”. Então, ela não tem força de lei, porque não é direito. 7 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 A característica principal do Direito Natural é que pode ser conhecido pela razão humana através de “um processo natural dedutivo”. Processo trabalhoso e, na maior parte das vezes, muito difícil ignorar ou esconder as exigências do Direito Natural, os homens, com o simples ato de pensar, podem descobri-lo e dar-se conta da justiça ou injustiça dos governos, como é o caso dos índios que, por natureza, conhecem que nem o Rei da Espanha, nem o Papa podem ter poder para desapropriá-los das suas terras.25 Os instrumentos jurídicos medievais adotados pela Coroa espanhola para defender a Conquista das Índias, foram questionados por Francisco de Vitoria logo a partir da Bula Pontifícia Inter Coetera, de 149326. Segundo Luis Weckmann: Las Bulas Alejandrinas de Partición, de 1493, constituyen una de las últimas aplicaciones prácticas de una vieja y extraña teoría jurídica, elaborada explícitamente en la corte pontificia a fines del siglo XI, enunciada por primera vez en el año 1091 por el Papa Urbano II [pero que quizá traza su paternidad a Gregorio VII] y conforme a la cual todas las islas pertenecen a la especial jurisdicción de San Pedro y de sus sucesores, los pontífices romanos, quienes pueden libremente disponer de ellas. Esta teoría… bajo el nombre de doctrina omni-insular es, sin duda alguna, una de las elaboraciones más originales y curiosas del derecho público medieval.27 Percebe-se, portanto, que, entre as correntes medievais do poder eclesiástico e secular, a Espanha ficou do lado das ideias papistas, em que o Papa é a única autoridade de jurisdição universal e participaria diretamente do poder temporal. Através da Bula, o Papa doa as terras descobertas e por descobrir à Coroa espanhola, lhe outorgando jurisdição absoluta; encarrega-a da missão espiritual de evangelizar o Novo Mundo; e lhe dá a exclusividade desta tarefa para que não haja desavenças com outros Estados. Beatriz Simán alerta que, além das Bulas serem documentos de tradição medieval, não estava nem na mente do Papa e nem na mente de Colombo que as terras encontradas se tratassem de um continente; ainda entendia-se o local como ilhas28. Logo, ao analisar a citação acima de Weckmann, todas as ilhas do mundo pertenciam, juridicamente, a São Pedro, e, desta maneira, o Papa teria autoridade sobre as terras americanas. 8 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 Outro instrumento jurídico, derivado das designações da Bula Papal, era o Requerimiento de los Conquistadores, que deveria ser lido aos índios. Ruiz aponta alguns itens: [...] (a) Jesus Cristo tem o domínio universal do mundo e, consequentemente, seu vigário, o Papa, é o senhor do universo; (b) o Papa fez doação das terras dos índios aos Reis da Espanha, para facilitar a sua evangelização; (c) os povos que aceitaram esse domínio estão sendo bem tratados e prosperando; (d) convém que os índios que estão sendo “requeridos”, também aceitem a soberania dos Reis da Espanha, pois, caso contrário, haverá guerra; (e) a guerra será justa e os únicos culpados serão os próprios índios, que não aceitaram a submissão aos Reis espanhóis.29 E, por fim, o quadro institucional era completado pelo documento jurídico da encomienda, que criava a obrigação para os índios de prestar serviços e tributos, e em troca, o índio era instruído nos ensinamentos da fé cristã. “A Vós, N, ser-vos-ão confiados [encomendados] (...) índios junto com o cacique N, para vos servirem em vossas empresas e minas, a fim de que possais instruí-los nas verdades da nossa santa fé católica”30. Para pôr em prática seu novo posicionamento jurídico, Vitoria formulou em sua crônica sete títulos considerados por ele “ilegítimos” sobre a ação da Espanha na América; e, em seguida, escreve outros sete títulos “legítimos” que justificariam a presença espanhola em terras americanas31. Com a intenção de evitar equívocos, o autor José Luis Fernández alerta que Vitoria procura causas para a expansão da Cristandade e a participação dos espanhóis, pois sua crítica é quanto aos motivos e métodos admitidos pela Coroa, e não contra estes objetivos32. A luta de Vitoria na defesa dos direitos indígenas, é que, após as Conquistas, os nativos têm a liberdade de eleger livremente sua forma de governo, se a maioria gostaria de ter como seu soberano o Rei da Espanha ou qualquer outro de sua escolha. Além da ação catequética, na qual deveria ser de forma pacífica. Os religiosos espanhóis apenas teriam o direito da liberdade de predicar, mas não poderiam força-los a aceitar a fé cristã, e nem fazer guerra no caso da resposta negativa, pois a sociedade política não tem como base a fé, mas o direito natural. Como líder da Escola de Salamanca, Vitoria, com todas as suas ideias desenvolvidas, finalmente propõe seu projeto político para as colonizações 9 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 espanholas baseado em sua “Segunda Escolástica”. Suas teses são postas em prática nas Leyes Nuevas de 1542, o que justifica a problemática central deste trabalho: a apropriação do modo de governar escolástico espanhol nas Leyes Nuevas. Elaboradas em Valladolid e promulgadas a 20 de novembro de 1542, em Barcelona, este corpo de leis representa evoluções na legislação indígena castelhana no século XVI. Logo no início, é apontado o objetivo geral e principal: Sepades que Nos habiendo sido informados de la necesidad que había de proveer y ordenar algunas cosas que convenían a la buena gobernación de las nuestras Indias, y buen tratamiento de los naturales dellas, […] como vasallos nuestros y personas libres como lo son, […] y administración de nuestra justicia, […] ansí en lo tocante al servicio de Dios nuestro Señor y aumento de su santa fe católica.33 A passagem mostra como fica estruturada a sociedade política proposta por Vitoria: a partir de agora, os índios seriam vassalos diretos da Coroa espanhola; ou seja, teriam o Rei da Espanha como soberano que iria exercer o “bom governo” a seus súditos. As Leyes também pregavam o fim das encomiendas e escravidão dos índios por guerra. Para que todos os objetivos fossem cumpridos, novas Audiências e Conselhos foram criados na Nova Espanha para que os presidentes, ouvidores e vice-reis informassem à Coroa sobre as tarefas realizadas34. Pode-se perguntar o porquê dos indígenas tornarem-se vassalos diretos da Coroa. A maioria teria entrado em um consenso para eleger o Rei espanhol? Ou eles foram forçados a isso? Em um momento de vinte anos pós-conquista da Nova Espanha, muitos indígenas já haviam sido catequizados. Uma hipótese poderia ser o que Vitoria alega em seu Quarto título “legítimo”: Si buena parte de los bárbaros se hubiesen convertido al Cristianismo, ya violentados, ya espontáneamente, mientras sean verdaderos cristianos, puede el Papa darles, con causa justa, lo mismo a petición de ellos que voluntariamente, un príncipe cristiano y quitarles los señores paganos.35 Não devemos esquecer de que Vitoria é um padre dominicano, e que, por isso, é adepto à predicação de todas as populações à fé cristã; e por esse motivo, 10 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 defende a necessidade da evangelização, mas sempre de forma pacífica. Por mais que Vitoria tenha proposto novas jurisdições, combatendo ideais medievais consolidados, em alguns pensamentos manteve a tradição. Neste caso, restringiu parte da liberdade indígena, devido à “necessidade” de expansão do cristianismo, fim último do ser humano. O modo de governar escolástico espanhol apresentado nas Leyes Nuevas está claramente apropriado do possível oitavo título legítimo de Vitoria: Otro título podría, no precisamente traerse, sino ponerse a estudio y parecer a algunos legitimo. Del cual no me atrevo a afirmar nada; pero tampoco me atrevo a condenarlo del todo. Y es éste: esos bárbaros, aun cuando, […] no sean del todo amentes, poco distan, no obstante, de los amentes; y así parece que no son idóneos para constituir y administrar una República legitima, aun dentro de los términos humanos y civiles; por lo cual no tienen leyes convenientes ni magistrados; ni siquiera son idóneos para gobernar la familia; hasta carecen de letras y de artes, no sólo liberales sino mecánicas, de diligente agricultura, de artesanos y de otras muchas comodidades y aun necesidades de la vida humana. Alguien, pues, pudiera decir que para utilidad de los bárbaros pueden los príncipes españoles encargarse de la administración de ellos y poner al frente de ellos por ciudades prefectos y gobernadores, y aun darles nuevos señores, mientras constase que les convenía así.36 Além da justificativa do “quarto título” apresentado, era necessário que os índios fossem súditos da coroa espanhola pela sua incapacidade e inferioridade jurídica, no qual eram rudes, miseráveis e neófitos, em que possuíam lento entendimento, necessitavam de proteção especial e eram aprendizes na fé católica. Percebe-se claramente como o dominicano teve participação fundamental na formulação das leis de 1542, e suas teses merecem ser estudadas com mais profundidade para entendermos não só o resgate das ideias escolásticas e as intenções da elaboração das Leyes, como também seus efeitos nas diferentes regiões do império ultramarino espanhol. Mestrando em História – Programa de Pós-Graduação em História – UNESP. Bolsista CAPES. Contato: [email protected]. 11 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 1 A linha imaginária da Bula Inter Coetera foi traçada a 100 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde: as terras situadas a oeste da linha demarcatória ficariam para a Espanha, cabendo a Portugal as terras a leste. Após os protestos do rei de Portugal, D. João II, foi estabelecida uma nova demarcação que ficou conhecida como Tratado de Tordesilhas. A linha imaginária passaria agora a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde: a porção ocidental ficaria pertencendo à Espanha, cabendo a Portugal a porção oriental. 2 SUÁREZ ROMERO, M.Á. La situación jurídica del índio durante la conquista española en América: Una visión de la incipiente doctrina y legislación de la época tendente al reconocimiento de derechos humanos. Revista de la Facultad de Derecho de México, n. 242, 2004, p. 256. 3 Idem, p. 255. 4 O dito modelo jurídico tradicional foi utilizado na Europa no período medieval. Com a nova realidade americana, este sistema começa a ser questionado. Uma análise mais detalhada será feita logo adiante. 5 Apud. CARRO, V.D. La “Communitas Orbis” y las rutas del Derecho Internacional según Francisco de Vitoria. Palencia: Imprenta Moderna, 1962, p. 35. 6 O Sermão de Montesinos encontra-se registrado nos textos do padre dominicano Bartolomé de Las Casas. 7 Anthony Pagden reforça que o frade não foi o único a protestar. Outros missionários dominicanos e jesuítas, e até capelães anglicanos e pastores huguenotes, “do Brasil ao Timor”, queixavam-se dos abusos cometidos pelos colonizadores. PAGDEN. Povos e impérios: uma história de migrações e conquistas, da Grécia até a atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 102. 8 A Ordem Dominicana foi a primeira a chegar à América, no ano de 1510. 9 Apud. HANKE, L. La lucha por la Justicia en la Conquista de América. Tradução Ramón Iglesias. Reedição da edição princeps. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1944; Madri: Istmo, 1988, p. 111. 10 Para obter mais informações sobre estas leis, cf. RUIZ, R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indígena castelhana no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. No caso da última, ainda será discutida nesse texto. 11 Idem, p. 52. 12 Apud. CARRO, p. 226. 13 SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 71. 14 Idem, p. 426. 15 Idem, p. 437. 16 Idem, p. 431. 17 Senellart aponta como Maquiavel rejeitava a concepção tomista de governo, pois o príncipe deve defender seus interesses pessoais e garantir sua segurança no centro do dispositivo do Estado, e não adotar a retórica do “bem comum” e “interesse público”. De acordo com Senellart, Maquiavel teria considerado esta arte de governar – centrada na virtude do príncipe e orientada para o bem comum – como utópica. SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 20. 18 TORGAL, L.R. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1982, Volume II, p. 19. 19 Para Skinner, Paris era um dos maiores centros de excelência nos estudos sobre filosofia e teologia da Europa ocidental, e tornou-se palco do movimento escolástico. 20 RUIZ, p. 61. 21 Idem, p. 58. 22 VITORIA, F. Relecciones Teológicas. Madrid: Librería Religiosa Hernández, 1917, Tomo I, p. 42-43. 23 Idem, p. 45. 24 RUIZ, p. 67-68. 25 Idem, p. 71. 26 Pagden mostra que não apenas Vitoria, como diversos outros teólogos e juristas da Escola de Salamanca rejeitaram a autoridade das Bulas, em que o Papa não poderia exercer o domínio no mundo secular e por não ter autoridade sobre qualquer população não cristã. PAGDEN, A. Lords of all the Worlds: Ideologies of Empire in Spain, Britain and France c. 1500 – c. 1800. New Haven: Yale University Press, 1995, p. 47. 12 Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3 27 WECKMANN, L. Constantino el Grande y Cristóbal Colón: Estudios de la supremacía Papal sobre islas, 1091-1493. México: FCE, 1992, p. 24. 28 MALDONADO SIMÁN, B. La guerra justa de Francisco de Vitoria. Anuario Mexicano de Derecho Internacional, v. VI, 2006, p. 683. 29 RUIZ, p. 77. 30 HOFFNER, J. A Ética colonial espanhola do Século de Ouro: Cristianismo e dignidade humana. Tradução José Wisniewski Filho. Rio de Janeiro: Presença, 1977, p. 168. 31 Para saber de forma detalhada cada título do dominicano, cf. VITORIA, T1. 32 FERNÁNDEZ, J.L.S. Sobre el origen de las declaraciones de derechos humanos. México: UNAM, 2009, p. 48. 33 Leyes y Ordenanzas: nuevamente hechas por S. M. para la gobernación de las indias, y buen tratamiento y conservación de los indios. Barcelona: En testimonio de verdad, Antonio de Turcios, 1542. 34 Para analisar todo o Corpo das “Leyes Nuevas”, cf. “Leyes y Ordenanzas”. http://www.lluisvives.com/servlet/SirveObras/public/06922752100647273089079/p0000026.htm 35 VITORIA, p. 81. 36 Idem, p. 85. 13