Entrevista com José Carlos Martins: Na China, aço é tão importante quanto arroz e feijão no Brasil FELLET, João. “Entrevista com José Carlos Martins: Na China, aço é tão importante quanto arroz e feijão no Brasil”. BBC Brasil. São Paulo, 11 de abril de 2011. A China produz hoje, sozinha, mais aço do que o total fabricado por todos os outros países. O desempenho, consequência de uma estratégia traçada há cinco décadas pelo líder Mao Tsé-tung (1893-1976), dá a dimensão da importância da siderurgia para a economia do país e faz com que o setor atraia grande atenção do cidadão chinês comum, segundo o diretor-executivo de Marketing, Vendas e Estratégias da Vale, José Carlos Martins. "Não estamos falando de uma simples commodity. Para os chineses, o aço é quase como um alimento, como o arroz e o feijão são para os brasileiros", diz Martins, também encarregado das operações de ferrosos da Vale. Maior mineradora do Brasil e segunda maior do mundo, a Vale tem se beneficiado do apetite das siderúrgicas chinesas: no ano passado, anunciou um lucro recorde (R$ 30,1 bilhões), alimentado em grande medida pelas exportações para a China de minério de ferro, principal matéria-prima do aço. Em entrevista à BBC Brasil, Martins diz que a Vale também tem se empenhado em exportar produtos de maior valor agregado, como pediu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas cita barreiras ambientais como entraves a empreendimentos industriais. BBC Brasil - Os preços das commodities estão em alta nos últimos anos, mas esse mercado está sujeito a oscilações, e há previsões de que o crescimento chinês possa desacelerar bruscamente com o estouro de uma bolha no setor imobiliário. A Vale considera essa hipótese? José Carlos Martins - Às vezes as pessoas se impressionam por nuances macroeconômicas, mas isso é só espuma. A China ainda tem muita gente para passar do campo para a cidade. Se a velocidade desse processo for muito grande, vai gerar pressão inflacionária, mas o governo chinês percebeu esse fenômeno e o está controlando. Mas não existe só a China. Há mais 3,6 bilhões de pessoas na Ásia num processo de urbanização. Mesmo que a China reduza a expansão, o fenômeno asiático continuará mantendo uma demanda forte. BBC Brasil - Quais são as particularidades de negociar com os chineses? Martins - A China é uma nação de 5 mil anos, e eles sempre foram grandes mercadores. Passaram por uma experiência socialista, até que o Deng Xiaoping iniciou processo de abertura. O problema deles foi só relembrar. É um povo muito fácil de tratar, que tem uma similaridade brutal em seu comportamento com os brasileiros. Antes de fazer negócios, o chinês quer conhecê-lo, processo que normalmente inclui alguns tragos. Eles têm a percepção de que as pessoas mostram mais quem são quando bebem um pouco e estão mais abertas. BBC Brasil - Algumas empresas brasileiras se queixaram publicamente de que parceiros ou clientes chineses tendem a querer resolver problemas diretamente com o governo brasileiro e não com o setor privado. O senhor compartilha dessa experiência? Martins - Isso é natural numa economia de planejamento central, onde diretrizes são sempre definidas pelo governo. Acredito que, com a velocidade com que estão se desenvolvendo, mais e mais eles vão se assemelhar ao nosso sistema. Temos que administrar melhor essas tensões. BBC Brasil - A Associação de Ferro e Aço da China criticou o novo modelo de revisão de preços defendido pela Vale e disse que o setor siderúrgico chinês investirá na produção de ferro em outras partes do mundo para que, em cinco anos, possa suprir 40% da demanda interna. A queda nas vendas de minério de ferro da Vale para a China em 2010 já é um reflexo dessa busca por diversificação? Martins - A queda em 2010 foi pontual. Em 2009, tivemos grande queda na demanda do mundo ocidental, o que nos obrigou a direcionar todo o excedente de produção para a China. Em 2010, houve recuperação da demanda da Europa, do mercado brasileiro, e o nosso excedente de produção se reduziu. BBC Brasil - E quanto aos planos dos chineses de investir na produção de ferro em outros lugares para reduzir a dependência das grandes mineradoras? A Vale teme que suas vendas sejam afetadas? Martins - Logicamente temos alguma preocupação, mas nos sentimos preparados para enfrentar essa situação, e nossa estratégia, procurando maior diversificação e desenvolver novos setores, é resultado dessa preocupação. Apesar dos percalços causados pela questão da escassez, dos preços e pelos embates negociais, a questão do minério de ferro e do aço só adquiriu essa dimensão no mercado por causa da China. Dentro da cultura chinesa, o aço e o minério de ferro ocupam posição central. Durante o Grande Salto Adiante, Mao Tsé-tung pôs a China toda para produzir aço. Hoje o país produz sozinho mais aço que o mundo todo junto, o que dá dimensão da importância dessa indústria na economia deles e atrai atenção muito grande do cidadão chinês comum. Não estamos falando de uma simples commodity: para os chineses, o aço é quase como um alimento, como o arroz e o feijão são para os brasileiros. BBC Brasil - O que a Vale acha da entrada de investidores chineses na produção de minérios no Brasil? Martins - Vemos com muita naturalidade. Somos uma empresa e, quando vamos à China, obedecemos as regras de lá. Quando os chineses vêm para cá, obedecem as regras daqui. Não há nada com que se preocupar ou achar que há algo de errado nisso. Mas tem de haver reciprocidade nas relações comerciais, o que é uma questão de Estado: se uma empresa chinesa pode participar de uma concorrência aqui, na área de construção civil, a empresa brasileira deveria poder participar lá. BBC Brasil - A valorização do real tem afetado a Vale? Martins - Não. Os aumentos dos preços dos minérios no mercado têm mais do que compensado o aumento do nosso custo pelo efeito da valorização do câmbio brasileiro. Um grande problema que afeta nossa relação ou pode vir a afetar é questão da tributação e a logística, porque o Brasil está muito longe da China. Concorremos com os australianos, que estão a um terço da distância em tempo. Enquanto um navio brasileiro até a China toma 45 dias, da Austrália toma 15. Temos investido bastante para minimizar essa desvantagem competitiva. BBC Brasil - O ex-presidente Lula disse que a Vale deveria pensar mais no Brasil, referindo-se ao fato de que o país é o maior exportador de minério de ferro, mas importa produtos fabricados a partir da commodity. A Vale não poderia ter um papel mais incisivo no desenvolvimento do setor industrial brasileiro? Martins - Nós temos feito isso, temos muitas iniciativas de produção de aço. A última siderúrgica produzida de grande porte construída nos últimos 30 anos teve apoio da Vale – a ThyssenKrupp CSA, no Rio. Temos projetos siderúrgicos no Ceará, Pará, Espírito Santo, todos grandes. Entendemos as reclamações, mas existem dificuldades. Um projeto siderúrgico leva quatro ou cinco anos para ser implementado. Outra questão são barreiras ambientais, que não são pequenas. O Brasil está crescendo rápido, e os órgãos ambientais estão sobrecarregados, faltam técnicos. Todos queremos agregar valor e gerar empregos, mas há fatores que não permitiram que a velocidade fosse a que o presidente Lula gostaria. BBC Brasil - A dificuldade quanto aos licenciamentos ambientais é o tempo para obtê-los ou regras muito rígidas? Martins - As duas coisas. Setores ambientalistas dificultam muito o desenvolvimento da produção siderúrgica. Eles fazem o papel deles; a questão são as escolhas que o país tem de fazer. Não se vai transformar o Brasil numa nação próspera e desenvolvida com menos emissão de carbono. Tínhamos um projeto de siderúrgica no Maranhão que tentamos a licença por três anos e não conseguimos. Tivemos de abandoná-lo. A questão de produzir aço no Brasil não é só decisão de governo, não é só empresarial, é questão da sociedade. A sociedade tem que querer. A China não viraria o maior produtor mundial se não tivesse decisão da sociedade, do governo e das empresas.