LEO PESSINI CHRISTIAN DE PAUL DE BARCHIFONTAINE (Orgs.) FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA PAULUS - 1996 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 &áo Paulo (Brasil) Fax(011) 570-3627 Tel. (011) 575-7362 I O DESENVOLVIMENTO DA BIOÉTICA NA AMÉRICA LATINA ALGUMAS CONSIDERACÕES Léo Pessini A bioética vem crescendo com surpreendente aceitação em nosso meio. Começa a ser estudada e debatida, não só nos meios académicos, mas também pelas pessoas comuns que, sob o influxo crescente da mídia, vêm recebendo mais informaçóes e se perguntam a respeito de questões polêmicas relacionadas com a vida, por exemplo, aborto, eutanásia, engenharia genética, reprodução assistida, só para citar as mais em evidência. O que fazer? Como pensar? O que é certo? O que é errado? Afinal até quando e onde o ser humano tem direito de interferir na natureza humana? Que significa cidadania na área da saúde? Direitos dos pacientes... Morrer com dignidade... Onde ficam os valores religiosos em tudo isso? E as questões vão longe! Estamos em frente a uma realidade complexa na qual interferem valores e fatos dos diversos campos - cultural, profissional, religioso, científico - que dificilmente poderá ser enfrentada com respostas simplistas e superficiais. Diálogo multidisciplinar e toleráncia serâo essenciais para avançar. É importante assinalar logo de início que o ethos latino-americano está profundamente marcado pela cultura européia, uma vez que estas terras foram colonizadas por europeus. Em termos de ciência, tecnologia e especialização na área da saúde, a América Latina depende de importaçóes de equipamentos dos EUA e Japão e treina seus maiores experts em universidades norte-americanas. O diálogo tecnologia-cultura não é tão pacífico, e muito menos neutro, quanto possa parecer à primeira vista. Imbutido com a tecnologia, não raro, transplantam-se soluções para dilemas de vida que servem muito bem na cultura de origem, mas não se adequam à nova realidade cultural, sem falar dos "modismos". Neste texto procuramos evidenciar alguns aspectos do crescente movimento da bioética em nível mundial, particularizando a América Latina, assinalando as perspectivas culturais diversas e as iniciativas em andamento, para estimular a discussão bioética no diálogo transcultural. Não é nosso objetivo buscar possíveis respostas às questões supramencionadas, tarefa sem dúvida árdua, difícil, mas importante e que espera por um estudo aprofundado específico. Iniciamos com um rápido relato a respeito do II Congresso Mundial de Bioética, realizado em Buenos Aires do qual participamos, de 24-26 de outubro de 1994 (1); avançamos em busca de uma visão do andamento das iniciativas e perspectivas da bioética pela América Trabalho apresentado no III Congresso Brasileiro de Bioética e Saúde, São Paulo, 15-17 de junho de 1995. Léo Pessini é Diretor do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e Bioética (ICAPS), ViceDiretor Geral das Faculdades Integradas São Camilo e capelão do Hospital das Clínicas da FMUSP. Autor de várias obras na área da bioética, entre as quais: Eutanásia e América Latina, Morrer com dignidade e Problemas atuais de bioética. Latina (2); levantando algumas características específicas da bioética latinoamericana no confronto dialogal com a bioética "made in USA" (3) e européia (4). Em seguida, apresentamos algumas notas sobre bioética em terras brasileiras (5) e, finalmente, encaminhamos uma conclusão na convicção de que o surgimento e valorização da discussão bioética traduz-se num grito pela preservação da dignidade humana e qualidade de vida, hoje tão ameaçadas. 1. O II Congresso Mundial de Bioética O II Congresso Mundial de Bioética reuniu mais de 500 especialistas de 44 países. Foi promovido pela Associação Internacional de Bioética e organizado pela Escuela Latinoamericana de Bioética - Fundación Dr. José María Mainetti, da Argentina. O primeiro Congresso Mundial aconteceu em Amsterdam em 1992 e o próximo está programado para San Francisco, em 1996. Um evento dessa magnitude nos dá uma idéia ainda que global, ainda que superficial, de como anda a evolução da bioética no mundo1. Partilhamos algumas impressões pessoais do congresso e recolhemos várias informações desse processo evolutivo, atendo-nos mais especificamente a algumas notícias de iniciativas sobre bioética na realidade latino-americana 2. No discurso de abertura, o presidente do Congresso, Prof. Dr. Juan C. Tealdi, assim falou do desenvolvimento da bioética: "A bioética já completou 25 anos e teria alcançado a maioridade, se fosse uma cronologia individual. Porém, cabe a suspeita de que as instituições em geral e, ainda mais, as instituições segundo seu local, têm um crescimento cuja essência temporal tem a ver com o espaço concreto no qual se desenvolve. Sendo assim, pode-se pressupor que estes 25 anos que se passaram desde que surgiu essa nova disciplina têm sido anos durante os quais a bioética cresceu de modo diferente nos diversos cenários". De fato, na América Latina, fala-se mais em bioética após o aparecimento, nestes últimos anos, com a multiplicação de núcleos, centros de estudos e institutos de pesquisa e publicações. A Associação Internacional de Bioética edita uma revista (oficial) denominada "Bioethics" e possui os seguintes objetivos educativos e científicos: a) facilitar os contatos e o intercâmbio entre os que trabalham com bioética nas diferentes partes 1 Para uma visão global da bioética, ler o livro de Corrado Viafora, Vent'anni di bioetica; Idee, protagonisti, istituzioni, Gregoriana Libreria Editrice, Padova, 1990. Neste livro colaboradores renomados fazem uma apresentação da bioética nos Estados Unidos (Warren Reich), pp. 124-174; na área de língua francesa (Jean-François Malherbe), pp. 178-222; na Holanda (Maurice A. M. De Wachter), pp. 240-248; na área de língua espanhola (Diego Gracia Guillen), pp. 252-299; na área de língua alemã (Alberto Bondolfi), pp. 302-357 e na Itália (Adriano Bompiani ), pp. 362-433. É oportuno notificar que neste livro não existe uma notícia sequer a respeito de bioética na América Latina. 2 A Organização Panamericana da Saúde/OMS lançou um número especial sobre bioética em sua publicação oficial. É o Boletín dela Oficina Sanitaria Panamericana (ano 69, vol. 108, n. 5-6, maio e junho de 1990). Observa-se no seu conteúdo inúmeros artigos traduzidos e autores dos EUA, Canadá e Europa. Surge um primeiro esboço do panorama regional de bioética das Américas. Da America Latina temos notícias da Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, México e Peru e percebe-se que a bioética é predominantemente lida a partir da ética médica. do mundo; b) organizar e promover periodicamente congressos internacionais de bioética; c) incentivar o desenvolvimento da pesquisa e do ensino em bioética; d) apoiar o valor do debate livre, aberto e racional dos problemas de bioética. Dentre os participantes, foi registrada a presença significativa de profissionais da área médica envolvidos com o ensino da ética e medicina legal, advogados, filósofos, especialistas em ciências biológicas e teólogos, entre outros. Entre os participantes brasileiros, em torno de quarenta (40), houve predominância de um grupo de São Paulo, na grande maioria médicos, professores de ética e medicina legal nas faculdades de medicina, filósofos e vários teólogos especializados em ética teológica. Das figuras exponenciais, destacamos: Pedro Lain Entralgo (Espanha), Diego Gracia Guillén (Espanha), Sandro Spinsanti (Itália), Mark Siegler (EUA), Helga Kuhse (Austrália), Peter Singer, atual presidente da Associação Internacional de Bioética 3 e Maurice de Wachter (Holanda). Observamos a ausência dos "pesos pesados" da bioética nos EUA, tais como Daniel Callaham (Hastings Center), David Thomasma, Edmund Pellegrino (Kennedy Institute) e Richard Mcormick, entre outros. O único representante francês esperado, o Prof. Alain Pompidou, filho do ex-presidente da França, não pôde estar presente. O temário do congresso girou basicamente em torno de quatro núcleos fundamentais de problemas desenvolvidos em forma de painéis: a) Fundamentos da bioética, com um acento particular nos princípios da bioética. A discussão da famosa "trindade bioética" - autonomia, beneficência e justiça. Afinal que bioética? Elaborar a partir de "uma torre de marfim", sem muita aderência à realidade, ou uma bioética que seja a voz dos sem voz? b) Bioética clínica - relacionamento profissional-paciente, sobre a morte e o morrer (morte cerebral), eutanásia, transplantes, consentimento informado, comitês multidisciplinares de bioética, tecnologias reprodutivas conceptivas (NTRc), etc. c) Bioética social - políticas de saúde, reforma dos sistemas de saúde, recursos na saúde, ecologia; comissões nacionais de bioética. d) Bioética transcultural - bioética na América Latina, nos EUA, na Europa, na Oceania, Índia e Ásia. Percebem-se acentos "diferentes". Algo que sobressai de imediato no encontro dialogal cultural, por exemplo, a bioética pensada no Ocidente valoriza sobretudo o "indivíduo", enquanto no Oriente o acento está na "comunidade". Vale a pena destacar as palavras do presidente do Congresso Prof. Juan Carlos Tealdi, na apresentação da programação: `A bioética surgiu como uma síntese de conhecimento e ação multidisciplinar para responder aos problemas morais no vasto campo da vida e da área da saúde. De um lado, trata-se de ter os fundamentos filosóficos, teóricos e metodológicos que podem unir abordagens normativas da medicina, o direito, a teologia e outros campos do conhecimento com a opinião da comunidade sobre essas questões. De outro, julgamentos profissionais e decisões em problemas clínicos sobre questões particulares são distintos daquelas abordagens que levam ao compromisso das instituições e, portanto, de outros grupos da sociedade em sua globalidade."(...) "O programa do Congresso portanto inclui uma gama dos correntes tópicos 3 Sua polêmica obra Ética prática foi traduzida para o português pela Editora Martins Fontes. mais representativos da bioética, tais como: iniciativas internacionais em bioética, comissões nacionais e comitês de ética, abordagens religiosas à bioética, educação em bioética, genética, tecnologias reprodutivas, AIDS, transplantes de órgãos, a morte e o morrer, privatização da saúde, política e meio ambiente, experimentação e ética, entre outros4. Ao comentar o desenvolvimento da bioética até o presente momento e a contribuição latino americana para o processo, Tealdi assim se expressa: "Os anos 70 podem ser considerados como a década em que esta disciplina nasceu e definiu suas questões essenciais, particularmente nos EUA. Nos anos 80 ocorreu uma progressiva institucionalização na Europa, bem como o início ou continuidade de iniciativas isoladas em outros países. Nos anos 90, ao invés, estamos presenciando a progressiva expansão da bioética para as diversas regioes do mundo através da Associação Internacional de Bioética. Este crescimento num encontro acadêmico e cultural cada dia maior trará mudanças em relação àquilo que concordamos em denominar como sendo bioética. Neste sentido vem a contribuição da Escola Latino americana da Bioética, considerando que a América Latina tem muito para contribuir no debate mundial da bioética." 5 A participação neste congresso permitiu uma visão maior de como está se desenvolvendo a bioética nos diferentes continentes e mais especificamente na América Latina. 2. Bioética na América Latina: iniciativas e perspectivas em alguns países Centros ou institutos de bioética e congressos são fatores que mais contribuiram para o estudo e difusão da bioética no mundo. Os dois primeiros centros pioneiros no mundo e que influenciaram o surgimento de inúmeros outros centros foram o Kennedy Institute of Ethics, afiliado à Universidade de Georgetown em Washington, que publica o Kennedy Institute of Ethics Journal e o Hastings Center (fundado em 1969), em Nova Iorque que publica a já célebre publicação Hastings Center Report. Nos EUA existem hoje cerca de 50 centros de bioética. Destaque especial merece também o Park Ridge Center, de Chicago, fundado em 1986, que publica uma revista de periodicidade trimestral denominada Second Opinion.6 Nos países latino-americanos e do Caribe, alguns grupos informais de estudo de bioética se transformaram em centros ou institutos de bioética. Entre os institutos pioneiros, ou talvez o pioneiro, no Continente Latinoamericano, funciona no Centro Oncológico de Excelência, em Gonnet, Argentina, fundado pelo humanista Dr. José Alberto Mainetti, é o primeiro Instituto acadêmico 4 Cf. O manual da programação do II World Congress Bioetica, apresentação, p. 3. Id. lbidem, p. 3. 6 O Park Ridge Center existe para "estudar as relações entre saúde, fé e ética". Nos seus programas de pesquisa, educação e publicações, o Centro dá atenção especial aos valores religiosos nas questões que as pessoas enfrentam na busca da saúde ao enfrentar a doença. Objetiva contribuir para a reflexão ética numa perspectiva global. Neste trabalho o centro colabora com representantes de diversas culturas, comunidades religiosas e disciplinas acadêmicas. 5 de ensino de bioética na América Latina, fundado e dirigido pelo Dr. Juan Carlos Tealdi, que se denomina: Escuela Latino Americana de Bioética - ELABE. Este Centro organizou o II Congresso Mundial de Bioética, e publica uma revista especializada denominada Quirón. E importante ressaltar que na Universidade de Buenos Aires existe a cátedra regional de bioética em convênio com a Unesco, dirigida pelo Prof. Salvador D. Bergel, com a atuação dos professores Stella Maris Martínez, Luis F. Niño, Florência Luna e Susana Sommer. Em Bogotá (Colômbia) está a sede da Federación Latino-americana de Instituciones de Bioética - FELAIBE, dirigida por Alfonso Llano Escobar, SJ. Esta entidade aspira a ser um elo de ligação entre os diferentes institutos e pessoas interessadas em bioética na América Latina. Publica o boletim "Vínculo". Também em Bogotá, recentemente, foi criada a Academia Colombiana de Estudios Bioéticos. No Chile, além do Centro de Bioética da Universidade Católica, a Organização Panamericana da Saúde (OPAS) da Organização Mundial da Saúde (OMS) fundou há pouco tempo o Programa Regional de Bioética, com sede em Santiago, com a participação do governo e da Universidade do Chile, dirigido pelo Dr. Julio Montt Momberg. O Programa Regional de Bioética cooperará com os estados membros da OMS e suas entidades públicas e privadas no devenvolvimento conceitual, normativo e aplicado da bioética em suas relações com a saúde. Seus objetivos principais são: 1) difundir conhecimentos de bioética nos países membros; 2) incentivar os trabalhadores(as) da saúde para o estudo e formação em bioética; 3) motivar a mais ampla discussão pluralista dos temas de bioética prioritários para a região; 4) relacionar a bioética com a saúde pública para melhorar, atualizar e aprofundar os processos de criação de políticas públicas de saúde especialmente relacionadas com os conceitos de eqüidade e solidariedade; 5) fomentar e apoiar a pesquisa em temas de bioética na América Latina e Caribe. Nas linhas temáticas prevê-se a discussão de temas tais como: a) bioética e Saúde Pública. O tema de maior relevância para a bioética é sobre o acesso, distribuição de recursos, custos, qualidade de vida etc.; b) ética clínica: ética na prática médica. Temas importantes como: decisões críticas ante pacientes; interrupção de tratamentos, eutanásia, suicídio assistido etc.; c) ética da pesquisa; d) ética da legislação na saúde. Levar em conta os aspectos bioéticos que privilegiem os princípios de justiça e eqüidade. Dar prioridade a situações especiais criadas pelas novas enfermidades, tais como AIDS. As novas tecnologias criam novos problemas que exigem estudos específicos, por exemplo, dilemas relacionados com a reprodução humana, transplantes, definição de morte cerebral, critérios de doação de órgãos etc7. 7 Cf. Boletim Informativo do Programa Regional de Bioética da Organização Panamericana da Saúde denominado: Informa bioética, n. 01, outubro de 1994, pp. 1-2. No desenvolvimento da bioética na América Latina e Caribe a OPAS-OMS "assegura a neutralidade política e religiosa, objetividade e pluralismo para o avanço da bioética na região. Este processo deve realizar-se num contexto de uma sociedade profissionalmente secular e pluralista. Por ser uma organização exclusivamente ligada à saúde a OPAS define seu Programa Regional de Bioética tendo por "missão cooperar com os Estados membros da Organização e suas entidades públicas e privadas, no desenvolvimento conceitual, normativo e aplicado da bioética em suas relações com a saúde". No seminário realizado em novembro de 1994 em Santiago do Chile ao se pensar na estruturação das atividades do Programa Regional de Bioética, após o levantamento de um primeiro cadastro para conhecimento e informação a respeito dos profissionais e Centros de Bioética Em muitos países da América Latina a reflexão está apenas começando, um exemplo típico é o Paraguay. No Peru já constatamos algumas iniciativas importantes. O presidente da recém-fundada Associação de Bioética do Peru, Roberto Lhanos, orgulhosamente falou dos primeiros passos neste sentido, com encontros mensais e seminários programados. Temos notícias de que as Faculdades de Medicina da Universidade Cayetano Herédia e Nacional de San Marcos já têm a bioética como disciplina no seu currículo. Do México temos notícia da existência da Comissão Nacional de Bioética, que de 3 a 6 de outubro de 1994 organizou o I Congresso Internacional de Bioética. Atividades expressivas na área da bioética são promovidas na Universidade Anauac, sob a cordenação da Dra. Martha Tarrasco. Outra iniciativa é o Centro de Estudos e Pesquisas de Bioética na Universidade de Guanajuato, ligado à Faculdade de Medicina. No Uruguay o Sindicato Médico do Uruguay, fundado em 1920, criou em 10 de agosto de 1991 uma Comissão de Bioética. Além disso, na Universidade Católica do Uruguay existe o Instituto de Ética e Bioética. Na República Dominicana temos notícia de que a Universidade Católica tem o departamento de bioética. 3. A bioética latino-americana e a "bioética made in USA" Uma constatação inicial que se faz é que o "estilo norte-americano" de bioética, dominante no início da bioética, está mudando com a contribuição e influência da Europa, Ásia e também da América Latina. Nas etapas iniciais, a bioética se defrontou com os dilemas éticos criados pelo desenvolvimento da medicina. A experimentação, o uso humano da tecnologia, perguntas sobre a morte, o morrer e os moribundos formam uma grande parte da bioética nos anos 90. As questões originais da bioética se expandiram para problemas relacionados com os valores, em todas as profissões da saúde: enfermagem, saúde pública, saúde mental etc. Um grande número de temas sociais está agora incluído sob o termo de "bioética": saúde pública, saúde ocupacional, controle da população, saúde da mulher, dentre outros. A bioética inclui o bem-estar dos animais de experimentação e preocupações com o meio ambiente. As questões clínicas se ampliaram para incluir temas relacionados com as novas tecnologias reprodutivas conceptivas, os transplantes, a genética, a biologia molecular, entre outros temas. As preocupações da bioética em relação ao futuro são grandes, tendo em vista a crescente complexidade que poderá surgir com o Projeto Genoma Humano e com as questões relativas à AIDS. Interessantes são as observações do Prof. James Drane, bioeticista norteque têm atividades relacionadas com o tema na América Latina e Caribe, percebeu-se que existem: "escassos conhecimentos acerca da disciplina, que hoje se conhece pelo nome de bioética. Pouca pesquisa nos temas de bioética que fundamentem critérios e orientem programas de formação. Escassa difusão bibliográfica em espanhol em relação com a disciplina bioética. Falta de debate multidisciplinar e comunitário sobre temas básicos de bioética.. A existência, em vários países, de Centros de Bioética e grupos de estudo no nível acadêmico que podem aumentar e multiplicar sua contribuição e projeção em nível regional, partilhando e difundindo suas experiências e publicações". americano, ao comentar a implantação do Programa Regional de Bioética pela OPAS no diálogo com a bioética "made in USA". Pela sua pertinência e importância selecionamos alguns tópicos de sua apresentação no seminário, por ocasião da implantação do programa de bioética8, ocorrido em novembro de 1994 em Santiago do Chile. "A tecnologia médica impulsiona o desenvolvimento da bioética clínica. Isto é verdade, tanto na América Latina como na América anglo-saxônica. No início, nos EUA, as perguntas que se faziam com mais freqüência tinham a ver com o uso humano de uma nova tecnologia: o uso ou retirada de aparelhos, a aceitação ou recusa do consentimento. Em algumas partes da América Latina, a simples existência de alta tecnologia e centros de cuidado médico ultraespecializados levanta perguntas adicionais acerca da discriminação e injustiça na assistência médica. As indagações difíceis nesta região não são em torno de como se usa a tecnologia médica humanamente, mas quem tem acesso a ela. Um forte `sabor social' qualifica a bioética latino-americana. A solidariedade é um conceito que poderá ocupar, na bioética latino-americana, um lugar similar ao que é ocupado pela autonomia nos EUA. Na América Latina, bioeticistas tendem a criticar a ênfase na autonomia do paciente que existe na bioética dos EUA. A ênfase latina na justiça, eqüidade e solidariedade ou nos antecedentes sociais de normas morais, penso que é correta. Contudo, a autonomia é importante nos EUA e na América Latina no começo da bioética moderna e seria um erro ignorar ou minimizar a sua importância constante. Os programas de bioética na América Latina deveriam usar conceitos norte-americanos, sem deixar-se dominar pelos interesses e perspectivas dos norte-americanos. Como norte-americano com interesse e respeito pela América Latina, sou muito sensível ao dano do imperialismo intelectual. Alguns de meus colegas, não somente têm idéias escassas e errôneas sobre esta região, mas supõem que onde se desenvolva a bioética no mundo, o produto será o que eles mesmos entendem por bioética. A forte influência dos EUA nesta disciplina facilmente passa inadvertida para as pessoas que não apreciam outras culturas”9. Continua J. Drane pontualizando que "a última coisa que um programa regional da OPAS em bioética deveria fazer seria o de simplesmente importar a bioética dos Estados Unidos. Porém, seria também um erro ignorar o desenvolvimento da bioética nos Estados Unidos. Os latino-americanos não são tão individualistas e certamente estão menos inclinados ao consumismo em suas relações com o pessoal médico, que os norte-americanos. E seria um erro, sem dúvida, pensar que o consentimento informado e tudo o que com ele se relaciona, não fosse importante para os latino-americanos. O desafio é aprender dos EUA e dos pensadores europeus, sem simplesmente imitar suas perspectivas ou importar seus programas" 10 O grande desafio é desenvolver uma bioética latino-americana que corrija os exageros das outras perspectivas e que resgate e valorize na cultura latina no que lhe 8 Cf. James Drane, “Preparação de un programa de Bioética: consideraciones básicas para el Programa Regional de Bioética de la OPS", texto mimeografado, 36 páginas. 9 Cf. James Drane, ibidem, pp. 32-33. 10 Cf. James Drane, ibidem, pp. 35-36. é único e singular, uma visão verdadeiramente alternativa que possa enriquecer o diálogo multicultural. Há, contudo, outro aspecto fundamental a ser levado em conta e que surge a partir da realidade social. Na América Latina a bioética tem o encontro obrigatório marcado com a pobreza e a exclusão em nível de "macroética". Elaborar uma bioética somente em nível de "microética" de estudo de casos de sabor deontológico somente, sem levar em conta esta realidade, não responderia aos anseios e necessidades por mais vida digna reivindicada. Não estamos questionando o valor incomensurável de toda e qualquer vida que deve ser salva, cuidada e protegida. Mas, como diz Maus M. Leisinger, "corremos o risco de enfocar questões que são importantes para uma minoria nas nações ricas, enquanto ignoramos tragédias humanas de dimensões sem precedentes nos estratos mais baixos dos países pobres de hoje. Nossa tendência é lidar com um número menor de questões e num nível de profundidade e complexidade maior, como os objetos investigados e dissecados sob o microscópio e perdemos a visão global dos problemas mais candentes. A bioética como eu a vejo é uma disciplina holística e deve, portanto, também, ter uma apreciação mais profunda das questões pertinentes à política de desenvolvimento nos países pobres." 11 4. A perspectiva européia e norte-americana em confronto Utilizamo-nos aqui da visão de Diego Gracia, catedrático de História da Medicina da Universidade Complutense de Madri e diretor do primeiro mestrado em bioética da Europa, que reflete sobre bioética também a partir das diferenças culturais entre Europa e Estados Unidos. 12 É preciso reconhecer, inicialmente, que a bioética e mais concretamente os procedimentos decisivos na área são criações tipicamente norte-americanas. Existe uma profunda influência do pragmatismo filosófico anglo-saxão em três aspectos: nos casos, nos procedimentos e nas decisões. Os princípios de autonomia, beneficência e justiça são utilizados, porém no geral são considerados como simples máximas de atuação prudencial, não como princípios no sentido estrito. Mais do que de princípios, se fala de procedimentos. Não existe muito interesse em definir o conceito de autonomia, mas em estabelecer os procedimentos de análise da capacidade ou competência, por exemplo. Buscam-se "os caminhos da ação" mais adequados, isto é, resolver problemas tomando decisões sobre procedimentos concretos. Diego Gracia defende a tese de que não é possível resolver os problemas de procedimento sem abordar as questões de fundamentação. Fundamentação e procedimentos são duas facetas do mesmo fenômeno, e portanto são inseparáveis. 11 Cf. Klaus M. Leisinger, "Bioethics Here and in Poor Countries: a Comment" in Cambridge Quarterly of Healthe Care Ethics: The Internacional Journal for Healthcare Ethics and Ethics Committees, vol. 2 (1993), n. 1, p.7. 12 Cf. Diego Gracia, Procedimientos de decisión en ética clínica, Eudema, Madrid, 1991, pp 95-96, e também "Fundamentos de la bioética" in Fundamentación de la bioética y manipulación genética,Javier Gafo (Edi.), Publicaciones de la Universidad Pontificia Comillas, Madrid, 1988, pp. 11-69. Pobre procedimento aquele que não está bem fundamentado e pobre fundamento o que não dá como resultado um procedimento ágil e correto. Nada mais útil do que uma boa fundamentação, e nada mais fundamental que um bom procedimento, são convicções da grande maioria de bioeticistas europeus. A filosofia na Europa sempre se preocupou muito com os temas de fundamentação, talvez até exageradamente, dizem alguns. Por outro lado, o pragmatismo norte-americano ensinou a cuidar dos procedimentos. Frente a esta realidade, pergunta Diego Gracia "se não estaria próxima a hora em que fosse possível integrar as duas tradições?" Numa perspectiva dialogal entre duas tradições de bioética no nosso caso, especificamente a norte-americana e a européia, após termos visto, ainda que brevemente, uma rápida análise de um europeu-espanhol, é interessante ouvir o Professor James Drane, estudioso de ética clínica, e que se tem preocupado com a bioética na dimesão transcultural 13 Do ponto de vista dele, a ética européia é mais teórica e se preocupa com questões de fundamentação última e de consistência filosófica. Diz: "ao estar na Europa e ao identificar-me com o horizonte mental e com as preocupações de meus colegas, observo o caráter pragmático e casuístico de nosso estilo de proceder a partir de vossa perspectiva. Certamente, nossa forma de fazer ética não é a correta e as outras são erradas. De fato estou convencido de que todos nós temos de aprender uns dos outros". Existe nos EUA uma forte corrente pragmática, ligada à maneira como os norteamericanos lidam com os dilemas éticos. Tal estilo é muito influenciado por John Dewey (1859-1952), considerado o Pai do pragmatismo, que aplicou os métodos da ciência aos problemas da ética. Dewey pensava que a ética e as outras disciplinas humanistas progrediam muito pouco porque empregavam metodologias envelhecidas. Criticou a perspectiva clássica grega, segundo a qual os homens são expectadores de um mundo invariável em que a verdade é absoluta e eterna. Dewey elaborou uma ética objetiva, utilizando o método científico em filosofia. Para ele, a determinação do bem ou do mal era uma forma de resolver os problemas práticos empregando os métodos próprios das ciências, para chegar a respostas que funcionem na prática. Nisto consiste a ética médica americana: "uma tentativa dirigida em transformar uma situação duvidosa e confictiva numa situação de clareza e de harmonia estável." 14 Drane critica a ética elaborada por eticistas norte-americanos, que não tem nada a ver com o caráter, mas pura e simplesmente com a reflexão racional sobre as ações humanas. Reconhece que este enfoque é parcial. A ética não trata somente de ações, mas também de hábitos (virtudes) e de atitudes (caráter). Por isso considera que o enfoque europeu-mediterrâneo da ética médica, profundamente embasado na idéia de virtude e de caráter, pode ser complementar do norte-americano. A ética médica dos EUA se desenvolveu, em um contexto relativista e pluralista, porém se inspira na ciência e se apóia, decididamente, no postulado científico que exige submeter toda proposta à sua operacionalidade na vida real. 13 Cf. James F. Drane, "La Bioética en una sociedad pluralista. La experiência americana e su influxo en Espanha", in Javier Gafo (Ed.), Fundamentación de la bioética y manipulación genética, Universidade Pontificia Comillas, Madrid, 1988, pp. 87-105. 14 James Drane, ibidem, p. 92. Segundo Drane, por mais importantes que sejam as questões críticas sobre fundamentação, não seria imprescindível resolvê-las, antes que se possa progredir. De fato, começar a partir da vida real (fatos e casos numa determinada situação clínica) tem muita vantagem sobre o procedimento no sentido inverso, no caso, o método dedutivo baseado em "elegantes" teorias. No contexto das instituições americanas, insiste-se muito no seguimento de procedimentos sistemáticos que garantam uma constante interação dos princípios com as circunstâncias concretas, ou nas normas universais aplicadas a situações concretas que originaram os dilemas éticos (ex., Caso Karen Ann Quilan e Baby Doe de Bloornington). Não se fala muito em seguir um modelo teórico formalista, deontológico ou utilitário. O que importa são os fatos. Ao se analisar um caso, busca-se um inventário de todos os elementos envolvidos e devidamente compreendidos. Depois se formulam as opções e se examinam cuidadosamente as conseqüências de seguir uma ou a outra. Diz Drane que "um dos aspectos mais inesperados e gratificantes da experiência americana na ética médica é ver os inúmeros acordos conseguidos em problemas médicos de grande complexidade, numa cultura pluralista, quando o processo começa com elementos reais e trata de encontrar uma solução prática e provável, mais que uma resposta certa e teoricamente correta”15 Outro aspecto importante acenado por J. Drane é quando ele afirma que a ética médica salvou a ética nos EUA. Vejamos: "A ética médica salvou a ética, enquanto refletiu seriamente sobre o lícito e o ilícito em contato com os problemas reais. Colocou novamente a ética em contato com a vida." Ressalta, outrossim, que "a ética-teológica nunca se afastou da realidade e foi capaz de tomar a iniciativa quando a atenção voltou-se para os problemas médicos. Pouco a pouco, também os especialistas leigos de ética se incorporaram neste movimento. "(...) "Muitos problemas dos quais se preocupava a ética-teológica, como, por exemplo, questões relacionadas com o começo e fim da vida, procriação e morte, procediam do campo médico. Os casos médicos afetam os homens reais situados ante dilemas também reais, e os detalhes particulares de cada caso exigiam uma reflexão ética sobre o permitido e o não-permitido. A ética, através da medicina, volveu seus passos e entrou novamente em contato com o mundo real. Nesta perspectiva a salvação da ética veio da ética médica" 16 Anteriormente os tratados de ética não eram documentários sobre temas que preocupavam as pessoas comuns, mas escritos "refinados" e ininteligíveis sobre o significado dos conceitos morais. A ética se tornou inacessível, excetuando-se os refinados especialistas em lingüística, e praticamente não dizia nada a respeito dos problemas do dia-a-dia do cidadão comum. Para exemplificar este alheamento e torpor frente à realidade, James Drane relata que durante a guerra do Vietnã ele era professor na Universidade de Yale e não se dizia absolutamente nada a respeito das árduas questões éticas envolvidas, nem em aulas de ética e muito menos nos livros da disciplina. Cresce a convicção de que em ética médica os "fatos" clínicos e os "valores" éticos devem ser considerados intimamente relacionados. Conjugar "fatos" e 15 16 James Drane, ibidem, p. 104. James Drane, ibidem, pp. 88-89. "valores"... Como? É a partir dessa busca que começa a se multiplicar no final dos anos 70 o debate sobre os procedimentos médicos. Surge daí a descoberta da importância clínica da ética e da relevância ética da clínica. Vimos alguns diferentes matizes culturais da bioética em um contexto mais global, latino-americano, europeu e norte-americano. Vejamos agora, ainda que brevemente, algumas notícias a respeito da bioética no Brasil. 5. Perspectivas da bioética no Brasil: algumas iniciativas em curso No Brasil existem várias iniciativas, pessoais e institucionais, bem como centros de estudos de bioética em distintos pontos do país. Foi fundada oficialmente em São Paulo no dia 18 de março de 1995 a Sociedade Brasileira de Bioética. Objetiva congregar docentes e pesquisadores das diversas áreas de interesse da bioética. As perspectivas são promissoras 17. Enquanto isso, iniciativas individuais, institucionais, confissionais, aconfessionais, públicas e privadas e autônomas desenvolvem livremente seus trabalhos. Fazer um levantamento das iniciativas existentes na área é uma empreitada ousada e um tanto problemática. Corre-se o risco de ser parcial e talvez injusto em não mencionar iniciativas não conhecidas. Em todo caso, apresentamos um elenco provisório: a) Núcleo de Estudos da Universidade Católica de Belo Horizonte, que editou dois números de Cadernos de bioética (1993), coordenado pelo Prof. Dr. José de Souza Fernandes. b) Conselho Federal de Medicina (Brasília -DF), a partir de 1993 edita a revista Bioética. Sua filosofia editorial "objetiva criar condições para a discussão multidisciplinar e pluralista de temas de bioética". A composição e atuação de seu conselho editorial são completamente independentes do plenário do Conselho Federal de Medicina. c) Abradem -Associação Brasileira de Ética Médica, fundada em 1987 em São Paulo, dirigida pelo Prof. Dr. Affonso Renato Meira. Congrega profissionais médicos e não-médicos. Em 1992 editou INDEX - Alerta Bibliográfico especializado em bioética. d) Centro de Estudos do Instituto Oscar Freire - Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do trabalho - FMUSP, liderado pelos professores Dr. Marco Segre & Cláudio Cohen. Tem promovido interessantes fóruns de debates com conferencistas internacionais em questões de bioética. e) Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e Bioética. Fundado em 1982, em São Paulo, Capital. Edita um boletim mensal (boletim ICAPS) sobre o tema e já publicou várias obras no setor, entre outras: Problemas atuais de bioética; 17 Cf. Jornal do Cremesp - Orgão Oficial do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, fevereiro/março - 1995, p. 16. A primeira diretoria da Sociedade Brasileira de Bioética está assim formada, Presidente: William Saad Hossne; 1 vice-presidente: Sérgio Ipiabina F. Costa; 2 vicepresidente: Victor Pereira; 1 secretário: Cláudio Cohen; 2 secretário: Roland Fermin Schramm; 1 tesoureiro: Volnei Garrafa; 2 tesoureiro: Daniel Romero Munoz. Eutanásia e América Latina; O lugar atual da morte, Antropologia do sofrimento, entre outras publicações. Através da revista Hospital: administração e saúde (atualmente O mundo da saúde) tem publicado nestes últimos anos inúmeros artigos na área de bioética. Realizou também dois congressos brasileiros de bioética e saúde em São Paulo. O primeiro, de 5 a 7 de março de 1993, tratou dos problemas ligados ao início da vida. O segundo realizou-se de 9 a 11 de março de 1994, acerca da morte e do morrer. Em 1995 (15-17 de junho) realizou o III Congresso sobre a problemática da bioética e genética. Estes congressos são iniciativas deste Instituto, no entanto não se destinam exclusivamente para pessoas religiosas, constituem um espaço ecumênico, pluralista que busca através do diálogo multidisciplinar sensibilizar em torno de questões relativas à dignidade do ser humano. f) Núcleo de estudos na Universidade de Brasília sob a liderança do Prof. Dr. Volnei Garrafa, que editou um número monográfico sobre bioética da Revista Humanidades da mesma universidade (n. 34), e está implantando na Universidade de Brasília um programa de graduação em bioética 18. g) Núcleo de Estudos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre) com a atuação do Prof. Dr. Joaquim Clotet, espanhol radicado no Brasil desde 1984. Nesta Universidade existe desde 1988 a disciplina de bioética nos cursos de pósgraduação de medicina (4 créditos - 60 hs/aula). Até o presente momento 118 médicos já cursaram. Trata-se da primeira Universidade Brasileira a preparar médicos para resolver problemas e dilemas em relação à bioética. Desde maio de 1990 funciona no Hospital São Lucas (PUC-RS) o Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. Um registro importante do ponto de vista histórico é que em agosto de 1990 o Dr. Robert Veatch, Diretor do Kennedy Institute of Ethics, Washington, lecionou um curso de 15 horas na mesma Universidade. h) Na área da ética-teológica no Brasil o Alfonsianum, sob a liderança do Prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos, tem dirigido uma coleção de livros sobre Teologia Moral na América Latina e tem desenvolvido uma reflexão da bioética a partir do Terceiro Mundo.19 Como vemos, no Brasil a bioética, embora ainda dando seus primeiros passos, já apresenta iniciativas significativas. Quiçá num futuro próximo esses centros de reflexão de bioética tenham uma caminhada integrada. Lutamos pela constituição de uma Comissão Nacional de Bioética, composta por forças expressivas e representativas da sociedade brasileira, comprometidas com as questões de bioética. A Ética Médica, com uma ênfase deontológica e acento normativo e legal, é muito difundida pelo menos nos cursos de graduação de medicina. No que concerne ao ensino da Ética Médica é interessante ressaltar as conclusões de um trabalho de 18 Ver neste número especial os seguintes artigos: Toda ética é, antes, uma bioética, Fermin Roland Schramn, p. 324; A bioética: sua natureza e história, Maurizio Mori, p. 332; Bioética, saúde e cidadania, Volnei Garrafa, p. 342; O sonho da medicina infalível, Jordino Marques, p. 352; A bioética entre a tolerância e a responsabilidade, Giovanni Berlinguer, p. 358; Tecnociência, ética e natureza, Wilmar do Valle Barbosa, p. 368. 19 Cf. nesta coleção o texto de Márcio Fabri dos Anjos, "Bioética a partir do Terceiro Mundo", in Temas Latino-americanos de bioética, Editora Santuário, Aparecida, 1988, pp. 211-232. Ver também nesta mesma coleção uma publicação de minha autoria sob o título: Eutanásia e America Latina, Editora Santuário, Aparecida, 1990. Marylu Motta e Silva Cunha que envolveu as 79 escolas de medicina no Brasil20 Eis alguns dados conclusivos: 1. O ensino da Ética Médica no currículo básico das escolas de medicina existe como matéria obrigatória. 2. Esse ensino tem uma tendência de ser voltado basicamente para a deontologia. 3. Existe uma acentuada falta de atenção para essa matéria, pois, de um currículo total de 8.640 horas/ensino, somente 50 horas, no máximo, são oferecidas para esse assunto, ou seja, 0,6%. 4. A maioria dos responsáveis pelo ensino de Ética Médica tem exclusivamente formação médica - praticamente 90%. 5. O número de docentes é pequeno, pois 85% das Escolas possuem só 2 (dois) professores para essa matéria. 6. A titulação de docentes responsáveis é de nível básico na carreira. Ao redor de 26% é que são titulares, ou seja, tem o nível mais alto. 7. O ensino prático, ou de discussão de casos, não existe em 62% dos casos. 8. O ensino da Ética Médica, como disciplina autônoma, o corre em apenas 1/3 (um terço) das Escolas. 9. O ensino da Ética Médica é historicamente ligado à Medicina Legal, o que ocorre em 90% das escolas em que essa disciplina não é autônoma. 10. Finalmente, não existe curso de pós-graduação em Ética Médica no Brasil21. Entre outros aspectos, esses dados revelam que a bioética tem um grande desafio pela frente, na área da formação dos futuros profissionais da saúde, especialmente os médicos. A visão é marcadamente legalista e deontológica da ética médica, restrigindo-a ao campo das normas da ação profissional. Hoje percebe-se um despertar ético criativo no sentido de alargamento dos horizontes22. Integrar e valorizar a reflexão ético-teológica na reflexão bioética num país eminentemente marcado pelo cristianismo e pelos cultos afros, de vocacão ecumênica e culturalmente plural, é a "esfinge" que desponta frente às religiões que buscam participar do debate bioético de forma aberta e igual. Concluindo Poderíamos dizer que a bioética tem um grande futuro pela frente. Os desdobramentos que a problemática da AIDS suscita, bem como as novidades do Projeto Genoma Humano são prenúncios de muitas dúvidas, questionamentos, debates em que a questão ética estará no centro. Nasce um questionamento de fundo 20 Em junho de 1995 o Brasil contava 81 Faculdades de Medicina, segundo dados do Ministério da saúde. 21 Cf. Marylu Motta e Silva Cunha, "O ensino de Ética Médica, em nível de graduação, nas Faculdades de Medicina no Brasil", in Revista Brasileira de Educação Médica, vol. 18, n. 1, jan./abril 1991, pp. 7-10. 22 Cf. "Recomendações da II Conferência Mundial de Educação Médica" (Edinburgh 8 a 12 de agosto de 1993), in Contribuições sobre a gestão de qualidade em educação médica, Organização Panamericana da Saúde, Brasilia, 1994, pp. 17-32. a respeito do "tecnicismo" na perspectiva de que nem tudo o que é tecnicamente possível é ipso facto eticamente viável. É relevante enfatizar que a ética filosófica, como ética aplicada, começa a se preocupar com os problemas de pesquisa em laboratórios, estar presente na UTI (até onde investir? Parar? Eutanásia? Distanásia? Morrer com dignidade?) e na discussão sobre prioridades em nível de estabelecimento de políticas de saúde, alocação de recursos, só para citar algumas das questões mais candentes hoje. Neste encontro surge a bioética oferecendo uma contribuição decisiva na construção de uma vida mais digna para todos, na discussão de questões e problemas concretos. Começam a sentar à mesa de discussão multidisciplinar advogados(as), teólogos(as), filósofos(as), antropólogos(as), sociólogos(as), enfermeiros(as), médicos(as) e muitas pessoas sensibilizadas com essa temática. A presença das mulheres ainda é mínima. E isso é um problema. A bioética necessita incorporar mais as perspectivas de combate à opressão de gênero, e participação de pessoas que atuam mais diretamente na luta anti-racista. As questões ecológicas são também um grande desafio para a bioética. Já surge no horizonte a necessidade de se criar uma Comissão Nacional de Bioética, multidisciplinar, pluralista, que assessore o governo do país na elaboração de legislação relacionada com questões polêmicas da vida, como já acontece em muitos países desenvolvidos como EUA, Canadá, Itália, França, entre outros. Outra observação fundamental e indispensável: não podemos simplesmente "beber" e aceitar passiva e acriticamente as propostas e marcos conceituais sobre bioética provenientes de países do assim chamado Primeiro Mundo. Na expressão de Giovanni Berlinguer, bioeticista italiano - que tem freqüentado o Brasil por várias vezes ministrando cursos -, esta é uma bioética de fronteira, que se debruça sobre situações limites ou de fronteiras, conseqüência do progresso da tecnociência (transplantes, eutanásia, reprodução assistida, morte cerebral, etc). Precisamos ampliar seu campo de influência teórica e prática, desde as situações cotidianas, levando em conta a fome, o abandono, a exclusão social, o racismo, etc. Esta é a bioética cotidiana, cunhada por Berlinguer. Na bioética de fronteira o diálogo é com a ciência, na bioética cotidiana o encontro é com a pobreza e condições adversas de vida, que precisam ser levadas a sério23. E neste particuIar o resgate da dimensão comunitária e solidária da cultura latina é um dado essencial para se elaborar uma bioética que tenha aderência à realidade. Onde milhões de crianças morrem por falta de cuidados mínimos de saúde e às que sobrevivem lhes é negado o direito de terem um lar, cuidado e amor dos pais, onde existem carências graves no infra-estrutural de suporte de vida (casa, comida, educação, água potável, etc.), debates filosóficos microscópicos em relação a questões reprodutivas (ex., inseminação artificial, úteros de aluguel, etc.), dignidade de morrer (direitos dos pacientes terminais, eutanásia, etc.), estão fora de proporção. Além da ética da natureza, da ética da vida e da solidariedade, precisamos considerar também o fator tempo como um valor ético, porque cada minuto perdido ou discussão protelada significa mortes por formas e evolução para a 23 Qiovanni Berlinguer, Questões de vida: Ética, ciência, saúde, Hucitec-Cebes, São Paulo, 1993. (Cf. especialmente na primeira parte, Bioética e ciência, o capítulo "Bioética cotidiana e Bioética de situações limites", pp. 19-37.) irreversibilidade da deterioração da questão ecológica. Certamente ninguém saberá com certeza o alto custo humano e financeiro do tempo! No contexto da saúde já começam a surgir entre nós comitês multidisciplinares de bioética nas instituições, como ocorre no mundo desenvolvido24. É um sinal saúdavel de abertura para além de uma determinada corporação profissional pura e simplesmente. A bioética tem aqui um papel decisivo no entabulamento do diálogo multidisciplinar, na busca de uma visão antropológica holística, respeitadora dos valores das pessoas e comunidades num contexto pluralista e o desafio de não se tornar um discurso ideológico manipulado por quem tem maior poder ou força. A bioética no atual estágio de desenvolvimento tem muito a ver com "ó projeto de elaboração de uma ética global" de Hans Küng, filósofo-teólogo, na reflexão sobre a mudança de paradigmas que afeta o mundo da cultura, do trabalho, da sociedade em geral, em que inclui necessariamente uma transformação de valores. Trata-se "da passagem de uma ciência sem ética para uma ciência eticamente responsável. A passagem de uma tecnocracia que domina as pessoas para uma tecnologia que serve à humanidade das pessoas. A passagem de uma indústria que destrói o meio ambiente para uma indústria que promove os verdadeiros interesses e necessidades das pessoas em harmonia com a natureza. A passagem de uma democracia formalmente de direito para uma democracia vivida, na qual liberdade e justiça estão reconciliadas25 . Sobram desafios sim, mas não falta o idealismo ético aliado a um compromisso com a vida, combustível de toda e qualquer ação transformadora. Neste sentido a bioética, no contexto latino-americano, apresenta numerosas e preciosas inciativas que já começam a dar uma contribuição significativa, frente à "cultura de morte", na sensibilização e compromisso pelo resgate do sentido da dignidade humana e qualidade de vida. BIBLIOGRAFIA BERLINGUER, Giovanni, "Bioética cotidiana e bioética de fronteira" , in Saúde coletiva: questionamento à onipotência social, Dumará, Rio de Janeiro, 1992, pp. 143-156. Ver também do mesmo autor Ética della salute, Il Saggiatore, Milano, 1994 e Questões de vida: ética, ciência, saúde, Hucitec, São Paulo, 1993. BOLETIN DE LA OFICINA SANITARIA PANAMERICANA. Vol. 108, n. 5-6, Mayo y junio 1990. (Especial BIOÉTICA.) DUBOSE, Edwin R. & HAMEL, Ronald P& O, CONNELL, Laurence J. (orgs.), A matter of Principles? Ferment in U.S. Bioethics, Trinity Press International, Valley Forge, 1994. (Cf. Especialmente o artigo de Márcio Fabri dos Anjos, "Bioethics in a liberationist Key", pp. 130-147.) GRACIA, Diego, Procedimientos de decisión en ética clínica, Eudema, Madrid, 24 Cf. Juan Carlos Tealdi y José Alberto Mainetti, "Los comités Hospitalarios de ética", in Boletín de la oficina sanitaria panamericana, vol. 108, n. 5-6, 1990, pp. 432-437. 25 Hans Kung, Projeto de Ética Mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana, Ed. Paulinas, São Paulo, 1992, pp. 39-40. 1991. GAFO, Xavier (org.), Fundamentación de la bioética y manipulación genética, Publicaciones de la Universidad Pontificia Comillas, Madrid, 1988. KÜNG, HANS, Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana, Edições Paulus, São Paulo, 1992. LADRIERE, JEAN, Ética e Pensamento científico: abordagem filosófica da problemática bioética, Letras & Letras/ Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas, São Paulo, 1994. PESSINI, Leocir & BARCHIFONTAINE, Christian de Paul, Problemas Atuais de Bioética, 2ª Edição revisada e ampliada, Edições Loyola, São Paulo, 1994. REVISTA HUMANIDADES, Publicação da Editora Universidade de Brasília, n. 34, 1994, especial sobre bioética sob a coordenação editorial do Prof. Dr. Volnei Garrafa. VIAFORA, Corrado (org. ), Vent'enni di Biotech: Idee, Protagonisti, Istituzioni, Fondazione Lanza & Gregoriana Libreria Editrice, 1990.