Perfeição entre a gradação e a completude SEMANA DE

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
II SEMANA DE FILOSOFIA
Perfeição: entre a gradação e a completude
Aylton Fernando Andrade1
[email protected]
O tema da concepção de perfeição é debatido desde os primórdios da metafísica, e no
decorrer do tempo tem se dividido entre duas concepções: a de completude2 e a de gradação.
A noção de completude tem como definição a perfeição enquanto aquilo que in se pode se
dizer perfeito, ou seja, tem como referência a própria essentia como paradigma de perfeição.
Por outro lado, temos uma concepção de origem principalmente cristã, que concebe a
perfeição enquanto gradação de ser, tendo como referência o Ser divino, enquanto
participante de todos os bens, dos quais podem faltar a outros seres que não ao mesmo. A
noção de perfeição enquanto completude se encontra principalmente em Espinoza e a
concepção de gradação temos principalmente em vários filósofos, principalmente Agostinho,
Descartes e Leibniz. As duas noções de perfeição traz consigo mesma outros conceitos
intrinsecamente ligados, a saber: vontade, graus de ser, faculdades e o problema do mal.
1. Perfeição enquanto gradação.
1.1. Imperfeição: Agostianismo e o problema do mal
A noção de perfeição enquanto gradação tem um locus importante na metafísica cristã,
assim, temos em Agostinho um grande expoente desta concepção (na oposição entre o ser que
tem em si todo o bem) do qual os demais participam; no entanto, não os têm nem mesmo em
grau semelhante ao do Ser divino. Isso é exposto principalmente nas suas confissões ao tentar
buscar uma solução para o problema do mal:
1
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
Completude pode ter um sentido ambíguo, pois podemos ter Deus enquanto ser completo, no entanto, a
completude entendemos aqui enquanto algo que encerra a sua própria essência; ou seja, Deus é completo
enquanto Deus, e o homem é perfeito ( completo) se cumpre sua essência de homem.
2
“Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam
corromper se fossem sumamente boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas,
seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se
corrompesse[...]Por isso, se são privadas de todo bem, deixarão de existir. Logo,
enquanto existem, são boas, e aquele mal que eu procurava não é uma substância,
pois, se fosse uma substância, seria um bem. Na verdade, ou seria uma substância
incorruptível, e então era certamente um grande bem, ou seria uma substância
corruptível,
e,
nesse
caso,
se
não
fosse
boa,
não
poderia
se
corromper(AGOSTINHO, pá. 187)
Deus é o ser que tem em si todos os bens, e os demais seres criados por ele participam
de algum modo de aspectos da sua bondade, bem como em certo grau. A gradação é
ontologicamente importante para Agostinho porque, se por um lado cria-se uma diferenciação
necessária no cristianismo entre o criador e a criatura, sendo que somente um ser pode ser
perfeito pode diferir com relação aos demais que foram criados; por conseguinte, em relação
ao problema do mal, admite-se a possibilidade de aceitação da possibilidade do erro, falha
moral ou falta de um “algo”. É este aspecto negativo, que é o da gradação é imperfeição; ou
seja, somente este mal (na visão de Agostinho) enquanto ausência de algo é a condição
necessária para ao mesmo tempo não nos igualarmos a Deus e também admitir a possibilidade
de uma ação que reflita essa ausência ontológica. Segue-se que o mal não pode ser
considerado uma existência, pois a existência é por si mesma um bem, por conseguinte, a
própria existência contínua, na qual permite com que o mal exista e continue corrompendo os
seres é uma plena existência, o que faz com que seja muito mais contraditório falar num
existência indefinida como mal.
1.2. Escolástica: imperfeição com relação às noções de potência e ato.
Na escolástica, essa concepção gradativa ganha uma discussão tendo como referência
uma interpretação aristotélica das noções de potência e ato. Ato e potência se referem às
concepções aristotélicas de possibilidade e atualidade; ou seja, um menino é um homem em
potência, assim como uma semente é uma planta em potência. No entanto, apesar de um
homem ter em si a possibilidade sempre de se atualizar, Deus enquanto Ens realissimum é ato
puro, no qual não há possibilidade de se atualizar, pois, enquanto por um lado este ser é isento
de movimento ( movimento é imperfeição) daí,
a mera possibilidade de se atualizar
pressupõe uma falta da qual este ser tem. Neste sentido, a noção aristotélica de dúnamis é
intensificada pelo viés medieval de potentia. Antes de mais nada, é preciso salientar que 1) a
noção aristotélica de dúnamis (possibilidade) não necessariamente significa falta de algo; mas
a referência a uma futura condição do ser relacionado a sua condição essencial. Por exemplo,
quando digo: “o menino é um homem em potência”, não quero dizer que ser menino é uma
privação, mas a condição atual de ser que dele, que conforme a sua condição essencial, pode
ser homem. No entanto, a potentia escolástica pode ter a conotação passiva e ativa e o aspecto
de gradação, na qual é bastante útil para os escolásticos na defesa da onipotência divina. Daí,
Deus, enquanto todo poderoso é ato puro, e desprovido de uma possibilidade de ser, pois a
mera possibilidade constitui em si uma carência metafísica.
Outra distinção importante no medievo que faz se firmar essa noção de gradação é a
separação que Avicena faz entre o ser tão somente possível e o ser necessário:
“ De fato, em Deus essência e existência de identificam, posto que ele é o ser é o ser
necessário, que existe em virtude da sua mesma essência, todo ser é por si só
possível, enquanto a sua essência não implica em si existência. A distinção, na
criatura, de essência e existência, faz assim surgir, pela primeira vez de forma
radical, o conceito de ser possível e de ser contingente. É possível, qualquer ser que,
como tal pode existir e não existir. Se ele de fato, possui existência, é porque
recebeu, um última análise, do ser necessário, isto é, de Deus. O mundo grego não
podia ter um tal conceito de “possível, porque faltava o conceito de criação”
Assim sendo, o conceito de eternidade que nos gregos era cosmológico relaciona-se
exclusivamente para o Ser divino. Ora, o mundo não pode ser eterno, pois somente Deus está
fora do tempo e, por conseguinte, é eterno e imutável; mesmo porque a mudança e a duração é
uma falta, imperfeição gradativa. Aqui, a referência é o conceito metafísico de modalidade:
necessidade ou contingência. A necessidade modal não é colocada simplesmente enquanto um
limite de determinação ( terminate), mas com referência à absoluta existência presente como
uma característica intrínseca e somente atribuída ao Ser divino, que faz parte de uma das
características necessárias do ser perfeito. Ora, os seres contingentes, são imperfeitos pelo fato
de serem somente modalmente possíveis, e portanto, finitos, pois sua imperfeição se dá não
somente pela limitação temporal da existência, como também pelo fato de que, obviamente
quando não mais existirem ( dado sua limitação temporal) denota-se daí o não mais existir
como uma imperfeição, uma falta absoluta: a falta que impossibilita totalmente a
caracterização deste ser como perfeito.
2. Perfeição enquanto completude em Espinoza
A noção de perfeição enquanto completude em Espinoza ganha uma diferenciação
entre as demais propostas, pois o mesmo entende que perfeição só pode ser referente à sua
essentia mesma; assim, exclui-se a concepção de gradação, pois a perfeição só pode ter
referência a si mesmo:
“Costuma-se, com efeito argumentar da maneira que se segue. Se todas as coisas
seguem da perfeitíssima natureza de Deus, de onde provêm, então, tantas
imperfeições na natureza, tais como a deterioração das coisas, ao ponto desse
tornarem malcheirosas, a feiura, que causa repugnância, a confusão, o mal, o
pecado, etc. ? Mas isso é fácil, como acabei de dizer, de ser refutado. Pois a
perfeição das coisas deve ser avaliada exclusivamente pela sua própria natureza e
potência; elas não são mais ou menos perfeitas porque agradem ou desagradem aos
sentidos dos homens, ou porque convenham à natureza humana ou contraírem .
Àqueles, entretanto, que perguntarem porque Deus não criou os homens de maneira
a se conduzirem exclusivamente pela razão, respondo simplesmente: não foi por ter
faltado a Deus a matéria para criar todas as coisas, desde aqueles com mais alto grau
até àquelas com o mais baixo grau de perfeição. Ou, para falar mais
apropriadamente : foi porque as leis da natureza, sendo tão amplas, bastaram para
produzir todas as coisas que possam ser concebidas por um intelecto
infinito[..]”(SPINOZA, Ética I, pág 74,75)
Ora, a princípio, Espinoza argumenta que as essentiae de cada coisa é perfeita em si
mesma perfazendo a condição necessária de poder haver uma multiplicidade de coisas no
mundo, são as amplas leis divinas que permitem perfeições próprias a cada ser, mediante as
determinações dispostas, e não graus ou faculdades tendo referência um transcendental no
qual haveriam sumamente aquilo que eles não tem. Assim, a natura da coisa é o único ponto
de referência para se dizer se aquele ser é ou não perfeito; por outro lado ( e como afirmado
na) sendo a partir da própria essentia o paradigma de perfeição, o ser só pode ser chamado
mais ou menos perfeito
na medida em que a
potentia de si mesmo é aumentada ou
diminuída; por isso Espinoza fala de passar de uma perfeição maior ou menor. Por
conseguinte, o problema inevitável de faltar uma perfeição enquanto estando em outro ou com
referência a outro, é aniquilar a própria essentia; ou seja, a perfeição tomada enquanto
gradação considera que: se em minha essentia falta algo, eu deveria ter a característica que
existe na essentia de outro ser; daí, para ser mais perfeito, eu deveria me tornar outro ser no
qual existe uma facultas e/ou um quantum não qual não existe em mim. Para Espinoza, nós
nos confundimos ao tomar o termo aristotélico de privação ou finitude para, a partir disso
dizermos que o ser é imperfeito. O primeiro termo: privação, só tem sentido ao nos referirmos
à nossa essentia; daí, não faz sentido falar de uma privação a não ser referente à essentia
humana; assim sendo, se um cavalo, na sua essentia não possui um logos; logo não podemos
dizer que ele é “privado” de algo, pois a cavalidade só pode ser entendida como tal, enquanto
não contendo logos; assim sendo, se possuísse logos deixaria de fazer sentido falarmos que o
cavalo é cavalo. Por outro lado, a finitude não pode ser entendida como uma privação, e, por
conseguinte, uma imperfeição; dado que a finitude é uma característica própria do ser finito.
Segue-se que o equívoco está em pensarmos que o ser finito deveria ser infinito, trazendo uma
noção que não lhe é própria. Daí surge à questão não só metafísica, mas epistemológica: pois
para Espinoza, o erro consiste em pensarmos que (neste caso) o ser finito deveria ser infinito.
Assim surge o verdadeiro mal, que é o desconhecimento das determinações da natureza, ao
projetarmos aquilo que ela deveria ser.
3. Leibniz: razão formal e bondade
Não contente, Leibniz vai tentar refutar a concepção de completude de Espinoza, pois,
segundo Leibniz o erro do filósofo holandês está em pensar que a razão formal é indiferente à
proporção de bem ( que se inclui a concepção de gradação) :
“Afasto-me largamente, portanto, da opinião dos que sustentam não haver regras de
bondade e perfeição na natureza das coisas, ou nas ideias que Deus tem delas, e que
as obras de Deus são boas só pela razão formal de que foi Deus quem as fez.
Ora, se assim fosse, sabendo-se Deus seu autor, não teria motivo nenhum para,
depois de cria-las, olhar para elas e ver que são boas, como testemunha as sagradas
escrituras, que parece valer-se desta figura antropológica tão só para mostrar que a
excelência dessas obras se conhece de olhar para elas, , ainda que não reflitamos na
denominação puramente extrínseca que se refere à sua causa[...] Confesso que a
opinião contrária me parece extremamente perigosa e demasiadamente próxima à
dos últimos inovadores, que defendem que a beleza do universo e a bondade que
atribuímos às obras de Deus não passam de quimeras dos homens, que concebem
Deus a sua maneira. Do mesmo modo, dizer que as coisas não são boas por uma
regra de bondade, mas só pela vontade de Deus, implica, a meu ver, destruir,
inadvertidamente, toda glória e o amor divinos. Pois porque haveríamos de louvar
a Deus pelo que fez, se ele fosse igualmente louvável tendo feito o contrário? (
LEIBNIZ, pág. 36-37)”
O problema que traz consigo o necessitarismo formal de Espinoza é, segundo Leibniz
exclui de nós todo e qualquer juízo de valor sobre o mundo ( sendo Leibniz um otimista, o
juízo de valor sobre o mundo é positivo) e que a razão formal necessitarista faz com
poderíamos ter um amor Dei intellectualis3 mesmo que o mundo fosse de maneira diferente,
3
( ESPINOZA ÉTICA V prep. 15, 16).
ou seja pior. Seguindo essa premissa, poderia objetar Espinoza de que é inútil pensar que
Deus poderia ter feito diferente (pior) e, por conseguinte louvá-lo; no entanto, na tréplica,
Leibniz diria que esta é a consequência inevitável. Na verdade, o que Leibniz quer nos chamar
a atenção que não somente é impossível não fazermos um juízo de valor sobre o mundo, como
também, neste juízo, não encontrarmos motivos para louvar a Deus pelo bem que há no
mundo.
Para Leibniz, o problema que surge da concepção espinosana consiste em negligenciar
a noção de bem, pela a concepção de necessidade. A filosofia imanetista não faz um juízo
moral do mundo (e, por conseguinte de bem em oposição ao mal) a partir de um imanentismo
necessário.
Pois
o
imanentismo
exclui
aquilo
que
deveria
ser
(
noção
epistemológica/metafísica); e a necessidade exclui a possibilidade de uma razão de bem. Para
Leibniz, se todas as coisas acontecem por necessidade, sem ter referência a noção de bem, o
mundo poderia ser necessariamente pior, e mesmo assim, não poderíamos valorá-lo .
Assim, a perfeição entendida como gradação pensa a existência enquanto uma das
partes da perfeição (ou um dos aspectos que necessariamente permitem) a caracterização de
um ser como perfeito, ou como possível de ser perfeito; ademais, a caracterização espinosana
como perfeição referente a si mesma nos parece mais convincente à medida em que explicita
que ser ter uma característica que pertença a outrem como condição para ser perfeito, destrói a
sua essentia, e assim, não há possibilidade de diferenciação; no demais, a concepção
espinosana falha, quando ao considerar um ser finito, o mesmo deixa de existir, e como já
observado, não faz sentido em falar de perfeição. Ela também “falha” na medida em que, por
ser uma filosofia da imanência, considera sem sentido falar em falhas ou mal no mundo. Para
ele, a concepção de teleologia consiste num erro epistemológico ao pensamos que as leis da
natureza deveriam ser de outra forma; ora, é compreensível sua visão, no entanto, o filósofo
fala de mal enquanto algo que impede a nossa potência de agir ou que nos prejudica de
alguma foram; ou seja, ele mesmo não consegue fugir dessa caracterização. No entanto, a
epistemologia espinosana tem uma carta na manga na medida em que entende que não é
possível demonstrar como se dá essas relações de perfeição de mais ou menos graus.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
AGOSTINHO. Confissões in: coleção Os Pensadores. Abril Cultural. 1999.
PERRONE. et al. Storia Del Pensiero Filosofico. Sei. 1979.
SPINOZA, BARUCH. Ética. Autêntica. 3° edição.2007.
LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica. Ícone Editora. 2004.
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