Dados não transitivos - IME-USP

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Dados não transitivos
Deborah Raphael
IME-USP
Se a > b e b > c, então a > c. Tudo bem até aqui. Se o queijo A é
melhor do que o queijo B e o queijo B é melhor do que o queijo C, então
o queijo A é melhor do que o queijo C. De novo parece tudo bem: apesar
de melhor não ser muito preciso, a frase anterior é o que esperamos a
respeito de gostos e de queijos. Ou seja, esperamos que a propriedade
transitiva seja verdadeira sempre que uma ordem está envolvida.
O que mostraremos aqui é uma situação em que a transitividade não
funciona. Temos três dados (diferentes), e o jogo é o mais simples possível.
Dois jogadores escolhem um dado cada um e jogam. Aquele que obtém o
maior número vence. Jogando A contra B, A tem mais chance de ganhar
que B; em B versus C, B tem mais chance de ganhar. Nesse sentido, A
é melhor do que B e B é melhor do que C. A grande surpresa é que
quando jogam A e C, é C que tem mais chance de ganhar! Conclusão: A
é melhor do que B, B é melhor do que C e C é melhor do que A!
Vamos considerar um conjunto de três dados; em cada um deles as faces
opostas são sempre iguais. Veja no esquema abaixo os dados planificados
(as flechas partem do dado com maior probabilidade de ganhar).
Na tabela a seguir, indicamos, em cada casela, o vencedor para cada
resultado possível em cada um dos três jogos: A x B, B x C e C x A. Aqui,
P(#) denota a probabilidade de # vencer.
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Uma forma interessante de explorar esses dados é desafiar seu oponente
e deixar que ele escolha um dado. Em seguida você escolhe o seu dado;
sempre há um dado melhor que o escolhido por seu oponente. Aqui também
o senso comum falha: ser o segundo a escolher é uma vantagem. Mas
lembre-se: a probabilidade está do seu lado, mas não necessariamente os
anjos. Ou seja, mesmo escolhendo o melhor dado, você pode perder, mas,
no longo prazo (várias jogadas), suas chances de ganhar crescem.
Além dessa faceta não transitiva que desafia nosso senso comum, esses
dados têm outra característica, digamos, inesperada. Vamos mudar o jogo:
cada jogador toma agora dois dados iguais e joga os dois ao mesmo tempo.
O vencedor é aquele que conseguir a maior soma. Por exemplo, suponhamos
um jogo com dois dados A contra dois dados B (2A x 2B). O que você
acha que vai acontecer? Naturalmente, você raciocina que, como A tem
maior probabilidade de vencer do que B, então 2A terá maior probabilidade
de vencer do que 2B. Pois é, isso não ocorre! Veja abaixo as possibilidades
para o jogo 2A x 2B.
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Das 81 jogadas possíveis, duas empatam. Temos que a probabilidade de
2A vencer é de 37/81, enquanto a probabilidade de 2B vencer é de
42/81. Portanto, é 2B que leva vantagem sobre 2A. Fazendo os cálculos
necessários para os outros jogos, vemos que a situação continua não transitiva,
só que as flechas se invertem.
Em 2B x 2C, é 2C que tem
maior probabilidade de vencer e, no
jogo 2C x 2A, é 2A que tem maior
probabilidade de vencer. O diagrama
ao lado resume a situação.
A→ B→C → A
2 A ← 2 B ← 2C ← 2 A
Você imagina o que acontece se fizermos 3A x 3B? Agora, a pergunta
inevitável do matemático: e no caso geral nA x nB? Adianto que não sei a
resposta à última pergunta.
Uma curiosidade a respeito dos dados que
mencionamos é que em todos eles, as faces somam 30 e
os números que aparecem em cada um deles formam
uma linha de um quadrado mágico que soma 15 nas linhas,
colunas e diagonais. Aliás, as colunas desse quadrado
mágico fornecem um outro conjunto de dados não
transitivos.
Para terminar, deixamos aqui outro exemplo de dados não transitivos.
Desta vez trata-se de um conjunto de 4 dados que foram concebidos pelo
estatístico Bradley Efron justamente para ilustrar situações não transitivas.
Como anteriormente, as flechas partem do dado com maior probabilidade
de vencer. Claro que D tem maior probabilidade de vencer do que A. Nos
jogos A x B, B x C, C x D e D x A, a vantagem do vencedor é de 2
contra 1 (2/3 de probabilidade de vencer contra 1/3 de perder). Repare que
no jogo B x D cada um tem 1/2 de probabilidade de vencer. O mesmo não
ocorre em A x C.
Um desafio interessante é o de inventar conjuntos de dados não
transitivos. I. Peterson tem um artigo na Internet, [2], em que diversos
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exemplos são citados. No acervo da Matemateca, no Instituto de Matemática
e Estatística da USP, há dois conjuntos de dados não transitivos que podem
ser usados em sala de aula e oficinas.
Para uma leitura sobre outras situações não transitivas igualmente
surpreendentes, sugerimos o artigo [3], que aborda várias situações
interessantes, inclusive eleições.
Referências e indicações bibliográficas
[1] GARDNER, M. The colossal book of Mathematics. W. W. Norton, 2001.
[2] PETERSON, I. Trick dice revisited. www.maa.org/mathland/mathtrek_04_15_02.html
[3] WAGNER, E. Eleições, RPM 16, p. 10. 1990.
A autora Deborah Raphael faz parte do
grupo de professores responsáveis pela
Matemateca/IME/USP
http://matemateca.incubadora.fapesp.br
[email protected]
Você Sabia
Que a palavra “corolário” vem do latim corollarium, que
se refere a uma grinalda dada como recompensa?
Corolário é uma recompensa dada por um teorema.
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