a velha moral da nova genética - HCTE

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A VELHA MORAL DA NOVA GENÉTICA: PARALELOS HISTÓRICOS E
DETERMINAÇÕES MÚTUAS ENTRE BIOÉTICA E GENÉTICA
Rildo Pereira da Silva
Universidad Nacional de Tres de Febrero - Argentina
Núcleo de Pesquisa e Estudos Qualitativos/INCA - Brasil
[email protected]
Waldemar Menezes Canalli
Universidad Nacional de Tres de Febrero - Argentina
Faculdade de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro - Brasil
[email protected]
RESUMO: A biotecnociência avançou no âmbito da Genética, mas também suscitou
problemas morais. Neste ensaio ressaltam-se os conflitos e dilemas morais inerentes a
tal fenômeno, partindo de duas linhas de tempo: fatos da Nova Genética, tendo como
marco inicial a descrição do DNA e marco final o sequenciamento do genoma humano;
e fatos da Bioética no mesmo período, identificando relações entre os fatos da Nova
Genética e as respostas bioéticas. Destacam-se problemas morais instalados ou
potenciais, discutindo-os à luz da Bioética. Conclui-se que o biotecnocientífico
sobrepõe-se ao ético-humanístico pela formação (ou deformação) acadêmica.
PALAVRAS-CHAVE: Bioética; Biotecnociência; Nova Genética.
Introdução
Tendo em vista que a biotecnociência é um paradigma resultante da tripla
interseção entre Ciências da Vida, biotecnologias e técnicas de manipulação, não há
como negar que seu maior desenvolvimento se deu no campo da Genética. Porém,
sofisticando-se as intervenções humanas sobre a vida, além das possibilidades de
êxitos para a melhoria da qualidade de vida, também se estabelecem maiores e mais
complexos problemas e desafios éticos factuais ou potenciais. Snow (1959) já apontara
o istmo entre cultura técnico-científica e cultura ético-humanística e, dez anos depois,
Potter propôs a Bioética como ponte interdisciplinar entre Ciências da Natureza e
Ciências do Espírito. Desde então, na tentativa de responder descritiva, normativa e
prescritivamente aos problemas morais da cultura biotecnocientífica, a Bioética passou
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por reformulações, incluindo a ampliação da proposta inicial, capitaneada pelo próprio
Potter, denominada Bioética Global (1988).
A pretensão deste ensaio é descrever os principais fatos da Genética, ressaltando
a dimensão moral - relativa aos conflitos e dilemas instalados ou potenciais - a eles
inerentes. Para tal, elaborou-se duas linhas de tempo: uma dos fatos da evolução da
Nova Genética, tendo como marco inicial a descrição do ácido desoxorribonucléico
(DNA) e como marco final o sequenciamento do genoma humano; e outra dos fatos da
evolução da Bioética no mesmo período, estabelecendo um paralelo cronológico e
identificando as relações entre os eventos nos dois campos, além de apontar os seus
desdobramentos morais decorrentes, instalados ou potencialmente previsíveis,
discutindo-os à luz da perspectiva bioética.
A linha do tempo da Nova Genética
Segundo Beadle & Beadle (1979), o termo genética surge no século XX e foi
difundido por William Bateson como designador do campo que se ocupa das
semelhanças e diferenças entre indivíduos em suas relações de hereditariedade. A
Genética Clássica indagava se os genes são estruturas materiais? Como se transmitem
de uma geração a outra? O que os faz mudar? Quais as consequências de suas
mudanças no organismo? Norteava-se pelo paradigma da hereditariedade e da
morfofisiologia. Na década de 1930, houve uma mudança de orientação (BEADLE &
BEADLE, 1979, p. 3) que, talvez, não se deva considera uma revolução científica, mas
a instauração de uma extensão paradigmática, acrescentando às diretrizes da Genética
Clássica as diretrizes bioquímicas, voltadas para estruturas, composição, ordenamento,
propriedades e funções bioquímicas dos gens, constituindo as indagações da Nova
Genética. Em 1953, James Watson e Francis Crick decifraram a estrutura do ácido
desoxorribonucléico (DNA) e ensaiaram ensaiando o processo de replicação do DNA. .
Anos depois, Crick confirmou que a peculiaridade de um fragmento de ácido nucléico é
condicionada pela sequência de suas bases, a qual é determinante da disposição dos
aminoácidos em uma proteína particular, supondo que as informações vão do DNA
para a proteína e não podem retornar, o que ficou conhecido como "Dogma Central"
(CRICK, 1958; 1970). Em 1958, Meselson e Stahl confirmaram que a replicação do
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DNA se dá com os filamentos da molécula original se separando e cada um deles
formando par com um novo filamento.
Pela síntese de polinucleótidos de DNA e ácido ribonucléico (RNA), Severo Ochoa
e Arthur Komberg receberam o Prêmio Nobel de Medicina em 1959. Em 1961, Sydney
Brenner, François Jacob e Matthew Meselson, com a participação de Francis Crick e
Jacques Monod, identificaram o RNA mensageiro, condutor das informações da dupla
hélice para as células que produzem as proteínas. Paul Berg obtém as primeiras
moléculas de DNA recombinante em 1972, mesclando o DNA de espécies diversas e
inserindo em uma célula hospedeira o
DNA híbrido resultante da mescla anterior
(JACKSON, SYMONS & BERG, 1972). Ante os avanços biotecnológicos, cientistas
advertem quanto a urgência de estabelecimento de regras gerais de segurança para as
pesquisas experimentais com o DNA recombinante e, já em 1976, instaura-se no
mercado a primeira instituição de engenharia genética: a Genentech, produtora da
primeira proteína humana em uma bactéria geneticamente modificada.
Em 1977, Richard Roberts (CHOW; GELINAS; BROKER & ROBERTS, 1977) e
Phil Sharp (BERGET; MOORE & SHARP, 1977) descobrem, simultaneamente, que as
sequências de genes de organismos superiores são interseccionados por áreas que
não especificam aminoácidos para a composição de proteínas. A clonagem do gene da
insulina humana foi conseguida em 1978 e, em 1980, a Suprema Corte dos EUA
oficializou que as formas de vida alteradas geneticamente poderiam ser patenteadas.
Em 1982, a Genentech disponibiliza a insulina humana como primeira droga
recombinante. Em 1985, Alec Jeffreys descreveu uma técnica de identificação que se
tornou conhecida como "impressão digital" por DNA, permitindo a solução de vários
casos criminais. Aprovaram-se nos EUA as diretrizes para experimentos com terapia
genética em humanos, além da criação do primeiro porco transgênico por Ralf Prinstar,
o que levantou possibilidades de decodificação do genoma humano.
Em 1986, anunciou-se o marco inicial do Projeto Genoma. Em 1988, Philip Leder e
Timothy Stewart conseguiram patente para um camundongo geneticamente modificado.
Em 1989, criou-se o Instituto Nacional para Pesquisa do Genoma Humano (NHGRI),
nos EUA, sob comando de James Watson, com o fim de decodificar o DNA constituinte
dos cromossomos humanos. O saber em Genética foi usado como terapia bem
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sucedida a primeira vez em 1990, no tratamento de portadora de deficiência no sistema
imunológico de quatro anos. Em 1996, Ian Wilmut e equipe clonaram o primeiro
mamífero a partir de célula adulta: a ovelha Dolly (WILMUT et al, 1997). Em 1998, John
Sulston e Robert Waterstone lograram o primeiro sequenciamento do genoma de um
organismo multicelular: o verme Caenorhabditis elegans (WATERSTONE & SULSTON,
1995). No mesmo ano, a Celera Genomics anunciou a pretensão de sequenciar o
genoma humano em três anos. Em 2000, a Celera e o Consórcio Público do Genoma
Humano divulgam o primeiro rascunho do genoma humano. Em 2001, conclui-se a
análise da sequência do genoma humano e em 2003, morreu de envelhecimento
precoce a ovelha Dolly.
A linha do tempo da Bioética
Cabem algumas distinções entre Éticas Tradicionais e Éticas Aplicadas, além de
breve contextualização da Bioética em meio a tais diferenças. No âmbito das Éticas
Aplicadas, a Bioética tenta suprir lacunas deixadas pelas Éticas Tradicionais. Segundo
Schramm (2002: p.611), as Éticas Aplicadas, “(...) surgem exatamente como resposta
às insuficiências das éticas tradicionais, as quais, quando não estavam confundidas
com preceitos religiosos e baseadas mais na fé do que na razão, se reduziam a códigos
profissionais”. Ao menos duas distinções são possíveis: uma quanto à orientação
teórica, visto que as Éticas Tradicionais se apóiam na Deontologia e no
confessionalismo, enquanto as Éticas Aplicadas se apóiam na interdisciplinaridade e na
razão; e outra quanto à finalidade, já que as Éticas Tradicionais objetivam ser
referencial normativo da conduta e espaço de reflexão teórica sobre a moral, enquanto
as Éticas Aplicadas pretendem uma intervenção objetiva nos problemas morais da vida
prática. A Bioética tem três funções de aplicação objetiva: descrever e analisar a
materialidade dos conflitos morais; regular tais conflitos morais, proscrevendo as
condutas passíveis de reprovação e prescrevendo as condutas passíveis de aprovação;
e proteger, amparando, sempre que possível, os envolvidos no conflito de interesses e
valores, promovendo a equidade por meio da priorização dos vulnerados (SCHRAMM,
2002).
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Conhecida a estrutura do DNA em 1953, abriram-se as possibilidades de controle
e transformação dos sistemas vivos, gerando problemas morais até então incogitáveis.
Em 1954 a publicação de "Morals and Medicine" (FLETCHER,1954) evidencia o
princípio do duplo efeito, enquanto realizava-se o primeiro transplante renal entre
gêmeos univitelinos (MURRAY, MERRILL & HARRISON, 1955). O receptor morreu oito
anos após o transplante e o fato suscitou novas questões morais e legais.
Em 1960 aprovou-se o primeiro contraceptivo oral eficaz, processando-se uma
revolução sexual e social no Ocidente. O anticoncepcional ensejou a discussão sobre
autonomia da mulher quanto à gestão de seu corpo e moralidade do aborto. Vários
fatos exigiram a reflexão bioética, dentre eles a criação da hemodiálise e a fundação do
Seattle Artificial Kidney Center. A "máquina de hemodiálise" possibilitou o controle da
falência renal, aumentando a sobrevida, mas, configurando um dilema: a capacidade do
centro era de 9 leitos e a diálise cara (cerca de $10,000/ano). Criou-se o Comitê de
Seleção de Diálise de Seattle, composto por 7 integrantes de formações diversas que
selecionavam candidatos à hemodiálise. O caso foi discutido no artigo “Eles decidem
quem vive e quem morre” (ALEXANDER, 1962), que denunciava as práticas do comitê
(God Commission). O fato inaugurou as decisões por grupos de leigos, abalando a
relação médico-paciente. Ainda em 1960, promulgou-se a Declaração de Helsinque
(AMM, 2013) e, na sequência, suas versões posteriores (1964-2013), preconizando que
a pesquisa só, e somente só, seria aceita se fosse verdadeira, não devendo servir
apenas para gerar "produção" curricular.
Diante das denúncias de faltas éticas em experimentos clínicos contidas no artigo
“Ethics and Clinical Research” (BECHER, 1966) e da reação da sociedade com relação
a tais casos, a resposta foi a regulação e o controle estatal da pesquisa clínica. Em
1967, Potter propôs o princípio do "conhecimento perigoso" (POTTER, 1971), exortando
sobre a ciência como conhecimento que se acumula mais rápido do que desenvolve
sabedoria ao seu gerenciamento. Em 1967, o transplante do coração de um "quase
morto" para um "cardíaco terminal", feito por Christian Barnard, suscitou a questão da
definição de morte. Em 1968, no auge da contracultura, promulgou-se a Encíclica
Humanae Vitae, enfatizando a doutrina da Igreja sobre aborto, esterilização e
natalidade. Em resposta a exigência de definição de morte, publicou-se “A Definition of
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Irreversible Coma: Report of the Ad Hoc Committee at Harvard Medical School to
Examine the Definition of Brain Death”, sobre eutanásia, distanásia e o dualismo entre o
velho critério por parada cardiorrespiratória e o novo critério por morte cerebral.
Em 1969, fundou-se em Nova York o Hastings Center, institucionalizando a
Bioética. 1970 é um marco para a Bioética, não só pelo resgate do neologismo
(POTTER, 1970), mas pelas formulações que inauguraram a delimitação do campo. Em
1971, André Hellegers fundou o Instituto Kennedy de Ética na Universidade de
Georgetown, primeiro centro a oferecer pós-graduação em Bioética. Publicou-se a
coletânea “Bioethics, Bridge to the Future” (POTTER, 1971). Em 1972, três estudos
ocorridos entre 1932 e 1970 vieram a público: a) em 1963, no Hospital Israelita, em
Nova York, injetaram células cancerosas vivas em idosos doentes; b) entre 1950 e
1970, no Hospital Estadual de Willowbrook, em Nova York, injetaram o vírus da hepatite
em crianças doentes mentais; c) em 1932, no Estado do Alabama, 400 negros
participantes de uma pesquisa sobre a sífilis ficaram sem tratamento. Em 1972, a
pesquisa foi interrompida, sobrevivendo apenas 74 dos participantes sem tratamento.
Em 1974, os EUA instauraram a National Comission for the Protection of Human
Subjects of Biomedical and Behavioral Research, que gerou o Relatório Belmont,
definindo princípios éticos para a pesquisa. A reflexão sobre "conhecimento perigoso"
ressurgiu quando, em publicações na Nature e na Science, cientistas propuseram
moratória para pesquisas em manipulação genética. A moratória foi implementada,
vigorando até 1975. 140 especialistas decidiram que o Comitê Assessor para DNA
Recombinante (RAC) elaboraria diretrizes para a segurança das pesquisas. Publicaramse as Diretrizes de Asilomar para a Segurança dos Experimentos com DNA
Recombinante em 1976. Em 1978 surgiu a Encyclopedia of Bioethics (REICH, 1978) e
nasceu Louise Brown, primeiro bebê de proveta. A publicação de “Principles of
Biomedical Ethics” em 1979, versão livresca do Relatório Belmont, funda a Bioética
Principialista, a qual se baseia em quatro amplos princípios a priori: a) princípio do
respeito a autonomia; b) princípio da beneficência; c) princípio da não-maleficência; e d)
princípio da justiça (BEAUCHAMP & CHILDRESS, 2002).
A clonagem do primeiro mamífero (WILMUT et al,1997), abriu o debate sobre
clonagem humana, medidas neonatais e decisões paternas que afetassem a vida dos
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filhos. Em 2000, Bill Clinton, presidente dos EUA; Tony Blair, primeiro-ministro da
Inglaterra; Craig Venter, presidente da Celera Genomics; e Francis Collins, líder do
Projeto Genoma, anunciam o rascunho do genoma humano. Com as possibilidades de
diagnóstico precoce e da terapia gênica, as controvérsias giraram em torno da
moralidade das clonagens reprodutiva e terapêutica.
Nova Genética, desdobramentos morais e Bioética como alternativa prudente
Os avanços biotecnológicos que proliferam quantitativa e qualitativamente,
ensejam complexos conflitos morais. Quanto maior as possibilidades de intervenção
sobre a vida, maior a constituição de vulnerabilidades e de vulnerações morais. A
história da ciência é permeada por abusos morais, logo, cabe indagar porque
historicamente há uma casuística de lesões morais? Talvez pela
sobreposição do
desenvolvimento científico ao desenvolvimento humano, visto que, quando valores
científicos sobrepõem-se aos valores humanísticos, tende-se a um baixa exigência ética
nas relações entre os agentes envolvidos. Ao nosso ver, a Bioética tem três desafios
relativos à sua atuação: a) consolidação da matriz metodológica de análise que a
distinga da ética tradicional; b) circunscrição do seu objeto de estudo; c) expansão de
sua inserção nas biotecnociências como promotora de uma “cultura do humano” e não
só “para o humano”.
Considerações finais
A utopia potteriana da ponte, religando conhecimentos científico e humanístico,
não se deu. Este ainda é um desafio da formação acadêmica, pois os dois blocos de
saberes continuam em desigualdade nos currículos. Forma-se mais para uma
sociedade
biotecnologizada
e
menos
para
uma
sociedade
humanizada.
O
biotecnocientífico subsume o ético-humanístico, praticando uma formação (ou
deformação) que supervaloriza as dimensões do aprende a conhecer e do aprender a
fazer, negligenciando as dimensões do aprender a conviver e do aprender a ser.
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