PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito TEORIA DO PROCESSO E LEGITIMIDADE DECISÓRIA Discurso de aplicação e argumentação de adequabilidade no direito democrático Gabriel de Deus Maciel Belo Horizonte 2006 Gabriel de Deus Maciel TEORIA DO PROCESSO E LEGITIMIDADE DECISÓRIA Discurso de aplicação e argumentação de adequabilidade no direito democrático Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas de Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito Área de Concentração: Direito Processual Orientador: Pereira Leal Belo Horizonte 2006 Professor Doutor Rosemiro Gabriel de Deus Maciel Teoria do processo e legitimidade decisória: discurso de aplicação e argumentação de adequabilidade no direito democrático Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, nível Mestrado. Belo Horizonte, 2006. ______________________________ Professor Doutor Rosemiro Pereira Leal (Orientador) – PUC Minas ______________________________ Professor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira – PUC Minas _______________________________ Professor Doutor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias – PUC Minas _______________________________ Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho – UFMG A Cristiane; minha noiva, minha vida AGRADECIMENTOS À minha avó, Iracy Dias Maciel Porto, que sempre me incentivou aos estudos. À minha mãe, Janete Cecília Maciel Porto, pelo estímulo constante ao pensar, pelo carinho e pelas sugestões, sempre pertinentes, feitas durante a elaboração deste trabalho. Ao meu pai, Edson Antônio de Deus, que consegue devolver a alegria mesmo aos momentos mais tristes da vida. A Cristiane, pelo carinho e pelo apoio, além das correções e sugestões feitas durante o trabalho. A Giovani José de Souza, que, em mais de uma maneira, viabilizou a execução deste trabalho. Aos meus tios Thelma e Marcos, porto seguro durante as tormentas. Aos meus tios Jane e Sérgio, pela alegria contagiante. A minha tia Márcia Rosa, pelo apoio constante e por me incentivar a pensar o direito na interface com a psicanálise. A Sebastião Pereira, por me ensinar a escrever. Agradeço a Maria Inês Rodrigues de Souza pela discussão crítica deste trabalho e pelo incentivo à sua elaboração. Aos colegas Marius Fernando Cunha de Carvalho, Adriano Ricardo de Mattos Soares e Vinicius Lott Thibau, companheiros nas angústias da vida acadêmica. A Elísio Vitor Figueiredo Júnior, por resolver todos os meus problemas na secretaria. Aos amigos Cláudio e Carlos, que tanto me apoiaram, desde os tempos da graduação. Aos Professores Fernando Horta Tavares, pela leitura crítica que fez do texto, e Zamira de Assis, pela interlocução e pelo estímulo para repensar o direito. A Izabel, por me adotar como um dos seus. Ao Professor André Cordeiro Leal, por me despertar do sono dogmático. Agradeço, especialmente, ao meu orientador, Professor Rosemiro Pereira Leal, que muito mais do que orientação acadêmica, propiciou-me, nestes dois anos de convivência, o aprendizado de uma vida inteira. Agradeço aos professores José Alfredo de Oliveira Baracho, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, que não pouparam críticas a este trabalho, contribuindo sobremaneira para o seu desenvolvimento e apontando novas perspectivas de pesquisa. RESUMO No Estado Democrático de Direito, as razões pelas quais um juiz toma sua decisão não são indiferentes. A racionalidade decisória, em sociedades pluralistas, não deve ser uma racionalidade monológica. É preciso que aqueles os quais irão sofrer os efeitos da decisão possam participar de sua preparação e, com isso, saibam quais os argumentos foram relevantes para se chegar a um determinado resultado ou por que a decisão foi tomada em determinado sentido. É preciso, pois, que os envolvidos contribuam para o discurso decisório para que se reconheçam como co-autores das decisões jurídicas. Superadas as perspectivas jusnaturalistas, que defendiam a existência de um direito suprapositivo inerente ao ser humano, principalmente após as críticas do positivismo jurídico, o parâmetro da decisão judicial só pode ser a lei, o direito legislado. A questão da legitimidade das decisões judiciais no direito democrático pode ser formulada, então, da seguinte maneira: como são possíveis decisões não só consistentes com o ordenamento jurídico, mas também racionalmente aceitáveis? Este trabalho pretende investigar este problema, abordando-o a partir da proposta de Klaus Günther de reconhecer a aplicação de normas jurídicas como um discurso (interação argumentativa entre os envolvidos), em que à descrição completa da situação de fato soma-se a coerência de normas prima facie aplicáveis com compreensões paradigmáticas do direito vigente. Porém, essa proposta revela-se factível apenas quando uma teoria do processo adequada viabiliza juridicamente a argumentação de adequabilidade. Uma tal teoria do processo foi desenvolvida por Rosemiro Pereira Leal. Sua teoria neo-institucionalista do processo vincula a jurisdição aos princípios jurídicos do contraditório, isonomia e ampla defesa. Isso possibilitou a elaboração de um espaço jurídico argumentativo, em que as partes podem preparar argumentativamente a decisão judicial por vir. Abriu-se, assim, a possibilidade de uma primeira resposta ao problema da legitimidade das decisões judiciais. Palavras-chave: Teoria do processo; Legitimidade decisória; Argumentação de adequabilidade; Discursos de aplicação ABSTRACT In the democratic paradigm of law, the reasons why a judge take a decision are not indifferent. Decisional rationality, in pluralistic societies, can not be monologic. Those in which the legal sphere the judicial decision is destinated to produce its effects must participate in its preparation, that they may know which arguments were relevant to reach a certain result or why the decision was taken in a certain direction and not another. So, those who are involved in application discourses must contribute to the decision-making, that they can acknowledge themselves as coauthors of the judicial decision. Once the jusnaturalistic perspective are not avaiable any more (specialy after the critics of the positivists), the criteria of the judicial decisions must be found in the legislated law, in the legal statutes. The problem of judicial decision legitimacy in the democratic paradigm of law can, thus, be formulated as follows: how can we reach judicial decisions that are both consistent with the legal order and rationally acceptable? The aim of this work is to investigate this problem, approaching it from Klaus Günther’s proposal of take the application of legal norms as a discourse (argumentative interaction between the participants), in which the complete description of the features of a situation is combine with the coherence of prima facie applicable norms in the face of paradigmatic understandings of the vigent law. Nevertheless, such proposal depends on a adequate theory of process to legally implement a appropriateness argumentation. Such theory of legal process was developted by Rosemiro Pereira Leal. His neo-institutionalist process theory binds jurisdiction to the constitutional principles of contradiction, broad defense and isonomy to create a legal argumentative space, where those involved can participate argumentatively in the decision making process. Taking those elements in count, a first preliminary answer to problem of judicial decision legitimacy could be formulated. Key words: Process theory; Decisional legitimacy; Appropriateness argumentation; Application discourses “Como a decisão, na teoria da democracia, não é soberana pelas bases da vontade das maiorias ou de um Estado poderoso, mas a partir de uma escritura prévia de direitos processualmente teorizados, o decidir não mais pode escorrer do cérebro de um julgador privilegiado que guardasse um sentir sapiente por juízos de justiça e segurança que só ele pudesse, com seus pares, aferir, induzir, ou deduzir, transmitir e aplicar.” Rosemiro Pereira Leal SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9 CAPÍTULO I ............................................................................................................................12 O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS – DO POSITIVISMO À INTEGRIDADE ...................................................................................................................12 1 – O POSITIVISMO JURÍDICO DE HART .........................................................................12 2 – A TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE DWORKIN ..............................22 3 - DISCRICIONARIEDADE DECISÓRIA: COMPREENDENDO O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS (I) ...............................................................28 4 - INTEGRIDADE, TAREFA HERCÚLEA: COMPREENDENDO O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS (II)..............................................................40 CAPÍTULO II...........................................................................................................................48 DISCURSO DE APLICAÇÃO E ARGUMENTAÇÃO DE ADEQUABILIDADE...............48 5 - DISCURSO DE JUSTIFICAÇÃO E DISCURSO DE APLICAÇÃO ...............................48 6 – ELEMENTOS PARA ARGUMENTAÇÃO DE ADEQUABILIDADE...........................54 7 – ARGUMENTAÇÃO DE ADEQUABILIDADE NO DIREITO .......................................60 CAPÍTULO III .........................................................................................................................71 DISCURSO DE APLICAÇÃO E TEORIA DO PROCESSO .................................................71 8 – TEORIA DO PROCESSO E LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS ...............71 9 – PROCEDIMENTO E PROCESSO ....................................................................................76 10 – TEORIA NEO-INSTITUCIONALISTA DO PROCESSO: UMA TEORIA DISCURSIVA ..........................................................................................................................81 11 – O CONTRADITÓRIO E A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES ...........................91 12 – NOTAS SOBRE O DISCURSO DE APLICAÇÃO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE...................................................................................................95 CONCLUSÕES ......................................................................................................................100 Referência Bibliográfica.........................................................................................................104 9 INTRODUÇÃO Dificilmente alguém duvidaria da afirmação “as decisões judiciais devem ser legítimas”. Nem mesmo um ditador, que entendesse como “decisão legítima” a imposição de sua própria vontade. Que as decisões judiciais devem ser legítimas está fora de questão. O que interessa saber é como podem ser legítimas decisões judiciais tomadas em um espaço jurídico que possibilite a convivência das diferenças, a crítica, a aprendizagem e o aperfeiçoamento constante das normas que regem uma sociedade. Assim, o problema é como podem ser legítimas as decisões judiciais, quando seus efeitos estão destinados a repercutir em uma sociedade democrática. Neste caso, não se pode permanecer alheio ao modo pelo qual as decisões são tomadas, a maneira pela qual a vontade decisória é formada, nem aos caminhos que a razão percorre até concluir por uma decisão específica. Perquirir pela legitimidade das decisões significa, assim, percorrer os caminhos que conduziram a ela. Para essa tarefa, não estão disponíveis, porque insondáveis, os caminhos da consciência, das convicções íntimas, dos valores particulares. Se alter não pensa como ego, é somente pelo medium da linguagem que se pode conseguir compreender as razões dos outros, criticá-las, expor convicções próprias, receber críticas e finalmente aproximar-se, respeitar-se mutuamente e conseguir acordos. Na constituição dessa linguagem, o direito cumpre papel preeminente, torna-se condição de possibilidade desse diálogo. Isso impõe que a perspectiva do direito como instrumento de dominação ou de controle social seja abandonada em favor da perspectiva do direito democrático. O direito que se ergue como condição de possibilidade do diálogo público, da participação na formação da opinião e da vontade públicas, não é qualquer direito, é um direito qualificado. Habermas fornece uma formulação mais precisa do problema: “Para preencher a função de integração social do ordenamento jurídico e a pretensão de legitimidade do direito, os tribunais devem satisfazer simultaneamente duas condições – tomar decisões consistentes e assegurar a aceitabilidade racional de suas decisões” (HABERMAS, 1996, p. 198).1 As decisões judiciais devem estar fundamentadas no ordenamento jurídico vigente (consistência). Se o direito democrático é esse medium lingüístico que permite à sociedade se 1 HABERMAS, 1996, p. 198: “In order to fulfill the socially integrative function of the legal order and the legitimacy claim of law, court rulings must satisfy simultaneously the conditions of consistent decision making and rational acceptability”. 10 constituir juridicamente, sem recurso à violência, então as decisões dos juízes não podem estar dissociadas daquilo que a própria sociedade escolheu, através do direito legítimo. Por outro lado, é preciso harmonizar o requisito da consistência com o da aceitabilidade racional das decisões. Isso não significa que as decisões terão de ser efetivamente aceitas. A aceitabilidade racional quer dizer apenas que as razões pelas quais uma determinada decisão foi tomada devem ser conhecidas: quais argumentos foram relevantes para se chegar àquela decisão, por que determinado argumento foi aceito e outro rejeitado. Tudo isso torna uma decisão racionalmente aceitável, ainda que não se concorde com ela. O presente estudo procura analisar algumas das respostas que foram dadas a esse problema. Do positivismo jurídico até a teoria do direito como integridade, autores como Hart e Dworkin travaram debates acalorados sobre esse tema. As propostas variaram da discricionariedade do juiz até a concepção de juízes hercúleos. Houve progresso no tratamento do problema, mas vários aspectos dele ainda persistem. Este trabalho concentra-se na proposta de Klaus Günther para resolver o problema de se tomar decisões consistentes e ao mesmo tempo racionalmente aceitáveis. Com a separação entre discursos de justificação e discursos de aplicação, Günther pretende compreender a argumentação jurídica como um caso especial de argumentação moral de aplicação, em que seria possível assegurar a imparcialidade das decisões judiciais através da descrição completa da situação e da coerência normativa. A crítica de Habermas à tese do caso especial (o direito não é um caso especial de argumentação moral, pois se refere, desde o início, não à moral, mas ao direito legitimamente criado) possibilitou o tratamento jurídico do problema. Porém, para se projetar no direito, a teoria do discurso2 demanda uma teoria do processo, que assegure um espaço argumentativo adequado à interação argumentativa dos interessados. Se a aceitabilidade racional das decisões judiciais é, em suma, uma questão de como foi tomada a decisão, nota-se por que a teoria do processo deve cumprir um papel relevante nessa discussão. O que se pretende demonstrar a seguir é que não é qualquer teoria do processo que serve à institucionalização da teoria discursiva do direito (ou a uma teoria 2 Falar em “discurso”, principalmente a partir das teorias de Habermas e Apel, provoca a abertura de um horizonte de significações muito rico. Para delimitar, no entanto, o sentido desse termo ao longo do trabalho, adotar-se-á o conceito de “discurso” tal como enunciado pela Professora Marina Velasco (2001, p. 94) – “O contexto de interação em que falantes e ouvintes tracam argumentos é o Discurso”. 11 discursiva da tomada de decisões jurídicas). Só uma teoria do processo radicalmente comprometida com a democracia pode viabilizar a transição da teoria do discurso para a teoria do direito e, com isso, permitir uma compreensão adequada da legitimidade das decisões judiciais. Uma tal teoria do processo foi desenvolvida por Rosemiro Pereira Leal. Sua teoria neo-institucionalista do processo vincula a jurisdição aos princípios jurídicos do contraditório, isonomia e ampla defesa. Isso possibilitou a elaboração de um espaço jurídico argumentativo, em que as partes podem preparar argumentativamente a decisão judicial por vir. Abriu-se, assim, a possibilidade de uma primeira resposta ao problema da legitimidade das decisões judiciais. 12 CAPÍTULO I O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS – DO POSITIVISMO À INTEGRIDADE 1 – O POSITIVISMO JURÍDICO DE HART A partir de uma crítica vigorosa à teoria do direito como ordens coercitivas, defendida por autores como John Austin, Herbert Hart desenvolveu, em sua obra The Concept of Law, publicada originalmente em 1961, uma teoria do direito em que as regras assumem o papel central. A teoria do direito como ordens coercitivas tinha a intenção de reduzir o fenômeno jurídico a algo puramente factual, em que não fosse preciso entrar em discussões a respeito de sua normatividade (cf. BARZOTTO, 2004, p. 107), sempre com vistas à utilização, também nas ciências sociais, dos métodos de verificação próprios das chamadas ciências naturais. Com essa teoria, Hart compartilha a opinião de que onde há direito, a conduta humana é não-opcional ou obrigatória em algum sentido.3 Sendo assim, a noção de obrigação ocupará um lugar privilegiado nas análises de Hart. O que poderia distinguir a ordem de um assaltante que, apontando uma arma para a vítima, determina que ela lhe entregue o dinheiro, daquela dada por um juiz, determinando a entrega de determinada quantia? Tendo em vista estas questões, Hart desenvolveu uma análise da obrigação em geral, partindo das expressões “ter uma obrigação” (having an obligation to) e “estar obrigado a” (being obliged to), para só depois tratar especificamente de obrigações jurídicas. Segundo Hart, é compreensível que, no caso do assaltante, diga-se que a vítima estava obrigada (compelida) a entregar o dinheiro, mas não que tinha a obrigação de faze-lo. Os medos, as crenças ou os motivos daqueles que estão obrigados não desempenha um papel importante nessa distinção, pois não contribuem para explicação do que quer dizer 3 HART, 1997, p. 82: “Deverá ser recordado que a teoria do direito como ordens coercitivas, não obstante seus erros, partiu da apreciação perfeitamente correta do fato de que onde há direito, a conduta humana é feita em algum sentido não-opcional ou obrigatória” [“It will be recalled that the theory of law as coercive orders, notwithstanding its errors, started from the perfectly correct appreciation of the fact that where there is law, there human conduct is made in some sense non-optional or obligatory”]. 13 “ter uma obrigação”. Percebendo isso, a teoria do direito como ordens coercitivas desenvolveu a idéia de “ter uma obrigação” como probabilidade de sofrer uma sanção ou um mal em caso de desobediência (cf. HART, 1997, p. 83). Contra essa noção, Hart argumenta que o desrespeito à norma (ou padrão social de conduta) não é apenas o fundamento para a previsão da aplicação de uma sanção, mas também a razão ou justificativa para aplicá-la (cf. HART, 1997, p. 84). Além disso, apesar de estarem geralmente associadas, as expressões “ter uma obrigação” e “sofrer uma sanção por desobediência” podem vir dissociadas. É possível que alguém continue tendo a obrigação, mesmo depois de desrespeitada a norma, e não venha a sofrer uma sanção; o fato de se furtar à sanção não elimina a obrigação. Assim, mesmo que não haja probabilidade alguma de sofrer uma sanção, há situações em que a obrigação continua existindo;4 logo, ter uma obrigação e sofrer provavelmente uma sanção por desobediência são enunciados que podem divergir. O que caracteriza, para Hart, a expressão “ter uma obrigação” é a existência de uma regra social ou padrão de conduta. “Ter uma obrigação” implica a existência de uma regra, mesmo que nem sempre se possa dizer que a existência de uma regra implica uma obrigação (como se verá adiante, é caso das regras secundárias): “A afirmação de que alguém tem ou está sob uma obrigação implica realmente a existência de uma regra; porém, nem sempre onde existirem regras o padrão de conduta requerido por elas poderá ser concebido em termos de uma obrigação” (HART, 1997, p. 85-86).5 Assim, não se pode dizer no exemplo dado acima, do assaltante que coage a vítima a entregar-lhe o dinheiro, que a vítima tenha uma obrigação, porque falta a regra social que fundamente essa obrigação; pode-se, no entanto, dizer que a vítima foi ou que estava obrigada (compelida) a entregar o dinheiro em virtude da grave ameaça sofrida. Uma vez 4 Hart exemplifica (1997, p. 84): “Se fosse verdadeira a afirmação segundo a qual dizer que uma pessoa tem uma obrigação significa afirmar que ela provavelmente sofrerá uma sanção em caso de desobediência, seria uma contradição dizer que alguém teria uma obrigação, e.g. de se apresentar ao serviço militar mas que, devido ao fato de ter escapado da jurisdição, ou ter subornado com sucesso a polícia ou o tribunal, não haveria a menor possibilidade de ser preso ou sofrer uma sanção. Na verdade, não há contradição alguma em dizer isto e tais afirmações são constantemente feitas e compreendidas” [“If it were true that the statement that a person had an obligation meant that he was likely to suffer in the event of disobedience, it would be a contradiction to say that he had na obligation, e.g. to report for military service but that, owing to the fact that he had escaped from the jurisdiction, or had successfully bribed the police or the court, there was not the slightest chance of his being caught or made to suffer. In fact, there is no contradiction in saying this, and such statements are often made and understood”]. 5 HART, 1997, p. 85-86: “The statement that someone has or is under an obligation does indeed imply the existence of a rule; yet it is not always the case that where rules exist the standard of behaviour required by them is conceived of in terms of obligation”. 14 identificado o papel das regras na constituição de obrigações, Hart distingue três características das normas. A primeira delas é a seriedade da pressão social por trás da regra, é preciso que a sociedade esteja empenhada em fazer cumprir a regra em caso de desobediência ou que haja sanções efetivas para assegurar o seu cumprimento; a segunda, diz respeito à importância de tais regras, acredita-se que elas sejam necessárias à manutenção da vida social ou de alguma característica muito importante dela; por fim, a conduta exigida pela regra, apesar de benéfica aos outros, geralmente contraria aquilo que a pessoa obrigada gostaria de fazer (cf. HART, 1997, p. 87). Destacada a importância das regras para a existência de obrigações, pode-se afirmar que a crítica de Hart à teoria do direito como ordens coercitivas está em que esta teoria não descreve a conduta daqueles que seguem regras, ou seja, não descreve o comportamento dos membros do grupo social como um comportamento determinado por regras sociais. Isso porque para Hart as regras possuem um aspecto interno e outro externo. Este oferece uma descrição das regras da perspectiva de um observador que examina determinado grupo social; aquele oferece uma descrição das regras da perspectiva daqueles que de fato as aceitam como padrão de conduta: “Quando um grupo social possui certas regras de conduta, este fato propicia a oportunidade para vários tipos de asserções intimamente relacionadas, mas ainda assim diferentes; pois é possível tratar de regras ou meramente como um observador, que não as aceita ele próprio, ou como um membro do grupo, que as aceita e as utiliza para guiar sua conduta. Nós podemos chamar esses pontos de vista respectivamente como externo e interno” (HART, 1997, p. 89).6 Para Hart, o ponto de vista externo não é capaz de descrever a conduta dos membros de um grupo como um comportamento determinado por regras, logo, não é capaz de apreender tais condutas em termos de obrigações ou deveres. Do ponto de vista externo, é possível apenas perceber e descrever regularidades. Na medida em que o observador não aceita as normas do grupo investigado, ele não percebe a conduta dos membros do grupo em termos de deveres ou obrigações, pois somente aqueles que aceitam as regras percebem sua própria conduta desta forma, uma vez que não há obrigações sem regras. Para o observador, 6 HART, 1997, p. 89: “When a social group has certain rules of conduct, this fact affords an opportunity for many closely related yet different kinds of assertion; for it is possible to be concerned with the rules, either merely as an observer who does not himself accept them, or as a member of the group which accepts and uses them as guides to conduct. We may call these respectively the ‘external’ and the ‘internal points of view’”. 15 no entanto, essas condutas são percebidas em termos de padrões de regularidades, previsões, probabilidades e signos.7 Assim, Hart afirma: “Se, entretanto, o observador realmente mantém austeramente este ponto de vista externo e não dá conta da maneira como os membros do grupo que aceitam as regras vêem seus próprios comportamentos cotidianos, sua descrição da vida deles não pode ser feita em termos de regras e, assim, também não pode ser feita em termos das noções de obrigação e dever dependentes de regras. Ao invés, será feita em termos de regularidades de condutas observáveis, predições, probabilidades e signos” (HART, 1997, p. 89).8 A perspectiva externa seria aquela da teoria do direito como normas coercitivas, razão pela qual Hart conclui que essa teoria negligencia o aspecto interno e, portanto, falha em não perceber o papel central que as regras ocupam na teoria do direito. O aspecto interno ocupa uma posição central na teoria de Hart. Neste aspecto, Hart identifica o traço distintivo do direito, enquanto técnica de controle social. Essa perspectiva permite, ainda, uma descrição da vida social como uma tensão entre aqueles que enxergam as regras do ponto de vista interno e aqueles que as vêem do ponto de vista externo: “O que é característico dessa técnica [direito], comparada com ordens individuais cara a cara como as que um oficial, como um policial no trânsito, poderia dar a um motorista, é que os membros da sociedade são deixados para descobrir as regras e conformar seu comportamento a elas; nesse sentido, eles ‘aplicam’ as regras eles próprios a si próprios, apesar de estarem providos com um motivo para a conformidade na sanção adicionada à regra” (HART, 1997, p. 39).9 E em outra passagem: “Em qualquer momento dado, a vida social de qualquer sociedade que vive regida por regras, legais ou não, provavelmente consistirá em uma tensão entre aqueles que, de um lado, aceitam e voluntariamente cooperam na manutenção das regras, e, portanto, vêem seu próprio comportamento e o de outras pessoas em termos de 7 Hart exemplifica a conduta do observador através da analogia com alguém que, ao observar durante algum tempo o tráfico de uma rua movimentada, afirma que há uma alta probabilidade de que o tráfico pare quando o sinal estiver vermelho. A luz vermelha é tratada por ele meramente como um sinal natural de que as pessoas vão parar (como as nuvens são um sinal de que irá chover). Porém, dessa forma, o observador não é capaz de perceber que para aquelas pessoas a luz vermelha não é apenas um sinal de que os outros irão parar, mas um sinal para que elas próprias parem e, dessa forma, a luz vermelha é uma razão para parar, em conformidade com regras que fazem do sinal vermelho um padrão de comportamento e uma obrigação (cf. HART, 1997, p. 90). 8 HART, 1997, p. 89: “If, however, the observer really keeps austerely to this external point of view and does not give any account of the manner in which members of the group who accept the rules view their own regular behaviour, his description of their life cannot be in terms of rules at all, and so not in the terms of the ruledependent notions of obligation or duty. Instead, it will be in terms of observable regularities of conduct, predictions, probabilities, and signs”. 9 HART, 1997, p. 39: “What is distinctive of this technique, as compared with individuated face-to-face orders which an official, like a policeman on traffic duty, might give to a motorist, is that the mebers of society are left to discover the rules and conform their behaviour to them; in this sense they ‘apply’ the rules themselves to themselves, though they are provided with a motive for conformity in the sanction added to the rule”. 16 regras, e aqueles que, por outro lado, rejeitam as regras e atendem a elas apenas do ponto de vista externo como um sinal de uma punição” (HART, 1997, p. 91).10 Hart consegue, assim, estabelecer a importância das regras sociais (legais ou não) na formação das obrigações. Mas, se o conjunto de regras sociais fosse composto somente por regras que criam obrigações, padeceria, segundo Hart, de três deficiências: haveria incerteza sobre quais seriam de fato as normas vigentes, quais os seus escopos, uma vez que essas regras não formariam um sistema (seriam, por exemplo, como nossas regras de etiqueta); a mudança dessas regras seria algo extremamente lento e dependeria do crescimento da sociedade e de mudanças nos costumes, o que impõe a esse conjunto de regras um problema de estática; finalmente, tais regras sofreriam de ineficiência, uma vez que a pressão social, que as assegurariam, estaria difusa na sociedade, sem um aparato centralizado para identificar o desrespeito às regras e a conseqüente aplicação das sanções (HART, 1997, p. 9293). A solução para esses problemas estaria, segundo Hart, em introduzir, ao lado das regras que criam obrigações, regras que ele chamará de primárias, outras regras ditas secundárias, que não criam obrigações, mas conferem competências, estabelecem procedimentos e permitem identificar as regras válidas.11 A inclusão de regras secundárias marca, segundo Hart, a passagem do regime de regras pré-jurídicas para um sistema jurídico. Com isso, o direito pode ser caracterizado, por fim, como um sistema de regras primárias e secundárias: “O remédio para cada um desses três defeitos principais [incerteza, estática, ineficiência] nessa forma mais simples de estrutura social consiste em suplementar as regras primárias de obrigação com regras secundárias que são de uma espécie 10 HART, 1997, p. 91: “At any given moment the life of any society which lives by rules, legal or not, is likely to consist in a tension between those who, on the one hand, accept and voluntarily co-operate in maintaining the rules, and so see their own and other persons’ behaviou in terms of the rules, and those who, on the other hand, reject the rules and attend to them only from the external point of view as a sign of possible punishment”. 11 HART distingue entre regras primárias e regras secundárias da seguinte forma (1997, p. 81): “Sob as regras do primeiro tipo, que podem bem ser consideradas do tipo básico ou primárias, é exigido dos seres humanos fazer ou deixar de fazer determinadas ações, queiram eles ou não. Regras do outro tipo são em certo sentido parasitárias ou secundárias às primeiras; pois elas determinam que os seres humanos podem, por seus atos ou por certas asserções, introduzir novas regras de tipo primário, extingui-las ou modificar as regras mais antigas, ou, de várias maneiras, determinar sua incidência ou controlar sua atuação. Regras do primeiro tipo impõe deveres; regras do segundo conferem poderes, públicos ou privados. Regras do primeiro tipo dizem respeito a ações envolvendo movimentos ou mudanças físicas; regras do segundo regulamentam operações que conduzem não apenas a movimento ou mudanças físicas, mas à criação ou variação de deveres e obrigações” [“Under rules of the one type, which may well be considered the basic or primary type, human beings are required to do or abstain from certain actions, wheher they wish to or not. Rules of the other type are in a sense parasitic upon or secondary to the first; for they provide that human beings may by doing or saying certain things introduce new rules of the primary type, extinguish or modify old ones, or in various ways determine their incidence or control their operations. Rules of the first type impose duties; rules of the second type confer powers, public or private. Rules of the fist type concern actions involving physical movement or changes; rules of the second type provide for operations which lead not merely to physical movement or change, but to the creation or variation of duties or obligations”]. 17 diferente. A introdução do remédio para cada defeito poderia, em si própria, ser considerada como um passo do mundo pré-jurídico para o jurídico – uma vez que cada remédio traz consigo muitos elementos que permeiam o direito: certamente os três remédios juntos são o bastante para converter um regime de regras primárias no que é incontestavelmente um sistema jurídico” (HART, 1997, p. 94).12 Assim, para resolver o problema da ineficiência, Hart sugere a introdução de ‘regras de adjudicação’ (cf. HART, 1997, p. 97), que atribuem competência a determinados órgãos para julgar as controvérsias; regulamentam como a jurisdição será exercida; e instituem procedimentos para tanto. A solução para o problema da estática passa, segundo Hart, pela introdução de ‘regras de mudança’ (cf. HART, 1997, p. 95-96), que conferem competência a um indivíduo ou grupos de indivíduos para estabelecerem novas regras primárias ou para extinguir ou mudar as já existentes. Além disso, essas regras de mudança definiriam o procedimento legislativo, ou seja, o procedimento para criar novas regras. Por fim, e esse ponto merece maior atenção, para solucionar o problema da incerteza, Hart sugere a introdução de uma ‘regra de reconhecimento’, assim caracterizada: “Esta especificará alguma característica ou características, cuja posse por uma regra sugerida é tida como uma indicação afirmativa e conclusiva de que aquela regra é uma regra do grupo que deverá ser garantida pela pressão social que ela externa. A existência de uma tal regra de reconhecimento pode adquirir uma grande variedade de formas, simples ou complexa” (HART, 1997, p. 94).13 A regra de reconhecimento permite, pois, identificar algumas características, que indicam a pertinência da regra ao conjunto de regras jurídicas, ou ao conjunto de regras que terão curso pela imposição de tribunais, responsáveis pela aplicação da sanção que elas estabelecem para o caso de seu descumprimento. A regra de reconhecimento, por outro lado, é responsável pela unidade do sistema, pois é ela que permite a identificação das regras, assim como a formação de uma hierarquia entre elas. Por fim, vale ressaltar que ela é responsável pelo traço autoritativo das regras do sistema, isto é, permite identificar por quais regras os membros do grupo social deverão orientar sua conduta. Sendo assim: “Provendo uma marca autoritativa ela [regra de reconhecimento] introduz, ainda que de forma embrionária, a idéia de um sistema jurídico: pois as regras agora não 12 HART, 1997, p. 94: “The remedy for each of these three main defects in this simplest form of social structure consists in supplementing the primary rules of obligation with secondary rules which are rules of a different kind. The introduction of the remedy for each defect might, in itself, be considered a step from the pre-legal into the legal world; since each remedy brings with it many elements that permeate law: certainly all three remedies together are enough to convert the regime of primary rules into what is indisputably a legal system”. 13 HART, 1997, p. 94: “This will specify some feature or features possession of whic by a suggested rule is taken as a conclusive affirmative indication that it is a rule of the group to be supported by the social pressure it exerts. The existence of such a rule of recognition may take any of a huge variety of forms, simple or complex”. 18 são apenas um conjunto discreto e desarticulado, mas estão, de maneira simples, unificadas” (HART, 1997, p. 95).14 Daí segue, para Hart, a idéia de validade jurídica. Segundo Hart, uma regra é válida quando passa pelos testes estabelecidos pela regra de reconhecimento para identificar as regras pertencentes ao sistema. Dizer que uma regra é válida significa dizer que é uma regra pertencente ao sistema e que, portanto, satisfaz todos os critérios estabelecidos pela regra de reconhecimento, possui todas as características requeridas por esta para pertencer ao sistema jurídico.15 O sentido da validade de uma regra jurídica está, pois, atrelado à regra de reconhecimento: “Dizer que uma determinada regra é válida significa reconhecer que ela passa por todos os testes estabelecidos pela regra de reconhecimento e que é assim uma regra do sistema. Na verdade, podemos dizer simplesmente que o enunciado de que uma regra particular é válida significa que ela satisfaz todos os critérios estabelecidos pela regra de reconhecimento” (HART, 1997, p. 103).16 Hart não vê nenhuma ligação necessária entre validade e eficácia. Caracterizando a eficácia como o fato de uma regra ser mais obedecida do que desobedecida, Hart sustenta que uma não depende da outra, não havendo, portanto, entre validade e eficácia nenhuma conexão logicamente necessária: “Se por ‘eficácia’ entende-se o fato de que uma regra de direito, que requer determinado comportamento, é obedecida mais freqüentemente do que não, está claro que não há conexão necessária entre a validade de uma regra particular e a sua eficácia, a não ser que a regra de reconhecimento de um sistema inclua entre os seus critérios, como alguns sistemas fazem, a provisão (às vezes referida como regra de obsolecência) de que nenhuma regra deve valer como regra do sistema se há muito deixou de ser eficaz” (HART, 1997, p. 103).17 14 HART, 1997, p. 95: “By providing an authoritative mark it introduces although in embryonic form, the idea of a legal system: for the rules are now not just a discrete unconnected set but are, in a simple way, unified”. 15 O exemplo de Hart diz respeito a uma sociedade extremamente simples, em que as regras emanadas por um rei, Rex, seriam respeitadas como regras jurídicas. A regra de reconhecimento desta sociedade estabeleceria, então, que aquilo que Rex determina é regra de direito (cf. HART, 1997, p. 96). Em sistemas jurídicos mais complexos a regra de reconhecimento também precisa sê-lo, pois deverá indicar a posição, por exemplo, dos costumes enquanto fonte do direito, se eles se submetem ou não às leis escritas, enquanto uma fonte superior, e assim por diante; a regra de reconhecimento deverá seguir estabelecendo critérios para que se identifique as regras de direito e a sua posição dentro do sistema. 16 HART, 1997, p. 103: “To say that a given rule is valid is to recognize it as passing all the tests provided by the rule of recognition and so as a rule of the system. We can indeed simply say that the statement that a particular rule is valid means that it satisfies all the criteria provided by the rule of recognition”. 17 HART, 1997, p. 103: “If by ‘efficacy’ is meant that the fact that a rule of law which requires certain behaviour is obeyed more often than not, it is plain that there is no necessary connection between the validity of any particular rule and its efficacy, unless the rule of recognition of the system includes among its criteria, as some do, the provision (sometimes refered to as a rule of obsolescence) that no rule is to count as a rule of the system if it has long ceased to be efficacious”. 19 Contudo, apesar de não ser condição para a validade, a eficácia é erigida por Hart a uma das condições mínimas de existência de um sistema jurídico. Na verdade, as condições mínimas que Hart estabelece para a existência de um sistema jurídico dependem da eficácia: por um lado, as regras válidas devem ser geralmente obedecidas, por outro, a regra de reconhecimento deve ser aceita como padrão de conduta por aqueles responsáveis por sua aplicação: “Existem, pois, duas condições mínimas, necessárias e suficientes, para a existência de um sistema jurídico. De um lado, aquelas regras de comportamento que são válidas, segundo os critérios últimos de validade do sistema, devem ser geralmente obedecidas, e, por outro lado, a regra de reconhecimento do sistema, que especifica os critérios de validade jurídica, e suas regras de mudança e de adjudicação devem ser efetivamente aceitas pelas autoridades como padrões públicos comuns de comportamento oficial” (HART, 1997, p. 116).18 Cabe notar, ainda, que a regra de reconhecimento é descrita por Hart como uma regra fático-jurídica. Não se trata de uma regra puramente jurídica, porque é esta a regra que estabelece justamente o critério de validade jurídica, não havendo, portanto, um critério jurídico superior a ela própria para determinar sua validade; nem é, por outro lado, inteiramente fática, na medida em que estabelece critérios jurídicos de validade. Isso ajuda a compreender e localizar a eficácia na teoria de Hart. A regra de reconhecimento comporta afirmações a partir dos dois pontos de vista interno e externo. Do ponto de vista externo, ela é um fato que pode ser observado, onde houver um sistema válido de regras. Do ponto de vista interno, ela adquire caráter jurídico, haja vista que os responsáveis pela aplicação, implementação e criação de outras regras a utilizarão para determinar sua própria conduta. Assim tem-se que: “A razão para chamar a regra de reconhecimento de ‘jurídica’ [law] é que a regra que supre critérios para a identificação de outras normas do sistema pode ser pensada como uma característica que define o sistema jurídico, e então ela própria merece ser chamada ‘jurídica’ [law]; a razão para chamá-la ‘fática’ é que afirmar que uma tal regra existe é, na verdade, fazer uma afirmação externa sobre um fato relativo à maneira pela qual as regras de um sistema ‘eficaz’ são identificadas” (HART, 1997, p. 111-112).19 18 HART, 1997, p. 116: “There are therefore two minimum conditions necessary and sufficient for the existence of a legal system. On the one hand, those rules of behaviour which are valid accoding to the system’s ultimate criteria of validity must be generally obeyed, and, on the other hand, its rules of recognition specifying the criteria of legal validity and its rules of change and adjudication must be effectively accepted as commonpublic standards of official behavior by its officials”. 19 HART, 1997, p. 111-112: “The case for calling the rule of recognition ‘law’ is that the rule providing criteria for the identification of other rules of the system may well be thougt a defining feature of a legal system, and so itself worth calling ‘law’; the case for calling it fact is that to assert that such a rules exists is indeed to make an external statement of an actual fact concerning the manner in which the rules of an ‘efficacious’ system are identified”. 20 Não se pode negligenciar aqui a crítica que Barzotto dirige a todas as construções positivistas de norma suprema e que se aplica perfeitamente à regra de reconhecimento de Hart: “Há uma circularidade na construção: um conjunto de normas forma um sistema jurídico na medida em que possui uma norma suprema, mas a norma suprema só existe face a um conjunto de normas já identificado como jurídico” (BARZOTTO, 2004, p. 145). Como as regras estabelecem os padrões de conduta a serem observados, uma vez que são elas que criam obrigações e as instrumentalizam, criando tribunais para decidir os casos controvertidos, criando órgãos legislativos e estabelecendo procedimentos, elas devem ser comunicadas. O sucesso do direito, afirma Hart, depende, em grande medida, da capacidade de multidões de indivíduos reconhecerem os atos particulares e as circunstâncias como instâncias das classificações gerais feitas pelo direito (cf. HART, 1997, p. 124). É preciso, pois, instrumentos que permitam comunicar as regras jurídicas para que elas possam ser reconhecidas e utilizadas pelos membros do grupo social. Dois foram, para Hart, os principais mecanismos de comunicação das regras na história do direito: a legislação (regra escrita) e o precedente. O primeiro (a regra escrita) faz um uso máximo de expressões gerais, universais; enquanto o segundo, um uso mínimo. Um opera estabelecendo classificações gerais; o outro, por exemplos. Ambos compartilham, porém, uma área de indeterminação. O precedente, ou a comunicação da regra através de exemplos, deixa aberta a questão a respeito de quanto uma conduta deve parecer com aquela conduta exemplar para que se possa dizer que segue de fato o exemplo. Por outro lado, a regra escrita produz dúvidas sobre se um dado caso particular se enquadra ou não dentro da situação geral traçada pela regra. Evidentemente, em ambas as técnicas, existe uma massa de casos modelares, com características que se repetem, que não levantam essas questões, mas em alguns casos a aplicação da regra será posta em questão e haverá dúvidas a respeito de qual a conduta adequada para dar cumprimento à regra. Para Hart, essas dúvidas sempre surgirão, porque o ser humano estaria sujeito a duas limitações: uma relativa ignorância a respeito das circunstâncias de fato e uma relativa indeterminação de objetivos.20 Essas duas limitações, quando reconhecidas na indeterminação deixada pela linguagem das regras, leva Hart a concluir que toda regra possui uma textura aberta: 20 HART, 1994, p. 128: “A primeira limitação é a nossa ignorância dos fatos: a segunda, a nossa relativa indeterminação de objetivos” [“The first handicap is our relative ignorance of fact: the second is our relative indeterminacy of aim”]. 21 “Todas as regras envolvem reconhecer ou classificar casos particulares como instâncias de termos gerais, e, em tudo que nós estamos preparados para chamar de regra, é possível distinguir casos centrais claros, onde a regra certamente se aplica, e outros onde há razões tanto para afirmar, quanto para negar que ela se aplica. Nada pode eliminar essa dualidade de um núcleo de certeza e uma penumbra de dúvida, quando nós nos empenhamos em trazer situações particulares sob regras gerais. Isso impõe a todas as regras uma orla de vagüidade ou ‘textura aberta’, e isso pode afetar tanto a regra de reconhecimento, que especifica os critérios últimos usados na identificação do direito, quanto uma lei particular” (HART, 1997, p. 123).21 A conclusão, segundo Hart, de aplicar uma determinada regra a um caso que cai no âmbito de textura aberta dessa regra, ainda que não seja arbitrária ou irracional, é na verdade uma escolha. Aquele que aplica a regra escolhe adicionar a uma linha de casos um caso novo, devido as suas características e semelhanças serem suficientemente próximas com outros casos (cf. HART, 1997, p. 127). Há, pois, uma margem de discricionariedade para decidir esses casos. Portanto, tribunais e juízes exerceriam uma atividade criadora, em casos que não se enquadrassem nos estreitos limites da linha de exemplos e casos modelares que determinam a aplicação das regras. Esse exercício de discricionaridade é, finalmente, aquilo que a textura aberta das regras quer dizer: “A textura aberta do direito significa que existem, na verdade, áreas de conduta onde muito deve ser desenvolvido por tribunais ou oficiais, buscando um equilíbrio, sob à luz das circunstâncias, entre interesses em conflito, que variam em peso de um caso para outro” (HART, 1997, p. 135).22 Com isso, pode-se concluir, parafraseando Ronald Dworkin (cf. DWORKIN, 1978, p. 81), o qual se oporá à tese de Hart, que este último desenvolve uma teoria para solução de casos difíceis: se um determinado caso não se enquadra na previsão de nenhuma regra do direito, o julgador poderá decidir esse caso discricionariamente, adotando a resposta que lhe parecer, para ele julgador, a mais adequada. 21 HART, 1997, p. 123: “All rules involve recognizing or classifying particular cases as instances of general terms, and in the case of everything which we are prepared to call a rule it is possible to distinguish clear central cases, where it certainly applies and others where there are reasons for both asserting and denying that it applies. Nothing can eliminate this duality of a core of certainty and a penumbra of doubt when we are engaged in bringing particular situations under general rules. This imparts to all rules a fringe of vagueness or ‘open texture’, and this may affect the rule of recognition specifying the ultimate criteria used in the identification of the law as much as a particular statute”. 22 HART, 1994, p. 135: “The open texture of law means that there are, indeed, areas of conduct where much must be left to be developed by courts or officials striking a balance, in the light of circumstances, between competing interests which vary in weight from case to case”. 22 2 – A TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE DWORKIN A partir de 1977, com a publicação da obra Taking Rights Seriously, Ronald Dworkin começou a traçar os contornos de uma teoria do direito que iria se opor à de Hart em muitos pontos, dentre os quais a forma de compreender a atividade dos juízes. Dworkin se propõe a descrever de outra maneira a forma pela qual os juízes tomam suas decisões. Sua teoria termina por rejeitar o caráter discricionário que a teoria de Hart atribuía às decisões judiciais nos casos difíceis. No que se segue, pretende-se descrever, em linhas gerais, a teoria do direito de Dworkin. Pode-se dizer que a primeira objeção que Dworkin faz aos positivistas,23 tendo como alvo especificamente a teoria de Hart, é que o direito não pode ser reduzido a um conjunto de regras, todas identificáveis por uma única regra de reconhecimento, não importa quão complexa esta seja. Ao lado das regras promulgadas por uma autoridade (seja um soberano, ou a sociedade personificada em um corpo legislativo), cujo conjunto forma o direito na concepção de Hart por exemplo, existiria um outro tipo de norma: os princípios. Pode-se dizer que, para Dworkin, há uma diferença lógica entre regras e princípios. Essa diferença pode ser percebida no modo de aplicação de ambas as espécies normativas. Regras, como afirma Dworkin, aplicam-se da forma tudo-ou-nada (all-or- nothing) (cf. DWORKIN, 1978, p. 24); se estão dados os fatos estipulados por uma regra válida, deve-se aceitar a resposta que a regra fornece; dessa forma, se duas regras fornecem respostas diferentes para um mesmo caso, uma delas não pode ser válida.24 No caso de colisão de regras, o sistema jurídico deve dispor de outras regras que regulamentem o conflito, estabelecendo critérios para que se escolha entre uma ou outra (cf. DWORKIN, 1978, p. 27) (como por exemplo, “lei posterior derroga lei anterior”, ou “a regra constitucional prevalece sobre a infraconstitucional”). Por sua vez, os princípios não estipulam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente, uma vez preenchidas as 23 Sobre isso, ver o item 3, infra. DWORKIN, 1978, p. 24: “Regras são aplicáveis à maneira tudo-ou-nada. Se os fatos que uma regra estipula estão dados, então, ou a regra é válida, caso em que a resposta que ela fornece deve ser acatada, ou a regra não é válida, caso em que não contribui em nada para a decisão” [“Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision”]. 24 23 condições que eles estabelecem (cf. DWORKIN, 1978, p. 25). Daí decorre uma segunda diferença, que diz respeito à dimensão de peso que só os princípios possuem. Assim, se dois princípios conflitam na solução de um determinado caso, quer dizer, um justifica uma decisão em um sentido e o outro justifica uma decisão em sentido contrário, deve-se indagar sobre o peso de cada um dos princípios diante daquele caso específico, ambos os princípios, porém, permanecem válidos: “Princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando princípios entrecruzam-se (a política de proteção aos consumidores de automóveis entrecruzando-se com princípios de liberdade de contratar por exemplo), aquele que deve resolver o conflito tem que levar em conta o peso relativo de cada um. Isso não pode ser, evidentemente, uma medida exata, e o juízo de que um princípio particular ou política é mais importante do que outro muitas vezes será controverso. Não obstante, que o princípio tenha essa dimensão é uma parte integrante do seu conceito, pois faz sentido perguntar quão importante ou quão pesado ele é” (DWORKIN, 1978, p. 26-27).25 Ao lado dos princípios, existem também políticas (policies). Políticas estabelecem metas a serem alcançadas e estão geralmente associadas ao crescimento econômico, ao crescimento da riqueza, ou seja, aspectos que dizem respeito ao bem estar da coletividade. “Argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão favorece ou protege alguma meta coletiva da comunidade como um todo” (DWORKIN, 1978, p. 82).26 Já os princípios não estão relacionados a metas coletivas, mas a direitos individuais ou de grupos determinados, que dizem respeito a exigências de justiça e de eqüidade. Portanto, “Argumentos de princípios justificam uma decisão política por mostrar que a decisão respeita ou assegura algum direito individual ou de um grupo” (DWORKIN, 1978, p. 82).27 Em resumo: “Chamo uma ‘política’ àquele tipo de padrão que estabelece metas a serem alcançadas, geralmente uma melhora em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (apesar de algumas metas serem negativas, pois determinam que algum aspecto presente deve ser protegido contra retrocessos). Chamo ‘princípio’ a um padrão que deve ser observado, não porque isso produzirá algum 25 DWORKIN, 1978, p. 26-27 “Principles have a dimension that rules do not – the dimension of weight or importance. When princíples intersect (the policy of protecting automobile consumers intersecting with principles of freedom of contract, for example), one who must resolve the conflict has to take into account the relative weight of each. This cannot be, of course, an exact measurement, and the judgement that a particular principle or policy is more important than another will often be a controversial one. Nevertheless, it is an integral part of the concept of a principle that it has this dimension, that it makes sense to ask how important or how weighty it is”. 26 DWORKIN, 1978, p. 82: “Arguments of policy justify a political decision by showing that the decision advances or protects some collective goal of the community as a whole”. 27 DWORKIN, 1978, p. 82: “Arguments of principle justify a political decision by showing that the decision respects or secures some individual or group right”. 24 avanço ou garantirá uma determinada situação econômica ou social que se crê desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou de eqüidade ou de alguma outra dimensão da moral” (DWORKIN, 1978, p. 22-23).28 Resumindo: “Argumentos de princípio são argumentos destinados a estabelecer um direito individual; argumentos de política são argumentos destinados a estabelecer uma meta coletiva. Princípios são proposições que descrevem direitos; políticas são proposições que descrevem metas” (DWORKIN, 1978, p. 90).29 Para Dworkin, esses princípios jurídicos, que descrevem direitos individuais, não podem ser identificados por uma regra que especifique critérios para identificação de outras regras ou regra de reconhecimento; os princípios não comportam um teste de pedigree. A origem desses princípios jurídicos estaria em um senso de adequabilidade desenvolvido pelos profissionais do direito e pelo público ao longo do tempo: “A origem destes [princípios] como princípios jurídicos não está em uma decisão particular de algum legislador ou tribunal, mas em um senso de adequabilidade desenvolvido na atividade profissional e pelo público ao longo do tempo. A continuidade de seu poder depende da manutenção desse senso de adequabilidade” (DWORKIN, 1978, p. 40).30 O reconhecimento de um princípio por um juiz ou tribunal, assim como o peso de um princípio, depende de quanto suporte institucional é possível conseguir para fundamentar esse princípio. O suporte institucional de que fala Dworkin diz respeito ao fato do princípio haver sido citado em alguma outra decisão, ou poder ser deduzido de algum texto de lei; o suporte institucional quer dizer que o princípio, de algum modo, faz parte da história de um determinado ordenamento jurídico. Desse modo, a fundamentação de um princípio jurídico depende da história institucional, ou seja, o princípio deve ser reconstruído a partir do conjunto de decisões tomadas no passado pelos tribunais ou pelo legislativo: 28 DWORKIN, 1978, p. 22-23: “I call a ‘policy’ that kind of standard that sets out a goal to be reached, generally an improvement in some economic, political, or social feature of the community (though some goals are negative, in that they stipulate that some present feature is to be protected from adverse change). I call a ‘principle’ a standard that is to be observed, not because it will advance or secure an economic, political, or social situation deemed desirable, but because it is a requirement of justice or fairness or some other dimension of morality”. 29 DWORKIN, 1978, p. 90: “Arguments of princíple are arguments intended to establish an individual right; arguments of policy are arguments intended to establish a collective goal. Principles are propositions that describe rights; policies are propositions that describe goals”. 30 DWORKIN, 1978, p. 40: “The origin of these as legal principles lies not in a particular decision of some legislature or court, but in a sense of appropriateness developed in the profession and the public over time. Their continued power depends upon this sense of appropriateness being sustained”. 25 “Certo, se fôssemos desafiados a fundamentar nossa pretensão de que determinado princípio é um princípio do direito, mencionaríamos quaisquer casos anteriores nos quais aquele princípio fosse citado, ou tivesse figurado no argumento. Mencionaríamos, ainda, qualquer texto de lei que parecesse exemplificar aquele princípio (melhor ainda se o princípio fosse citado no preâmbulo do texto legal, ou nos relatórios de comissões ou outro documento legislativo que o acompanhasse). A não ser que pudéssemos conseguir tal suporte institucional, provavelmente falharíamos em nossa argumentação, e quanto mais suporte conseguíssemos, mais peso poderíamos reclamar para o princípio” (DWORKIN, 1978, p. 40).31 Assim, pode-se dizer que os princípios são normas de um tipo diferente daquelas descritas pelo positivismo. Dworkin insiste em que o positivismo concebeu um ordenamento jurídico composto apenas por regras, deixando de prestar a devida atenção aos princípios. Somente por conceber um ordenamento jurídico composto apenas por regras, segundo Dworkin, viu-se o positivismo, sempre tendo como alvo a teoria de Hart, forçado a aceitar a discricionaridade dos juízes para decidir casos em que não havia regulamentação ou em que a regulamentação existente não provia uma resposta unívoca. Dworkin tenta evitar a tese da discricionaridade, sustentando o que ele chama de Tese dos Direitos, segundo a qual as decisões judiciais impõem o cumprimento de direitos políticos já existentes (cf. DWORKIN, 1978, p. 87),32 quer dizer, as decisões judiciais são caracteristicamente, e deveriam ser, geradas por princípios e não por políticas (cf. DWORKIN, 1978, p. 84). Como os princípios descrevem direitos individuais, e como as decisões judiciais em casos difíceis devem ser guiadas por princípios, não haveria espaço para a discricionaridade, no sentido de que os juízes não estariam livres, em tais casos, para criarem direitos ou constituir obrigações que não existissem anteriormente. Nos chamados casos difíceis (hard cases), em que não há uma regra específica que ofereça uma resposta unívoca ao problema posto, ao contrário de tomar uma decisão 31 DWORKIN, 1978, p. 40: “True, if we were challenged to back up our claim that some principle is a principle of law, we would mention any prior cases in which that principle was cited, or figured in the argument. We would also mention any statute that seemed to exemplify that principle (even better if the principle was cited in the preamble of the statute, or in the committee reports or other legislature documents that accompanied it). Unless we could find some such institutional support, we would probably fail to make out our case, and the more support we found, the more weight we could claim for the principle”. 32 Para Dworkin, direitos políticos são objetivos políticos individuados (1978, p. 91): “Eu começo com a idéia de um objetivo político como uma justificativa política genérica. Uma teoria política toma um estado de coisas como um objetivo político se, para aquela teoria, esse objetivo conta em favor de alguma decisão política, que provavelmente leva adiante ou protege aquele estado de coisas, e por outro lado conta contra uma decisão que o retardará ou o colocará em perigo. Um direito político é um objetivo político individuado” [“I begin with the idea of a political aim as a generic political justification. A political theory takes a certain state of affairs as a political aim if, for that theory, it counts in favor of any political decision that the decision is likely to advance, or to protect, that state of affairs, and counts against the decision that it will retard or endanger it. A political right is an individuated political aim”] 26 discricionária, deve o juiz, segundo Dworkin, construir uma decisão para o caso a partir dos princípios, ou seja, respeitando direitos individuais. Para Dworkin, os juízes, bem como qualquer funcionário público encarregado de tomar decisões, estão sujeitos à responsabilidade política por suas decisões. A doutrina da responsabilidade política, como enunciada por Dworkin, impõe que os funcionários públicos só podem tomar decisões dentro do quadro de uma teoria política, que ofereça também uma justificativa para as outras decisões tomadas ou que estes funcionários pretendam tomar.33 Assim, para que um juiz tome uma decisão com apoio em princípios, em um caso difícil, será preciso que ele demonstre que o princípio encontra apoio e se justifica perante (não contradiz) as decisões que foram tomadas no passado, bem como em relação a um programa de decisões futuras: “Um argumento de princípio pode oferecer uma justificativa para uma decisão particular, sob a doutrina da responsabilidade, somente se for possível mostrar que o princípio citado é consistente com decisões anteriores, que não foram retratadas, e com decisões que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas” (DWORKIN, 1978, p. 88).34 Percebe-se que a exigência posta pela doutrina da responsabilidade é que o juiz, ao tomar suas decisões, deve elaborar uma teoria que faça da história institucional daquela comunidade de indivíduos um todo coerente. Isto é, o princípio que se decida aplicar não pode estar em contradição com o todo das decisões que foram tomadas no passado; não pode estar em franca oposição àquilo que os tribunais decidiram e àquilo que o legislador transformou em lei. Por isso, é preciso desenvolver uma determinada teoria que explique a conexão e as relações entre essas decisões passadas e que permita justificar, ou que se possa deduzir, o princípio que se quer aplicar. Dworkin reconhece que a exigência de consistência total seria um exagero. Certamente, não seria possível harmonizar decisões contraditórias que foram tomadas no passado. Daí segue que a teoria a ser desenvolvida terá que considerar parte da história institucional, que ela tenta explicar, como um erro (cf. DWORKIN, 1978, p. 119). A teoria que está por trás da decisão judicial deve prover, também, uma teoria dos 33 DWORKIN, 1978, p. 87: “Juízes, como qualquer autoridade política, estão sujeitos à doutrina da responsabilidade política. Essa doutrina sustenta, em sua forma mais geral, que as autoridades políticas devem tomar apenas aquelas decisões políticas que possam ser justificadas dentro de uma teoria política que também possa justificar outras decisões que elas se proponham a tomar” [“Judges, like all political officials, are subject to the doctrine of political responsibility. This doctrine states, in its most general form, that political officials must make only such political decisions as they can justify within a political theory that also justifies the other decisions they propose to make”]. 34 DWORKIN, 1978, p. 88: “An argument of principle can supply a justification for a particular decision, under the doctrine of responsibility, only if the principle cited can be shown to be consistent with earlier decision not recanted, and with decision that the institution is prepared to make in the hypothetical circunstances”. 27 erros, que deve conter duas partes: uma que exponha as conseqüências para argumentos futuros de considerar parte da história institucional como um erro, e uma outra que limite o número de eventos que possam ser caracterizados como um erro.35 A conseqüência disso é que não será possível dizer, diante de toda e qualquer proposição contrária à decisão que se queira tomar, tratar-se de um erro institucional, de modo a afastar qualquer limitação ou critério decisório. Essa forma de decisão desenvolvida por Dworkin levou-o, posteriormente (com a publicação da obra Law’s Empire, em 1986), a recorrer à imagem do romance em cadeia. Para Dworkin, o juiz assemelha-se a um romancista que escreve um capítulo de um romance escrito a várias mãos, em que cada capítulo é escrito por um escritor diferente. Tal como esse romancista, o juiz receberá os capítulos anteriores, que já começaram a história, ou seja, já existem personagens, já existe uma certa trama, quer dizer, decisões já foram tomadas interpretando o direito em certo sentido, e tudo isso deverá ser levado em conta pelo juiz/romancista. O romancista não pode desconsiderar o que foi escrito anteriormente e começar uma nova história, tal como o juiz não poderá desconsiderar as leis e os precedentes e tomar a decisão que ele julgar simplesmente mais adequada. Porém, a coerência que se exige do juiz, tal como a que se exige do romancista, não significa que ele deve ficar adstrito àquilo que foi decidido no passado, pois no momento de tomar a decisão o juiz escreve, assim como o romancista, a continuação daquela história, de modo a torná-la a melhor possível. Tanto num quanto noutro caso, é preciso buscar os princípios que movem as histórias, ordenálos, de tal forma que se possa compreender e desenvolver a história da melhor forma possível (cf. DWORKIN, 1986, p. 228 et seq.). Essa concepção de direito, que abarca regras, princípios, políticas, metas de bem estar social, foi designa por Dworkin de integridade: “A integridade exige que as normas públicas [public standards] de uma comunidade sejam ao mesmo tempo criadas e vistas, até onde isso seja possível, de modo a expressar um esquema único, coerente de justiça e eqüidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal irá algumas vezes, por essa razão, afastar-se de uma linha estreita de decisões passadas, na busca por fidelidade a princípios 35 DWORKIN, 1978, p. 121: “Ele [juiz] deverá desenvolver alguma teoria de erros institucionais, e essa teoria de erros deve conter duas partes. Deve mostrar as conseqüências para argumentos posteriores de tomar algum evento institucional como um erro; e deve limitar o número e o caráter dos eventos que possam ser tratados como tal” [“He must develop some theory of institutional mistakes, and this theory of mistakes must have two parts. It must show the consequences for further arguments of taking some institutional event to be mistaken; and it must limit the number and character of the events that can be disposed of in that way”]. 28 concebidos como mais fundamentais ao esquema como um todo” (DWORKIN, 1986, p. 219).36 A resposta de Dworkin ao problema da legitimidade das decisões judiciais é, portanto, uma teoria que reaproxima o direito da moral (cf. LEAL, 2002(a), p. 60), uma vez que os princípios jurídicos têm uma dimensão moral, reconhecida institucionalmente. Além disso a teoria de Dworkin rejeita a discricionariedade judicial e impõe a busca de direitos mais fundamentais ao ordenamento jurídico, na história institucional da sociedade. 3 - DISCRICIONARIEDADE DECISÓRIA: COMPREENDENDO O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS (I) A tese rejeitada por Dworkin e defendida por Hart, de que os juizes devem decidir, discricionariamente, os casos que não estejam regulamentados, é compartilhada por vários positivistas.37 Kelsen, por exemplo, também admite certa margem de discricionariedade na aplicação da lei. Essa liberdade do juiz para criar direito em alguns casos decorre da maneira como o positivismo concebe o ordenamento jurídico. De modo geral, o positivismo sustenta que o direito é formado por um conjunto de regras que determinam a conduta dos membros de um grupo social específico. Essas regras podem ser identificadas por uma outra regra que estabelece critérios de identificação das regras jurídicas 36 DWORKIN, 1986, p. 219: “Integrity demands that the public standards of the community be both made and seen, so far as this is possible, to express a single, coherent scheme of justice and fairness in the right relation. An institution that accepts that ideal will sometimes, for that reason, depart from a narrow line of past decisions in search of fidelity to principles conceived as more fundamental to the scheme as a whole”. 37 Dworkin chega a erigir essa tese como dogma (tenet) do positivismo. A tese da discricionariedade é o segundo dogma característico do positivismo segundo Dworkin. O primeiro seria a existência de uma regra que fornece critérios para identificação de regras jurídicas válidas; nunca pelo seu conteúdo, mas pelo seu pedigree ou pela forma como são criadas e adotadas. O terceiro dogma mantém que as obrigações jurídicas são criadas apenas por regras jurídicas. O segundo dos três dogmas, Dworkin o descreve assim (1978, p. 17): “O conjunto dessas regras jurídicas válidas exaure ‘o direito’, de modo que se algum caso não estiver claramente acobertado por uma dessas regras (porque não há nenhuma regra apropriada, ou porque aquelas que parecem apropriadas são vagas, ou por outra razão qualquer), este caso, então, não poderá ser decidido ‘aplicando-se o direito’. Ele deverá ser decidido por alguma autoridade, como um juiz, ‘exercendo sua discricionariedade,’ o que significa buscar, além do direito, algum outro tipo de padrão para guiá-la na fabricação de uma nova regra jurídica ou na suplementação de uma antiga” [“The set of these valid legal rules is exhaustive of ‘the law’, so that if someone’s case is not clearly covered by such a rule (because there is none that seems appropriate, or those that seem appropriate are vague, or for some other reason) then that case cannot be decided by ‘applying the law.’ It must be decided by some official, like a judge, ‘exercising his discretion,’ which means reaching beyond the law for some other sort of standard to guide him in manufacturing a fresh legal rule or supplementing an old one”]. 29 (v.g. “são regras jurídicas as determinações do rei”, “são regras jurídicas as determinações do órgão legislativo eleito pelo povo”). As regras jurídicas impõem, como obrigatórias, determinadas condutas aos membros de um grupo social; significa que, em parte, a conduta dos membros do grupo não é opcional. Com isso, no caso de desrespeito às regras jurídicas, o seu cumprimento pode ser determinado coercitivamente. Essa determinação coercitiva, em caso de descumprimento, é feita, em geral, por órgãos encarregados de resolver conflitos nascidos do descumprimento ou de interpretações conflitantes das regras jurídicas. A resolução desses conflitos se dá, segundo os postulados do positivismo, pela aplicação dessas regras, quer dizer, pela determinação, no caso individual, daquilo que a regra exige em abstrato. Percebe-se, pois, que as regras jurídicas não formam um todo amorfo, mas estão, de algum modo, organizadas e possuem um certa unidade, formam, grosso modo, um sistema: o sistema ou ordenamento jurídico.38 A afirmação de que o juiz não pode criar as regras que aplica é sustentada pelo princípio da legalidade, fundamental para o positivismo jurídico: um indivíduo só possui uma obrigação jurídica se há uma regra de direito válida que a estabeleça previamente. Assim, não poderia o juiz, sem violar o princípio da legalidade, criar, no momento de decidir uma controvérsia, uma regra nova para regulamentar o caso. Dessa forma, o positivismo privilegia a chamada segurança jurídica, isto é, a possibilidade de prever o comportamento alheio e agir conforme essa previsão39. No entanto, para que a incerteza do cálculo de ação social fosse reduzida ao mínimo, seria necessária uma regra para cada situação da vida social. Caso contrário, os órgãos encarregados de aplicar as leis ou regras jurídicas ver-se-iam diante de situações em que não haveria nenhuma regra para ser aplicada, ou em que aquelas existentes não propiciariam uma resposta unívoca ou isenta de dúvidas. Resumindo, caso não haja uma 38 Aqui, utilizam-se as expressões sistema jurídico e ordenamento jurídico como sinônimas. Deve-se chamar a atenção, porém, para o que diz Bobbio ao lembrar que uso da palavra sistema se deve aos ingleses, mas que tal palavra não é tão precisa quanto “ordenamento” (1995, p. 198): “Os ingleses se inclinam para o termo system, mas este pode dar lugar a confusões, porque o ordenamento jurídico pode ser considerado um sistema de normas, mas nem todo sistema de normas (como, por exemplo, o sistema normativo moral) pode ser considerado igual, em sua estrutura, ao ordenamento jurídico”. Para Bobbio, a noção de ordenamento jurídico está no “coração” do positivismo jurídico e teria sido a contribuição mais relevante dessa corrente (1995, p. 197): “Consideramos particularmente importante a teoria do ordenamento jurídico para efeito da caracterização do positivismo jurídico, porque através dela chega-se ao coração desta corrente jurídica. (...) Antes do seu desenvolvimento faltava no pensamento jurídico o estudo do direito considerado não como norma singular ou como um acervo de normas singulares, mas como entidade unitária constituída pelo conjunto sistemático de todas as normas”. 39 Luiz Fernando Barzotto vê, na segurança jurídica, um dos traços marcantes do positivismo, o ideal que o animava (2004, p. 18): “É pressuposto deste livro a idéia de que o positivismo estava animado pelo mesmo ideal que levou à construção do Estado Liberal e o seu direito: o ideal da segurança”. 30 regra clara para cada caso, haverá situações em que o julgador, o órgão encarregado pela aplicação da regra jurídica, não poderá decidir sobre quem tem ou não razão no caso individual; ou, em outros termos, não poderá decidir pela procedência ou improcedência do pedido. Para tentar solucionar esse problema, o positivismo trabalhou, inicialmente, com os princípios da completude e da coerência. “Por completude”, segundo Norberto Bobbio, “entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico possui uma norma para regular qualquer caso”.40 Especificando, pode-se dizer que um ordenamento jurídico é completo quando não se tem o caso em que não é possível demonstrar, a partir do ordenamento jurídico, a existência de uma norma ou da norma que a contradiz (cf. BOBBIO, 1993, p. 237). Caso não se tivesse nenhuma das duas, ou seja, caso fosse possível demonstrar que falta ao ordenamento uma norma, assim como aquela norma que a contradiz (quer dizer, existe uma situação tal que o ordenamento não proíbe nem permite uma determinada situação), ter-se-ia um ordenamento jurídico incompleto, estar-se-ia diante de uma situação de lacuna (cf. BOBBIO, 1993, p. 237238). Chama-se “lacuna”, portanto, a ausência de uma regra no ordenamento jurídico para regulamentar uma determinada situação. Se, ao contrário, um ordenamento contivesse tanto uma norma, quanto a norma que a contradiz, ou seja, contivesse uma norma permitindo um comportamento e outra proibindo-o, ter-se-ia um ordenamento incoerente. Do ponto de vista do juiz, o resultado é equivalente a não haver norma alguma regulamentando o caso, pois, perante um ordenamento jurídico contraditório, não se pode decidir quem tem razão e quem não tem, não se pode dar pela procedência ou improcedência do pedido. Por isso, o positivismo viu-se forçado a trabalhar com um princípio de coerência: “não se dá o caso em que se possa demonstrar a pertinência ao sistema de uma certa norma e da norma contraditória”.41 Já no século XIX, vários juristas colocaram em dúvida a completude do ordenamento jurídico. São exemplos disso a livre pesquisa científica do direito de François Gény, o movimento para o direito livre e a jurisprudência dos interesses, 40 Tradução do livre do texto italiano (BOBBIO, 1993, p. 237): “Per ‘completezza’ s’intende la proprietà per cui un ordinamento giuridico ha una norma per regolare qualsiasi caso”. 41 Tradução livre do italiano, (BOBBIO, 1993, p. 238): “Possiamo infatti definire la coerenza come quella proprietà per cui nonsi dà mai il caso che si possa dimostrare l’appartenenza al sistema e di una certa norma e della norma contraditoria” (grifos do autor). 31 além da “ofensiva sociológica” de Ehrlich.42 Todas essas correntes negaram a completude do ordenamento jurídico e, por conseguinte, defenderam a existência de lacunas. Ao final do século XIX, a artificialidade da completude do ordenamento jurídico havia-se revelado. As grandes codificações do século XIX envelheceram rapidamente, pois não forneciam regulamentação aos problemas, principalmente trabalhistas, que advieram com a revolução industrial e o surgimento das grandes indústrias (cf. BOBBIO, 1993, p. 244). A tese do non liquet, que sustentava que o juiz não poderia decidir casos que não estivessem regulamentados, devendo ser provocada a atividade legislativa, foi rechaçada pela maior parte dos positivistas como inconveniente (cf. HART, 1997, p. 275).43 Com isso, o positivismo impôs ao juiz uma obrigação de decidir, mesmo quando faltar a regra que regulamente o caso, ou quando há a regra, mas esta não oferece uma resposta unívoca.44 Criou-se, então, uma série de problemas: como decidir de forma consistente com o ordenamento jurídico na ausência de regra específica para o caso? Seria possível respeitar o princípio da legalidade no caso de criação judicial do direito? Qual o critério para identificar o direito criado pelo juiz como regra jurídica válida? Esses foram alguns dos problemas que embaraçaram os positivistas. Esses problemas revelaram, por um lado, a insustentabilidade de muitos dos pressupostos teóricos do positivismo, por outro, permitiram perceber que havia mais a considerar sobre as decisões judiciais do que o positivismo poderia supor. 42 Sobre a ofensiva sociológica de Ehrlich, vale notar aquilo que diz Luis Recaséns Siches (1973, p. 49) [tradução livre]: “Insiste Ehrlich no que outros tantas vezes já haviam assinalado anteriormente e que haveria de ser aduzido no futuro: o fato de que a vida é incomparavelmente mais rica do que tudo que a totalidade das normas jurídico-positivas pôde prever. Insiste também no fato de que a variedade de interesses apresenta um sem-fim de matizes diferentes, que não encontra expressão nas normas jurídicas gerais. Tais fatos acarretam consigo tremendas dificuldades para o juiz que queira decidir corretamente, tomando em consideração as singularidades de cada caso” [“Insiste Ehrlich en lo que tantas veces había sido señalado anteriormente por otros y habría de seguir siendo aducido en el futuro: el hecho de que la vida es incomparablemente más rica que todo lo que haya podido preveer la totalidad de todas las normas jurídico-positivas. Insiste también en el hecho de que la variedad de intereses presenta un sinfín de matices diferentes, que no halla expresión en las normas jurídicas generales. Tales hechos acarrean consigo tremendas dificuldades para el juez, que quiera fallar correctamente tomando en consideración las singularidades de cada caso”]. Para uma descrição resumida das principais correntes de pensamento que se contrapuseram aos principais postulados positivistas, pode-se consultar Luis Recaséns Siches, Nueva filosofía de la interpretación del derecho, México: Editoria Porrúa, 1973, Capítulo Segundo, III – Las principales críticas contra la lógica deductiva en la creación e interpretación del Derecho, p. 33-130. 43 Hart (1997, p. 272) dá conta de que a tese do non liquet foi proposta por Jeremy Bentham. Uma defesa dessa proposta é feita atualmente por Rosemiro Pereira Leal, na obra Teoria Processual da Decisão Jurídica, São Paulo: Landy, 2002 – sobre essa questão ver especificamente o que é dito na p. 106 et seq. 44 Essa obrigação de decidir imposta aos juízes é vista por Rosemiro Pereira Leal como proibição dogmática do non liquet – veja sobre isso o item 5, da obra referida na nota anterior. 32 As considerações de Hans Kelsen sobre a interpretação jurídica tentaram dar conta de alguns desses problemas. Para Kelsen, a interpretação jurídica, como ato cognitivo de determinação do sentido de uma norma, está presente sempre que se tenha de passar de um nível mais alto para um nível mais baixo do ordenamento jurídico (cf. KELSEN, 1974, p. 463 e 467). Lembre-se que Kelsen concebe o ordenamento jurídico como um sistema escalonado de normas, em que cada norma encontra seu fundamento de validade em uma norma superior, até que a validade do sistema como um todo remonta a uma norma fundamental. Uma norma de ordem superior determina, em parte, a implementação ou aplicação de normas de hierarquia inferior. No entanto, essa determinação nunca é completa, resta sempre uma margem de indeterminação que deixa ao intérprete a possibilidade de algumas escolhas. Com base em uma mesma norma, várias decisões seriam possíveis, vários atos implementariam aquilo que uma mesma norma determina.45 A norma, dessarte, não passaria de uma moldura a ser preenchida por uma escolha, um ato de vontade do julgador. Assim, a interpretação dos órgãos aplicadores do direito, interpretação autêntica segundo Kelsen, não se resumiria a um ato cognoscitivo (determinação do sentido da norma ou enumeração dos sentidos possíveis), mas consistiria também em um ato de vontade (escolha pela autoridade de um dos sentidos possíveis dentro da moldura fixada pela norma). É a tese kelseniana da interpretação como ato de conhecimento e como ato de vontade: “Se queremos caracterizar, não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: Na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um acto de vontade em que o órgão aplicador do Direito efectua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este acto, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um acto de coerção estatuído na norma jurídica aplicanda” (KELSEN, 1974, p. 470). Esse ato de vontade é a principal diferença entre a interpretação feita por órgãos encarregados de aplicar o direito e aquela feita pela ciência jurídica. A esta incumbe apenas traçar o quadro das interpretações possíveis. A escolha que o cientista faça de uma dessas interpretações possíveis, tal como aquela feita por um cidadão que queira determinar sua conduta segundo a previsão normativa, não vincula o órgão aplicador do direito. Já a escolha 45 Kelsen exemplifica (1974, p.464): “Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súbdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e,em grande parte, nem sequer podia prever” 33 feita por um órgão encarregado de aplicar a norma, como a decisão de um juiz, cria direito para o caso, tem força vinculante para quem sofre seus efeitos. Por isso, Kelsen diz que essa última forma de interpretação é “autêntica”.46 A construção teórica de Kelsen, pode-se perceber, buscava manter a consistência da decisão tomada com o ordenamento jurídico. Sem negar as várias possibilidades de interpretação, a teoria da norma enquanto moldura interpretativa permitia a Kelsen manter a vinculação da decisão com o ordenamento jurídico (aquela se fundamenta neste). Com isso, Kelsen podia manter a tese de que cada norma do ordenamento encontra seu fundamento de validade em uma norma superior, pois a norma individual criada pelo juiz para o caso particular estaria determinada por uma norma de hierarquia superior – a lei criada pelo legislador por exemplo. Mas Kelsen acabaria admitindo a possibilidade de criação do direito fora da moldura, significa dizer, em algumas hipóteses a criação de uma norma jurídica não é determinada por outra de hierarquia superior. Trata-se da hipótese de uma decisão judicial, por exemplo, que não encontra fundamento no ordenamento jurídico, mas que, no entanto, já passou em julgado e não pode mais ser rescindida.47 Marcelo Cattoni, em crítica arguta às teses kelsenianas sobre a interpretação, 48 demonstrou que, ao permitir a criação do direito fora dos limites da moldura normativa, Kelsen terminou entrando em contradição com os outros postulados de sua teoria. Com efeito, se era possível criar direito novo fora das determinações de uma norma hierarquicamente superior (fora da moldura em termos kelsenianos), qual seria o fundamento de validade desse novo direito? Na verdade, a validade desse direito reduziu-se a sua eficácia. 46 Vale notar que a interpretação do juiz, apesar de “criar direito’ apenas para o caso particular, também é considerada por Kelsen interpretação autêntica (1974, p. 471): “Mas autêntica, isto é, criadora de Direito, é-o a interpretação feita através de um órgão aplicador do Direito ainda quando crie Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute uma sanção”. 47 Como afirma Kelsen (1974, p.471): “A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa”. Kelsen chama atenção para o exemplo dos tribunais de última instância que freqüentemente criam direito novo por essa via (1974, p. 471): “É facto bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo – especialmente pelos tribunais de última instância”. 48 As considerações de Kelsen sobre a teoria da interpretação sofreram uma evolução, marcada por seus textos de 1934, 1953 (edição francesa da Teoria Pura do Direito) e 1960. A história dessa evolução foi reconstruída por Marcelo Cattoni, em texto seminal – A interpretação como ato de conhecimento e interpretação como ato de vontade: a tese kelseniana da interpretação autêntica – in Direito Processual Constitucional (Belo Horizonte: Mandamentos, 2001), reimpresso em Jurisdição e Hermenêutica Constitucional (Belo Horizonte: Mandamentos, 2004). 34 O simples curso coercitivo dessas decisões marca o seu caráter jurídico. Com isso, a separação que Kelsen tanto quis evitar entre direito e política, validade e eficácia, entrou em colapso: “Simplesmente, tal teoria da interpretação autêntica, presente em 1960, é incompatível com a teoria do ordenamento jurídico desenvolvida até então por Kelsen, a menos que se admitisse que ele tenha assumido uma posição tão realista no sentido de acabar, em última análise, por considerar o Direito como um sistema escalonado de autorizações em branco que nada garantiria quanto à coerência formal e material das decisões em face de si mesmo, o que seria, mais uma vez, uma ruptura com postulados juspositivistas e uma abertura fatal ao realismo jurídico, em que a questão acerca da validade das decisões estaria reduzida à questão acerca da eficácia do Direito, numa confusão entre ‘ser’ e ‘dever-ser’” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 55). Marcelo Cattoni aponta, ainda, a insustentabilidade dos pressupostos teóricos da teoria da interpretação de Kelsen. Cattoni coloca a questão: “É realmente possível traçar ‘o’ quadro ou moldura das interpretações possíveis de uma norma jurídica?” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 56). Seria possível à ciência do direito, ao cidadão e aos órgãos que devem aplicar as normas, traçar todas as possibilidades interpretativas de uma norma, mesmo quando se sabe que o sentido da norma pode mudar diante das circunstâncias de fato ou da relação que a norma venha a estabelecer com normas futuras? E se não for possível traçar esse quadro, como dizer se uma decisão encontra-se dentro ou fora da moldura? Esses são alguns dos problemas que depuseram contra os pressupostos teóricos kelsenianos. A insustentabilidade da teoria da interpretação de Kelsen revela-se quando se constata que é humanamente impossível traçar o quadro de todos os significados lingüísticos de uma norma. Como anota Cattoni: “É humanamente impossível porque não é possível prever nem todas as interpretações nem todos os desenvolvimentos que serão dados no futuro ao Direito. Para isso, seria necessário ter uma consciência supra-histórica do Direito, e ninguém, devido à nossa própria condição de seres históricos, seria capaz disso” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 57). Com a impossibilidade de se construir o quadro das interpretações possíveis, conclui-se que nunca seria possível dizer se uma decisão está dentro ou fora da moldura, ou seja, nunca se poderia saber se uma decisão foi ou não determinada por uma norma de hierarquia superior. A validade de uma decisão judicial seria indissociável de sua eficácia. Demais, para que sempre fosse possível tomar decisões nos limites da moldura normativa, seria preciso que o ordenamento jurídico fosse completo e, nesse caso, Kelsen 35 precisaria responder às críticas dirigidas à teoria da completude. Ele o faz, negando a existência de lacunas. Kelsen parte da máxima “o que não está proibido está permitido” para concluir que não são possíveis lacunas. Se o juiz rejeita uma pretensão, sob a alegação de que não há uma norma que regulamente o caso, ou de que não há uma lei que sustente a pretensão do autor, isso também seria aplicação do direito, não de uma regra específica, mas do ordenamento jurídico como um todo: “O essencial desta argumentação reside em que a aplicação do Direito vigente neste caso, como conclusão do geral para o particular, não é possível neste caso, pois falta a premissa necessária, a norma geral. Esta teoria é errónea, pois fundase na ignorância do facto de que, quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta. A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a teoria tradicional admite a existência de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não é possível, neste caso, a aplicação de uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da ordem jurídica – e isso também é aplicação do Direito. A aplicação do Direito não está logicamente excluída” (KELSEN, 1974, p. 338-339). Mas apesar de empreender uma defesa da completude, Kelsen renega que o ordenamento jurídico seja dotado de uma coerência absoluta, quer dizer, para cada caso Kelsen admite mais de uma resposta correta. Essa impossibilidade de uma única resposta correta é, segundo Kelsen, o resultado da indeterminação das normas jurídicas e, conseqüentemente, da necessidade de interpretação que surge daí. Isso acaba colocando um problema parecido com aquele de se decidir na ausência de normas: como escolher entre as várias respostas possíveis? Nesse caso, responde Kelsen, o juiz possui discricionariedade.49 De fato, Kelsen não parece se preocupar muito com a discricionariedade do juiz, desde que esta transite pelos meandros do direito positivo. O que parece importar é a forma jurídica, mesmo que esta não garanta nada aos cidadãos quanto ao conteúdo da decisão, ainda que esta só faça juridicizar a arbitrariedade do julgador: “Se o Direito positivo, por sua vez, autoriza os juízes a decidirem em conformidade com a Justiça, a decisão – porque autorizada pelo Direito válido – realiza-se em aplicação deste Direito; e é defendido o postulado do positivismo jurídico: que todo caso concreto deve ser decidido com base em Direito positivo válido – e isto quer dizer: em aplicação do Direito positivo vigente –.” (KELSEN, 1986, p. 288). Hart, por sua vez, admite que a linguagem utilizada para comunicar as regras jurídicas (seja a lei escrita, seja o precedente) deixa sempre uma “penumbra” em que o seu 49 Kelsen, 1974, p. 470: “Relativamente a este [direito positivo], a produção do acto jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o acto”. 36 sentido não está bem determinado. Isso não seria privilégio da linguagem jurídica, mas aconteceria também com a linguagem ordinária. Essa margem inevitável de indeterminação é o que Hart chama de “textura aberta”. Quando um caso cai nessa margem de textura aberta, em que não está claro o que é exigido pela regra, bem como quando não há uma regra explícita para regulamentar determinado caso, o juiz deve decidir discricionariamente, exercitando um poder intersticial de criar o direito (cf. HART, 1997, p. 273). Hart, portanto, não tem qualquer comprometimento com a tese da completude do ordenamento jurídico, e, por isso, a discricionariedade é admitida mais rapidamente e de forma mais direta do que na teoria kelseniana. Dworkin se opôs a essa discricionariedade decisória, basicamente, com três argumentos: a discricionariedade não descreve adequadamente a prática dos juízes; o juiz não é um oficial público eleito e, portanto, não possui competência para criar o direito, já que não representa o eleitorado; e a decisão judicial tomada em um caso para o qual não há regulamentação cria, ex post facto, a obrigação das partes (cf. DWORKIN, 1978, p. 71, 8485). Para sustentar que a discricionaridade não descreve a prática jurisdicional adequadamente, Dworkin argumenta que nenhum advogado, sustentando a causa de seu cliente, assim como o próprio juiz, no momento de decidir, nunca fala em criação do direito, mas sempre em aplicação. Com efeito, nenhum advogado solicita ao juiz que crie uma nova regra para o caso em questão, mas sim mantém que seu cliente tem o direito a uma determinada decisão. Também o juiz, mesmo nos casos mais difíceis, jamais se manifesta dizendo “na ausência de norma, passo a legislar”. Hart contra-argumenta que isso é mera retórica da prática judicial, alimentada, em grande parte, pela argumentação por analogia. Assim, mesmo quando os juízes estão, na verdade, criando direito, o fato de buscarem uma ligação com o direito já existente (analogia) disfarça a atividade criadora, dando a impressão de que se está aplicando direito pré-existente (cf. HART, 1997, p. 273-275). Contra a segunda crítica de Dworkin, que os juízes não são eleitos e portanto permitir que juízes criem direito atentaria contra o princípio democrático, Hart responde, dizendo que este é o preço a se pagar para evitar saídas inconvenientes, como ter que se reportar ao legislador (cf. HART, 1997, p. 275). Hart sustenta que este preço é baixo, quando se percebe que a competência legislativa atribuída ao juiz está limitada e, além disso, o juiz 37 não pode introduzir grandes reformas, mas apenas solucionar questões erigidas pelo caso particular. Quanto às limitações a que se submete o juiz, Hart afirma: “Não obstante, haverá pontos em que o direito existente falha em ditar qualquer decisão como a única correta, e, para decidir tais casos, o juiz deve exercer seus poderes de criar direito. Mas ele não o faz arbitrariamente: isto é, ele deve sempre ter alguma razão geral para justificar sua decisão e ele deve agir como um legislador escrupuloso agiria, decidindo secundo suas próprias crenças e valores” (HART, 1997, p. 273).50 Contra a última crítica de Dworkin, que no caso de criação judicial do direito uma das partes é punida por ter violado uma norma que foi criada depois dos fatos, Hart aduz que a força dessa objeção está em que o direito criado depois dos fatos decepciona as expectativas daqueles que confiaram no direito para determinar as conseqüências de seus atos. Mas, como nesses casos não há qualquer regulamentação, as partes não poderiam ter nenhuma expectativa fundada no direito (cf. HART, 1997, p. 276). As críticas de Dworkin e as respostas de Hart permitem uma melhor compreensão do problema da legitimidade das decisões judiciais. Que o discurso jurídico esteja ainda impregnado de elementos de retórica, não se discute. Mas, no caso da discricionariedade decisória, por que é preciso recorrer à retórica para disfarçar que os juízes de fato estão criando direito? Por que é que simplesmente juízes e advogados não admitem que, em alguns casos, na ausência de norma, o juiz assume também uma função legislativa intersticial? No entanto, assumir que o juiz vai legislar, no caso particular, significa dizer que as partes não tinham qualquer direito até então. Não é por outra razão que Hart reforça que, nesses casos, nenhuma das partes teria uma expectativa fundada no direito. Sem norma prévia, o juiz irá criar e aplicar uma nova norma jurídica, que, no entanto, fica limitada ao caso particular, como ressalta Hart. Lembre-se que, segundo Hart, o juiz deve agir nesses casos como um legislador escrupuloso agiria, dessarte, o juiz estaria limitado durante o interstício legislativo. Nitidamente, ao se admitir uma competência legislativa do juiz, surge uma necessidade de limitar sua atividade, porque, ao concentrar as funções legislativa e judiciária, o juiz se torna uma autoridade soberana, quer dizer, sem a norma jurídica para determinar sua decisão, perderam-se os critérios de fundamentação da decisão judicial. Se o juiz vai criar a norma 50 HART, 1997, p. 273: “None the less there will be points where the existing law fails to dictate any decision as the correct one, and to decide cases where this is so the judge must exercise his law-making powers. But he must not do this arbitrarily: that is he must always have some general reasons justifying his decision and he must act as a conscientious legislator would by deciding according to his ownbeliefs and values”. 38 que deve aplicar, não há, portanto, outro critério decisório, senão aqueles que o próprio juiz adotar. Aqui, certamente, haverá a interferência da orientação política e moral do julgador, sua biografia passa a servir de parâmetro para a escolha dos critérios decisórios. Essa situação é equivalente àquela autorização de “fechar lacunas”, discutida por Kelsen. Se o direito positivo simplesmente transmite ao juiz uma autorização para decidir, sem qualquer determinação de conteúdo, a biografia do juiz, seus valores, sua ética, suas opiniões políticas, tornam-se os únicos critérios para decisão.51 Por essas razões, surge a preocupação com a pessoa do juiz.52 O próprio Dworkin questiona o fato de se delegar competência para criar leis a um funcionário público que, via de regra, não foi eleito pela maioria. Mas será que a eleição do juiz resolveria o problema de tomar uma decisão em casos que não estão regulamentados? Será que o problema se resume apenas a escolher bons juízes? E qual seria o perfil do bom juiz?53 Que a legitimidade da decisão judicial não se reduz à pessoa do juiz, foi algo notado por Marcelo Cattoni: “Há muito, a questão acerca da legitimidade das decisões judiciais deixou de ser um problema que se reduza à pessoa do juiz. O exercício adequado da Jurisdição não se legitima simplesmente pelo fato de o juiz ter sido eleito segundo o princípio da maioria” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004, p. 49). A eleição do juiz pela maioria não permite, por si só, conhecer os critérios que o juiz utilizará para tomar suas decisões, não permite saber quais argumentos serão decisivos para que a decisão seja tomada num ou noutro sentido. Enfim, a eleição do juiz não torna sua decisão racionalmente aceitável. Isso demonstra que a racionalidade das decisões não pode 51 O direito brasileiro conta com uma norma dessas, Lei 9.099/95, art. 6º - O juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. 52 André Cordeiro Leal tem chamado a atenção para o fato de alguns autores deslocarem o problema da legitimidade das decisões judiciais para a pessoa do juiz. Dentre esses autores, pode-se citar Eduardo J. Couture (2003, p. 57): “Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinados, o que valem os juízes como homens. O dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo”. 53 Nestas perguntas, pode-se identificar uma das críticas de Bertrand Russell a Platão (1969, vol. I, p. 125): “Poder-se-ia sugerir que se desse aos homens sabedoria política mediante educação adequada. Mas surgiria a questão: em que consiste uma educação adequada? E isto acabaria por se transformar numa questão de partido. O problema de encontrar um grupo de homens ‘sábios’ e entregar-lhes o governo é, pois, insolúvel. Eis aí a razão definitiva a favor da democracia”. 39 ser buscada na pessoa do juiz.54 Não se pode ficar indiferente à maneira pela qual os juízes tomam suas decisões. Por isso, o estudo dos procedimentos que formam essas decisões passou a ser um ponto importante na discussão da legitimidade das decisões judiciais. A ênfase nessa perspectiva foi assumida de forma pioneira por Rosemiro Pereira Leal: “É muito comum, nos livros de Direito Processual, falar-se em livre arbítrio e discricionariedade no exercício da jurisdição quando, atualmente, com as conquistas históricas de direitos fundamentais incorporadas ao PROCESSO, como instrumentalizador e legitimador da Jurisdição, a atividade jurisdicional não é mais um comportamento pessoal e idiossincrásico do juiz, mas uma estrutura procedimentalizadora de atos jurídicos seqüenciais a que se obriga o órgão jurisdicional pelo controle que lhe impõe a norma processual, legitimando-o ao PROCESSO. Portanto, não há para o órgão jurisdicional qualquer folga de conduta subjetiva ou flexibilização de vontade, pelo arbítrio ou discricionariedade, no exercício da função jurisdicional, porque, a existirem tais hipóteses, quebrar-seia a garantia da simétrica paridade dos sujeitos do processo” (LEAL, 1999, p. 41).55 A discricionariedade provou-se insuficiente diante do problema da legitimidade das decisões judiciais. Impõe-se, por fim, contra o postivismo a conclusão de Luiz Fernando Barzotto (2004, p. 143): “Ainda quanto à questão da eficácia, podemos mencionar o problema político, que podemos chamar de ‘legalização do arbítrio’. Elevando a eficácia a critério de juridicidade, o positivismo nada mais faz do que ‘juridicizar’ a força”. Exige-se que as decisões judiciais sejam racionalmente aceitáveis. Porém, para que se possa compreender melhor essa racionalidade decisória, faz-se necessário debater as teses de Ronald Dworkin. 54 Ao se afirmar que a decisão judicial não se legitima apenas pelo fato do juiz ser eleito, pode-se ainda aduzir mais um argumento. Bastaria pensar-se na eleição de um juiz Magnaud. Como informa Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2004, p. 134-135), em alentada pesquisa, Jean-Marie Bernard Magnaud foi um juiz francês que se destacou por não seguir, em suas decisões, quaisquer preceitos legais, princípio de direito, doutrina ou jurisprudência. Algumas de suas decisões apoiavam-se tão-somente em sentimentalismo e em suas opiniões pessoais. Será que se Magnaud fosse um juiz eleito isso legitimaria suas decisões? Com efeito, a patologia Magnaud, para usar uma expressão de Ronaldo Brêtas, não se cura com o voto da maioria. Ainda que fosse eleito, suas decisões não se tornariam racionalmente aceitáveis. Pois, a nomeação de um juiz não é uma delegação em branco para que ele decida. 55 Nesse sentido, pode-se citar também Marcelo Cattoni (2004, p. 49): “O que justifica a legitimidade das decisões, no contexto de uma sociedade plural e democrática, são antes garantias processuais atribuídas às partes, principalmente a do contraditório e da ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões”. 40 4 - INTEGRIDADE, TAREFA HERCÚLEA: COMPREENDENDO O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS (II) Ao rejeitar a tese da discricionariedade decisória defendida pelo positivismo, Dworkin propõe a tese do direito como integridade. Essa tese vai-se apoiar na idéia de que os juízes, mesmo nos casos difíceis, devem descobrir quais são os direitos das partes, e não os criar ex post facto. Para sustentar seus argumentos, Dworkin recorre à distinção entre regras, princípios e políticas. Segundo Dworkin, as decisões judiciais devem basear-se em princípios e não em políticas. Seria possível ao juiz desenvolver uma teoria capaz de fornecer uma justificativa geral à história institucional de determinada comunidade. Essa teoria explicaria o ordenamento jurídico como um todo coerente em seus princípios mais fundamentais e, com isso, permitiria alcançar para cada caso uma única resposta correta. A análise de cada uma dessas proposições permitirá uma melhor compreensão de alguns aspectos do problema da legitimidade das decisões judiciais, designadamente, o problema da racionalidade decisória para o qual o positivismo já apontava. Como foi visto no item anterior, a discricionariedade, essa margem de liberdade atribuída ao juiz (seja para escolher a interpretação que julgar mais adequada, seja para criar a norma no caso concreto), não se coaduna com as demais afirmações sustentadas pelos positivistas. O maior desafio talvez fosse conciliar o princípio da legalidade, que, na versão positivista, exige a existência de lei prévia para que haja uma obrigação jurídica, com a discricionariedade para criar a norma para o caso, quando não haja uma regra específica que o regulamente. Na ausência de regra específica, a decisão criará, inevitavelmente, uma obrigação jurídica depois dos fatos. Isso atinge diretamente o ideal positivista de segurança jurídica. Se as partes não conheciam as regras pelas quais deveriam determinar sua conduta, não poderiam saber também como deveriam comportar-se naquela situação. Afastadas as concepções jusnaturalistas, segundo as quais existiria um ordenamento jurídico suprapositivo, completo e imutável, toda obrigação jurídica deve ser criada por uma norma jurídica; não é possível recorrer a normas imanentes, implícitas ou pressupostas. As normas jurídicas são criação humana e, portanto, também o são as obrigações decorrentes de tais normas. Não é por outra razão que, no caso de conflito, as decisões 41 judiciais devem ser tomadas aplicando o direito vigente. Exige-se de uma decisão judicial, para que possa ser qualificada como uma decisão jurídica, que seja consistente com o ordenamento jurídico, ou seja, a decisão deve ser concebida como a aplicação de uma das normas do sistema jurídico. Essa é a lógica do princípio da legalidade. No positivismo, é a norma que empresta sentido jurídico ao ato, e dessa afirmação se pode deduzir o princípio da legalidade. Sem a norma jurídica, um ato não possui significado jurídico. Assim, para que um ato seja juridicamente relevante, é preciso que haja uma norma que lhe atribua significação jurídica.56 Certamente, o ideal de segurança jurídica hoje deve ser questionado (cf. HABERMAS, 1996, p. 220); mas é preciso assegurar, minimamente, a previsibilidade das decisões judiciais, se é que o direito deve cumprir algum papel na integração social pela estabilização de expectativas de comportamento. Dworkin sustenta que, mesmo nos casos difíceis, o processo decisório objetiva descobrir (construir) e não inventar o direito das partes (cf. DWORKIN, 1978, p. 280). Assim, pode-se afirmar que, para Dworkin, o direito sempre pré-existe à decisão judicial. É que decisões judiciais deveriam ser tomadas com base em princípios e não com base em políticas (cf. DWORKIN, 1978, p. 84). Com isso, Dworkin pretende evitar duas objeções feitas contra a discricionariedade: que os juízes não são eleitos e, portanto, não deveriam criar normas; e que não se deve sacrificar os direitos de um homem inocente em nome de algum dever criado depois do evento (cf. DWORKIN, 1978, p. 85). Os argumentos de princípios descrevem direitos individuais, logo, exigem do juiz uma decisão em torno de quais são os direitos das partes, sem que ele seja forçado a fazer avaliações políticas e a sopesar interesses de grupos. De outro lado, se uma das partes tem um direito, apoiado em um princípio, a outra conseqüentemente tem um dever, assim, não haveria criação de direitos e obrigações ex post facto. A distinção entre princípios (principles) e politícas (policies) indica a existência de uma separação, na teoria de Dworkin, entre o discurso judicial e o legislativo. Valem para cada um desses âmbitos (legislativo e judicial) argumentos diferentes. A proibição que a tese 56 Nesse sentido, pode-se citar Hans Kelsen (1974, p. 20): “O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o facto em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o acto pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um acto de conduta humana constitui um acto jurídico (ou antijurídico), é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa”. 42 dos direitos de Dworkin impõe aos juízes, de que não decidam com base em argumentos de política, impede que a fronteira do discurso de aplicação de normas seja trespassada pelo juiz. Portanto, não há que se falar em criação de normas pelos juízes; a tarefa destes está sempre restrita à aplicação de normas, a descobrir qual é o direito, pré-existente, de cada uma das partes. A aplicação de princípios exige do juiz que desenvolva uma teoria que permita interpretar o ordenamento jurídico como um todo coerente. Como já foi visto, essa não é uma exigência de que todas as normas vigentes possam ser interpretadas como um todo coerente. Parte da história institucional interpretada deverá ser vista como um erro, portanto não é preciso harmonizar todas as normas existentes em uma única teoria. Demais, não se exige que o juiz conheça toda a história institucional que pretende interpretar, mas que veja as normas que a comunidade agora faz vigorar como um conjunto coerente de princípios: “A integridade não requer consistência em princípio sobre todos os estágios históricos do direito de uma comunidade; não requer que os juízes tentem entender o direito que aplicam como uma continuação de princípios com o direito abandonado de séculos passados ou mesmo de uma geração passada. Ela determina uma consistência de princípio horizontal ao invés de vertical com as normas jurídicas que a comunidade agora faz viger” (DWORKIN, 1986, p. 227).57 Porém, por mais que se tente reduzir a tarefa do juiz assim concebida, ela continua a ser sobre-humana. Com efeito, o juiz deve conhecer todos os princípios que compõem o direito de uma comunidade. Isso significa conhecer todas as leis, todos os textos legais, toda a massa de decisões judiciais e legislativas. Pode-se entender agora por que o juiz concebido por Dworkin é um juiz “Hércules”: “Agora veremos por que eu chamei nosso juiz de Hércules. Ele deve construir um esquema de princípios abstratos e concretos que forneçam uma justificação coerente para todos os precedentes e para as provisões constitucionais e legais também, na medida em que estas devam ser justificadas por princípios” (DWORKIN, 1978, p. 116-117).58 57 DWORKIN, 1986, p. 227: “Integrity does not require consistency in principle over all historical stages of a community’s law; it does not require that judges try to understand the law they enforce as continuous in principle with the abandoned law of a previous century or even a previous generation. It commands a horizontal rather than vertical consistency of principle across the range of the legal standards the community now enforces”. 58 DWORKIN, 1978, p. 116-117: “You will now see why I called our judge Hercules. He must construct a scheme of abstract and concrete principles that provides a coherent justification for all common law precedents and, so far as these are to be justified on principle, constitutional and statutory provisions as well”. 43 Jürgen Habermas identificou os dois componentes de idealidade presentes no “juiz Hércules”: “O ‘Juiz Hércules’ tem dois componentes de um conhecimento ideal a sua disposição: ele conhece todos os princípios e políticas válidos, necessários para justificação; e ele possui uma visão completa da densa rede de argumentos que junta os elementos dispersos do direito existente” (HABERMAS, 1996, p. 212).59 Com o intuito de afastar a discricionariedade, Dworkin terminou por conceber a função do juiz como algo humanamente impossível. “Nós também não somos Hércules”, concede o próprio Dworkin (1978, p. 130). Como relata Habermas, essa construção levou a um debate acalorado: seriam as exigências ideais da teoria de Dworkin apenas uma idéia regulativa, ou seriam, de fato, um falso modelo para as decisões judiciais? (cf. HABERMAS, 1996, p. 213). Não se pode acompanhar essa discussão aqui, mas alguns aspectos dela devem ser levados em conta. Até que ponto Dworkin teria conseguido afastar a discricionariedade do juiz para decidir casos difíceis? A que preço ele teria conseguido afastar ou reduzir a discricionariedade? Já se disse que para Dworkin as decisões judiciais devem ser tomadas com base em princípios e não em políticas. Com isso, ficam excluídos do debate judicial argumentos que comparecem no discurso legislativo. Esses argumentos dizem respeito a metas coletivas, a objetivos políticos, ou questões relativas ao que por vezes é referido como o bem comum. Cumpre observar que também os legisladores estão sob a incidência da integridade e, portanto, também devem elaborar uma teoria coerente para justificar o direito.60 Tal é decorrência, pode-se dizer, do princípio de responsabilidade imposto às autoridades públicas, que lhes proíbe a tomada de decisões contraditórias, sem qualquer justificativa ou retratação das decisões anteriores. Como os juízes não podem decidir com base em políticas, toda decisão que tomam tem por base normas jurídicas prévias, expressas por princípios. Esses 59 HABERMAS, 1996, p. 212: “‘Judge Hercules’ has two components of ideal knowledge at his disposal: he knows all the valid principles and policies necessary for justification, and he has a complete overview of the dense web of arguments tying together the scattered elements of existing law”. 60 Dworkin divide o princípio de integridade e o aplica nos âmbitos legislativo e judiciário: “Será útil dividir as reivindicações da integridade em outros dois princípios práticos. O primeiro é princípio da integridade na legislação, que pede àqueles que criam o direito pela legislação que mantenham o direito coerente em seus princípios. O segundo é princípio da integridade na adjudicação [jurisdição/judicação]: ele pede aos responsáveis por decidir o que é o direito, que o vejam e o apliquem como sendo coerente nesse sentido” [“It will be useful to divide the claims of integrity into two more practical principles. The first is the principle of integrity in legislation, which asks those who create law by legislation to keep that law coherent in principle. The second is the principle of integrity in adjudication: it asks those responsible for deciding what the law is to see and enforce it as coherent in that way”]. 44 princípios, como já se disse, são resultado de um senso de adequabilidade desenvolvido pelos profissionais do direito e pelo público ao longo do tempo (cf. DWORKIN, 1978, p. 40). Até aqui, os princípios dependeriam de opiniões pessoais dos profissionais do direito, ou seja, dependeriam de convicções pessoais do juiz, e uma decisão com base em princípios não estaria muito afastada de uma decisão discricionária. Porém, cumpre lembrar que os princípios devem ter suporte institucional, o que os remete ao direito vigente. Logo, os princípios devem prover uma interpretação coerente do direito vigente e não das opiniões pessoais do juiz: “Sua teoria é mais propriamente uma teoria do que requer a lei escrita ou o próprio precedente, e, apesar do fato de que ele irá repercutir, obviamente, suas próprias convicções intelectuais e filosóficas ao julgar, isso é muito diferente de se supor que essas convicções têm alguma força independente no seu argumento apenas porque são suas” (DWORKIN, 1978, p. 118).61 Trata-se, pois de um equilíbrio mútuo, entre a teoria que se deve criar para justificar a decisão e o ordenamento jurídico.62 Se por um lado, é o próprio ordenamento que fornece elementos a partir dos quais será criada a teoria, por outro, pode-se, depois da teoria formada, deduzir direitos que até então não estavam expressos no ordenamento jurídico. É certo, porém, que, não estando os princípios explícitos no ordenamento, mas antes implícitos, muitas vezes as partes serão surpreendidas pela decisão judicial, ainda que esta não esteja propriamente criando um direito. Essa conseqüência da decisão com base em princípios é aceita por Dworkin, que reconhece que a decisão surpreenderá uma ou outra das partes, caso haja dúvida sobre a pretensão do demandante (cf. DWORKIN, 1978, p. 86). Mas por que a surpresa se a decisão apenas reconhece um direito que já existia? Por que é que as partes 61 DWORKIN, 1978, p. 118: “His theory is rather a theory about what the statute or the precedent itself requires, and though he will, of course, reflect his own intellectual and philosophical convictions in making that judgment, that is a very different matter from supposing that those convictions have some independent force in his argument just because they are his”. 62 Esse equilibrium, Dworkin o toma emprestado de Rawls [Sobre o equilíbrio reflexivo de Rawls – consulte-se o seu Justiça como eqüidade (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 40 et seq.; sobre a relação do equilíbrio reflexivo de Rawls e a teoria da interpretação de Dworkin – pode-se consultar Gabriel de Deus Maciel – Um conceito de coerência para uma teoria da argumentação jurídica – a proposta de Klaus Günther (Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, 1º sem. 2005, p. 141 et seq.]. O equilíbrio reflexivo é uma estratégia metodológica de Rawls para harmonizar nossos juízos morais com uma teoria que os explique de forma coerente. Dworkin aproveita essa estratégia, se bem que em um outro contexto, para desenvolver uma teoria da interpretação que se dá em três etapas: pré-interpretativa, interpretativa e pós-interpretativa. Tudo isso para construir uma teoria que permita uma compreensão coerente de práticas sociais. Assim, a interpretação de práticas sociais buscaria um equilíbrio entre a justificação que se oferece de determinados dados selecionados como práticas sociais e as exigências pós-interpretativas de um ajuste ou reconstrução da prática social diante da justificação oferecida. Sobre o aproveitamento que Dworkin faz do equilíbrio reflexivo de Rawls, pode-se consultar – DWORKIN, 1986, p. 65-66 e p. 424, nota 17. 45 continuam sem saber para que lado a decisão irá pender, se esta apenas irá reconhecer ou não um direito que já se sabe existente? Isso ocorre porque a participação daqueles que vão sofrer os efeitos da decisão é inexpressiva. A opção metodológica de Dworkin de centrar a decisão no juiz terminou em um procedimento monológico de formação da decisão.63 O juiz constrói sozinho a teoria que vai harmonizar os princípios. Dworkin não reconhece ou não dá ênfase à participação dos interessados na preparação do provimento. Ao que parece, a participação dos afetados está reduzida à narração dos fatos, em uma espécie de “da mihi factum, dabo tibi ius” ou “iura novit curia”, reduzida a um valor heurístico, já que pode influenciar a formação da convicção do juiz, mas pode também ser desconsiderada por ele.64 Apesar de Dworkin, fazer várias menções à argumentação das partes (v.g., quando discute a discricionariedade dos juízes - 1986, p. 37-38), essa argumentação parece não desempenhar papel relevante na decisão judicial, pois a teoria que justifica o ordenamento jurídico é construída pelo juiz isoladamente (ou pode ser construída pelo juiz isoladamente), sem intervenção das partes, e essa teoria, quando coerente, permite apenas uma resposta correta para cada caso (do contrário, se a teoria permitisse várias respostas, seria contraditória e, pois, inconsistente), de modo que, posto o caso, as partes pouco ou nada contribuem para se chegar à decisão, razão pela qual não importa se trazem argumentos quanto ao direito. Além disso, note-se que a teoria desenvolvida pelo juiz vincula suas decisões futuras, o que atenua ainda mais a força persuasiva que a argumentação das partes poderia ter. Desse modo, a teoria da decisão judicial de Dworkin só se mantém se a jurisdição for interpretada como atividade isolada do juiz, caso contrário, torna-se uma descrição falsa do procedimento de tomada de decisões e o seu papel como idéia reguladora entra em colapso. Por outro lado, 63 Essa crítica é feita por Habermas (1996, p. 223-224) e reforçada por André Cordeiro Leal, que afirma em relação a Dworkin (2002(a), p. 61): “Não obstante reconheça a importância da fundamentação racional das decisões judiciais e a necessidade de que essas decisões respeitem os princípios da comunidade política, o autor abre mão de analisar, pelos motivos epistemológicos já aludidos, o papel da contribuição argumentativa das partes nos procedimentos judiciais”. 64 É por isso que não estamos de acordo com a interpretação de José Emílio Medauar Ommati que parece atribuir às partes papel mais relevante dentro da teoria de Dworkin (2004, p. 162): “Ou seja, embora não esteja claro em Dworkin, a decisão do Magistrado é produzida em um processo, que deve respeitar a própria igualdade e liberdade das partes de produzirem seus argumentos e suas provas. Em outras palavras, Dworkin pressupõe sempre a idéia de que a produção da decisão se dá de forma compartilhada, em simétrica paridade entre as partes, em contraditório”. Como será visto adiante (item 11), a afirmação de que a decisão se dá de forma compartilhada exigirá uma ligação, bem mais estreita e mais forte, entre a argumentação das partes e a fundamentação da decisão pelo juiz, do que aquela pressuposta por Dworkin. 46 isso explica a surpresa das partes perante uma decisão tomada com base em princípios nos casos difíceis. Como a construção da decisão é toda feita pelo juiz, as partes não podem exercer uma fiscalização dos argumentos que determinaram a decisão. Demais, os argumentos utilizados pelo juiz em sua decisão ficam isentos de crítica, pois as partes não os podem debater. Aqui surge uma complicação para Dworkin, como o juiz constrói sua teoria justificatória sozinho, pode ser que ele não chegue a melhor teoria. Pode ser que alguma das partes tivesse alguma crítica pertinente ou pudesse suscitar algum aspecto que imporia alguma mudança na teoria elaborada pelo juiz. Aliás, como nenhum juiz é Hércules, nunca se chega à melhor teoria e, mesmo que se chegasse, jamais se saberia tê-la alcançado. Logo, a teoria que um juiz possa elaborar para justificar sua decisão de modo coerente permanece sempre criticável.65 Pode-se redargüir que a crítica das partes poderia aparecer em um eventual recurso contra a decisão, mas aí o procedimento decisório do juiz Hércules se repetiria no tribunal e mais uma vez os interessados não teriam maior participação na preparação da decisão. Dessarte, nota-se que os critérios decisórios só se explicitam com o advento da decisão, que, nesse caso, vem surpreender as partes, que até então não podem dizer se seus argumentos terão qualquer efeito na formação da decisão. Assim, pode-se concluir que a racionalidade monológica que Dworkin impõe ao procedimento decisório não satisfaz o critério de aceitabilidade racional. Demais, como será mostrado,66 essa racionalidade monológica prejudica a fundamentação da decisão. Por máximo que Dworkin se esforce, no que tange ao tratamento da fundamentação das decisões, a perspectiva solitária do juiz não vai permitir um tratamento adequado da fundamentação das decisões, de modo a atender a demanda por aceitabilidade racional. Apesar de desenvolver uma teoria que possibilita sempre decisões consistentes com o ordenamento jurídico vigente, a teoria de Dworkin não permite que envolvidos exerçam uma fiscalização na formação do ato decisório, não permite discutir e criticar os argumentos que serão decisivos e, com isso, não permite saber, antes da decisão ser tomada, quais serão os argumentos relevantes e por que o serão. Enfim, a teoria de Dworkin não 65 Nesse sentido, Habermas (1996, p. 227): “Mesmo a teoria jurídica atribuída a Hércules teria de permanecer algo provisório, uma ordem coerente de razões construídas para o momento e exposta à crítica constante” [“Even the legal theory ascribed to Hercules would have to remain something provisional, a coherent order of reasons constructed for the time being and exposed to ongoing critique”]. 66 Vide item 11, infra. 47 permite uma explicitação dos critérios decisórios para as partes antes da decisão ser tomada (basta pensar que teorias diferentes fornecem justificativas diferentes para o ordenamento jurídico e conduzem, assim, a decisões diferentes). Logo, a teoria de Dworkin não consegue responder satisfatoriamente ao problema de legitimidade decisória. A tentativa de aliviar a teoria de Dworkin de seus pressupostos ideais fortes e, com isso, viabilizar a formação intersubjetiva das decisões foi feita por Klaus Günther com uma teoria da argumentação de adequabilidade. À analise dessa teoria, está dedicado o próximo capítulo. 48 CAPÍTULO II DISCURSO DE APLICAÇÃO E ARGUMENTAÇÃO DE ADEQUABILIDADE 5 - DISCURSO DE JUSTIFICAÇÃO E DISCURSO DE APLICAÇÃO A distinção avançada por Dworkin, entre princípios e políticas, já indicava uma distinção na lógica legislativa e judicial. Na verdade, essa distinção já estava contida no princípio da separação de funções do Estado.67 Quando se separam os órgãos legislativo e judicial, fica latente, uma vez que possuem funções diferentes, que esses órgãos possuem lógicas argumentativas diferentes.68 Ao legislativo incumbe a criação das leis; ao judiciário, a sua aplicação.69 Porém, porquanto óbvia essa afirmação, viu-se que, para o positivismo jurídico (notadamente Hart), o órgão judicial é dotado de atribuições legislativas, na falta de uma regra específica para decidir o caso em questão. Essa proposição tornou-se difundida. E mesmo um autor como Zippelius, que admite que os órgãos funcionais do Estado são estruturados para desempenhar funções específicas e portanto não seria adequado que um se arvorasse nas funções do outro, conclui que o judiciário acaba exercendo funções legislativas: “O poder judicial participa, através da interpretação do texto da lei e da integração de lacunas legais, no processo de tornar mais preciso e completo o direito legislado. As interpretações e o desenvolvimento ‘aberto’ do direito podem, sob a forma de jurisprudência constante, consolidar-se ao ponto de alcançarem uma possibilidade de execução fáctica equivalente a uma interpretação legal ou a uma 67 Sobre a separação de funções e para uma crítica à expressão “separação de poderes”, consulte-se Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2004, p. 61 et seq.). Ressalte-se a seguinte afirmação do autor (2004, p. 74): “Ao finalizar o presente seguimento, desejamos considerar que esses mencionados Poderes do Estado, na dicção constitucional brasileira, em visão tripartida e antiquada – Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário – só podem ser compreendidos, segundo concepção doutrinária mais atual, como sistemas ou complexos de órgãos aos quais as normas da Constituição atribuem competências para o exercício das qualificadas funções fundamentais do Estado”. 68 Reinhold Zippelius chega a afirmar (1997, 411): “A estrutura e o procedimento dos diversos órgãos estatais são conformados de acordo com as tarefas a desempenhar precisamente por eles. Consequentemente, os órgãos do Estado deveriam limitar-se, por princípio, desde logo no interesse de um tratamento adequado e racional dos assuntos, às funções para que foram instituídos”. 69 Esse truismo é expressado por grande parte dos teóricos do processo, quando conceituam a jurisdição. Por todos, cite-se o conceito de Chiovenda (1965, p. 301): “A jurisdição consiste na atuação da lei mediante a substituição da atividade de outrem pela atividade de órgãos públicos, seja para afirmar a existência de uma vontade de lei, seja para mandá-la a efeito ulteriormente” [“La giurisdizione consiste nell’attuazione della legge mediante la sostituzione dell’attività di organi pubblici all’attività altrui, sia nell’affermare l’esistenza di una voluntà di legge sia nel mandarla ulteriormente ad effetto”]. 49 outra qualquer norma legal. Dos princípios do tratamento igual e da segurança jurídica decorre igualmente uma vinculação de legitimidade a uma prática já estabelecida de interpretação e integração de lacunas legais. Desta forma, apesar de todas as reservas, o poder judicial actua inevitavelmente no âmbito funcional do poder legislativo” (ZIPPELIUS, 1997, p. 417). Já foi visto, todavia, que essa concentração da função legislativa no âmbito do judiciário provoca problemas de legitimidade para as decisões judiciais. Com efeito, um dos aspectos da legitimidade das decisões judiciais é a sua consistência com a ordem jurídica vigente, outro é a sua aceitabilidade racional. No caso do judiciário criar a norma no momento de sua aplicação, nenhum dos dois requisitos pode ser atendido, seja porque não há que se falar em consistência com a ordem jurídica, uma vez que não existe regra aplicável, seja porque, na falta da regra, as partes não têm controle sobre os critérios decisórios. A distinção de Dworkin entre regras, princípios e políticas pode ser vista, assim, como uma tentativa de manter a função judicial restrita à aplicação de normas. Reforça-se, por uma diferenciação de padrões argumentativos, o princípio da separação de funções. Para cumprir esse objetivo, porém, a função judicial teve de ser idealizada e o problema da legitimidade voltou a atingir a construção dworkiana. Em Dworkin, o problema da legitimidade encontrou resposta na construção de uma teoria monológica, que consegue permanecer imune aos argumentos das partes. Substituiu-se o autoritarismo político do positivismo (juridicização do arbítrio) por um autoritarismo epistemológico (fundamentação solipsista). Evidentemente, persistiu o problema da legitimidade. Partindo de uma investigação sobre a aplicação de normas sociais, ou seja, de uma investigação a respeito de como os atores sociais coordenam seus planos de ação através de normas, Klaus Günther chegou ao problema da aplicação legítima de normas jurídicas. Desse ponto de vista mais amplo, foi possível a Günther tratar tanto da aplicação de normas jurídicas, como da aplicação de normas morais. De fato, o autor começa pelas últimas. Günther percebe, de início, que duas atividades estão envolvidas na aplicação de normas: “De um lado, justificar uma norma, mostrando que existem razões, de qualquer tipo, para aceitá-la, e, de outro lado, relacionar uma norma a uma situação, perguntando se e como a norma se ajusta à situação, se não existem outras normas que deveriam ser preferidas nessa situação, ou se a norma proposta não deveria ser modificada tendo em vista a situação” (GÜNTHER, 1993, p. 11).70 70 GÜNTHER, 1993, p. 11: “on the one hand, justifying a norm by showing that there are reasons, of whatever kind, to accept it, and, on the other, relating a norm to a situation by inquiring whether and how it fits the situation, whether there are not other norms which ought to be preferred in this situation, or whether the proposed norm would not have to be changed in view of the sitituation”. 50 Haveria, portanto, dois momentos distintos: um de justificação, outro de aplicação da norma. Para evidenciar isso, no discurso moral, Günther fará uma análise da ética do discurso na versão de Habermas. Pode-se dizer que a ética do discurso se localiza dentro dos esforços de uma ética cognitivista, isto é, entende ser possível argumentar em favor da correção de julgamentos morais, os quais são vistos como algo mais do que opiniões privadas sobre estados emocionais ou observações empíricas. Assim, os juízos morais podem ser fundamentados, ou seja, pressupõe-se a possibilidade de distinguir entre juízos morais corretos e errados. Além disso, a ética do discurso é universalista: insiste que a validade moral é dirigida a todos e não está limitada a uma forma de vida específica ou a grupos de pessoas. Por fim, a ética do discurso é formal. Ela abstrai de conteúdos de valor culturais e fixa-se no exame do caráter deontológico da correção normativa; não se interessa tanto pelo domínio dos valores culturais, mas pela demarcação do que é moralmente válido.71 Tendo em vista essas características, pode-se dizer que a ética do discurso apenas fixa um procedimento para a formação de juízos morais imparciais, sem dar nenhuma orientação de conteúdo.72 Dessarte, Habermas formula um princípio de universalização, que visa a garantir a formação imparcial de juízos morais: “(U) Toda norma válida tem que preencher a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo[,] possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos” (HABERMAS, 2003, p. 147).73 O princípio de universalização refere-se, pois, à fundamentação de normas. A validade dessas normas é aferida em um outro momento por um princípio do discurso (D): 71 Sobre as características da ética do discurso apontadas acima, consulte-se GÜNTHER, The sense of appropriateness (1993), p. 59-60 e HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo (2003), p. 147-148. 72 Habermas vê nesse procedimentalismo a característica distintiva da ética do discurso em relação às demais propostas cognitivistas, universalistas e formalistas (2003, p. 148-149): “A ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo. O Discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da validade de normas consideradas hipoteticamente. É só com esse procedimento que a ética do Discurso se distingue de outras éticas cognitivistas, universalistas e formalistas, tais como a teoria da justiça de Rawls”. 73 Uma outra formulação do princípio de universalização encontra-se em HABERMAS, 2003, p. 86: “ – que as conseqüências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos (e preferidos a todas as conseqüências das possibilidades alternativas e conhecidas de regragem)”. 51 “Toda norma válida encontraria o assentimento de todos os concernidos, se eles pudessem participar de um Discurso prático” (HABERMAS, 2003, p. 148).74 Percebe-se que o princípio de fundamentação (U), tal como proposto por Habermas, não distingue entre questões de justificação e de aplicação. O simples fato de uma norma ser válida já estaria a indicar sua adequação em relação ao caso particular. Concebido dessa forma, (U) seria não só um princípio de fundamentação, mas também um princípio de aplicação. Klaus Günther percebeu isso e reformulou o princípio (U), dando-lhe uma versão forte (strong version), que deixa claro os dois âmbitos, de justificação e de aplicação, que o princípio deveria atender: “Uma norma é válida e em todo caso adequada, se as conseqüências e efeitos colaterais resultantes para os interesses de cada indivíduo, como resultado da observância geral dessa norma em toda situação particular, possam ser aceitos por todos” (GÜNTHER, 1993, p. 33).75 Mas um tal princípio estaria a exigir um requisito impossível. Com efeito, o princípio (U), em sua versão forte, exigiria dos concernidos que antevissem todos os efeitos decorrentes da observância de uma determinada norma por todos. Isso exigiria tempo infinito e conhecimento infinito dos participantes em discursos racionais, logo, seria inaplicável, por exigir um requisito impossível. Para evitar essa idealização forte, Günther oferece uma versão mais fraca (weaker version) do princípio (U): “Uma norma é válida se as conseqüências e efeitos colaterais decorrentes para os interesses de cada indivíduo, como resultado da observância geral dessa norma, sob circunstâncias invariáveis, possam ser aceitos por todos” (grifo por GDM) (GÜNTHER, 1993, p. 35).76 Com isso, estabelece-se uma reserva “temporal e cognoscitiva” a uma norma que tenha superado o teste de universalização (cf. HABERMAS, 2000, p. 147). O discurso de 74 Pode-se comparar esse princípio do discurso com aquele apresentado por Habermas, em Between Facts and Norms. Esse princípio explica o significado da imparcialidade de juízos práticos, mas permanece neutro em relação ao direito e a moral. Tal princípio tem a seguinte formulação: “D: São válidas apenas as normas de ação com as quais possam concordar todos os possíveis afetados, enquanto participantes de discursos racionais” [“D: Just those action norms are valid to which all possibly affected persons could agree as participants in rational discourses”] (HABERMAS, 1996, p. 107). Esse princípio será importante para a compreensão da relação de co-originariedade e de complementariedade entre direito e moral, propugnada por Habermas a partir de Between Facts and Norms. Vide notas 80 e 81 infra. 75 GÜNTHER, 1993, p. 33: “A norm is valid and in every case appropriate if the consequences and side effects arising for the interests of each individual as a result of this norm’s general observance in every particular situation can be accepted by everyone” 76 GÜNTHER, 1993, p. 35: “A norm is valid if the consequences and side effects arising for the interests of each individual as a result of this norm’s general observance under unchanging circumstances can be accepted by everyone”. 52 justificação não exaure a idéia de imparcialidade. Só a atende no que concerne à possibilidade de obter reconhecimento recíproco. O juízo sobre a adequação da norma à situação particular é deixado para um outro momento: o momento da aplicação. Assim, é possível fazer a interpretação diante da constelação das circunstâncias de fato. Logo, não é preciso antecipar, para além das situações previstas para as quais a norma foi pensada, se a norma em questão é também adequada a novas situações, cuja antecipação não era possível. Essa tarefa é transferida para o discurso de aplicação. “O papel que desempenha o princípio de universalização nos discursos de fundamentação é assumido, nos discursos de aplicação, pelo princípio de adequação” (HABERMAS, 2000, p. 147).77 Distinguem-se, portanto, questões relativas ao discurso de justificação de questões relativas ao discurso de aplicação. No primeiro, é discutida a universalidade da norma, a possibilidade de reconhecimento recíproco; no segundo, trata-se de determinar a adequação da norma válida ao caso particular. Só assim, com a conjugação do princípio de universalização com o de adequação, a idéia de imparcialidade pode ser exaurida (cf. GÜNTHER, 1993, p. 37; HABERMAS, 2000, p. 147).78 Chega-se, então, a uma caracterização das duas espécies de discursos: “O que é relevante para a justificação é somente a norma em si própria, independente de sua aplicação em uma situação particular. É uma questão de estar no interesse de todos que a regra seja seguida por cada um. Se uma norma expressa ou não o interesse de todos, não depende de sua aplicação, mas nas razões que podemos avançar sobre por que a norma deve ser observada como uma regra por todos. O que é relevante para a aplicação, em contraste, é a situação particular, independente de se a observância geral atende ao interesse de todos. É uma questão de se e como uma regra deve ser seguida na situação particular em vista de todas as circunstâncias particulares” (GÜNTHER, 1993, p. 37-38).79 Porém, a moral, tal como vista pela ética do discurso, constitui apenas um sistema de conhecimento. Não há qualquer garantia de que a ação vai se passar como determinam as normas morais. Nesse ponto, o direito cumpre uma função complementar, instituindo a 77 HABERMAS, 2000, p. 147: “El papel que desempeña el princio de universalización en los discursos de fundamentación es asumido en los discursos de aplicación por el principio de adecuación”. 78 É preciso estar claro que imparcialidade aqui não significa fixar-se em um ponto de vista distanciado, de onde se pudesse fazer julgamentos neutros. A imparcialidade, no sentido empregado pela ética do discurso, está muito mais ligada à assunção reciproca de papeis. Sobre isso, veja-se Habermas (2003, p. 86): “A formação imparcial do juízo exprime-se, por conseguinte, em um princípio que força cada um, no círculo dos concernidos, a adotar, quando da ponderação dos interesses, a perspectiva de todos os outros”. 79 GÜNTHER, 1993, p. 37-38: “What is relevant to justification is only the norm itself, independent of its application in a particular situation. It is a question of whether it is in the interest of all that everyone follow the rule. Whether a norm embodies the common interest of all does not depend on its application, but on the reasons we can advance as to why the norm ought to be observed like a rule by everyone. What is relevant to application, in contrast, is the particular situation, independent of whether a general observance is also in the interest of everyone. It is a question of whether and how the rule ought to be followed in a particular situation in view of all the particular circumstances”. 53 obrigatoriedade das normas. O direito pode cumprir esse papel porque é um sistema de ação, além de um sistema de conhecimento.80 Nota-se, contudo, que não é qualquer direito que cumpre esse papel: deve ser um direito legítimo.81 O direito legítimo, para Habermas, tem, pois, um componente de moralidade dentro de si. Todavia, isso não pode levar a suposição de que a moral esteja acima do direito, como se fosse hierarquicamente superior, uma vez que direito e moral mantém uma relação de complementariedade.82 No entanto, os dois códigos de linguagem não se confundem e elementos da moral que migram para o direito devem ser visto agora como direito, pois possuem validade jurídica.83 Assim, a aplicação de normas morais, no âmbito da ética do discurso, termina por conduzir a uma discussão sobre a aplicação de normas no direito. Também o direito legítimo pode ser avaliado, dessarte, do ponto de vista de discursos de justificação e aplicação. Günther avança esse empreendimento. No que se segue, busca-se uma analise de como o autor conduz essa reflexão. 80 Sobre isso, pode-se citar Habermas: “Apesar do ponto de referência comum, moral e direito diferem prima facie na medida em que a moral pós-tradicional representa apenas uma forma de conhecimento cultural, enquanto o direito tem, somando-se a isso, um caráter vinculante no nível institucional. O direito não é somente um sistema simbólico, mas um sistema de ação também” [“Despite the common reference point, morality and law differ prima facie inasmuch as posttraditional morality represents only a form of cultural knowledge, whereas law has, in addition to this, a binding character at the institutional level. Law is not only a symbolic system but an action system as well”] (HABERMAS, 1996, p. 106-107). 81 Como afirma Habermas: “Por outro lado, é preciso levar em conta que as pessoas que seguem o direito também são pessoas que agem moralmente. Por isso e na medida em que elas o desejarem, devem ter a chance de poderem obedecer ao direito também pelo motivo do respeito à lei. Por esta simples razão, o direito tem que ser um direito legítimo” (HABERMAS, 2003(b), p. 172). 82 Esta passagem de Habermas é relevante sobre o tema: “Em virtude dos componentes de legitimidade da validade jurídica, o direito positivo tem uma referência à moral inscrita dentro de si. Mas essa referência moral não nos deve desencaminhar a ponto de posicionar a moral sobre o direito, como se existisse uma hierarquia de normas. A noção de um direito mais alto (i.e., uma hierarquia de ordens jurídicas) pertence ao mundo prémoderno. Ao invés, a moral autônoma e o direito posto que depende de justificação mantêm uma relação de complementariedade” [“In virtue of the legitimacy components of legal validity, positive law has a reference to morality inscribed within it. But this moral reference must not mislead us into ranking morality above law, as though there were a hierarchy of norms. The notion of a higher law (i.e., a hierarchy of legal orders) belongs to the premodern world. Rather, autonomous morality and the enacted law that depends on justification stand in a complementary relationship”] (HABERMAS, 1996, p. 106). 83 Conforme Habermas (1996, p. 206): “Mesmo os exemplos mencionados acima da moral no direito mostram apenas que conteúdos morais são traduzidos para o código jurídico e revestidos com um modo de validade diferente. Conteúdos sobrepostos não obscurecem a fronteira entre direito e moral, que são irreversivelmente diferenciados no nível pós-convencional de justificação. Desde que a diferença entre as linguagens da moral e do direito é mantida, a migração de conteúdos morais para o direito não significa uma imediata moralização do direito” [“Even the above mentioned examples for morality in the law show only that moral contents are translated into the legal code and furnished with a different mode of validity. Overlapping contents do not blur the boudary between law and morality, which are irreversibly differentiated at the postconventional level of justification. As long as the difference between the languages of morality and law is maintained, the migration of moral contents into law does not signify any immediate moralization of law”]. 54 6 – ELEMENTOS PARA ARGUMENTAÇÃO DE ADEQUABILIDADE Sob a pressuposição do princípio de universalização em sentido forte, uma norma é válida e ao mesmo tempo adequada se cada indivíduo puder concordar com as conseqüências e efeitos colaterais decorrentes de sua observância geral (cf. GÜNTHER, 1993, p. 33). Nesse caso, todas as hipóteses de aplicação da norma devem ser antecipadas. Se isso fosse possível, ter-se-ia uma norma perfeita, pois as conseqüências de sua aplicação a cada caso particular já teriam sido objeto de deliberação e já teriam encontrado o assentimento de todos os afetados. Nesse sentido, a norma perfeita regularia sua própria aplicação.84 Tal possibilidade, porém, não está disponível. Viu-se que o princípio de universalização, no sentido forte, faz exigências impossíveis e, portanto, não tem aplicabilidade. Para não abandonar a idéia de uma fundamentação de normas pela ética do discurso, viu-se que Günther separa as exigências do princípio de imparcialidade em dois momentos: um momento de justificação e outro de aplicação de normas. Assim, o princípio de universalização passa a exigir, para a validade da norma, apenas que os indivíduos concordem com as conseqüências e efeitos colaterais decorrentes do seguimento geral de uma norma, desde que mantidas as mesmas circunstâncias que possam ser antecipadas no momento da discussão da norma (cf. GÜNTHER, 1993, p. 35). Mas com isso, a validade de uma norma já não implica mais sua adequação a qualquer situação particular.85 84 Nas palavras do autor (GÜNTHER, 1995, p. 279): “Uma norma fundamentada de tal maneira seria ‘perfeita’. Poderia regular sua própria aplicação, porque todas suas possíveis aplicações individuais haveriam sido tema do discurso e a adequação de sua aplicação pertenceria ao significado de sua validade. Qualquer situação individual, em que o interesse de um indivíduo pudesse ver-se afetado pelo seguimento geral de uma norma concreta, haveria sido já considerada no discurso de fundamentação. Os participantes no discurso teriam a certeza de que não haveria nenhuma situação em que o seguimento de uma norma lesionaria um interesse generalizável” [“Una norma fundamentada de tal manera seria ‘perfect’. Podria regular su propia aplicación, porque todas sus posibles aplicaciones individuales habrían sido tema del discurso y la adecuación de su aplicación pertenecería al significado de su validez. Cualquer situación individual, en la que el interés de un individuo pudiera verse afectado por el seguimiento general de una norma concreta, habría sido ya considerada en el discurso de fundamentación. Los participantes en el discurso tendrían la certeza de que no habría ninguna situación en la que el seguimiento de la norma lesionara un interés generalizable”]. 85 Nesse sentido, afirma o autor (GÜNTHER, 1995, p. 283): “Se delimitarmos o conceito de validade à reciprocidade da consideração de interesses sob condições que se mantêm iguais, este conceito já não implica a adequação da aplicação de uma norma sob qualquer circunstância. Frente a uma situação de ação as normas válidas somente são aplicáveis prima facie” [“Si delimitamos el concepto de validez a la reciprocidad de la consideración de intereses bajo condiciones que se mantienen iguales, este concepto ya no implica la adequación de la aplicación de una norma bajo cualquier circunstncia. De cara a una situación de acción las normas válidas sólo son aplicables prima facie”]. 55 Essa adequação deve ser avaliada em um momento posterior, diante das circunstâncias particulares, em relação às quais se pretende a aplicação da norma. Com isso, Günther pretende recuperar o ideal da norma perfeita, através de uma análise das circunstâncias particulares, que se dá em dois passos (cf. GÜNTHER, 1995, p. 283): um discurso de justificação, que lida com a consideração recíproca de interesses, e um discurso de aplicação, encarregado da adequação da norma ao caso particular pela análise de todas as circunstâncias da situação. A lógica da adequação precisa ser explicitada agora. Para Günther, a lógica de uma argumentação de adequabilidade é constituída por dois elementos: descrição completa da situação e coerência normativa. Como foi visto acima, seguindo uma versão fraca do princípio de universalização, as normas válidas são aplicáveis apenas prima facie. Isso porque sua adequação ao caso particular não está contida em sua validade, como acontecia sob a pressuposição de uma versão forte do princípio de universalização. Assim, todas as circunstâncias da situação de fato precisam ser levadas em conta, pois circunstâncias diferentes conduzem à aplicação de normas diferentes.86 Portanto, se um indivíduo seleciona, unilateralmente, determinadas circunstâncias de fato em relação às quais pretende a aplicação de determinada norma, pode ficar sujeito às objeções daqueles que terão seus interesses afetados pela aplicação da norma proposta. Com relação aos dados fáticos, abrem-se três possibilidades de objeção (cf. Günther, 1993, p. 231): pode-se questionar a verdade dos fatos; pode-se questionar que os fatos narrados não estão contidos na extensão semântica da norma que se pretende aplicar; por fim, pode-se questionar a falta de consideração de outras circunstâncias relevantes na descrição da situação.87 Dessa primeira característica, decorre que a aplicação de normas não pode ser um ato de um ator isolado, pois, nesse caso, correr-se-ia o risco de uma seletividade em relação 86 Para esclarecer isso, vale mencionar o exemplo dado pelo próprio Günther (cf. 1993, p. 230 et seq.; 1995, p. 289 et seq.). Se alguém promete a um amigo (Smith) ir a sua festa, poder-se-ia dizer que o enunciado particular “devo ir a festa de Smith” está assegurado pela norma “deve-se manter as promessas”. Pode ser o caso, porém, de que, no dia da festa, outro amigo (Jones) esteja em sérias dificuldades e precise de ajuda. O enunciado particular “devo ajudar Jones” estaria, por sua vez, assegurado pela norma “deve-se ajudar um amigo em dificuldades”. Tem-se, na situação, duas normas válidas, que prima facie são aplicáveis. Assim, percebe-se que a consideração de outros aspectos da situação podem levar à aplicação de normas diferentes e, portanto, podem levar a soluções diferentes para o caso. 87 Nos termos do exemplo citado na nota anterior, pode-se formular tais objeções da seguinte forma (GÜNTHER, 1993, p. 231): “Você não disse a Smith ontem que compareceria a sua festa”; “O que você disse a Smith quando ele o convidou não foi uma promessa firme, mas uma combina casual de encontro”; “Você realmente fez uma promessa firme a Smith, mas seu amigo Jones está em sérias dificuldades no momento”. 56 aos fatos e, conseqüentemente, uma aplicação unilateral e parcial de normas. O princípio de imparcialidade exige, pois, a interação argumentativa daqueles que serão atingidos pela norma, no momento de sua aplicação. Mas, se prima facie pode-se ter várias normas aplicáveis a uma situação, será preciso lidar com o conflito normativo para se chegar a uma decisão. Günther distingue dois tipos de colisão de normas: colisões internas e externas. Colisões internas ocorrem quando uma norma proposta não pode ser generalizada, porque não considera reciprocamente os interesses de todos os envolvidos (v.g. “sempre que isso proporcione uma vantagem, está permitido não manter uma promessa” – nesse caso, a norma não considera os interesses daqueles que confiam na manutenção da promessa – cf. GÜNTHER, 1995, p. 280). A colisão interna refere-se à validade da norma e pode ser identificada sem referência a uma situação de aplicação particular. Por outro lado, tem-se uma colisão externa, quando duas normas generalizáveis disputam a aplicação no caso particular (v.g. “deve-se manter as promessas feitas” e “deve-se ajudar um amigo em dificuldades”). Esta última não é identificável no discurso de justificação. É possível, porém, antecipar que, em algum momento, não será possível cumprir ambas as normas ao mesmo tempo, apesar disso, as duas normas passam pelo discurso de justificação, uma vez que ambas as normas consideram reciprocamente o interesse dos envolvidos. Assim, a colisão deve ser resolvida no discurso de aplicação.88 O interesse volta-se, dessarte, para as colisões externas. Como é possível estabelecer uma relação de preferência ou de primazia entre normas válidas? Para responder a essa pergunta, deve-se considerar o segundo elemento de uma lógica de argumentação de adequabilidade: a coerência normativa. Como a descrição completa da situação gera, muito freqüentemente, colisões entre normas válidas (entenda-se duas ou mais normas válidas podem ser aplicadas ao caso, levando a resultados diferentes), é preciso explicar como tais normas válidas que entraram em colisão são compatíveis entre si. Do conjunto de normas válidas, deve ser possível, portanto, somente uma resposta correta (adequada) para cada caso. 88 Dificilmente, na tarefa de descrever um critério de Günther resume o que se disse sobre colisões da seguinte forma (1995, p. 281): “As colisões internas afetam à validade de uma norma. Por meio de uma negação são identificáveis independentemente das situações reais de aplicação. Ao contrário, as colisões externas somente podem ser identificadas em situações de aplicação” [“Las colisiones internas afectan a la validez de una norma. Por medio de una negación son identificables independientemente de las situaciones reales de aplicación. Por el contrario, las colisiones externas sólo pueden identificarse en situaciones de aplicación”]. 57 adequabilidade, seria possível oferecer um critério material; chega-se, no máximo, a um critério formal. A coerência deve ser vista sob esta perspectiva. Günther, portanto, vai afirmar: “Se mantemos agora como válida uma norma como NI, ainda quando sabemos que existem algumas situações em que pode colidir com normas como NII, supomos contrafaticamente que todas as normas válidas formam finalmente um sistema coerente ideal que permite exatamente uma resposta correta; em outras palavras: a razão prática não se contradiz” (GÜNTHER, 1995, p. 293).89 Não é fácil oferecer uma definição concisa do que seja coerência. O próprio Günther o reconhece, quando afirma que, nesse particular, parece haver acordo somente quanto ao fato de que a coerência é mais ampla do que o princípio de não-contradição ou consistência (cf. 1995, p. 274). “Como um padrão para a validade de afirmações, a coerência é mais fraca do que a verdade analítica assegurada por dedução lógica, mas mais forte do que a mera isenção de contradição” (HABERMAS, 1996, p. 211).90 Habermas se vale da comparação com um quebra-cabeça para explicar a coerência: “as coisas se passam como na composição de um quebra-cabeça – temos que procurar ver quais os elementos que se ajustam” (HABERMAS, 2003, p. 144-145). Feitas essas ressalvas quanto às exigências da coerência, pode-se perceber até que ponto Günther conseguiu especificar um critério formal de coerência. Eis a sua primeira formulação: “(1) Uma norma Nx é apropriada na situação Sx se for compatível com todas as outras variantes semânticas NSVn e todas as normas aplicáveis Nn em Sx, e se a validade de cada variante semântica individual e cada norma individual puder ser justificada em discursos de justificação” (GÜNTHER, 1993, p. 243). Esse primeiro critério, porém, faz uma exigência como aquela feita pela versão forte de (U). Nunca se sabe quais são todas as normas universalizáveis que poderiam ser aplicadas a uma determinada situação. Tal axioma de coerência exigiria uma imaginação normativa infinita (infinite normative imagination), que permitisse antecipar todas as normas válidas aplicáveis à situação. Todavia, quando decisões sobre relevância são feitas, como é o 89 GÜNTHER, 1995, p. 293: “Si mantenemos ahora como válida una norma como NI, aun cuando sabemos que existen algunas situaciones en las que puede colisionar con normas como NII, suponemos contrafácticamente que todas las normas válidas forman finalmente un sistema coherente ideal que permite exactamente una respuesta correta; con otras palabras: la razón práctica no se contradice”. 90 HABERMAS, 1996, p. 211: “As a standard for a statement’s validity, coherence is weaker than the analytic truth secured by logical deduction but stronger than mere freedom from contradiction”. 58 caso nos discursos de aplicação, consideram-se apenas as normas que já se provaram válidas. Com isso, afirma Günther, pode-se sempre referir apenas as normas válidas de uma (nossa) forma de vida particular (cf. GÜNTHER, 1993, p. 243). Pode-se formular, então, um segundo axioma de coerência: “(2) Uma norma Nx é aplicável adequadamente em Sx se for compatível com todas as outras normas NFL aplicáveis em Sx, que pertençam a uma forma de vida FLx e que possam ser justificadas em um discurso de justificação. (O mesmo se aplica a todas as variantes semânticas” (GÜNTHER, 1993, p. 243).91 Não se deve pensar que esse índice de normas válidas, fornecido por uma forma de vida particular, determine, antecipadamente, a aplicação dessas normas. Para que seja possível a descrição de todos os aspectos relevantes da situação, é necessária a aplicação (ou consideração hipotética) de todas as normas válidas.92 Assim, do ponto de vista do observador, tem-se uma forma de vida constituída por um conjunto desordenado de normas válidas, que se ordenam em cada situação de aplicação particular, mediante um esforço reconstrutivo comum, que facilita a obtenção de uma resposta adequada (cf. GÜNTHER, 1995, p. 294). Do ponto de vista interno, o discurso de justificação só expressa o aspecto de validez do princípio de imparcialidade; mas não pode gerar um conjunto de princípios coerentes para todos os casos de colisão. O discurso de aplicação faz valer o ponto de vista da adequação imparcial; mas só pode exigir a consideração de todos os traços relevantes da descrição da situação (cf. GÜNTHER, 1993, p. 294). Nesses termos, parece difícil que se leve adiante efetivamente uma orientação moral sob esses requisitos. Por isso, Günther se utiliza da categoria dos paradigmas, que colocam as normas válidas de uma determinada forma de vida em uma ordem transitiva. Os paradigmas, afirma Günther: “Constituem um contexto de fundo, no qual se inserem, em cada caso, nossas apreciações da situação e os correspondentes juízos morais prima facie. Junto com outros saberes culturais de orientação, pertencem esses paradigmas à forma de vida em que cada um de nós nos encontramos” (GÜNTHER, 1995, p. 294).93 91 GÜNTHER, 1993, p. 243: “(2) A norm Nx is appropriately applicable in Sx if it is compatible with all the other norms NFL applicable in Sx which belong to a form of life FLx and can be justified in a justification discourse. (The same applies to all the semantic variants)”. 92 É nesse sentido que Günther afirma que o problema do círculo hermenêutico pode permanecer aberto. Não importa se os participantes do discurso de aplicação devem dispor de uma descrição completa da situação antes de considerar as normas aplicáveis, ou se só é possível uma descrição completa da situação após a consideração de todas as normas aplicáveis. Os participantes do discurso só podem saber quais normas entram em colisão no caso particular se tiverem indicado, nas normas aplicáveis, todos os traços relevantes de uma descrição da situação (cf. GÜNTHER, 1995, p. 287). 93 GÜNTHER, 1995, p. 294: “Constituyen un contexto de fondo en el que se insertan en cada caso nuestras apreciaciones de la situación y los correspondientes juicios morales prima facie. Junto con otros saberes culturales de orientación pertenecen estos paradigmas a la forma de vida en la que cada uno de nosotros nos encontramos”. 59 Evidentemente, Günther reconhece que esses paradigmas cristalizam, também, valorações deformadas e pré-conceitos, o que poderia conduzir a uma aplicação unilateral de normas. Por isso, os paradigmas, adverte Günther, devem permanecer criticáveis, independentemente da forma de vida em que se encontrem, pelo menos em duas maneiras: quanto à validade das normas particulares, se já não se consegue mais manter a consideração recíproca de interesses; e quanto à relação de coerência entre as normas, se a descrição da situação que serve de base já não é mais compatível com uma descrição completa da situação (cf. GÜNTHER, 1995, p. 295).94 Os paradigmas teriam, pois, a função de reduzir a complexidade da tarefa de aplicar normas imparcialmente. Uma diferença, porém, deve ser assinalada entre o critério de coerência proposto por Günther e outras teorias de coerência, como a de Dworkin por exemplo. O critério de coerência de Günther só se aplica aos discursos de aplicação; ele não encampa a justificação da validade de normas, como ocorre em Dworkin, pela posição de uma norma dada em relação às demais normas (cf. GÜNTHER, 1993, p. 245). Os paradigmas podem aliviar o juiz Hércules de Dworkin de seus elementos de idealidade. Como reconhece Habermas: “Esses paradigmas aliviam Hécules da tarefa supercomplexa de inspecionar um conjunto desordenado de princípios e normas válidos prima facie, que devem ser relacionados diretamente, a olho nu, como se encontram, às características relevantes de uma situação apreendida da maneira mais completa possível. O resultado do procedimento torna-se, então, previsível para as partes, enquanto o paradigma pertinente determinar uma compreensão de fundo que os especialistas do direito compartilham com todos os cidadãos” (HABERMAS, 1996, p. 221).95 Com isso, a perspectiva monológica do juiz Hércules é obrigada a ceder, na medida em que os paradigmas devem ser intersubjetivamente compartilhados. Por outro lado, essa utilização de paradigmas deve ser vista como um empreendimento comum, que permita a crítica, para evitar a cristalização de pré-conceitos (ideologias). Dessarte, a decisão do juiz não pode ser vista como um ato isolado, resultado de uma atividade solipsista de 94 Em sentido parecido, veja-se o posicionamento de Dworkin (1986, p. 72): “Paradigmas ancoram a interpretação, mas nenhum paradigma está seguro contra o desafio lançado por uma nova interpretação que considera melhor outros paradigmas e deixa aquele outro isolado, como um erro” [“Paradigms anchor interpretations, but no paradigms is secure from challenge by a new interpretation that accounts for other paradigms better and leaves that one isolated as a mistake”]. 95 HABERMAS, 1996, p. 221: “Such paradigms relieve Hercules of the hypercomplex task of surveying an unordered set of prima facie valid principles and norms that must be related directly with the naked eye, as it were, to the relevant features of a situation apprehended as fully as possible. The outcome of a procedure then becomes predictable for the parties as well insofar as the pertinent paradigm determines a background understanding that legal experts share with all citizens”. 60 interpretação. Nesse sentido, a necessidade de reconhecer ou reconstruir paradigmas que reduzam a complexidade termina como uma crítica à perspectiva monológica de Dworkin. Essa crítica abre a possibilidade de considerar a decisão judicial como um empreendimento comum de vários atores. É o que se extrai das lições de Habermas: “A abordagem monológica torna-se ainda menos sustentável se, como Günther, considera-se necessário confiar em paradigmas para reduzir a complexidade. As pré-compreensões paradigmáticas do direito, em geral, podem limitar a indeterminação da tomada de decisões informadas teoricamente somente se for compartilhado intersubjetivamente por todos os cidadãos e expressar uma autocompreensão da comunidade jurídica como um todo. Isso também vale mutatis mutandis para uma compreensão procedimentalista do direito, que conta, desde o início, com uma competição discursivamente regulada entre paradigmas diferentes. É por isso que um empreendimento cooperativo é exigido para afastar a suspeita de ideologia que paira sobre essa compreensão de fundo. O juiz singular deve conceber sua interpretação reconstrutiva fundamentalmente como uma empreitada comum apoiada pela comunicação pública dos cidadãos” (HABERMAS, 1996, p. 223-224).96 Feitas essas considerações, faz-se necessário, agora, proceder a uma análise mais detida da argumentação de adequabilidade no direito. 7 – ARGUMENTAÇÃO DE ADEQUABILIDADE NO DIREITO Já se mencionou que a ética do discurso constitui apenas um sistema de conhecimento. Para torná-la efetiva seria preciso aliar ao sistema de conhecimento um sistema de ação. Isso é necessário para que se possa lidar com o que Günther chama de dupla contigência: “As situações de atuação se distinguem ademais por meio do traço da ‘dupla contingência’: alter tem de poder prever que ego seguirá também faticamente o conjunto de normas válidas e princípios compartilhados. Em caso contrário, não seria presumível que alter pudesse motivar-se racionalmente, em seus atos, por 96 HABERMAS, 1996, p. 223-224: “The monological approach becomes even less tenable if, like Günther, one considers it necessary to rely on legal paradigms that reduce complexity. The paradigmatic preunderstanding of law in general can limit the indeterminacy of theoretically informed decision making and guarantee a suffcient measure of legal certainty only if it is intersubjectively shared by all citizens and expresses a self-understanding of the legal community as a whole. This also holds mutatis mutandis for a proceduralist understanding of law, which reckons from the start with a discursively regulated competition among different paradigms. This is why a cooperative endeavor is required to remove the suspicion of ideology hanging over such a background understanding. The single judge must conceive her constructive interpretation fundamentally as a common undertaking supported by public communication of citizens”. 61 meio de normas válidas. Do princípio moral da ética discursiva se segue, portanto, a autorização de utilizar meios de produção de decisões empíricas para garantir um seguimento fático geral das normas” (GÜNTHER, 1995, p. 295).97 A isso, cumpre acrescer que as decisões cotidianas são tomadas sob condições de escassez de tempo e de conhecimento. Tudo isso conduz ao que Günther chama de institucionalização do sistema jurídico: “Escassez de tempo, o estado incompleto do saber e a dupla contingência entre os atores conduzem à institucionalização do sistema jurídico” (GÜNTHER, 1995, p. 295).98 Está claro também que, para qualquer procedimento legislativo que se possa conceber, a antecipação de todas as situações de aplicação nunca é possível. Logo, nunca se alcança, faticamente, o ideal de uma norma que regula sua própria aplicação. Isso obriga os atores, tanto os que querem guiar sua conduta pela moral, quanto os que querem guiar sua conduta pelo direito, a ingressar em uma argumentação de adequabilidade, em que a norma é confrontada com as características da situação particular. Portanto, também no direito estará presente a argumentação de adequabilidade. Porém, para se manter o nexo entre direito e ética discursiva, deve ser possível aos atores sociais determinar sua conduta pelo direito, não apenas em termos estratégicos, mas também racionais. Em síntese, é preciso que o direito seja legítimo: “Todavia, as normas válidas do direito positivo e as sentenças definitivas, à diferença das normas e juízos morais, não pretendem que sejam seguidas faticamente por cada indivíduo somente por motivos racionais. Não podem, sem embargo, excluir um reconhecimento e seguimento motivado racionalmente. Este não ocorre, salvo no caso de qualquer indivíduo poder chegar ao resultado, baseado em uma argumentação moral, de que tem boas razões para o reconhecimento da validade e adequação de uma norma” (GÜNTHER, 1995, p. 295-296).99 Com isso, Günther se vê na contingência, tal como Alexy, de conceber o direito como caso especial de argumentação moral. O discurso jurídico seria um caso particular de 97 GÜNTHER, 1995, p. 295: “Las situaciones de actuación se distinguen además por medio del rasgo de la ‘doble contingencia’: alter ha de poder prever que ego seguirá también facticamente el conjunto de normas válidas y principios compartidos en común. En caso contrario, no seria presumible que alter se pudiera motivar racionalmente en sus actos por medio de normas válidas. Del principio moral de la ética discursiva se sigue, por tanto, la autorización de utilizar medios de producción de decisiones empíricas para garantizar un seguimiento fáctico general de las normas”. 98 GÜNTHER, 1995, p. 295: “Escasez de tiempo, el estado incompleto del saber y la doble contingencia entre los actores conducen a la institucionalización del sistema jurídico”. 99 GÜNTHER, 1995, p. 295-296: “Aunque las normas válidas del derecho positivo y las sentencias firmes, a diferencia de las normas y juicios morales, no pretenden que sean seguidas fácticamente por cada individuo sólo por motivos racionales. No pueden, sin embargo, excluir un reconocimiento y seguimiento motivado racionalmente. Éste no ocurre salvo en el caso de que culquier individuo pudiera llegar al resultado basadoen una argumentación moral de que hay buenas razones para el reconocimiento de la validez y adecuación de una norma”. 62 discurso prático geral. Mas Günther faz a ressalva de que a argumentação jurídica seria um caso especial de argumentação moral de aplicação, ou de discurso prático de aplicação, e não de fundamentação, como aparece em Alexy. Para compreender esse ajuste proposto por Günther à tese do caso especial, será preciso retomá-la a partir de sua proposta inicial por Alexy. Robert Alexy concebe o discurso jurídico, em sua Teoria da Argumentação Jurídica, publicada originalmente em 1978, como um caso especial do discurso prático geral. Essa caracterização se dá como se segue: “De importância central é o pensamento de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. O ponto comum do discurso jurídico e do discurso prático geral é que as duas formas de discurso se preocupam com a correção de afirmações normativas. Terá de ser fundamentado que tanto na afirmação de uma construção prática geral, como na afirmação ou apresentação de uma constatação jurídica se propõe a reivindicação da correção. O discurso jurídico é um caso especial, visto que a argumentação jurídica acontece no contexto de uma série de condições limitadoras. Aqui devem ser nomeados principalmente seu caráter de ligação com a lei, a consideração pelos precedentes, a inclusão da dogmática usada pela ciência do Direito, bem como – é claro que isso não vale para o discurso da ciência jurídica – sua sujeição às limitações impostas pelas regras de ordem processual” (ALEXY, 2001, p. 26-27). E, de forma mais condensada: “Acima afirmamos a tese de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Isso aconteceu com base em: (1) as discussões jurídicas se preocupam com questões práticas, isto é, com o que deve ou não ser feito ou deixado de fazer e (2) essas questões são discutidas com a exigência de correção. É questão de ‘caso especial’ porque as discussões jurídicas (3) acontecem sob limites do tipo descrito” (ALEXY, 2001, p. 212). Günther dirige basicamente duas críticas à tese do caso especial de Alexy. Primeiro, não seria uma pretensão de correção (no sentido da ética discursiva) o que caracterizaria os argumentos jurídicos; segundo, regras que são não só necessárias, mas suficientes, para o discurso prático, não estão presentes, por boas razões, na argumentação jurídica (cf. GÜNTHER, 1995, p. 297). Com isso, Günther avança sua própria tese do caso especial: “Minha tese será que somente com a ajuda da distinção suplementar entre 63 fundamentação e aplicação pode-se fundamentar por que a argumentação jurídica deve ter lugar enquanto discurso sob condições restritas” (GÜNTHER, 1995, p. 297).100 Quanto à primeira crítica, é preciso notar que Alexy afirma que “ao contrário do caso do discurso prático geral, essa exigência [de correção] não se relaciona com o fato de a afirmação normativa em questão ser ou não absolutamente racional, mas antes se pode ser racionalmente justificada no contexto da ordem jurídica em vigor” (2001, p. 269). Essa afirmação abre a possibilidade para a crítica de Günther (1995, p. 298): “Ao contrário disso, a pretensão de correção prática, no sentido da ética discursiva, refere-se à validade de uma norma ou a seu reconhecimento geral”.101 Com isso, a argumentação jurídica não faria referência a discursos de justificação, já que para justificar uma afirmação normativa, no marco do ordenamento jurídico vigente, pressupõe-se a validade deste: “Mas com isso se pressupõe um elemento essencial para o discurso de validade: a consideração recíproca dos interesses de todos os afetados. Se a argumentação jurídica pressupõe a validade das regras, os argumentos jurídicos não poderiam formular a mesma pretensão que aqueles que se referem à validade de uma norma polêmica” (GÜNTHER, 1995, p. 298).102 Isso prepara a segunda crítica de Günther. Se falta a referência à consideração recíproca de interesses na argumentação jurídica, tal como pensada por Alexy, faltaria, assim, a referência ao princípio de universalização (U), logo, faltaria à argumentação jurídica a referência à discursividade – a validade da norma já estaria pressuposta. Como o princípio (U) é suficiente para a constituição do discurso prático geral, nos termos da ética do discurso, a argumentação jurídica não poderia ser vista como um caso especial de discurso prático geral: “Suficiente para o discurso é somente aquela variante do princípio de universalidade, que se aplica à consideração recíproca dos interesses de todos os afetados. Isto sucede em Alexy sob as ‘regras de fundamentação’ do discurso prático geral (regra 5.1.2) [vide ALEXY, 2001, p. 198], mas não sob as regras e formas da argumentação jurídica. Segundo aquilo que foi dito até agora, isto tampouco teria que surpreender, porque a argumentação jurídica deve supor 100 GÜNTHER, 1995, p. 297: “Mi tesis será que sólo con la ayuda de la distinción suplementaria entre fundamentación y aplicación puede fundamentarse por qué la argumentación jurídica debe tener lugar en cuanto discurso bajo condiciones restringidas”. 101 GÜNTHER, 1995, p. 298: “A diferencia de esto la pretensión de corrección práctica en el sentido de la ética discursiva se refiere a la validez de una norma o a su reconocibilidad general”. 102 GÜNTHER, 1995, p. 298: “Pero con eso se presupone un elemento esencial para el discurso de validez: la consideración recíproca de los intereses de todos los afectados. Si la argumentación jurídica presupone la validez de las reglas, los argumentos jurídicos no podrán formular la misma pretensión que aquéllos que se refieren a la validez de una norma polémica”. 64 precisamente como dado aquilo para cuja fundamentação ele foi concebido: a validade de uma norma” (GÜNTHER, 1995, p. 299).103 Günther, então, propõe um ajuste na tese do caso especial de Alexy. A argumentação jurídica deve ser vista, não como um caso especial do discurso de justificação, mas sim como um caso especial do discurso de aplicação. Assim, recupera-se a argumentação jurídica enquanto discurso, pois os discursos de aplicação pressupõem a existência de normas válidas. Desse modo, voltaria a ter sentido, também, falar de uma fundamentação racional no marco do ordenamento jurídico.104 Aliada a essa teoria da argumentação jurídica como caso especial do discurso moral de aplicação, Günther vai defender uma teoria radical da coerência, próxima a de Dworkin, que seria uma condição suficiente para se chegar a uma única resposta correta (adequada). Com isso, Günther pretende manter o caráter normativo do direito, flexibilizado pelas propostas de “ponderação de bens”. Apesar de Alexy distinguir valores de princípios pelo caráter deontológico destes, 105 a estratégia da ponderação para solucionar o choque de princípios acaba desmanchando a distinção. A ponderação é possível na medida em que Alexy concebe os 103 GÜNTHER, 1995, p. 299: “Suficiente para el discurso es sólo aquella variante del principio de universabilidad, que se aplica a la consideración recíproca de los intereses de todos los afectados. Esto sucede en Alexy bajo las ‘reglas de fundamentación’ del discurso práctico general (regla 5.1.2), pero no bajo las reglas y formas de la argumentación jurídica. Según lo dicho hasta ahora, esto tampoco tendría que sorprender, porque la argumentación jurídica debe presuponer precisamente como dado aquello para cuya fundamentación fe concebido: la validez de una norma”. 104 GÜNTHER, 1995, p. 300: “Este problema se resolve quando se considera a argumentação jurídica como um caso especial do discurso moral de aplicação. Para os discursos de aplicação se pressupõe já ex definitione a validade das normas. Sob este pressuposto tem sentido não só falar da argumentação jurídica como um discurso, mas também de uma fundamentação racional no marco do ordenamento jurídico vigente” [“Este problema se resuelve si se considera la argumentación jurídica como un caso especial del discurso moral de aplicación. Para los discursos de aplicación se presupone ya ex definitione la validez de las normas. Bajo este presupuesto tiene sentido no sólo hablar de la argumentación jurídica como un discurso, sino también de una fundamentación racional en el marco del ordenamiento jurídico vigente”]. 105 ALEXY, 1997, p. 147; “A diferença entre princípios e valores se reduz assim a um ponto. O que no modelo dos valores é prima facie o melhor é, no modelo dos princípios, prima facie devido; e o que no modelo dos valores é definitivamente o melhor é, no modelo dos princípios, definitivamente devido. Assim, pois, os princípios e os valores se diferenciam somente em virtude de seu caráter deontológico e axiológico respectivamente” [“La diferencia entre principios y valores se reduce así a un punto. Lo que en el modelo de los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo de los principios, prima facie debido; y lo que en el modelo de los valores es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los principios, definitivamente debido. Así pues, los principios y los valores se diferencian sólo en virtud de su carácter deontológico y axiológico respectivamente”]. 65 princípios como mandados de otimização.106 Caracterizados dessa forma, os princípios admitem cumprimento em graus, o que permite elaborar uma regra ou lei de ponderação (Law of Balancing) para determinar o seu cumprimento: “Quanto maior o grau de não satisfação ou de prejuízo a um princípio, maior deve ser a importância da satisfação do outro”.107 Günther chama atenção para o fato de que a concepção de princípios como mandados de otimização relaciona os princípios com um conceito teleológico de ação. A aplicação passa a ser vista como uma questão de atingir fins legítimos com meios convenientes e necessários, enquanto se considera o grau de invasão sobre outros fins e bens igualmente importantes (cf. GÜNTHER, 1993, p. 218). Com isso, corre-se o risco da introdução de critérios materiais (fins, bens), que deveriam eles próprios ser objeto da argumentação de adequabilidade. Nesse caso, o critério pelo qual alguém se orienta quando pondera sobre normas em conflito já disporia de um conteúdo material predeterminado que daria prioridade a um ponto de vista normativo sobre outros (cf. GÜNTHER, 1993, p. 240241). Habermas também expõe críticas contra a caracterização dos princípios como mandados de otimização. “Pretensões de validade”, afirma Habermas (1996, p. 232), “são codificadas binariamente e não admitem graus de validade”.108 Assim, princípios, na medida em que possuem caráter deontológico, não admitem cumprimento em graus. Logo, a caracterização dos princípios como mandados de otimização erradicaria o seu caráter deontológico: “Regras e princípios são ambos normas que reivindicam ser deontologicamente válidas; isto é, possuem caráter obrigatório. A distinção entre esses tipos de normas não deve ser confundida com aquela entre normas e políticas. Nem as regras, nem os princípios têm estrutura teleológica. Ao contrário do que as 106 ALEXY, 1997, p. 86: “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por tanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, senão também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos” [“El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto,los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos”] 107 ALEXY, 2005, p. 573: “The greater the degree of non-satisfaction of, or detriment to, one principle, the greater the importance of satisfying the other”. 108 HABERMAS, 1996, p. 232: “Validity claims are binarily coded and do not admit of degrees of validity”. 66 metodologias jurídicas tendem a sugerir quando se referem à ‘ponderação de valores’ (Güterabwägung), princípios não devem ser entendidos como prescrições de otimização, porque isso erradicaria seu caráter deontológico” (HABERMAS, 1996, p. 208).109 Tal como Dworkin, Günther se esforça por manter o caráter deontológico dos princípios, sejam morais, sejam jurídicos. Esforça-se também para manter a imparcialidade na argumentação, evitando a inclusão de critérios materiais que poderiam conduzir a um préjulgamento ou à prevalência de uma preferência subjetiva. Nesse ponto, sua teoria não se confunde com as propostas metodológicas de ponderação de valores ou bens, tal como a de Alexy.110 Habermas, porém, avançou críticas contundentes à tese do caso especial, tanto na versão de Alexy, quanto na de Günther. “Apesar da tese do caso especial, em uma versão ou na outra, ser plausível de um ponto de vista heurístico, ela sugere que o direito está subordinado à moral. Essa subordinação é desencaminhadora”, explica Habermas, “porque ainda está sobrecarregada de conotações do direito natural” (HABERMAS, 1996, p. 233).111 Habermas enfatiza o paralelismo que há entre direito e moral. O princípio da moral regula relações informais e simples interações face a face; o princípio da democracia regula relações entre sujeitos de direito, que se compreendem como titulares de direitos (cf. HABERMAS, 1996, p. 233). O direito não é um caso especial de argumentação moral, porque faz referência, desde o início, ainda que esteja ligado a alguns elementos da moral no que diz respeito a sua legitimidade, ao direito democraticamente promulgado e não à moral. Como já se disse, conteúdos da moral que migram para o direito tomam outra forma de validade; adquirem a validade jurídica e, a partir de então, fazem parte do direito. O caráter discursivo do direito não decorre do caráter discursivo da moral, mas está embutido no próprio direito pela institucionalização do princípio da democracia: 109 HABERMAS, 1996, p. 208: “Both rules and principles are norms that claim to be deontologically valid; that is, they have an obligatory character. The distinction between norms and policies. Neither rules nor principles have a teleological structure. Contrary to what legal methodologies tend to suggest when they refer to ‘weighing values’ (Güterabwägung), principles must not be understood as optimizing prescriptions, because that would eradicate their deontological character”. 110 Nesse sentido, esclarece Marcelo Cattoni (2004, p. 66): “Todavia, adequabilidade não é poderabilidade material de ‘comandos otimizáveis’, com base num ‘princípio da proporcionalidade (Alexy). O Direito, ao contrário do que defende uma jurisprudência dos valores, possui um código binário, e não um código gradual: que normas possam refletir valores, no sentido de que a justificação jurídico-normativa envolve questões não só acerca de o que é justo para todos (morais) mas também acerca de o que é bom, no todo e a longo prazo, para nós (éticas), não quer dizer que elas sejam ou devam ser tratadas como valores”. 111 HABERMAS, 1996, p. 233: “Although the special-case thesis, in one version or another, is plausible from a heuristic stanpoint, it suggests that law is subordinate to morality. This subordination is misleading, because it is still burdened by natural-law connotations”. 67 “Discursos jurídicos não representam um caso especial de argumentação moral que, devido a sua ligação com o direito existente, estariam restritos a um subconjunto de comandos morais ou permissões. Ao contrário, os discursos jurídicos se referem desde o início ao direito promulgado democraticamente e, na medida em que não se trata de uma reflexão doutrinária, são eles próprios institucionalizados juridicamente. Em segundo, isso significa que os discursos jurídicos não se referem apenas a normas jurídicas, mas, juntamente com a sua forma de comunicação institucionalizada, estão eles próprios embutidos no sistema jurídico” (HABERMAS, 1996, p. 234).112 Resumindo, o direito não é um caso especial de argumentação moral, porque o próprio direito traça procedimentos argumentativos, os quais asseguram os pressupostos comunicativos que determinam a criação, interpretação e aplicação legítimas do direito vigente. Logo, a referência à moral, como uma espécie de supra-direito, é desnecessária. Tanto os discursos jurídicos de justificação, quanto os de aplicação são regulados juridicamente: “Como os procedimentos democráticos na área da legislação, regras de procedimento nos tribunais na área da aplicação jurídica destinam-se a compensar a falibilidade e a incerteza decisória resultante do fato de que as exigentes pressuposições comunicativas do discurso racional só podem ser cumpridas aproximadamente” (HABERMAS, 1996, p. 234).113 Nesse ponto, é preciso concordar com Alexy, quando este afirma que (2001, p. 269): “A racionalidade da argumentação jurídica é, portanto, na medida em que é determinada pelo estatuto, relativa à racionalidade da legislação. A absoluta racionalidade na tomada de decisão jurídica pressuporia a racionalidade da legislação”. 112 HABERMAS, 1996, p. 234: “Legal discourses do not represent special cases of moral argumentation that, because of their link to existing law, are restricted to a subset of moral commands or permissions. Rather, they refer from the outset to democratically enacted law and, insofar as it is not a matter of doctrinal reflection, are themselves legally institutionalized. This means that, second, legal discourses not only refer to legal norms but, together with their institutionalized forms of communication, are themselves embedded in the legal system”. 113 HABERMAS, 1996, p. 234: “Like democratic procedures in the area of legislation, rules of court procedure in the area of legal application are meant to compensate for the fallibility and decisional uncertainty resulting from the fact that the demanding communicative presuppositions of rational discourses can only be approximately fulfilled”. 68 O próprio Habermas admite que, nesse ponto, ainda há muito a se avançar. Com efeito, falta ainda uma teoria do processo legislativo que dê conta dos pressupostos comunicativos que asseguram a legitimidade do direito:114 “Os princípios procedimentais testados e confirmados na prática e as máximas de interpretação canonizadas nos livros sobre método jurídico serão satisfatoriamente capturados em uma teoria do discurso somente quando a rede de argumentação, acordos e comunicações políticas na qual ocorre o processo legislativo tiver sido analisada em mais detalhe do que o foi até o momento” (HABERMAS, 1996, p. 233).115 Pode-se dizer que o âmbito mais amplo de legitimidade das normas jurídicas, que não se restringe a razões morais,116 levou Günther a abandonar a tematização dos discursos de justificação jurídica (que não poderiam, em virtude do âmbito mais amplo em que as normas jurídicas se encontram, ser reduzidos a um caso especial de discurso de justificação moral): “Se tão-somente o princípio da universalidade da ética discursiva não só é necessário, mas também suficiente para a pertinência de um tipo de argumentação ao discurso prático geral, o discurso jurídico não pode ser tratado como um caso especial, porque a única regra que constitui o discurso de fundamentação como tal não existe na argumentação jurídica e tão pouco pode existir” (GÜNTHER, 1995, p. 300).117 Se a legitimidade da criação do direito não é assegurada por um discurso de justificação adequado, o problema da legitimidade das decisões judiciais não pode encontrar 114 Esforços nesse sentido tem sido crescente na área do direito. Como será visto, tais pressupostos comunicativos parecem exigir uma teoria do controle de constitucionalidade. Sobre isso os estudos mais relevantes até o momento incluem aqueles de José Alfredo de Oliveira Baracho. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984; e aqueles de Rosemiro Pereira Leal, cujo seguinte trecho pode ser citado (1999, p. 49): “A legitimidade fundante e a validade das instituições jurídicas emergem da estrutura normativa constitucional, quando é esta garantidora da atuação permanente da cidadania na transformação ou preservação do Estado e das demais instituições”. Mais recentemente, também trataram do tema CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000; o próprio Professor Rosemiro Pereira Leal, em obra inovadora - LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002; e DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no processo legislativo. Belo Horizonte: Fórum, 2003. 115 HABERMAS, 1996, p. 233: “The procedural principles tested and confirmed in practice and the maxims of interpretation canonized in textbooks on legal method will be satisfactorily captured in a discourse theory only when the network of argumentation, baragaining, and political communications in which the legislative process occurs has been more thoroughly analysed than it has been to date”. 116 Habermas reconhece isso (1996, p. 108): “O princípio da democracia resulta da especificação correspondente dessas normas de ação que aparecem na forma jurídica. Tais normas podem ser justificadas com apoio em razões pragmáticas, ético-políticas e morais – aqui a justificação não está restrita a razões morais apenas” [“The principle of democracy results from a corresponding specification for those action norms that appear in legal form. Such norms can be justified by calling on pragmatic, ethical-political, and moral reasons – here justification is not restricted to moral reasons alone”]. 117 GÜNTHER, 1995, p. 300: “Si tan sólo el principio de universabilidad de la ética discursiva no sólo es necesario, sino también suficiente para la pertenencia de un tipo de argumentación al discurso práctico general, el discurso jurídico no puede tratarse de un caso especial, porque la única regla que constituye al discurso de fundamentación como tal no existe en la argumentación jurídica, y tampoco puede existir”. 69 uma resposta completa no discurso de aplicação pela argumentação de adequabilidade, tal como quer Günther. A única pergunta que é respondida pela argumentação de adequabilidade no direito é aquela já antecipada por Alexy (2001, p. 269): “A única pergunta a ser feita é que significa decidir racionalmente no contexto de uma ordem jurídica válida”. A argumentação de adequabilidade sozinha não consegue responder ao problema da legitimidade das decisões, porque não fornece uma justificativa externa racional, ou seja, não trata da legitimidade das normas jurídicas em si próprias. A argumentação de adequbilidade dá conta apenas da consistência interna, quer dizer, da compatibilidade da decisão com o conjunto de normas do direito vigente. Esse problema, porém, não passou despercebido a Günther, que certamente anteviu a necessidade de um procedimento legislativo que permitisse a consideração recíproca dos interesses dos envolvidos. Todavia, Günther acabou esbarrando com a impossibilidade de conceber os discursos de justificação jurídica como caso especial do discurso de justificação moral, tal como foi feito com o discurso de aplicação. Pode-se dizer que lhe faltou, nesse ponto, uma teoria dos direitos que, incidindo sobre os procedimentos jurídicos, asseguraria os pressupostos comunicativos necessários para garantir a aceitabilidade racional das decisões legislativas e judiciais. Pode-se dizer, pois, agora com mais precisão, que à teoria da adequabilidade de Günther falta uma teoria do processo jurídico, o que lhe permitiria reconhecer a dignidade dos discursos jurídicos, não como casos de argumentação moral, mas como espaços de argumentação propriamente jurídicos. A falta dessa teoria do processo faz com que Günther seja forçado a procurar, na experiência histórica concreta de cada ordenamento jurídico, aqueles sistemas que conseguiram, em alguma medida, efetivar pressupostos comunicativos: “A legitimidade dos resultados de tais discursos restritos depende da extensão em que a argumentação que pode dar efeito a razões é possível e admissível nesses discursos. De acordo com a distinção entre justificação e aplicação proposta aqui, deve ser possível a essas razões manter uma relação com a consideração de todos os interesses, no caso de argumentação sobre a validade de uma norma; e com a consideração de todos os aspectos de uma situação, no caso de argumentação sobre a adequabilidade de uma norma. O modo pelo qual o emprego desses diferentes tipos de razões é otimamente institucionalizado é uma questão de experiência histórica” (GÜNTHER, 1993, p. 253).118 118 GÜNTHER, 1993, p. 253: “The legitimacy of the results of such restricted discourses depends on the extent to which argumentation that can give effect to reasons is possible and admissible in these discourses. In accordance with the distinction between justification and application proposed here, it must be possible for these reasons to bear a relation to the consideration of all the interests, in the case of argumentation on the validity of a norm; and to the consideration of all the features of a situation, in the case of argumentation on the appropriateness of a norm. The way in which the employment of these different types of reasons is optimally institutionalized is a question of historical experience”. 70 Não se trata apenas de uma questão de experiência histórica. Sem uma teoria do processo adequada, a legitimidade dos resultados dos discursos jurídicos jamais poderá ser alcançada. É preciso mostrar, no nível institucional, como são possíveis os discursos jurídicos. A questão passa a ser quais os direitos precisam ser assegurados para garantir a legitimidade das decisões judiciais? Quais os direitos necessários para institucionalizar os discursos jurídicos? Quais as relações que esses direitos mantêm uns com os outros? Juridicamente essas perguntas podem ser tematizadas por uma teoria do processo, mas como será visto não é qualquer teoria do processo que atende à pretensão de legitimidade das decisões judiciais da forma propugnada por Klaus Günther e Jürgen Habermas. Assim, como já havia percebido Marcelo Cattoni, o estudo deve-se voltar nesse ponto para o processo jurisdicional: “Estando, pois, fechada a porta para aquelas posturas decisionistas que negam a possibilidade quer de correção, quer de certeza nas decisões jurisdicionais, e se a adequabilidade do juízo jurídico-normativo não é auto-evidente ou existe de per se, mas é uma (re)construção, que levanta pretensões de validade no quadro de um determinado paradigma de Direito e de Estado, a adequabilidade só pode ser buscada discursivamente, através do processo jurisdicional” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004, p. 71). O que é importante, no entanto, é esclarecer qual teoria do processo jurisdicional é adequada para permitir a busca discursiva da adequabilidade. O próximo capítulo lida com esse tema. 71 CAPÍTULO III DISCURSO DE APLICAÇÃO E TEORIA DO PROCESSO 8 – TEORIA DO PROCESSO E LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS Sem dúvida, a teoria do processo mais influente na história do direito é aquela que considera o processo como relação jurídica de direito público, entre juiz, autor e réu. Nitidamente influenciada pela máxima de Bulgaro, jurista italiano do século XII, - judicium est actus trium personarum: judicis, actoris et rei – a teoria do processo como relação jurídica foi primeiramente sistematizada pelo jurista alemão Oskar von Bülow em 1868 (cf. CHIOVENDA, 1965, p. 89-90; LEAL, 2005, p. 92; CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2000, p. 278). Oskar Bülow foi um dos precursores do chamado “movimento para o direito livre”, na Alemanha, o qual ganharia força, a partir de 1906, com a obra de Kantorowicz.119 O movimento para o direito livre valorizava um direito não estatal e defendia a aplicação de normas que “brotavam” espontaneamente na sociedade.120 Parece que por “direito livre” Kantorowicz, que não delimitou precisamente um conceito para essa expressão, refere-se às convicções predominantes em determinado lugar e em determinado tempo (cf. RECASÉNS SICHES, 1973, p. 54). Evidentemente, uma tal concepção termina por reforçar a figura do juiz, o qual se converte em intérprete e guardião das convicções sociais vigentes. Isso implica uma liberdade do juiz em relação ao ordenamento jurídico. Logo, essa doutrina não responde ao requisito da consistência, constitutivo para o problema da legitimidade. A isso Kantorowicz, sem subterfúgios, teria respondido, como relata Recaséns Siches, da seguinte maneira: “Não se objete – disse Kantorowicz – que a convicção judicial resultaria incontrolável e que, desse modo, dar-se-ia carta branca ao arbítrio judicial. Se não nos podemos fiar no juramento do juiz, que o obriga a formar com seriedade suas convicções, então é claro que não existe nenhuma garantia. Advirta-se, ainda 119 A vinculação de Bülow ao movimento para o direito livre é descrita detalhadamente por André Cordeiro Leal em sua tese de doutoramento (2006, fls. 31 et seq.). Bülow teria lançado as bases desse movimento com a obra Gesetz und Richteramt, de 1885. 120 “(...) las normas jurídicas que brotan espontáneamente en los grupos sociales (...)” esta é a expressão textual de Recaséns Siches (1973, p. 53) para descrever as normas que o movimento para o direito livre pretendia valorizar (grifos por GDM). 72 assim, que, por outra parte, também depende da livre convicção do juiz o que este considera mediante sua interpretação como Direito vigente, e o que ele reputa como verdade através das provas. Em definitivo, toda técnica jurídica está regida pela vontade, e toda sentença, que nela se baseie, constitui algo como uma lex specialis” (RECASÉNS SICHES, 1973, p. 57).121 Está claro que o movimento para o direito livre, do qual Bülow é um dos pioneiros, não desenvolveu teorias para demarcar a formação da vontade do juiz. A sentença surge, de imediato, como um ato isolado do julgador, cujas convicções não podem ser intersubjetivamente controladas, por faltar qualquer critério para o seu balizamento e limitação. De modo que uma teoria do processo, concebida sob a influência dessas idéias, não poderia avançar muito para a construção de critérios, voltados a garantir a aceitabilidade racional das decisões judiciais.122 A teoria processual da relação jurídica entre pessoas tirou do âmbito das exceções das partes (meios pelos quais se apresentam alegações de defesa) as questões relativas ao que Bülow chamou de pressupostos processuais, que deveriam ser examinados e declarados pelo juiz, antes que este julgasse o pedido do autor da causa. Outra não era a intenção de Bülow, senão fortalecer a figura do juiz e centralizar nele o juízo sobre a existência ou não do direito das partes. Enfim, a teoria do processo como relação jurídica buscava estabelecer um controle judicial dos direitos das partes, já que ficava a cargo do juiz declarar existente ou não a relação processual: “Assim, defende que a exceção seja conceituada não como ‘o que o demandado deve alegar frente à demanda’ (incluídas aí as questões referentes aos pressupostos processuais), mas como ‘tudo o que ele deve aduzir contra aquela (e, se contraditado, provar) quando ele deseje e queira que o juiz o considere’. Este conceito, na linha seguida pelo autor, jamais pode ser aplicado aos pressupostos processuais, visto que, em regra, tal matéria não pode ser deixada à disposição das partes, cabendo ao juiz uma função ativa no sentido de contribuir para a formação válida do processo” (SOUZA et al., 2005, p. 35). Assim, a teoria do processo como relação jurídica, tal como concebida por Bülow, centra-se na figura do juiz. Percebe-se que o estudo do processo gravita, pois, em torno da 121 RECASÉNS SICHES, 1973, p. 57: “No se objete – dice Kantorowicz – que la convicción judicial resultaría incontrolable y que, de ese modo, se daría carta blanca al arbitrio judicial. Si no podemos fiarnos del juramento del juez, que lo obliga a formar con seriedad sus convicciones, entonces claro es que no existe ninguna garantía. Adviértase asimismo que, por otra parte, también depende de la libre convicción del juez lo que éste estima mediante su interpretación como Derecho vigente, y lo que él reputa como verdade a través de las pruebas. En definitiva, toda técnica jurídica está regida por la voluntad, y toda sentencia que en ella se base constituye algo así como una lex specialis”. 122 Isso foi apontado, argutamente, por André Cordeiro Leal (2006). 73 atividade do juiz ou do que se convencionou chamar de jurisdição.123 Essa idéia mantém sua influência ainda hoje. Dentre os doutrinadores brasileiros, por exemplo, ainda é comum encontrar a afirmação de que “em torno deste, portanto (no caso, em torno da jurisdição), é que gravitam os demais institutos do direito processual e sua disciplina” (DINAMARCO, 2003, p. 93). Sendo um meio para o exercício da jurisdição, nessa concepção teórica, o processo pode ser visto, finalmente, como um mero instrumento da jurisdição: “A preponderância metodológica da jurisdição, ao contrário do que se passa com a preferência pela ação ou pelo processo, correspondente à preconizada visão publicista do sistema, como instrumento do Estado, que ele usa para o cumprimento de objetivos seus” (DINAMARCO, 2003, p. 97). Quando a jurisdição tem preponderância metodológica, ganha importância a categoria da efetividade. O processo, como instrumento, não deve embaraçar a atividade do juiz. Nesse mesmo quadro de idéias, torna-se relevante à celeridade, vista como a rapidez com que o sistema processual permite a tomada de decisões. O processo, portanto, deve ser um meio que permita tomar decisões ágeis. Assim, não causa espécie que os juízes, frente a esse instrumentalismo do processo, adotem a perspectiva metodológica da “ponderação de valores”, criticada acima,124 para assumirem o papel de intérpretes privilegiados do “sentimento nacional”. Nesse sentido, as decisões judiciais atualizam as leis obsoletas, segundo aquilo que a sociedade agora demanda: “Em casos de formar-se um valo entre o texto da lei e os sentimentos da nação, muito profundo e insuperável, perde legitimidade a lei e isso cria clima para a legitimação das sentenças que se afastem do que ela em sua criação veio ditar” (DINAMARCO, 2003, p. 242). Esta é a mesma lógica do chamado “juízo de eqüidade” (giudizio d’equità), mencionado por autores como Enrico Tullio Liebman, que não vêem problema em erigir o juiz à intérprete de um “senso ético-jurídico” diluído na sociedade: 123 Isso explica porque todos aqueles autores que tentaram estabelecer limites à atividade do juiz e ao ato decisório judicial pela teoria do processo como relação jurídica viram-se enredados em um paradoxo. “O paradoxo de Bülow”, como o chamou André Cordeiro Leal (2006, fls. 43 et seq.), manifesta-se na medida em que se tenta estabelecer limites à jurisdição com uma teoria que pretendia ampliar as faculdades do juiz. Assim, tem-se como limite à jurisdição a ausência de limites, ou um enunciado como “o limite da atividade do juiz é a sua liberdade”. Esse paradoxo atingiu, segundo André Leal, autores como Chiovenda e Couture, que tentaram ora reduzir a legitimidade decisória à consistência, no caso do primeiro (atuação da vontade concreta da lei), ora localizá-la na pessoa do juiz, exigindo-lhe o bom caráter, as boas intenções e a correção no comportamento, no caso do segundo. Evidentemente, por tudo que já foi dito, ambas as propostas seriam insuficientes para assegurar a aceitabilidade racional das decisões. 124 Cabem à posição do juiz, defendida pelo instrumentalismo processual, as mesmas críticas que foram feitas a Robert Alexy, quanto aos métodos de ponderação. 74 “Eqüidade não quer dizer, porém, arbítrio do juiz, o qual deve, como juiz de eqüidade, fazer-se intérprete do senso ético-jurídico difuso na sociedade de seu tempo, que é algo como um direito em estado amorfo; de maneira que o critério eqüitativo, que intervém para temperar a aspereza da rígida aplicação da lei, possa por sua vez ser visto como preceito geral, aplicável a todos os casos idênticos àqueles no qual foi aplicado” (LIEBMAN, 2002, p. 163-164).125 Como se pode notar, o juízo de eqüidade assume critérios materiais (senso éticojurídico, sentimento da nação), que, em última análise, são pré-compreensões ou préconceitos do próprio julgador. Essas pré-compreensões fazem parte da subjetividade do julgador e deveriam ser elas próprias colocadas em discussão. O juízo de eqüidade, seja na versão de Liebman, seja na de Dinamarco, não permite a discussão pelos envolvidos dos critérios de formação do ato decisório. Isso porque tais critérios são pré-compreensões subjetivas do julgador, que não foram formuladas e expostas à crítica no decorrer do procedimento. Como foi visto, isso só é possível na medida em que o ato decisório é privativo do juiz, conforme preceitua a teoria do processo como relação jurídica. Com o ato decisório concebido nesses termos, não se pode falar sequer em discurso de aplicação. A aplicação das normas, nesse caso, fica submetida à prudência do julgador. Essa prudência vai-se manifestar, como anota Günther (cf. 1993, p. 68), no tratamento estratégico das particularidades da situação de fato, só que no caso do juízo de eqüidade, tal como uma espécie de phronesis aristotélica, lida-se estrategicamente com a norma, assimilando-a aos fatos. Isso afasta o princípio da imparcialidade, pois, ao invés de levar em consideração todas as circunstâncias da situação e, então, buscar, dentre as normas prima facie aplicáveis, aquela que seja mais adequada, segundo as exigências do ordenamento jurídico (ou melhor, segundo as exigências de uma compreensão paradigmática do ordenamento jurídico), o juiz assimila a norma aos fatos, decidindo conforme aquilo que ele entende ser o mais correto para aquele caso. Não há propriamente a aplicação de uma norma, mas a adoção de uma decisão pelo juiz, por um juízo que se ajusta “às circunstâncias particulares do caso concreto, de modo a formular uma regra jurídica concreta que lhe 125 LIEBMAN, 2002, p. 163-164: “Equità non vuol dire però arbitrio del giudice, il quale deve, come giudice d’equità, farsi interprete del senso etico-giuridico diffuso nella società del suo tempo, che è qualche cosa come un diritto allo stato amorfo; cosiché il criterio equitativo, che interviene a temperare le asprezza della rigida applicazione della legge, possa a sua volta essere sentito come precetto generale, applicabile a tutti i casi identici a quello nel quale è stato applicato”. 75 pareça mais justa para o caso singular” (LIEBMAN, 2002, p. 163).126 Com isso, a teoria processual da relação jurídica entre juiz, autor e réu, revela-se incompatível com a teria da argumentação de adequabilidade de Günther. A argumentação das partes tem quando muito um valor heurístico. Reduz-se à possibilidade de persuadir o juiz em favor de algum argumento, mas de modo algum tem caráter decisivo para o desfecho da causa, pois o que é decisivo para sentença é a convicção do julgador. Nisso não se pode deixar de notar a influência do pensamento de Hegel (2000, p.199): “A prova não contém, portanto, uma determinação objetiva absoluta e o que na decisão soberanamente prevalece é a convicção subjetiva, a certeza de consciência (animi sententia)”. Por sinal, a posição do juiz na teoria do processo como relação jurídica, colocado acima das partes, parece, em certa medida, ter sido influenciada por Hegel: “A direção do conjunto do processo, da investigação e de todos aqueles atos jurídicos das partes que são eles mesmos direitos, bem como o julgamento jurídico, cumprem sobretudo ao juiz qualificado” (HEGEL, 2000, p. 199). A própria imagem do processo como um meio para atuação da jurisdição e a necessidade de efetividade e celeridade já se encontram em Hegel. Pode-se dizer que este inclusive denuncia o processo como um embaraço à jurisdição: “Com a sua divisão em atos sempre mais particulares e nos direitos correspondentes, segundo uma complicação que não tem limite em si mesma, o processo, que começara por ser um meio, passa a distinguir-se da sua finalidade como algo de extrínseco. Têm as partes a faculdade de percorrer todo o formalismo do processo, o que constitui o seu direito, e isso pode tornar-se um mal e até um veículo da injustiça. Por isso, para proteger as partes e o próprio direito, que é aquilo de que substancialmente se trata, contra o processo e os seus abusos deverá o tribunal submeter-se a uma jurisdição simples (tribunal arbitral, tribunal de paz) e prestar-se a tentativas de acordo antes de entrar no processo” (HEGEL, 2000, p. 197). Já no pensamento de Hegel estava elaborada uma versão do paradoxo de Bülow: as partes têm direito ao processo, que é um entrave ao direito. Uma tal concepção de processo jamais serviria para encaminhar uma teoria do discurso jurídico preocupada em assegurar a aceitabilidade racional das decisões judiciais e compreender o ato decisório como um empreendimento compartilhado. Pois, em última análise, a decisão se impõe, nesta teoria, 126 O texto completo diz: “In via eccezionale è invece consentito al giudice di ricavarne il criterio del suo giudizio con maggiore libertà da fonti diverse, adattandolo alle circostanze particolari del caso concreto, in modo da formulare una regola giuridica concreta che gli sembri più giusta per il singolo caso” (LIEBMAN, 2002, p. 163). 76 pela autoridade do julgador, haja vista que a decisão se funda em suas convicções subjetivas. Não há que se falar nem em consistência com o ordenamento jurídico (superada pelo juízo de eqüidade), nem em aceitabilidade racional (já que o critério decisório está enterrado nas convicções do julgador, onde permanece imune a críticas). Pode-se dizer, por fim, que uma maneira de resolver o problema da aceitabilidade racional das decisões, no marco da teoria do processo como relação jurídica, seria exigir a fundamentação das decisões. Assim, mesmo que fundadas em critérios subjetivos, as decisões terminariam por explicitar esses critérios, o que permitiria a sua crítica em sede de recurso. Nesse sentido, Couture (2004, p. 234) afirma que “uma sentença sem motivação priva as partes do mais elementar de seus poderes de fiscalização sobre os processos reflexivos do magistrado”.127 Mas, com isso, apenas se coloca um novo problema, que tipo de fundamentação é necessária para que uma decisão seja racionalmente aceitável? A mera exposição dos motivos subjetivos que conduziram o julgador a determinado resultado supre essa necessidade de fundamentação? Na seqüência, serão abordadas outras teorias do processo, que buscaram respostas mais consistentes para esses problemas, do que aquelas ofertadas pela teoria do processo como relação jurídica. 9 – PROCEDIMENTO E PROCESSO Ao definir o processo como relação jurídica entre pessoas, depararam-se os adeptos dessa teoria com a dificuldade de definir o que eles perceberam ser o aspecto externo dessa relação. A seqüência de atos desenvolvida em juízo e estabelecida em leis não se confundia, em todos os seus aspectos, com o conjunto de direitos e deveres, identificados com 127 COUTURE, 2004, p. 234: “Una sentencia sin motivación priva a las partes del más elemental de sus poderes de fiscalización sobre los procesos reflexivos del magistrado”. 77 a relação jurídica processual.128 Nesse sentido, posicionou-se inicialmente Liebman (2001, p. 77): “Todas as relações existentes entre os sujeitos do processo têm o seu fundamento, suas raízes, sua significação no fato básico da pendência do processo; tomadas em conjunto, formam o que se poderia denominar de tecido jurídico interno do processo, enquanto a série de atos (o procedimento) é apenas sua manifestação exterior e visível”. A influência desse ensinamento de Liebman fez-se sentir no Brasil, onde, durante muito tempo, os processualistas sustentaram que: “O procedimento é, nesse quadro, apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo; é a manifestação extrínseca deste, a sua realidade fenomenológica perceptível. A noção de processo é essencialmente teleológica, porque ele se caracteriza por sua finalidade de exercício do poder (no caso, jurisdicional). A noção de procedimento é puramente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem. Conclui-se, portanto, que o procedimento (aspecto formal do processo) é o meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2000, p. 275). Chiovenda vislumbrava nesse aspecto formal do procedimento, o que de certa forma também já havia sido visto por Hegel antes dele, uma garantia das partes. O procedimento, segundo Chiovenda, seria o conjunto das “atividades das partes e dos órgãos jurisdicionais, mediante as quais a lide procede do princípio para a definição” (CHIOVENDA, 2000, Vol. III, p. 5). A experiência teria demonstrado, ainda segundo Chiovenda, contra as críticas e censuras dos leigos, que freqüentemente insistiam na abolição das formalidades, que a “sua ausência carreia a desordem, a confusão e a incerteza” (CHIOVENDA, 2000, vol. III, p. 6). Como se pôde notar, hodiernamente, essa crítica não decorre somente dos leigos, mas dos processualistas também, que em nome da celeridade e da efetividade têm defendido procedimentos simplificados e mais maleáveis.129 Pode-se dizer 128 Para compreender esse contraste entre um aspecto interno e outro externo do processo, pode-se citar Liebman (2002, p. 37): “O conjunto dos atos, na sua sucessão e unidade formal, recebe o nome técnico de procedimento. Do segundo ponto de vista, deve-se destacar que a pendência do processo determina a existência entre os seus sujeitos de toda uma série de posições e de relações recíprocas, as quais são juridicamente reguladas e formam no seu conjunto uma relação jurídica, a relação jurídica processual” [L’insieme degli atti, nella loro successione e unità formale, prende il nome tecnico di procedimento. Dal secondo punto di vista, va rilevato che la pendenza del processo determina l’esistenza tra i suoi soggetti di tutta una serie di posizioni e di relazioni reciproche, le quali sono giuridicamente regolate e formano nel loro insieme un rapporto giuridico, il rapporto giuridico processuale”]. 129 Os reflexos legislativos dessas idéias podem ser verificados, v.g., no artigo 5º, da Lei 9.099/95 – “O juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnicas”. Desse modo, o aspecto de garantia das partes que poderia haver na fixação legal da seqüência de atos praticados em juízo fica muito mitigado, pois a subjetividade do juiz comparece, agora, para determinar esses atos em função da sua consciência e das suas convicções pessoais. Isso fica patente pela presença do juízo de eqüidade no artigo 6º, da Lei 9.099/95, o qual vai permitir fundar a decisão nas convicções subjetivas do juiz – “O juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”. 78 que a contribuição de Chiovenda para essa discussão foi ressaltar que essas supostas formalidades são, na verdade, garantias das partes e que não podem ser superadas, sem mais, em nome de uma jurisdição mais célere. Mais tarde, o próprio Liebman perceberia um aspecto importante do procedimento. Os atos que o constituem estão interligados e têm um escopo comum: a formação do provimento final ou sentença. Liebman havia percebido que o procedimento prepara a sentença: “Os atos são antes de tudo coligados pela unidade do escopo, entendido em sentido formal, em quanto visam a provocar e preparar o ato final que concluirá e encerrará o procedimento. Cada ato possui porém um escopo imediato próprio, que o qualifica na sua individualidade, mas este escopo imediato não possui outra razão de ser que aquela de representar um passo em direção a um escopo mais distante, que é comum a todos os atos, e é a formação do ato final, que resumirá todo o procedimento e constituirá seu resultado” (LIEBMAN, 2002, p. 207).130 Com isso, já se começava a perceber que o procedimento, como garantia das partes, tinha a função de preparar o ato final, a sentença. Faltava aprofundar o estudo quanto à relação que mantinham processo e procedimento. Esse aprofundamento foi feito por Elio Fazzalari. Partindo de uma análise do ponto de vista lógico, Fazzalari concluiu que o processo é, na verdade, uma espécie de procedimento. O processo é um procedimento realizado em contraditório. É a participação dos interessados no iter procedimental que caracteriza o processo. O processo, portanto, é um procedimento, no qual são habilitados a participar, em contraditório, na preparação do ato final (sentença, no caso do processo judicial), aqueles em cuja esfera de direitos tal ato é destinado a repercutir: “Se, pois, o procedimento é regulado de modo que participem também aqueles em cuja esfera jurídica o ato final está destinado a produzir efeitos (tal que o autor desse deva ter em conta a atividade deles), e se tal participação é combinada de modo que os ‘interessados’ contrapostos (aqueles que aspiram à emanação do ato final – ‘interessados’ em sentido estrito – e aqueles que pretendem evitá-la – ‘contra-interessados’-) estejam em plano de simétrica paridade; então o procedimento compreende o ‘contraditório’, faz-se mais articulado e complexo, e do 130 LIEBMAN, 2002, p. 207: “Gli atti sono anzitutto collegati dall’unità dello scopo, inteso in senso formale, in quanto sono intesi a provocare e preparare l’atto finale che compirà e chiuderà il procedimento. Ciascun atto ha bensì uno scopo immediato proprio, che lo qualifica nella sua individualità, ma questo scopo immediato non ha altra ragion d’essere che quella di rappresentare un passo verso uno scopo più lontano, che è comune a tutti gli atti, ed è la formazione dell’atto finale, che riassumerà l’intero procedimento e ne costituirà il risultato”. 79 genus ‘procedimento’ é dado enuclear a species ‘processo’” (FAZZALARI, 1996, p. 61).131 Com isso, o processo deixa de gravitar, pelo menos no que tange à metodologia de seu estudo, em torno da jurisdição; o resultado é a abertura de um campo de estudo autônomo do processo.132 Fazzalari possibilitou, com isso, que a jurisdição não fosse mais estudada do ponto de vista do exercício do poder,133 mas a partir da necessidade de buscar a sua legitimidade, ou seja, pela necessidade de buscar a legitimidade das decisões.134 A partir da proposta de Fazzalari, a teoria do processo passou a lidar com o problema da legitimidade das decisões judiciais, um problema que até então pertencia ao campo da filosofia do direito, o tratamento de questões comuns marca um entrecruzamento entre essas duas disciplinas. Cumpre, no entanto, analisar a teoria fazzalariana mais de perto para determinar o alcance de suas contribuições. Primeiramente, se processo é uma espécie de procedimento, é preciso dizer com mais detalhe o que seja o procedimento: “Esclareça-se, a estrutura do procedimento se colhe quando se está diante de uma série de ‘normas’ (tendo ao final uma norma que regulamenta um ato final: geralmente um provimento, mas pode tratar-se também de um mero ato), das quais cada uma regula uma determinada conduta (qualificando-a como lícita ou como devida), mas enuncia como pressuposto do seu próprio operar o cumprimento de uma atividade regulada por outra norma da série” (FAZZALARI, 1996, p. 77).135 131 FAZZALARI, 1996, p. 61: “Se, poi, il procedimento è regolato in modo che vi partecipino anche coloro nella cui sfera giuridica l’atto finale è destinato a svolgere effetti (talché l’autore di esso deba tener conto della loro attività), e se tale partecipazione è congegnata in modo che i contrapposti ‘interessati’ (queli che aspirano alla emanazione dell’atto finale – ‘interessati’ in senso stretto – e quelli che vogliono evitarla – ‘controinteressati’-) siano sul piano di dimmstrica parità; allora il procedimento comprende il ‘contraddittorio’, si fa più articolato e complesso, e dal genus ‘procedimento’ è consentito enucleare la species ‘processo’”. 132 Para André Cordeiro Leal (2006, fls. 88 et seq.), é a própria ciência do processo que é fundada por Fazzalari. Aquilo que havia servido de marco para o estudo do processo desde Bülow não passou do estudo de meios técnicos para o exercício da jurisdição. 133 Como se pode encontrar por exemplo em Dinamarco (2003, p. 95): “Não-obstante se diga teoria geral do processo e se continue sempre a dizer direito processual, tem-se no fundo e essencialmente a disciplina do poder e do seu exercício e esse é o fator de unidade que reúne numa teoria os institutos, fenômenos, princípios e normas de diversos ramos aparentemente distintos e independentes entre si”. 134 Perspectiva que foi levada a diante, com novos contornos, por Rosemiro Pereira Leal (1999, p. 42): “Portanto, a jurisdição, face ao estágio da Ciência Processual e do Direito Processual, não tem qualquer valia sem o PROCESSO, hoje considerado no plano do direito processual positivo, como complexo normativo constitucionalizado e garantidor dos direitos fundamentais da ampla defesa, contraditório e isonomia das partes e como mecanismo legal de controle da atividade do órgão-jurisdicional (juiz) que não mais está autorizado a utilizar o PROCESSO como método, meio ou mera exteriorização instrumental do exercício da jurisdição”. 135 FAZZALARI, 1996, p. 77: “Ciò chiarito, la struttura del procedimento si coglie quando ci si trovi di fronte ad una serie di ‘norme’ (fino a quella regolatrice di un atto finale: di solito un provvedimento, ma può trattarsi anche di un atto mero), ciascuna delle quali regola una determinata condotta (qualificandola come lecita o come doverosa), ma enuncia come presupposto del proprio operare il compimento di una attività regolata da altra norma della serie”. 80 Fazzalari não explica como nem por que o procedimento se torna processo, quando se desenvolve em contraditório entre as partes. Fica a impressão de que na própria palavra “processo” já estaria a substância do procedimento realizado em contraditório, de que, portanto, haveria uma “essência” do processo contida na própria palavra. Isso não explica, porém, como o princípio do contraditório é introduzido no sistema jurídico e como este princípio chega a se instalar no procedimento. A teoria de Fazzalari perde, nesse ponto, um pouco de sua força explicativa.136 Cabe esclarecer, ainda, o que Fazzalari entende por contraditório. Valendo-se das lições de Aroldo Plínio Gonçalves, um dos maiores estudiosos da obra de Fazzalari no Brasil, pode-se dizer que: “O contraditório não é apenas ‘a participação dos sujeitos do processo’. Sujeitos do processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exige, e as partes (autor, réu, intervenientes). O contraditório é a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os ‘interessados’, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor” (GONÇALVES, 1992, p. 120). Fazzalari contribuiu, também, com a indicação de que o juiz, ao decidir, não pode ignorar o debate das partes. Começa-se a desenvolver uma teoria que liga o debate dos interessados com o provimento judicial. Nesse sentido, já se tem, em Fazzalari, uma relação embrionária entre contraditório e fundamentação das decisões: “Tem-se, em suma, ‘processo’ quando em uma ou mais fases do iter de formação de um ato é contemplada a participação não só – e obviamente – do seu autor, mas também dos destinatários dos seus efeitos, em contraditório, de modo que estes possam desenvolver atividade cujo autor do ato deve ter em conta; cujos resultados, pois, ele pode desatender, mas não ignorar” (FAZZALARI, 1996, p. 83).137 Na seqüência, é preciso perceber os impactos da proposta fazzalariana na teoria do processo. 136 Esta é a crítica feita por Rosemiro Pereira Leal (2002(b), p. 169) que segue nos seguintes termos: “Em Fazzalari, por ser o contraditório uma qualidade transformadora do procedimento em processo, ainda, assim, embora auxilie a aprendizagem da teoria do direito democrático, nos remete a uma cogitação aristotélicoessencialista que lhe retira a racionalidade explicativa de como é institucionalizado o princípio do contraditório para que este adquira força transmutativa do procedimento em processo quando não apoiada numa coercitividade autopoiética de cunho meramente legalista e própria do Estado burguês de direito”. 137 FAZZALARI, 1996, p. 83: “C’è, insomma, ‘processo’ quando in una o più fasi dell’iter di formazione di un atto è contemplata la partecipazione non solo – ed ovviamente – del suo autore, ma anche dei destinatari dei suoi effetti, in contraddittorio, in modo che costoro possano svolgere attività di cui l’autore dell’atto deve tener conto; i cui risultati, cioè, egli può disattendere, ma non ignorare”. 81 10 – TEORIA NEO-INSTITUCIONALISTA DO PROCESSO: UMA TEORIA DISCURSIVA A partir dos estudos de Elio Fazzalari, o processo ganhou um âmbito de estudo próprio, que não gravita em torno da jurisdição. Dessa perspectiva, o processo só trata da jurisdição na medida em que o exercício desta deve ser legitimado. Já se viu que a teoria do processo como relação jurídica entre pessoas concebe a jurisdição como atividade decisória privativa do juiz. Pode-se afirmar também que uma teoria que concentre o ato decisório na pessoa do juiz, seja atribuindo-lhe discricionariedade, seja colocando-o em uma posição hermenêutica privilegiada (intérprete de valores sociais ou responsável por uma ponderação de interesses), não atende aos pressupostos de legitimação do ato decisório, exigidos por uma sociedade democrática. Até Fazzalari, a teoria do processo contribuiu pouco para o debate acerca da consistência da decisão com as normas vigentes e da aceitabilidade racional das decisões. Sob o marco teórico da relação jurídica processual, a racionalidade decisória é o resultado das convicções do julgador, de certezas que este carrega em seu íntimo e de uma autoridade muitas vezes lastreada apenas pelo aparato de coerção estatal. Por outro lado, o desenvolvimento que a teoria do direito alcançou, mormente depois dos estudos de Günther e Habermas, permitiu abrir caminho para a construção de um discurso jurídico legitimatório, baseado na racionalidade argumentativa e não mais na autoridade apoiada pela tradição ou pela força. Faltava, porém, uma contrapartida institucional, uma teoria do direito que mostrasse como era possível a implementação jurídica de uma teoria discursiva da legitimidade decisória. Quais os direitos necessários para que se pudesse propiciar uma interação argumentativa, livre de coerções, entre os destinatários dos efeitos de decisões jurídicas (legislativas, administrativas e judiciais)? Como uma sociedade poderia, pelo medium lingüístico do direito, determinar as regras de sua convivência sem se submeter a autoridades soberanas que ditam normas por conveniência? Esses foram alguns dos problemas com os quais Rosemiro Pereira Leal procurou lidar ao desenvolver uma teoria neo- 82 institucionalista do processo. Para compreender o alcance dessa teoria, é preciso perceber até que ponto a teoria discursiva do direito de Habermas conseguiu chegar. Partindo de um princípio do discurso que procura expressar tão-somente os requisitos de legitimidade de normas de ação em sociedades pós-tradicionais, cujo pluralismo de formas de vida já não permite mais um acordo baseado em um ethos comum, uma moralidade compartilhada, ou em convicções religiosas compartilhadas,138 Jürgen Habermas procurou elaborar uma teoria discursiva do direito, que buscasse sua legitimidade para além dos marcos da tradição e da força. O princípio do discurso, “D: Somente são válidas as normas de ação com as quais possam concordar todos os possíveis afetados, enquanto participantes de discursos racionais”,139 inicialmente neutro em relação à moral e ao direito, permite explicar, pela sua ramificação nesses dois âmbitos, como é possível a legitimidade de normas morais e jurídicas, em sociedades pluralistas ou pós-tradicionais. A ramificação do princípio do discurso na moral resulta no princípio (U), já discutido anteriormente. A ramificação desse mesmo princípio do discurso (D) no direito resulta em um princípio da democracia (De), que tem o seguinte enunciado: “Especificamente, o princípio democrático declara que somente podem reclamar legitimidade aquelas leis (statutes) que possam encontrar o assentimento de todos os cidadãos em um processo discursivo de legislação, que em contrapartida haja sido constituído legalmente” (HABERMAS, 1996, p. 110).140 Para Habermas, o princípio da democracia deriva da interpenetração entre o princípio do discurso e a forma jurídica. O que Habermas entende como uma “gênese lógica dos direitos” pode ser descrito assim: 138 Sobre o pluralismo pode-se mencionar Habermas (1996, p. 200): “Em uma sociedade pluralista, na qual vários sistemas de crenças competem uns com os outros, o recurso a um ethos prevalecente desenvolvido por interpretação não oferece uma base convincente para discursos jurídicos. O que conta para uma pessoa como um topos historicamente provado é para outras ideologia ou mero preconceito” [“In a pluralistic society in which various belief systems compete with each other, recourse to a prevailing ethos developed through interpretation does not offer a convincing basis for legal discourse. What counts for one person as a historically proven topos is for others ideology or sheer prejudice”]. John Rawls caracteriza o que ele chama de “fato do pluralismo razoável” da seguinte forma (2003, p. 4): “Esse fato consiste em profundas e irreconsiliáveis diferenças nas concepções religiosas e filosóficas, razoáveis e abrangentes, que os cidadãos têm do mundo, e na idéia que eles têm dos valores morais e estéticos a serem alcançados na vida humana”. 139 HABERMAS, 1996, p. 107: “D: Just those action norms are valid to which all possibly affected persons could agree as participants in rational discourses”. 140 HABERMAS, 1996, p. 110: “Specifically, the democratic principle states that only those statutes may claim legitimacy that can meet with the assent (Zustimmung) of all citizens in a discursive process of legislation that in turn has been legally constituted”. 83 “Começa-se pela aplicação do princípio do discurso ao direito geral a liberdades – um direito constitutivo para a forma jurídica como tal – e termina institucionalizando juridicamente as condições para um exercício discursivo da autonomia política” (HABERMAS, 1996, p. 121).141 Parece que o ponto central de Habermas, neste passo, é institucionalizar direitos que assegurem tanto a autonomia pública, quanto à autonomia privada dos cidadãos. Os direitos de liberdade e os direitos de participação seriam, por essa razão, indivisíveis: “O nexo interno da democracia com o Estado de direito consiste no fato de que, por um lado, os cidadãos só poderão utilizar condizentemente a sua autonomia pública se forem suficientemente independentes graças a uma autonomia privada assegurada de modo igualitário. Por outro lado, só poderão usufruir de modo igualitário da autonomia privada se eles, como cidadãos, fizerem um uso adequado da sua autonomia política. Por isso os direitos fundamentais liberais e políticos são indivisíveis. A imagem do núcleo e da casca é enganadora – como se existisse um âmbito nuclear de direitos elementares à liberdade que devesse reivindicar precedência com relação aos direitos à comunicação e à participação. Para o tipo de legitimação ocidental é essencial a mesma origem dos direitos à liberdade e civis” (HABERMAS, 2001, p. 149). Habermas então introduz três categorias de direitos que definiriam o código jurídico enquanto tal, por definir o status de sujeito de direito: “1 – Direitos fundamentais que resultam da elaboração politicamente autônoma do direito a maior medida possível de iguais liberdades individuais. Esses direitos requerem os seguintes como corolários necessários: 2 – Direitos fundamentais que resultam da elaboração politicamente autônoma do status de membro em uma associação voluntária de associados sob o direito. 3 – Direitos fundamentais que resultam imediatamente da acionabilidade dos direitos e da elaboração politicamente autônoma da proteção jurídica individual” (HABERMAS, 1996, p. 122).142 É preciso ainda um próximo passo para que os sujeitos de direito possam reconhecer-se como co-autores do ordenamento jurídico. Outras categorias de direitos devem complementar as três já elaboradas: 141 HABERMAS, 1996, p. 121: “One begins by applying the discourse principle to the general right to liberties – a right constitutive for the legal form as such – and ends by legally institutionalizing the conditions for a discursive exercise of political autonomy”. 142 “1. Basic rights that result from the politically autonomous elaboration of the right to the greatest possible measure of equal individual liberties. 2. Basic rights that result from the politically autonomous elaboration of the status of a member in a voluntary association of consociates under law. 3. Basic rights that result immediately from the actionability of rights and from the politically autonomous elaboration of individual legal protection” (HABERMAS, 1996, p. 122). 84 “4 - Direitos fundamentais a oportunidades iguais de participar em processos de formação da opinião e da vontade nos quais os cidadãos exercem sua autonomia política e através do qual eles geram direito legítimo”. “5 – Direitos fundamentais para a provisão de condições de vida que são, social, tecnológica e ecologicamente resguardados, à medida que as circunstâncias correntes façam isso necessário para que os cidadãos tenham iguais oportunidades de utilizar os direitos civis listados de (1) a (4)” (HABERMAS, 1996, p. 123).143 Evidentemente, para que sejam possíveis oportunidades igualitárias de participação em processos de formação da vontade e da opinião políticas, esses processos não podem ter curso em qualquer espaço. As praças públicas, o meio da rua ou mesmo a televisão, o rádio e outros meios de comunicação de massa, em geral, não são espaços adequados para a incidência de direitos que garantam uma situação paritária entre os envolvidos, de modo que cada um possa oferecer seus argumentos e suas críticas aos argumentos dos outros e também possa ouvir as críticas e os argumentos dos outros e avaliálos. Não se trata, pois, de um espaço físico, mas de um espaço lingüístico que possa ser demarcado juridicamente: “O que se teria no direito democrático constitucionalizado é a despersonificação de uma justiça de um Judiciário mítico (vassalo de THEMIS) e a instituição de um Logos argumentativo-discursivo pelo direito ao contraditório na formação das opiniões e vontades construtivas, reconstrutivas e aplicativas da lei jurídica. Claro que esse direito ao contraditório não pode ser exercido a céu aberto por relações intersubjetivas tão do agrado dos sociologistas nostálgicos – adeptos ainda do espaço magnético (telepático) da Ágora grega como recipiendária do bios-polytikos ou da escatologia messiânica (historicista) dos marxianos, que pensam as transformações sociais por um andar botânico (funcionalista) da história ou por uma libido providencial (militância-aceleração ativista) das relações humanas. Na contemporaneidade dos estudos da teoria da democracia, a legitimidade e aplicação do direito são entendidos como irrestrito direito-de-ação coextenso ao procedimento (legitimatio ao processo) como direito fundamental de aquisição e atuação de cidadania” (LEAL, 2005(c), p. 7). Há, portanto, a necessidade de que esse espaço seja procedimental, pois o procedimento vai permitir a modulação do tempo e o encadeamento de atos, até aquele ato final corolário de toda a cadeia. Não basta, outrossim, que o procedimento seja pensado, é preciso que ele seja juridicamente descrito e assegurado. O procedimento, tal como sugeria Chiovenda, deve ser um direito dos envolvidos. Da mesma forma que para os direitos descritos em (4), os direitos descritos em (3), relativos à acionabilidade dos direitos, ou seja, 143 “4. Basic rights to equal opportunities to participate in processes of opinion- and will-formation in which citizens exercise their political autonomy and through which they generate legitimate law. 5. Basic rights to the provision of living conditions that are socially, technologically, and ecologically safeguarded, insofar as the current circumstances make this necessary if citizens are to have equal opportunities to utilize the civil rights listed in (1) through (4)” (HABERMAS, 1996, p. 123). 85 relativos à aplicação de normas jurídicas a casos em que alguém entenda ter tido algum direito lesionado, representam, se é que a aplicação de normas deve ser vista como discurso, um direito de instaurar procedimentos. Mas não é qualquer procedimento que conseguirá atender, ainda que minimamente, aos exigentes pressupostos comunicativos da criação e aplicação legítimas do direito. Logo, o entrelaçamento do princípio do discurso com a forma jurídica exige a criação de procedimentos específicos para o balizamento das decisões legislativas, administrativas e judiciais, ou antes, para a formação da vontade e da opinião políticas. É, nesse ponto, que se percebe a necessidade de uma teoria do processo adequada. Partindo da teoria do processo de Fazzalari, já seria possível afirmar que os pressupostos comunicativos exigidos pelos padrões de legitimidade do direito não poderiam ser alcançados através de um mero procedimento. Com efeito, a norma jurídica criada por uma autoridade soberana (rei ou presidente da república) pode-se dar através de procedimentos (v.g. a edição de medidas provisórias), que não contam, no entanto, com a participação daqueles que sofrerão os efeitos do provimento. O mero procedimento não basta, mas é condição necessária para a participação dos envolvidos. Se esse procedimento se realiza, agora, em contraditório, quer dizer, em termos fazzalarianos, se há processo, exige-se a participação argumentativa, em simétrica paridade, daqueles que serão afetados pelo provimento.144 Por isso, Fazzalari insiste que mesmo os procedimentos legislativos são processos, haja vista a necessidade de se dar espaço para a manifestação das opiniões contrapostas.145 Porém, como foi visto, a teoria de Fazzalari, apesar da grande contribuição que trouxe, não é suficiente para explicar a institucionalização do princípio do contraditório. Foi Eduardo J. Couture, processualista uruguaio, um dos primeiros juristas a defender a idéia de que os princípios regentes das estruturas procedimentais criadas por lei 144 Cumpre enfatizar, com Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 127), que: “O contraditório não é o ‘dizer’ e o ‘contradizer’ sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei”. 145 Referindo-se ao procedimento legislativo, Fazzalari enfatiza: “Se trata, portanto não de meros procedimentos, porém de processos. Aqui o processo confirma, se porventura isso se fizesse necessário, a sua essência de estrutura privilegiada para gestão democrática de atividades fundamentais; e, portanto, de instrumento para realização e para salvaguarda das liberdades” [“Si tratta, dunque non di meri procedimenti, bensì di processi. Qui il processo conferma, se mai ve ne sia bisogno, la sua essenza di struttura privilegiata per la gestione democratica di attività fondamentali; e, dunque, di strumento per la realizzazione e per la salvaguardia delle libertà”] (FAZZALARI, 1996, p. 620). 86 estavam na Constituição.146 Couture fala em uma “tutela constitucional do processo”, querendo dizer que os legisladores, ao elaborar as normas procedimentais, deveriam observar os princípios constitucionais relativos ao processo. Assim, na estruturação dos procedimentos infraconstitucionais, os legisladores deveriam, sob pena de inconstitucionalidade das normas criadas, observar os princípios processuais acolhidos pela Constituição. Sobre esse tema, vale citar o processualista uruguayo: “Não existe uma teoria geral da tutela constitucional do processo, no sentido de enumeração conclusiva de soluções. A tese assentada para um direito positivo, pode não ter validade para outro. Em todo caso, esta teoria consiste em determinar a relação entre o âmbito de validade de uma Constituição, no sentido positivo, e a forma dada a um processo por uma lei ditada dentro desse mesmo direito positivo” (COUTURE, 2004, p. 125).147 O desenvolvimento dessa proposta teórica, principalmente na Itália, deu lugar ao chamado modelo constitucional do processo: “As normas e os princípios constitucionais relativos ao exercício da função jurisdicional, se consideradas na sua complexidade, permitem ao intérprete delinear um verdadeiro e próprio esquema geral de processo, suscetível de formar o objeto de uma exposição unitária” (ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 7).148 Uma das principais contribuições dos italianos Italo Andolina e Giuseppe Vignera foi o desenvolvimento da idéia de expansividade dos princípios processuais contidos na Constituição. Tais princípios têm a capacidade de condicionar a estrutura dos procedimentos 146 Héctor Fix Zamudio chega a apontar Couture como o criador de um novo campo de estudos o Direito Constitucional Processual (1988, p. 194): “Todavia mais recente é a disciplina que temos chamado dereito constitucional processual, como aquele ramo do direito constitucional que se ocupa do estudo sistemático dos conceitos, categorias e instituições processuais consagradas pelas disposições da lei fundamental, e em cuja criação devemos destacar, como o temos sustentado ao longo deste trabalho, o pensamento do ilustre processualista uruguaio Eduardo J. Couture, que foi um dos primeiros juristas não só entre os latiamericanos, mas também em âmbito mundial, que advertiu sobre a necessidade de analisar cientificamente as normas constitucionais que regulam as instituições processuais” [“Todavía más reciente es la disciplina que hemos llamado derecho constitucional procesal, como aquella rama del derecho constitucional que se ocupa del estudio sistemático de los conceptos, categorías e instituciones procesales consagradas por las disposiciones de la ley fundamental, y en cuya creación debemos destacar, como lo hemos sostenido a lo largo de este trabajo, el pensamiento del ilustre procesalista uruguayo Eduardo J. Couture, quien fue uno de los primeros juristas no sólo latinoamericanos, sino en el ámbito mundial, que advirtió la necesidad de analizar científicamente las normas constitucionales que regulan las instituciones procesales”]. No Brasil, a teoria constitucionalista do processo foi desenvolvida pioneiramente por José Alfredo de Oliveira Baracho – Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 147 COUTURE, 2004, p. 125: “No existe una teoria general de la tutela constitucional del proceso, en el sentido de enumeración conclusiva de soluciones. La tesis sentada para un derecho positivo, puede no tener validez para otro. En todo caso, esta teoría consiste en determinar la relación entre el ámbito de validez de una Constitución, en sentido positiv, y la forma dada a un proceso por una ley dictada dentro de ese mismo derecho positivo”. 148 ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 7: “Le norme ed i principi costituzionali riguardanti l’esercizio della funzione giurisdizionale, se considerati nella loro complessità, consentono all’interprete di disegnare un vero e proprio schema generale di processo, suscettibile di formare l’oggetto di una esposizione unitaria”. 87 infraconstitucionais, de modo que os procedimentos criados em desacordo com os princípios constitucionais não encontram validade no ordenamento jurídico: “A expansividade, consiste na sua [do modelo constitucional de processo] idoneidade (devido à posição primária das normas constitucionais na hierarquia das fontes) para condicionar a fisionomia dos procedimentos jurisdicionais singulares introduzidos pelo legislador ordinário, a qual (fisionomia) deve ser, todavia, compatível com os traços daquele modelo” (ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 9).149 A expansividade, pode-se dizer, é o desenvolvimento da idéia de tutela constitucional do processo, preconizada por Couture. Andolina e Vignera ainda destacam duas outras características do modelo constitucional do processo: a variabilidade e a perfectibilidade. A primeira informa que os procedimentos criados pelo legislador podem atender de várias maneiras ao modelo constitucional de processo, segundo os escopos buscados. A segunda quer dizer que o legislador pode aperfeiçoar o modelo constitucional de processo, construindo procedimentos caracterizados por garantias e institutos desconhecidos pelo modelo constitucional (cf. ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 9). O ponto mais vulnerável dessa teoria já havia sido apontado por Couture. Com efeito, a análise do modelo constitucional de processo é feita a partir de um ordenamento jurídico positivo. Parte-se de uma Constituição concreta para traçar o modelo constitucional de processo. Daí a dificuldade de Couture para elaborar uma teoria geral da tutela constitucional do processo; o que vale para um ordenamento jurídico pode não valer para outro. Conclui-se, pois, que podem faltar princípios importantes no modelo constitucional de processo. Em confronto com a teoria fazzalariana, por exemplo, poderia faltar o próprio processo, caso o princípio do contraditório não fizesse parte da Constituição. Isso dificulta o aproveitamento dessa teoria para encaminhar uma teoria do discurso jurídico, na medida em que esta ficaria refém das experiências históricas de cada ordenamento jurídico. No entanto, a teoria do modelo constitucional do processo fornece alguns elementos importantes para se compreender a institucionalização dos direitos processuais e o modo pelo qual esses direitos influenciam a construção dos procedimentos infraconstitucionais. Sabe-se, depois das teorias constitucionalistas do processo, de Couture a Andolina e Vignera, passando por Fix Zamudio 149 ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 9: “a) nella espansività, consistente nella sua idoneità (conseguente alla posizione primaria delle norme costituzionali nella gerarchia delle fonti) a condizionare la fisionomia dei singoli procedimenti giurisdizionali introdotti dal legislatore ordinario, la quale (fisionomia) deve essere comunque compatibile coi connotati di quel modello”. 88 e Baracho, que os princípios processuais, regentes da estrutura procedimental, devem ter status constitucional; segundo, pela hierarquia das normas constitucionais, tais princípios ganham uma característica de expansividade, o que obriga o legislador a ter em conta esses princípios como marco teórico para a construção dos procedimentos infraconstitucionais. Aproveitando alguns dos elementos das teorias de Fazzalari e do modelo constitucional do processo, Rosemiro Pereira Leal propôs uma teoria neo-institucionalista do processo para tentar solucionar alguns dos problemas deixados pelas outras teorias. A teoria neo-institucionalista não utiliza o termo instituição no sentido de conjunto de condutas sociais estabilizadas; instituição é tratada por essa teoria como um conjunto de princípios e institutos jurídicos, acolhidos pelo texto constitucional, que se aproximam por correlações lógicas.150 Os princípios institutivos do processo, para essa teoria, seriam o contraditório, a ampla defesa e a isonomia. Tais princípios serviriam de marco teórico para a formação da vontade e opinião políticas. Daí o comprometimento radical da teoria neo-institucionalista com a teoria da democracia, pois a teoria neo-institucionalista proíbe a criação, modificação e aplicação do direito fora dos marcos do contraditório, isonomia e ampla defesa. Logo, esses princípios constitucionais institutivos têm incidência sobre os procedimentos da infraconstitucionalidade, determinando a estruturação de todos os procedimentos, cujos provimentos terão repercussão na esfera de direitos dos cidadãos. Impõe-se, assim, um devido processo à própria Constituição, como marco de legitimação da ordem constitucional; por sua vez, a Constituição deve recepcionar os princípios institutivos do processo, articulando, assim, o devido processo constitucional, que se expande para a infraconstitucionalidade, na forma de um devido processo legal.151 Nas palavras do autor da teoria neo-institucionalista: 150 Pode-se extrair da obra de Rosemiro Leal as seguintes indicações de seu pensamento sobre as instituições: “Achamos melhor começar pelas instituições do Direito, uma vez que entendemos que as instituições são agrupamentos de institutos jurídicos e estes, por sua vez, reúnem, em classes bem definidas, os princípios, as regras e as normas” (2005(b), p. 7). “Basta-nos que o termo instituição venha acompanhado de uma conotação procedimental-dialética e que implique um referente significativo objetivado, para que dele nos utilizemos na acepção que lhe queremos transmitir neste trabalho” (2005(b), p. 8). “As instituições jurídicas, como súmula estrutural do princípio, regra, norma e dos institutos jurídicos, aglutinam-se, em suas múltiplas modalidades, para criarem pelo Direito Formulado o discurso básico do ordenamento jurídico nacional” (2005(b), p. 10). 151 Aqui, seguimos a lição de André Cordeiro Leal (2003, p. 17): “Se acatarmos que há um devido processo constitucional como matriz principiológica a vincular o exercício legítimo da jurisdição, o devido processo legal (entendo esse como necessária oferta de modelos procedimentais pela lei) só será observado se os modelos apresentados possibilitarem a efetiva participação das partes mediante observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia na construção dos procedimentos”. 89 “Como já dissemos, a palavra instituição em nossa teoria não tem o significado que lhe deram Hauriou e Guasp, ou que lhe possam dar os cientistas sociais e econômicos antigos ou modernos. É que instituição não é aqui utilizada no sentido de bloco de condutas aleatoriamente construído pelas supostas leis naturais da sociologia ou da economia. Recebe, em nossa teoria, a acepção de conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo Texto Constitucional com a denominação jurídica de Processo, cuja característica é assegurar, pelos princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia, do direito ao advogado e do livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infraconstitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal) como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados” (LEAL, 2005, p. 100). O que diferencia a teoria neo-institucionalista do processo das teorias constitucionalistas é o fato de que estas não esclarecem o marco da constitucionalidade que adotam. Como se disse, uma ordem Constitucional autoritária, ainda assim pode ter um modelo constitucional do processo. Não há, assim, um comprometimento com uma teoria da democracia. Ao passo que a teoria neo-institucionalista do processo vai exigir que os princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa sejam balizadores (marco teórico, referencial para formação da vontade e da opinião políticas) da ordem constitucional. A teoria neo-institucionalista não se coaduna, portanto, com qualquer teoria da Constituição (cf. LEAL, 2005, p. 104-105). Ao contrário, ela delineia uma teoria da constitucionalidade democrática: “Infere-se que uma teoria neo-institucionalista do processo só é compreensível por uma teoria constitucional de direito democrático de bases legitimantes na cidadania (soberania popular). Como veremos, a instituição do processo constitucionalizado é referente jurídico-discursivo de estruturação dos procedimentos (judiciais, legiferantes e administrativos), de tal modo que os provimentos (decisões, leis e sentenças decorrentes) resultem de compartilhamento dialógico-processual na Comunidade Jurídica, ao longo da criação, da alteração, do reconhecimento e da aplicação de direitos, e não de estruturas de poderes do autoritarismo sistêmico dos órgãos dirigentes, legiferantes e judicantes de um Estado ou Comunidade” (LEAL, 2005, p. 100). Com isso, nota-se que a categoria geral de direito à participação, como trabalhada por Habermas na sua quarta categoria de direitos, demanda uma teoria do processo adequada para caracterizar, nos termos do princípio da democracia (De), os procedimentos pelos quais um tal direito pode ser exercido. Isso também ocorre com a terceira categoria de direitos, referente à acionabilidade dos direitos. Na verdade, pode-se dizer que uma teoria do processo adequada é uma exigência dos discursos de justificação e de aplicação. Tanto a criação do direito, quanto a sua aplicação, demandam um referencial jurídico que possibilite a participação dos envolvidos na preparação das decisões. Uma teoria do processo como 90 relação jurídica não preenche as exigências da teoria discursiva habermasiana. Isso porque a teoria do processo como relação jurídica permite decisões tomadas isoladamente pelo julgador. Essa teoria talvez fosse compatível com os padrões decisórios do positivismo jurídico, mas não com uma teoria discursiva do direito, cujos padrões decisórios exigem a interação argumentativa dos envolvidos. Do mesmo modo, as teorias constitucionalistas, que não guardam comprometimento com a teoria da democracia, mas com o direito positivo que pode provir de uma constitucionalidade indemarcada, sem parâmetros processuaisdiscursivos, também não pode garantir a instauração de procedimentos que permitam a vinculação das decisões ao debate das partes no decorrer do procedimento. Conclui-se que, sem o referencial dos princípios institutivos do processo (contraditório, isonomia e ampla defesa), não é possível articular um procedimento que permita a participação dos envolvidos, tal como exige a teoria discursiva do direito de Habermas. Assim, pode-se dizer que a teoria neo-institucionalista do processo completa a passagem do princípio do discurso (D) para o princípio da democracia (De), porque assegura da maneira mais aproximada possível os pressupostos comunicativos dos discursos de justificação.152 Pode-se, então, concluir com Rosemiro Leal: “É que, no paradigma do direito democrático, o eixo das decisões não se encontra na razão imediata e prescritiva do julgador, mas se constrói no espaço procedimental da razão discursiva (linguagem) egressa da inter-relacionalidade normativa (conexão) do ordenamento jurídico obtido a partir da teoria da Constituição democrática. Nesse sentido, os argumentos de fundamentação do direito a legitimar pretensões de validade são retirados da teoria processual que se concebe pela isonomia entre produtores e destinatários das normas jurídicas de tal modo que, no apontamento incessante de falibilidade do sistema jurídico no espaço procedimental acessível a todos, os destinatários das normas se reconhecem autores da produção do direito” (LEAL, 2002(b), p. 183-184). O mesmo ocorre com os discursos de aplicação. Sem o contraditório, a ampla defesa e a isonomia, não há falar em imparcialidade do julgador. Porém, é preciso explicitar como é que esses princípios se articulam, de modo a vincular a decisão do juiz à argumentação das partes e, com isso, possibilitar a compreensão da decisão como um empreendimento comum, que não se coaduna com unilateralismos nem com decisões baseadas na autoridade e na tradição. 152 Devido às limitações do procedimento legislativo, outras exigências deverão ser cumpridas para garantir a aceitabilidade racional das normas promulgadas. Tais exigências dizem respeito ao controle de constitucionalidade e serão brevemente analisadas no item 12 infra. 91 11 – O CONTRADITÓRIO E A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES Eduardo Couture já havia ressaltado a importância da fundamentação das decisões judiciais. Couture via na exigência de fundamentação um dever administrativo do magistrado. Só a fundamentação permitiria às partes fiscalizar a atividade intelectual do juiz para saber em que bases a decisão foi tomada, se aplicou uma norma do ordenamento, levando em conta as circunstâncias do caso particular ou se simplesmente resultou de uma vontade autoritária do julgador: “A motivação da decisão constitui um dever administrativo do magistrado. A lei lho impõe como uma maneira de fiscalizar sua atividade intelectual frente ao caso, para o efeito de poder-se comprovar que sua decisão é um ato reflexivo, emanado de um estudo das circunstâncias particulares, e não um ato discricionário de sua vontade autoritária” (COUTURE, 2004, p. 234).153 A fundamentação das decisões tem, pois, importância, no sentido de permitir às partes fiscalizar os caminhos percorridos pelo julgador para chegar à decisão. Essa fiscalização deve pressupor um parâmetro para a decisão. Não há que se falar em fiscalização se o juiz puder percorrer livremente suas convicções e chegar a qualquer decisão, ou àquela decisão que ele, juiz, repute a mais correta. Se assim for, a decisão é livre, e as partes não têm direito a nenhuma decisão específica, logo, não há o que fiscalizar. Portanto, só é possível a fiscalização, no sentido de apontar falhas na decisão ou de dirigir-lhe críticas, se houver, em contrapartida, um dever de consistência do juiz, quer dizer, se o juiz estiver obrigado a decidir conforme as normas do ordenamento jurídico vigente. Mas será que basta, então, que o juiz exponha o itinerário de seu pensamento para que uma decisão se considere fundamentada? Enfim, o que é que o juiz deve levar em conta na sua decisão? O que conta como fundamento para uma decisão, quando não se exige apenas consistência mas também aceitabilidade racional das decisões? 153 COUTURE, 2004, p. 234: “La motivación del fallo constituye un deber administrativo del magistrado. La ley se lo impone como una manera de fiscalizar su actividad intelectual frente al caso, a los efectos de poderse comprobar que su decisíón es un acto reflexivo, emanado de un estudio de las circunstancias particulares, y no un acto discrecional de su voluntad autoritaria”. 92 Já foi visto a importância do princípio do contraditório. A possibilidade de debate entre as partes é algo constitutivo do processo, seja para Fazzalari ou para Rosemiro Leal. Mesmo os instrumentalistas mais ferrenhos estão dispostos a ver no contraditório a marca distintiva do processo.154 Mas de nada adiantaria o contraditório entre as partes se o juiz pudesse, ao final, desconsiderar aquilo que foi debatido e tomar a decisão que lhe conviesse, ainda que tente manter a adequabilidade, pela consideração da descrição completa das circunstâncias de fato e da coerência normativa, e fundamente ao final sua decisão, expondo a seqüência lógica que o levou a decidir daquela maneira.155 Alexy percebeu o problema,156 mas não conseguiu resolvê-lo, uma vez que a ponderação de comandos otimizáveis não exige, necessariamente, o debate dos envolvidos.157 Pode-se dizer, portanto, que o debate das partes no iter procedimental não pode ficar reduzido a um papel heurístico, no sentido de que as partes buscam com seus argumentos somente influenciar o julgador, sem no entanto que esse precise estar atento a tais argumentos. Como afirmou André Cordeiro Leal (cf. 2002, p. 104), se o pronunciamento das partes não for efetivamente considerado, quando da prolatação da decisão, há negação de vigência aos princípios constitucionais do processo. Partindo dessa premissa, pode-se concluir que, novamente com André Leal (cf. 2002, p. 104-105), uma 154 Cândido Dinamarco, por exemplo, distingue o processo do procedimento do mesmo modo que Fazzalari, ainda que isso leve a um sincretismo inconciliável entre as teorias de Fazzalari e Bülow: “O que caracteriza fundamentalmente o processo é a celebração contraditória do procedimento, assegurada a participação dos interessados mediante exercício das faculdades e poderes integrantes da relação jurídica processual” (2003, p. 79). Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 132) argumenta contra a possibilidade de conciliação entre as duas teorias, como quer Dinamarco: “O conceito de relação jurídica é o de vínculo de exigibilidade, de subordinação, de supra e infra-ordenação, de sujeição. Uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamente oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia é liberdade assegurada. Se o contraditório é garantia de simétrica igualdade de participação no processo, como conciliá-lo com a categoria da relação jurídica? Os conceitos de garantia e de vínculo de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos. O processo como relação jurídica e como procedimento realizado em contraditório entre as partes não se encontram no mesmo quadro, e não há ponto de identificação entre eles que permita sua unificação conceitual”. 155 Isto é o que parece estar expresso no artigo 131, do Código de Processo Civil Brasileiro, sua redação deixa entender que o juiz pode apreciar livremente o debate das partes e pode-se valer, para sua decisão, até de circunstâncias que não foram alegadas, quer dizer, pode em parte desconsiderar o debate desde que fundamente suas convicções – “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”. André Cordeiro Leal já denunciou a inconstitucionalidade desse dispositivo legal (2002, p. 106 et seq.). 156 Ao final do pós-fácil da sua Teoria da argumentação jurídica, Alexy afirma (2001, p. 324): “Quando o juiz deixa as partes falar, porém não participa da brincadeira, na medida em que no final decide de forma a fazer valer o direito como ele o entende, ele trata as partes como pessoas que não entenderam o que é um processo jurídico, e que, portanto, não podem participar dele. Isso mostra que a argumentação em juízo não só deve ser interpretada no sentido de uma teoria do discurso, mas também precisa ser interpretada dessa maneira”. 157 Basta perceber que a metodologia da ponderação se coaduna com a idéia de processo objetivo (processo sem partes), associada aos procedimentos de declaração de inconstitucionalidade, mormente aqueles que se fazem pela via concentrada. 93 decisão que não leve em conta o debate entre as partes não pode ser fundamentada no marco de ordenamento constitucional democrático, porque isso acarretaria violação ao princípio do contraditório. O próprio Habermas não percebeu isso e, de fato, chega a afirmar: “Em suma, pode-se afirmar que os códigos de procedimento fornecem regras relativamente estritas para a introdução de evidências relativas aos fatos. Tais códigos definem, então, os limites dentro dos quais as partes podem lidar estrategicamente com o direito. O discurso jurídico do tribunal, por outro lado, é desenvolvido em um vácuo [vacuum] jurídico-procedimental, de modo que o ato de alcançar um julgamento é deixado à habilidade profissional do juiz” (HABERMAS, 1996, p. 237).158 Um tal posicionamento não leva adiante a proposta de Günther, defendida com algumas ressalvas também por Habermas, de conceber a aplicação de normas jurídicas como discurso. A dificuldade de interpretar o papel assumido pelo juiz leva a um hiato entre o discurso jurídico de aplicação e a argumentação jurídica que efetivamente ocorre perante os tribunais. Esse problema, porém, encontra uma resposta na hipótese, levantada por André Cordeiro Leal, de vinculação entre o contraditório e a fundamentação das decisões: “Mais do que garantia de participação das partes em simétrica paridade, portanto, o contraditório deve efetivamente ser entrelaçado com o princípio (requisito) da fundamentação das decisões de forma a gerar bases argumentativas acerca dos fatos e do direito debatido para a motivação das decisões” (LEAL, 2002(a), p. 105). Com isso, a argumentação dos tribunais não pode desenvolver-se em um vacuum do direito processual. De fato, ela está completamente vinculada ao procedimento, pois só serve, como fundamento decisório, aquelas afirmações que foram discutidas em contraditório entre as partes: “É que somente se poderia imaginar presentes nos autos os fatos que já passaram pelo crivo do contraditório. Eles só chegam aos autos mediante reconstrução pelos destinatários do ato decisional. Por conseguinte, o juiz tem que se manter adstrito à prova dos autos. Não qualquer prova, mas somente aquela que tenha sido compartilhadamente produzida pelas próprias partes, em consonância com os meios legalmente previstos” (LEAL, 2002(a), p. 107). Isso contribui para uma interpretação da argumentação judicial como um discurso de aplicação, como proposto por Günther. Percebe-se que as questões relativas aos fatos estão sob responsabilidade das partes. Portanto, a descrição completa da situação fica restrita 158 HABERMAS, 1996, p. 237: “In summary, one can say that codes of procedure provide relatively strict rules for the introduction of evidence regarding what took place. Such codes thus define the bounds within which parties can deal with the law strategically. The legal discourse of the court, on the other hand, is played out in a procedural-legal vacuum, so that reaching a judgment is left up to the judge’s professional ability”. 94 aquilo que foi alegado e provado pelas partes. O fato de alguma circunstância relevante, seja para o reconhecimento do direito do autor, seja para a defesa do réu, não ter sido alegada, e assim ficar de fora da avaliação do juiz, é de inteira responsabilidade das partes. Não que o juiz não possa solicitar a produção de alguma prova, relativa a alguma das alegações das partes, seja para confirmar ou refutar a alegação, desde que isso se faça pelos meios de prova previstos em lei, os quais devem observar o contraditório. O elemento de prova assim colhido passa a fazer parte dos autos e, desse modo, fica sujeito à argumentação das partes, que podem então debatê-lo. Se o juiz só pode decidir com base naquilo que foi objeto de debate das partes, está claro que as partes não podem restringir-se ao debate dos fatos. Não tem mais lugar o iura novit curia ou o da mihi factum dabo tibi ius. Na própria seleção dos fatos, as partes já devem estar apoiadas em normas (isso também porque sua pretensão deve estar apoiada em norma prévia do ordenamento jurídico – é preciso indicar a causa de pedir próxima). Assim, as partes devem propor uma solução ao caso, a qual pretendem ver acolhida pelo juiz, solução essa que já deve levar em conta à completa descrição dos fatos e a coerência normativa. Alguma falha nessa construção, seja uma descrição parcial dos fatos ou a consideração unilateral de uma norma, abre espaço para uma objeção da contraparte (porque não considerar a circunstância x, que pode ser comprovada pelo meio de prova p, e que levaria a aplicação da norma n, a qual ainda não foi considerada).159 Por outro lado, não se veda ao juiz que suscite uma “terceira via” (terza via), quer dizer, que indique a possibilidade de aplicação de uma outra norma não alegada pelas partes, desde que ele submeta ao debate dos interessados a norma que ele entende aplicável à situação. Excetuada essa hipótese, a terceira via fica proibida.160 Desse modo, a argumentação das partes é co-extensiva à decisão do juiz, de modo que há um câmbio no conceito de autoria do ato decisório. A decisão não é mais um ato 159 Basta ter em mente a obrigação do autor de alegar e provar o fato constitutivo do seu direito (fatos que, tendo em vista uma determinada norma, conduz a uma decisão que assegura um direito do autor) e a obrigação do réu de alegar e provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do réu (CPC, art. 333, incisos I e II). 160 Note-se que a Convenção Européia, como anota Giuseppe Tarzia, proíbe em seu artigo 6º o chamado juízo de terceira via, que venha surpreender as partes, pois nesse caso estaria violada a garantia de paridade entre as partes. Tarzia anota, ainda, que há autores que já defendem a inconstitucionalidade por omissão dos códigos que não imponham ao juiz a obrigação de submeter à prévia discussão das partes, não somente a discussão das provas determinadas pelo juiz, mas também os argumentos de prova que ele pretenda utilizar, os fatos que considera provados ou notórios e as presunções simples que efetue (2001, p. 166-167). 95 isolado, mas se insere no contexto argumentativo do procedimento. Logo, as partes são coautoras do provimento, já que o juiz não pode reivindicar para si todo o discurso argumentativo desenvolvido durante o procedimento. Com isso, esclarece-se, outrossim, a idéia inicial de Fazzalari de que os interessados participem na preparação do provimento final. De tudo isso, pode-se perceber, porém, que o discurso jurídico de aplicação, tal como quer Günther, permanece restrito à avaliação da adequabilidade de normas às circunstâncias de fato. Toda a argumentação das partes se desenvolve nesse sentido. Assim, pode-se concluir que uma teoria adequada do processo pode implementar satisfatoriamente, no plano institucional, um discurso jurídico de aplicação, que assegure a legitimidade das decisões judiciais. Evidentemente, a racionalidade completa dessa decisão ainda estará ligada à legitimidade do direito positivo, uma vez que no discurso de aplicação a validade das normas não é discutida. Mas será que, nos discursos jurídicos, a tematização da validade das normas estaria restrita ao procedimento legislativo? Será que isso não imporia uma restrição aos pressupostos do discurso de justificação, já que no procedimento legislativo não se conta com a participação direta de todos os afetados, mas somente de seus representantes? Na seqüência, discute-se alguns aspectos desses problemas. 12 – NOTAS SOBRE O DISCURSO DE APLICAÇÃO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Como bem afirma Marcelo Cattoni (2004(b), p. 451-452, nota 14), não se pode exigir do processo legislativo, para que seja democrático, que seja feito sob bases plebicitárias, com a efetiva participação de todos aqueles que serão afetados pelo provimento, como queria por exemplo Rousseau. A participação de todos os afetados na preparação de cada ato administrativo, outrossim, inviabilizaria a atividade administrativa. Será, então, que o caráter democrático do direito, no caso da atividade legislativa e administrativa, estaria restrito à eleição de representantes? Será que a discussão das normas jurídicas, uma vez promulgadas, assim como do ato administrativo, uma vez editado, fica preclusa aos cidadãos? O controle de constitucionalidade das leis desempenha um papel relevante no tratamento dessas questões. 96 Em geral, o exercício do controle de constitucionalidade está a cargo do 161 Judiciário. A competência para declarar a inconstitucionalidade de normas pode estar concentrada em um único tribunal ou corte constitucional (sistema concentrado ou austríaco); ou pode estar difusa, atribuída a todos os juízes (sistema difuso ou americano). Seguindo a distinção entre discurso de aplicação e discurso de justificação, proposta por Klaus Günther, pode-se dizer que, no direito, os discursos de aplicação estão vinculados à atividade administrativa e judicial, enquanto os discursos de justificação vinculam-se à atividade legislativa. Logo, o controle de constitucionalidade, onde estiver entregue ao judiciário, fará parte do discurso de aplicação e não do discurso de justificação. Assim, afasta-se qualquer competência legislativa (de criação de normas) que se queira atribuir aos órgãos judiciais encarregados do controle de constitucionalidade: “Estamos diante de uma diferença qualitativa e não meramente quantitativa: enquanto os discursos legislativos de justificação normativa se referem à validade das normas, nos termos das condições institucionais exigidas pelo princípio democrático, os discursos jurisdicionais de aplicação normativa se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso concreto, à luz de visões paradigmático-jurídicas que cobram reflexividade. No processo constitucional, não se trata de justificar a validade das normas jurídicas legislativas, mas sim de averiguar a constitucionalidade e a regularidade do processo legislativo, aplicando a Constituição. Há uma diferença inafastável do modo e da finalidade dos processos legislativo e jurisdicional constitucional” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004(b), p. 460-461).162 Para que se possa compreender a importância do controle de constitucionalidade para o problema da legitimidade das decisões judiciais, é preciso fazer algumas observações sobre a distinção entre legitimidade e validade das normas jurídicas. Com efeito, legitimidade e validade não se confundem. Pode-se dizer que, a partir do positivismo jurídico, a validade 161 Exceção feita ao chamado controle político (cf. CANOTILHO, 1998, p. 832), em que uma assembléia representativa fica encarregada de averiguar a compatibilidade de uma lei com a Constituição. Via de regra, o controle político é feito antes mesmo da lei ser promulgada (controle preventivo): “Não se trata, por um lado, de um controlo sobre normas válidas, mas sobre projectos de normas. Por outro lado, o tribunal ou órgão encarregado deste controlo não declara a nulidade de uma lei; propõe a reabertura do processo legislativo para eliminar eventuais inconstitucionalidades” (CANOTILHO, 1998, p. 836). O sistema de controle político predomina na França (cf. BARACHO, 1984, p. 287 et seq.). 162 Aroldo Plínio Gonçalves também parece sustentar esse ponto de vista (2000, p. 116): “Ademais, quando o controle da constitucionalidade da lei é feito pela via judicial, como ocorre no sistema jurídico brasileiro, o pronunciamento da inconstitucionalidade da lei é o ato final de um processo, e a desconstituição da lei não se dá pelo método usual da revogação, que é próprio da ação do PODER LEGISLATIVO, mas pelo PODER JUDICIÁRIO, no exercício de sua função jurisdicional”. 97 diz respeito apenas ao modo pelo qual as normas jurídicas são criadas.163 No caso de Hart, por exemplo, uma norma é considerada válida se atende aos critérios estabelecidos pela regra de reconhecimento. Dessa perspectiva, a validade é essencialmente formal e não diz nada quanto à qualidade do direito, se democrático ou autoritário. Para exemplificar isso, basta pensar que a regra de reconhecimento poderia considerar como juridicamente válidas as normas editadas por uma junta militar. A legitimidade, por sua vez, reclama a consistência da norma infraconstitucional com a Constituição e a aceitabilidade racional, que se traduz na explicitação dos critérios de criação da norma. Nota-se, dessarte, que a legitimidade da norma pode ser questionada, ou porque o processo legislativo não foi atendido (os critérios de validade da norma jurídica não foram devidamente explicitados), ou porque o conteúdo daquela norma é incompatível com a ordem constitucional. Esse questionamento é feito pelos instrumentos de controle da constitucionalidade das normas, regidos pelo processo constitucional.164 Com isso, não é preciso pressupor, no discurso jurídico de aplicação, a legitimidade das normas. Assim, os discursos jurídicos de aplicação, que se fazem pelo marco da teoria do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia), estão aptos a tematizar a legitimidade das normas jurídicas perante os conteúdos Constitucionais ou perante os princípios constitucionais do processo que informam a atividade legiferativa. Abre-se uma possibilidade de fiscalização dos provimentos legislativos, administrativos e mesmo judiciais, pelos destinatários desses provimentos. Nenhum provimento, portanto, seja legislativo, administrativo ou judicial, está imune ao juízo de constitucionalidade:165 163 Max Weber (2002, p. 707) deu expressão a esse pensamento em sua concepção de dominação legal, cuja “idéia básica é: qualquer direito pode ser criado e modificado por meio de um estatuto sancionado corretamente quanto à forma” [“Su idea básica es: que cualquer derecho puede crearse y modificarse por medio de un estatuto sancionado correctamente en cuanto a la forma”]. 164 Na lição de Baracho (1984, p. 347): “O Processo Constitucional move-se em abstrato, não para regular um direito, mas sim estabelecer a legitimidade de uma lei, fonte mesma do direito. Não fixa uma situação constitutiva, não realiza uma composição jurídica, comum às sentenças do juízo ordinário, mas limita-se a verificar a conformidade de uma norma vigente com a Constituição”. 165 Nesse sentido, há que se mencionar a proposta de André Del Negri (2003, p. 105) de um controle de constitucionalidade amplo, feito no decorrer do procedimento legislativo. Segundo o autor, o direito-de-ação, tal como foi estabelecido na Constituição brasileira de 1988, já permitiria o ingresso de ações declaratórias de inconstitucionalidade, por via principal, contra projetos de lei (na iminência do provimento legislativo causar dano ou estar em desacordo com a Constituição): “O controle preventivo, nos moldes do denominado Conseil Constitutionnel dos franceses, como uma etapa necessária dentro do próprio processo legislativo, em substituição às comissões das Casas legislativas e do veto presidencial já está, a nosso juízo, autorizado pelo direito-de-ação incondicionado do art. 5º, XXXV da CR/88. Com relação a essa hipótese, há de se confinar o controle preventivo de constitucionalidade ao exame do Judiciário (art. 5º, XXXV, da CR/88) pela fiscalização dos pressupostos e condições do procedimento legislativo e à observância do devido processo constitucional”. 98 “O Devido Processo Constitucional é que é jurisdicional, porque o PROCESSO é que cria e rege a dicção procedimental do direito, cabendo ao juízo ditar o direito pela escritura da lei no provimento judicial. Mesmo o controle judicial de constitucionalidade há de se fazer pelo devido processo processo constitucional, porque a tutela jurisdicional da constitucionalidade é pela Jurisdição Constitucional da Lei democrática e não da autoridade (poder) judicacional (decisória) dos juízes” (LEAL, 2001, p. 17). Daí se percebe que os meios para o controle de constitucionalidade devem estar disponíveis a qualquer um do povo, pois o controle de constitucionalidade completa a participação dos interessados na preparação dos provimentos, permitindo que os seus destinatários possam ser vistos também como seus co-autores, tal como preceitua o princípio da democracia habermasiano. Assim, podem ser questionados, quanto à sua compatibilidade com a Constituição, mesmo os provimentos para os quais não concorreram diretamente, em sua preparação, aqueles que serão afetados. Aqui é necessário reconhecer a importância do controle de constitucionalidade difuso para uma concepção de direito democrático.166 Pois, é fundamental que estejam disponíveis, em todo caso de aplicação do direito, os meios para o controle de constitucionalidade (legitimação irrestrita),167 uma vez que a reconstrução interpretativa do ordenamento jurídico deverá se dar diante das circunstâncias do caso concreto para se averiguar a adequabilidade das normas aplicáveis prima facie. A constitucionalidade das normas aplicáveis prima facie diante das circunstâncias do caso concreto é elemento indispensável de sua adequabilidade. Por outro lado, não se pode simplesmente pressupor a legitimidade das normas, como se a sua constitucionalidade também já estivesse dada de antemão. Com isso, forma-se pelo processo um espaço procedimental para fiscalização constante do ordenamento jurídico, diante de reconstruções paradigmáticas do direito constitucional: “Nas democracias, é o devido processo o medium lingüístico inafastável à discussão permanente dos conteúdos de falibilidade e efetividade de todo o ordenamento jurídico, só cabendo às Cortes Constitucionais, se existirem, a observância de valores e conceitos que estejam juridicamente normatizados e abertos a uma fiscalização procedimental legitimada a todos (concreta e abstrata) pelo devido processo legal” (LEAL, 2002(b), p. 133). 166 Cumpre esclarecer que o controle de constitucionalidade pode ser classificado em concentrado e difuso, segundo haja um órgão específico para essa função (Corte Constitucional) ou possa ela ser exercida por qualquer juiz; o controle pode, ainda, ser classificado em incidental e principal, quando seja suscitado como incidente no curso de um procedimento ou seja objeto principal da demanda; pode ser ainda abstrato ou concreto, seja a impugnação de inconstitucionalidade feita independentemente de qualquer litígio concreto ou se deve ser feita diante das circunstâncias do caso particular (CANOTILHO, 1998, p. 832-835). 167 Tratada por parte dos constitucionalistas como legitimação universal – cf. CANOTILHO, 1998, p. 836. 99 Por fim, cabe uma última crítica às súmulas vinculantes. Do ponto de vista dos discursos de aplicação, para se aplicar uma norma é preciso considerar todas as circunstâncias da situação de fato. Isso só é possível diante do caso particular, no qual, como se viu, a descrição dos fatos, as circunstâncias relevantes a considerar, deverão ser trazidas aos autos através das provas, o que fica fundamentalmente a cargo das partes. Uma súmula representaria apenas mais uma norma a ser aplicada, cuja adequabilidade deveria ser aferida nos discursos de aplicação. Os mecanismos de controle de constitucionalidade deveriam estar disponíveis em relação às súmulas, porque diante do caso concreto uma determinada interpretação da súmula poderia conduzir a um resultado inconstitucional.168 Diante da descrição completa da situação, uma determinada interpretação da norma pode-se mostrar inconstitucional e, portanto, assim pode ser declarada. observado no Brasil. Porém, não é isso que se tem As orientações legislativas mais recentes indicam que as súmulas tendem a uma aplicação mecânica, que exclui a consideração de todas as circunstâncias da situação. Ocorrendo as circunstâncias descritas na súmula, sua aplicação estaria pré- determinada, sem necessidade de cogitar das demais particularidades do caso. Manejadas dessa maneira, as súmulas impedem o discurso sobre a adequabilidade da norma e, com isso, inviabilizam uma aplicação legítima do direito. Isso sem contar a forma como são criadas, no âmbito do judiciário, sem qualquer participação dos interessados. Não há, portanto, pode-se concluir, nenhum sistema democrático que conviva bem com súmulas vinculantes, da forma como essas foram concebidas e institucionalizadas no Brasil.169 168 A declaração parcial de inconstitucionalidade e a interpretação conforme a constituição não são estranhas ao direito brasileiro – vide o parágrafo único do artigo 28, da Lei 9.868/1999. 169 Sobre este assunto, é preciso reportar às últimas alterações, introduzidas no Código de Processo Civil pelas Leis n.º 11.276 e 11.277, ambas de 7 de fevereiro de 2006. A primeira trouxe a canhestra previsão de uma sentença de improcedência do pedido (decisão de mérito), sem a citação do réu, quando a questão for apenas de direito e já houver sido decido outro “caso idêntico” no mesmo sentido. Obviamente, essa alteração destruiu a discursividade nesses casos, seja por desconsiderar que não existem casos idênticos, seja por substituir o debate em torno da coerência normativa por uma imposição decisória do juiz. Combinado a isso, a segunda das leis mencionadas subtraiu a possibilidade de qualquer discussão sobre a adequação de uma súmula ao caso particular ao vedar o recurso de apelação contra decisão fundada em súmula. Lamentavelmente, o direito brasileiro distancia-se cada vez mais da compreensão democrática de sua própria Constituição. 100 CONCLUSÕES Diante do exposto, pode-se chegar às seguintes conclusões: 1 – O problema da legitimidade das decisões judiciais, do ponto de vista democrático, pode ser formulado da seguinte forma: como são possíveis decisões ao mesmo tempo consistentes com o ordenamento jurídico vigente e racionalmente aceitáveis? 2 – O positivismo jurídico, versão de Hart, admite que, nos casos difíceis (quando não há norma regulamentando ou quando a norma que regulamenta o caso não fornece uma resposta unívoca), o juiz tem um poder legislativo intersticial, limitado por seu escrúpulo e por seu caráter. Em suma, nos casos difíceis o juiz possui discricionariedade para decidir. 3 – O direito como integridade, proposto por Dworkin, sustenta que os juízes não criam direito ao decidir casos difíceis. Os juízes devem se esforçar em determinar o direito das partes que é sempre pré-existente. Isso porque os juízes devem decidir com base em princípios (normas que definem direitos individuais) e não em políticas (metas coletivas). Os princípios não podem ser identificados por uma regra de reconhecimento. Ao contrário, dependem de um senso de adequabilidade dos profissionais do direito e do público, assim como de suporte institucional. Na aplicação dos princípios, o juiz deve, por determinação do princípio de responsabilidade, desenvolver uma teoria que permita compreender o ordenamento jurídico como um todo coerente. A coerência deve ser buscada entre as normas que a sociedade faz viger no presente. Parte da história institucional que o juiz deve interpretar terá de ser vista como um erro na elaboração dessa teoria. A coerência dessa teoria deve ser forte o suficiente para permitir para cada caso apenas uma resposta correta. 4 – Nem o positivismo, nem o direito como integridade fornecem uma resposta adequada ao problema da legitimidade das decisões judiciais. O primeiro, porque a discricionariedade não garante nem a consistência nem a aceitabilidade racional. O segundo, porque, para garantir a consistência, Dworkin fez demasiadas exigências ideais à figura do juiz. O resultado foi uma centralização da decisão na pessoa do juiz, que não se deixa criticar pelos envolvidos. Uma decisão construída assim, de maneira monológica, não atende ao 101 critério de aceitabilidade racional, por não disponibilizar à critica das partes os critérios e parâmetros decisórios. 5 – Klaus Günther buscou aliviar a teoria de Dworkin de seus pressupostos ideais irrealizáveis. Sua teoria baseia-se na separação entre discursos de aplicação e discursos de justificação. Estes tratam da consideração recíproca dos interesses, como teste para universalização de normas (aceitabilidade por todos os participantes do discurso). Aquele completa a especificação do princípio da imparcialidade, exigindo, no momento da aplicação, que seja considerada a descrição completa da situação e a coerência normativa. A aplicação de normas é regida, então, por uma argumentação de adequabilidade, que tem o objetivo de garantir a imparcialidade. Assim, seria possível garantir consistência (coerência normativa) e aceitabilidade racional (consideração da descrição completa da situação). 6 – Günther, no entanto, concebe a argumentação jurídica como caso especial de discurso moral de aplicação. Isso porque faltaria ao direito o discurso de universalização para justificação das normas. O direito deve, assim, pressupor a validade das normas jurídicas e garantir, no plano institucional, condições para que se desenvolva a argumentação de adequabilidade para aplicação imparcial das normas pressupostamente válidas. A tese do caso especial sofre a crítica de Habermas, o qual a entende como desencaminhadora por conter conotações de direito natural. A tese do caso especial sugeriria uma subordinação do direito à moral, o que não acontece, desde que mantido o paralelismo entre os dois códigos de linguagem. O direito, na visão de Habermas, não se reporta em momento algum à moral, mas sim ao direito legitimamente criado. 7 – Mas Günher, assim como Habermas, não percebem que a implementação de uma teoria do discurso no direito exige uma teoria adequada do processo jurisdicional. Aqui a experiência histórica de cada sistema não oferece ajuda. Para corroborar isso, basta perceber que a teoria do processo de maior repercussão na história do direito, a teoria do processo como relação jurídica, não atende aos pressupostos comunicativos da teoria do discurso. Essa teoria foi criada com o objetivo de reforçar o controle do juiz sobre o processo e conseqüentemente sobre o direito das partes. Essa teoria não estabelece uma vinculação necessária entre a argumentação das partes e a decisão do juiz. Logo, dificilmente se poderia conceber a aplicação de normas como discurso (aplicação dependente de uma interação argumentativa entre os envolvidos) a partir da teoria do processo como relação jurídica. 102 8 – A partir dos estudos de Elio Fazzalari, a teoria do processo ganhou um campo de estudo próprio, o qual deixou de gravitar em torno da jurisdição. O estudo do processo como balizador da jurisdição começa a ganhar preeminência. Fazzalari concebe o processo como procedimento em contraditório entre as partes na preparação do provimento final. Procedimento e processo são nitidamente distinguidos e o estudo do processo volta-se para os princípios que estruturam o procedimento. Com as teorias constitucionalistas do processo, foi possível compreender que os princípios processuais deveriam ter estatura constitucional. Isso lhes garante a expansividade necessária para determinar a estruturação dos procedimentos infraconstitucionais. 9 – Foi, no entanto, com Rosemiro Pereira Leal que se desenvolveu uma teoria Neo-Institucionalista do processo que exige a presença dos princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa como balizadores da formação da vontade e da opinião políticas. Essa teoria permitiu compreender como a participação dos interessados pode ser juridicamente assegurada, tanto no discurso de justificação (legislativo), quanto no discurso de aplicação (judicial e administrativo). Com isso, foi possível especificar a passagem do princípio do discurso para o princípio da democracia. Assim, pode-se explicar juridicamente como se dá a legitimidade do direito sem precisar de uma referência direta à moral. 10 – A teoria Neo-Institucionalista do processo possibilitou a André Cordeiro Leal entretecer o princípio do contraditório com a necessidade de fundamentação das decisões. O juiz não pode mais desconsiderar a argumentação das partes sob pena de negar vigência ao princípio constitucional do contraditório e, com isso, tornar inconstitucional sua decisão. Só pode servir como fundamento decisório aqueles argumentos que foram criticados e sustentados pelas partes. Isso possibilita reconstruir juridicamente o debate entre os interessados como uma argumentação de adequabilidade, tal como propõe Günther. Nestes moldes, a decisão judicial alcançaria consistência e aceitabilidade racional. 11 – A validade das normas jurídicas não precisa ser pressuposta nos discursos de aplicação. Ela pode ser tematizada pelos interessados através dos procedimentos de controle de constitucionalidade, sem que isso desmanche a distinção entre justificação e aplicação. Com isso, é possível assegurar a legitimidade do direito legislado, uma vez que é aberta a possibilidade de crítica da lei diante da Constituição, tanto diante do caso particular (controle difuso), quanto da lei em si (controle abstrato). A teoria Neo-Institucionalista do processo vai 103 exigir, nesse passo, uma legitimação ampla e irrestrita ao controle de constitucionalidade para a construção de uma sociedade democrática. 12 – Assim, é possível levantar uma primeira hipótese, a ser desenvolvida, repensada, criticada e mesmo refutada (para que soluções melhores sejam propostas), como resposta ao problema da legitimidade das decisões judiciais: uma decisão judicial é legítima, na medida em que o procedimento que a preparou tenha observado os princípios jurídicos da isonomia, da ampla defesa e do contraditório, possibilitando assim uma interação argumentativa, livre de coações externas, entre as partes, em que seja aferida a adequabilidade da norma proposta em relação ao caso particular (através da descrição completa dos fatos e da coerência normativa), desde que a fundamentação da decisão esteja vinculada ao debate dos interessados e que estejam disponíveis os procedimentos necessários para questionar a constitucionalidade das normas que se pretende aplicar. 104 Referência Bibliográfica ALEXY, Robert. 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