I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria Curso de Estudos Fluminenses: O lugar da história na configuração de um campo de reflexão intelectual sobre o Estado do Rio de Janeiro, na década de 1950 Rui Aniceto Nascimento Fernandes.1 Imbuídos das reflexões modernistas, das primeiras décadas do século passado, um conjunto de intelectuais configuraram, nas décadas de 1940 e 1950, um campo de estudos sobre a realidade brasileira: Os Estudos Brasileiros. Seu objetivo era a compreensão de diversos aspectos que lhes permitissem apreender e construir uma interpretação sobre a identidade do país2. Compartilhando desse ambiente intelectual, no Estado do Rio de Janeiro, ocorreu um processo análogo. A Faculdade Fluminense de Filosofia, criada em 1947, consolidava-se na década de 1950 e buscava firmar-se como locus de reflexão sobre a realidade do estado. Nesse sentido organizou o Curso de Estudos Fluminenses, que desenvolveu suas atividades entre 1953 e 1956, visando constituir uma interpretação sobre a realidade e identidade local investigando diversos campos do saber: geografia, ecologia, folclore, economia, história, biografia, entre outros. Nosso objetivo, nesse trabalho, é analisar o lugar da história na configuração desse campo de estudos e da identidade fluminense. 1 Doutorando em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) e pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa História de São Gonçalo: Memória e Identidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Faculdade de Formação de Professores (UERJ-FFP). 2 Cf Marcia de Almeida Gonçalves. Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Tese. (Doutorado em História) – Universidade de São Pulo. São Paulo. 2003. 1 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria Um Estado em questão. Qual é o lugar do Estado do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX? Um sentimento de perda dominava grupos políticos e literários no cenário fluminense das quatro décadas posteriores a proclamação do regime republicano no Brasil. A então Província do Rio de Janeiro tornara-se um dos estados federados perdendo seu status de bastião do regime político brasileiro. O café do Vale do Paraíba, verdadeiro ouro negro e constituidor da aristocracia fluminense, chegou ao fim do período imperial em crise. A pá de cal, que soterrou esse grupo que, durante décadas ocupou cargos-chave na administração do governo monárquico, foi a abolição da escravatura. A aurora do novo regime político brasileiro encontrou a Velha Província em crise econômica e esfacelada politicamente. Grupos políticos divergentes disputavam o poder durante toda a Primeira República. A liderança de Nilo Peçanha, que se estendeu do governo de Alberto Torres (1898-1900) até a intervenção federal em 1922, não conseguia suplantar as divergências e formar um grupo que implementasse uma política de recuperação política e econômica do Estado do Rio de Janeiro e que o tornasse capaz de competir com as novas forças hegemônicas do país, São Paulo e Minas Gerais.3 Vivia-se sobre os discursos da perda de uma Idade do Ouro – o Império – onde a Velha Província – o Rio de Janeiro – detinha a primazia política e econômica. Parecia ser consenso as palavras do neto de uma das maiores lideranças monárquicas, que mantiveram seu posto com a República, que expressava o saudosismo de uma época perdida4. Os projetos políticos visando promover o soerguimento fluminense apostavam na tradição agrarista da região. Considerava-se que apenas o campo e as atividades agropastoris seriam capazes de superar a crise econômica vivida e dar o sustentáculo às 3 Sobre a Primeira República no Estado do Rio de Janeiro cf. Marieta de Moraes Ferreira. Em busca da Idade de Ouro: As elites políticas fluminenses na Primeira República (1889-1930). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994. E o livro organizado pela mesma autora A República na velha província. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989 4 Paulino Soares de Souza Neto assim se referia sobre a situação do estado no início do novo regime: “Estávamos aqui acostumados a contemplar, com a nostalgia imponente da saudade das cousas que não voltam, a idade de ouro do nosso passado político e econômico transcorrido no Segundo Reinado. O império era como um paraíso perdido de riquezas materiais e morais (...) que deveria ser recuperado”. Paulino Neto. O espírito ideológico de Feliciano Sodré. In: Manoel Bastos Leite. O estado do Rio e seus homens. Apud. Marieta de Moraes Ferreira, op. cit., p. 15-16 2 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria aspirações de retorno à antiga situação política onde os políticos fluminenses estavam no centro das decisões da política nacional. Perspectiva semelhante é encontrada nas administrações posteriores a instauração do que se convencionou chamar de “Revolução de 1930”, especialmente durante a interventoria de Amaral Peixoto (1937-1945). A historiografia que analisou o projeto amaralista para o estado do Rio de Janeiro afirma que, entre 1937 e 1945, Amaral Peixoto implementou um projeto de recuperação econômica, baseado no agro-fluminense.5 O governo investiu na criação da infra-estrutura que viabilizasse a reestruturação das atividades agrárias, reafirmando assim a sua “vocação agrária”. Seu projeto modernizador incluía ainda a reforma administrativa e financeira do governo estadual. O interventor constituiu um grupo político alicerçado no interior do estado que lhe permitiu o controle da política estadual nas década seguintes.6 Observamos uma certa continuidade de perspectiva nas sete primeiras décadas republicanas. Os projetos políticos de ação na esfera econômica priorizaram o agrofluminense. Nas década de 1940 e 1950 reafirmava-se que a recuperação do lugar fluminense no cenário nacional seria possível a partir da recuperação do campo. Havia uma forte noção de que a recuperação do Estado seria uma recuperação histórica de sua posição alicerçada em uma atividade historicamente característica da região. Os discursos políticos ancoravam-se na argumentação num saudosismo histórico de um período que fora perdido. 5 Cf. Silvia Castro. Amaralismo e Pessedismo Fluminense. Tese (Doutorado em História). UFF. Niterói, 1995. Da mesma autora. Raízes do pessedismo fluminense. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1992. César Teixeira Honorato. O novo Estado no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em História). UFF, Niterói, 1987. 6 Amaral Peixoto governou o estado pela segunda vez, já como governador eleito, entre 1951 e 1954. Seus sucessores, Edmundo Macedo Soares (1947-1950) e Miguel Couto (1955-1958) foram eleitos com seu apoio. 3 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria O mundo das letras no debate sobre a identidade do Estado do Rio de Janeiro. Desde o final da década de 1910 a intelectualidade da capital fluminense, Niterói, passou a congregar-se em associações de letrados visando imprimir uma reflexão sobre o Estado do Rio de Janeiro7. Os ares modernistas levam intelectuais a organizar revistas, como a Ilustração Fluminense, para divulgar seus ideais8. Em 1917 foi organizada a Academia Fluminense de Letras9. Fundada em frágeis alicerces essa Academia consolidouse no cenário cultural local com sua segunda geração, a partir da segunda metade da década de 1930. Foi nesse período, por exemplo, que foi criada a sua revista (1949) instrumento repositório de sua história e veículo difusor de suas idéias.10 É em suas páginas que encontramos um discurso, de 1948, de saudação a um novo acadêmico em que foi expressa a missão da instituição: o estudo de diversos aspectos do Estado do Rio de Janeiro.11 7 Por intelectualidade niteroiense entendo não um conjunto de intelectuais originários dessa cidade mas sim um grupo nela residente, independente de suas origens geográficas, que possuíam uma homogeneidade em suas perspectivas intelectuais, pela rede de sociabilidade que estavam inseridos, seguindo uma chave de leitura proposta por Angela de Castro Gomes em seu estudo sobre a intelectualidade modernista carioca. Neste a autora analisou um grupo onde “seria infrutífero lidar com a categoria de intelectual carioca como aquele nascido no Rio. Preferimos, por isso, ter como referência básica a noção de um intelectual que constrói, nessa cidade, sua rede de sociabilidade fundamental, mantendo contatos com sua terra natal, e/ou tecendo articulações que se espraiam para outras partes do país”. cf. Angela de Castro Gomes. Essa Gente do Rio... Modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 19. 8 Tatiana Abreu da Silva. Ilustração Fluminense: uma face do modernismo fluminense. 2005. 48 f. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em História) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Luís Reznik 9 Lacerda Nogueira resgatou os primeiros tempos da AFL, quando proferiu a conferência sobre o histórico da instituição na solenidade comemorativa do seu jubileu de prata. Cf. Lacerda Nogueira. Academia Fluminense de Letras. Subsídios autobiográficos pertinentes ao histórico da instituição. In: Revista da Academia Fluminense de Letras. Niterói, Vol. X, dez/1957, pp. 39-73; cf. também Wanderlino Teixeira Neto, Passeio das Letras na taba de Araribóia. A literatura em Niterói no século XX. Niterói: Niterói Livros, 2003 10 A Revista da Academia Fluminense de Letras foi organizada em 1949 por Luiz Lamego que obteve auxílio do governo estadual para sua impressão. Durante a direção de Lamego e de Lacerda Nogueira, que compreende as décadas de 1950 e 1960, a Revista teve periodicidade anual e se tornou o repositório da história dessa agremiação pois publicou trabalhos de acadêmicos – artigos, poemas, estudos, conferências e discursos – desde sua fundação. 11 Assim se expressava Luiz Lamego: “A ação da Academia tem sido maior, mais patriótica e sincera, a de defender o nosso patrimônio cultural e artístico e congregando, todos os fluminenses que amam verdadeiramente a terra (...) Em 30 anos de vida, vastas provas tem dado do seu amor às coisas fluminense, relembrando, estudando e, sobretudo, buscando defender e elevar as nossas tradições a nossa arte, a nossa literatura, os nossos grandes homens, sem que isso traduza um exagerado regionalismo, pois que trabalhando pelo Estado do Rio, a Academia trabalho pela nossa grande Pátria... de norte a sul, sob o mesmo pendão auriverde, tudo é Brasil! (grifos meus). Cf. Luiz Lamego. Saudação a Geraldo Bezerra de Menezes (1948). In: Revista da Academia Fluminense de Letras. Niterói, Vol. 8, junho de 1955. pp. 49-54 4 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria Estudar as mais variadas facetas da vida intelectual do Estado era a missão da Academia. Isso exprimia-se na sua própria organização interna. Ela era organizada em classes – a de Letras, a de Ciências, a de Ciências Políticas e Sociais e a de Belas Artes – que contemplava os mais variados interesses intelectuais de seus membros. A Academia Fluminense de Letras não era a única agremiação literária da então capital fluminense voltada para os estudos fluminenses.12 E não eram apenas os cenáculos “literários” aqueles responsáveis por implementar a reflexão sobre o Estado. Após a criação do IBGE foi organizada, em 1938, sua seção estadual o Diretório Regional de Geografia do Estado do Rio de Janeiro cujo o presidente seria o titular da Secretária de Viação e Obras Públicas, secretariado pelo chefe do Departamento de Engenharia, neste momento o engenheiro Luiz de Souza. Desde de sua criação até pelo menos 1965, quem esteve de fato a frente desse Diretório foi Luiz de Souza. A geografia, nos anos de 1940 e 1950, era tida como ciência chave na elaboração de projetos de recuperação socio-econômica do Estado. Sob a liderança de Luiz de Souza foram realizados estudos que levaram a demarcação dos limites fronteiriços com São Paulo e Minas Gerais e organizavam-se planejamentos de colonização e de urbanização de cidades do interior do Estado. Em 1942 foi criado o “Concurso Monográfico de Aspectos Municipais” visando obter as contribuições dos intelectuais locais nos estudos sob a realidade do Estado13. Uma outra iniciativa nesse sentido foi a criação, em 1948, do Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro que, segundo seu criador deveria servir para “que fiquem assinalados os acontecimentos históricos de cunho geográfico de interesse relacionados sempre que possível com a vida política social e geográfica fluminense”.14 12 Havia ainda o Cenáculo Fluminense de História e Letras (1923), a Academia Niteroiense de Letras (1931 e 1947), o Museu Antônio Parreiras (1942), entre outras. Sobre as agremiações culturais da capital fluminense nas décadas de 1940 e 1950 cf. FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Construindo o Folclore Fluminense: Intelectuais, educação e política no Estado do Rio de Janeiro (1949-1961). 2004. Dissertação (Mestrado em História. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2004,. Especialmente o capítulo III. 13 As atividades desenvolvidas pelo Diretório Regional de Geografia do Estado do Rio de Janeiro e de seu secretário Luiz de Souza podem ser acompanhadas pelo Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro publicado entre 1948 e 1965 que trazia seus documentos oficiais – relatórios, atas de sessões, resoluções. 5 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria A Faculdade Fluminense de Filosofia e o Curso de Estudos Fluminenses. Dois anos antes da criação do Anuário Geográfico era discutida a criação de uma faculdade de filosofia no Estado do Rio. O movimento surgiu durante a Primeira Semana de Ação Social Diocesana de Niterói, ocorrida em julho de 1946 e foi capitaneada pelo professor Durval Baptista Pereira. Ao propugnar a criação da Faculdade Fluminense de Filosofia, Durval Pereira objetivava a realização de um antigo sonho: a criação da Universidade Fluminense.15 Desde a década de 1930, o cirurgião-dentista vinculava essa idéia na Revista de Farmácia e Odontologia.16 A Reforma do Ensino Universitário, empreendida por Francisco Campos, em 1931, estabelecia que a criação de universidades no Brasil só seria possível com a existência de uma faculdade de filosofia, conferindo a esta um caráter integrado das demais unidades e propugnando uma formação humanista associada às especialidades técnicas.17 A criação da Faculdade Fluminense de Filosofia era o primeiro passo na direção da criação da Universidade Fluminense, que ocorreu em 1950 por decisão da administração estadual.18 A criação legal da universidade não lhe conferiu uma existência real pois o governo estadual não viabilizou a estrutura física e orçamentária 14 Resolução 98 de 01 de abril de 1948. In Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n.º 02, 1949. P. 205. 15 Sobre a Faculdade Fluminense de Filosofia cf. Durval de Almeida Baptista Pereira. Contribuição para a História da Universidade Federal Fluminense. A luta para sua criação e os fatos que geraram as crises dos primeiros anos de sua existência, de 1947 a 1966. Niterói, s/n, 1970[?]; Histórico da Faculdade Fluminense de Filosofia. In: Anuário da Faculdade Fluminense de Filosofia. Niterói: Gráfica Falcão, 1957; José Ribas Vieira. A Universidade Federal Fluminense: de um projeto adiado à sua consolidação institucional. Subsídios para uma interpretação. Niterói: Oficinas Gráficas da Imprensa Universitária da UFF, 1986[?]; Márcio Fonseca. Faculdade Fluminense de Filosofia: Gênese e desenvolvimento (1946-1961). Niterói. UFF. Monografia (Graduação em História), 1997. 16 Apenas a titulo de exemplificação podemos citar o editorial do número de 1936 da Revista de Farmácia e Odontologia onde Durval Baptista Pereira exalta o papel dos constituintes, que nas disposições transitórias estipulam que o governo estadual deveria criar uma universidade no estado unindo as faculdades existentes. cf. À margem da Constituição Fluminense . In: Revista de Farmácia e Odontologia. Niterói. n.º 15 e 16, janeiro-abril, 1936, p. 6. 17 Simon Schwartzman; Helena Bomeny e Vanda Costa. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.209. ver também Simon Schwartzman (Org.). Universidades e Instituições Científicas no Rio de Janeiro. Brasília: CNPq, 1982, pp. 17-134. 18 Paulino Neto chegou a ser nomeado reitor da nova universidade. Sobre os ideais que eram vinculados em relação a universidade conferir os discursos de Paulino Neto. “A universidade fluminense. Conferência na solenidade de 27 de Junho de 1950” e “A Universidade Fluminense. Discurso pronunciado pelo professor Paulino Neto, na solenidade de sua posse no cargo de primeiro reitor da Universidade Fluminense”. In: Revista da Academia Fluminense de Letras. Niterói. Vol. IV, junho de 1951, pp. 133-138 e pp. 277-279, respectivamente. 6 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria para sua efetivação. A existência real da universidade só ocorreu uma década depois a partir da federalização das instituições superiores de ensino e de sua congregação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, hoje Universidade Federal Fluminense. Apesar dos avanços e retrocessos no processo de constituição da universidade fluminense, a Faculdade Fluminense de Filosofia consolidou-se no cenário cultural de Niterói em meados da década de 1950. Seus cursos de graduação tiveram reconhecimento federal entre 1951 e 1954 e passaram a formar os professores dos colégios públicos e particulares da então capital fluminense. Nesse mesmo momento a Faculdade de Filosofia organizou uma série de atividades extensionistas que visavam torná-la referência cultural e na reflexão sobre a realidade fluminense. Entre as iniciativas organizadas estava o Curso de Estudos Fluminenses. Esse curso desenvolveu suas atividades entre novembro de 1953 e janeiro de 1956, coordenado por Marcos Almir Madeira. No entanto o curso não representava a primeira e nem mesmo a única iniciativa nesse sentido. Em 1951 o próprio Marcos Madeira proferiu a conferência “Posição do Estado do Rio de Janeiro na cultura brasileira”19. Por outro lado, seguindo a meta de constituir um conjunto de intelectuais locais capazes desenvolverem-se nos diversos campos do saber, o Instituto de Matemática criou, em 1955, o Centro Fluminense de Estudos Matemáticos. Para ministrar as conferências do curso foram convidados intelectuais de prestígio em suas áreas de interesses. Essa pluralidade atendia o objetivo do curso que era a realização de uma reflexão sobre o estado, e sobre seu lugar no concerto nacional, abrangendo os mais variados campos, citados por Celso Kelly “geografia, história, sociologia, política, economia”.20 Esses conferencistas construíam, para o Estado do Rio, 19 O Anuário da Faculdade Fluminense de Filosofia arrolou todas as atividades desenvolvidas por essa faculdade no seu primeiro decênio de existência. Cf. Anuário da Faculdade Fluminense de Filosofia... P. 41. 20 Celso Kelly, o primeiro conferencista do curso, expressou suas opiniões sobre o curso em um artigo: “Uma das missões relevantes das faculdades de filosofia é a pesquisa (...) promovendo verdadeiros levantamentos da região ou do país em que se situam. A pesquisa conduz a escrever o capítulo regional na cultura universal. A Faculdade Fluminense de Filosofia acaba de tomar, a respeito, uma iniciativa relevante: a de realizar o Curso de Estudos Fluminenses, especialmente em geografia, história, sociologia, política e economia, chamado a colaborar os especialistas em cada tema. A velha e nobre província do Império, o próspero e renascente Estado da República tem formação e evolução capazes de atrair numerosos analistas. Curso dessa natureza deixa de ser a aula recitada, para transforma-se nos depoimentos. O curso valerá como um levantamento, o toque de reunir dos estudiosos do Rio de Janeiro, e a oportunidade para que as jovens gerações travem contacto com esse acervo opulento, que é a tradição fluminense”. Celso Kelly. Curso de Estudos Fluminense. A Noite. 13/03/1953. In: Anuário da Faculdade Fluminense de Filosofia. ..., pp. 63-64 (grifos meus) 7 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria uma imagem de pioneirismo, vanguardismo e de região de extrema importância nos destinos da nação. 8 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria Estudos Fluminenses: a configuração de um campo e o lugar da história. O Curso de Estudos Fluminenses desenvolveu suas atividades entre novembro de 1953 e janeiro de 1956 com a realização de cinco conferências.21 Estas foram publicadas no Anuário comemorativo ao primeiro decênio de existência da Faculdade Fluminense de Filosofia acrescida de um estudo de Lourenço Filho realizado em 1943 a pedido do governo do Estado “O grupo fluminense na cultura brasileira”. Em relação o objetivo do curso é emblemática a colocação de Edgard Teixeira Leite, que falou sobre economia do estado: Nada valeria um simples histórico, para os altos objetivos em vista, pois, numa investigação da ordem que está realizando esta Faculdade, o que importa não é o registro cronológico ou estatístico dos fatos, mas conclusões que norteiem diretrizes, apontando rotas capazes de servirem para soluções as mais acertadas, para o encontro da via mais verdadeira... para solução dos problemas fluminenses.22 (grifos meus) Os estudos ali apresentados deveriam então ter um caráter prático: apontar soluções para os problemas. Mas para que tal fosse possível era necessário inventariar, produzir um diagnóstico da realidade, especialmente, geo-econômica do Estado. Todos os conferencistas eram unânimes em afirmar que suas falas eram um “levantar questões” para estudos futuros que a faculdade desenvolveria. Nestes inventários a questão econômica ganhavam relevância. Edgard Teixeira Leite realizou um estudo sobre as potencialidades de desenvolvimento econômico do Estado do Rio; Orlando Valverde dissertou sobre as georegiões econômicas do estado; e Celso Kelly seguiu o mesmo caminho ao apresentar o tema Ecologia Fluminense. Como já mencionamos a questão econômica era latente pelos projetos políticos de recuperação econômica da primeira metade dos século XX. 21 Fizeram palestras neste curso: Celso Kelly – Ecologia Fluminense (03/11/1953); Edgard Teixeira Leite – A Velha Província. Terra do futuro (15/03/1954); Orlando Valverde – Geografia econômica do Estado do Rio de Janeiro (08/04/1954); Luiz Palmier – O folclore nas tradições da cultura fluminense (29/04/1954) e Dayl do Carmo Guimarães de Almeida – Oliveira Viana na cultura fluminense (03/01/1956). O Anuário comemorativo do primeiro decênio de existência da FFF traz os textos destas conferências. Conferi estes textos no Anuário da Faculdade Fluminense de Filosofia...., pp. 63-208. 9 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria Esses autores partem da idéia que o Estado do Rio é a terra em processo de recuperação econômica o que nos leva a constatação de que encaram o período que o precederam com um período de estagnação ou de decadência. É emblemático o título da palestra de Edgard Leite nesse sentido “A Velha Província. Terra do Futuro”. Tomemos novamente suas palavras: Tornou-se lugar comum, entre os comentadores dos problemas nacionais, considerar o Estado do Rio como terra do passado. A Velha Província, designação para uma das mais antigas do país, se para seus filhos é tratamento carinhoso, verdadeira manifestação de saudosismo, com que se relembra com nostalgia o prestígio da época imperial, para o geral dos brasileiros, entretanto, assume sentido quase pejorativo e passou a ser expressão mesmo de terra que se está extinguindo, pela decrepitude de seu solo, na agonia lenta de seu povo... fazendo da velha província terra do passado. E a ajuntar a isso, pelo Brasil afora a confusão entre os dois Rio de Janeiro, reduzido o Estado a um simples apêndice territorial do Distrito Federal. E será assim, o Estado do Rio, região em plena decadência, de cidades mortas, que tenha de viver apenas de seu passado ilustre, ou poderá ser, pela reorganização de sua economia, grande e prospera unidade da federação? Foi o que procurei apurar ... excluídas razões de ordem sentimental e afetiva.23 Se para os nativos as referencias históricas, a “Velha Província”, são motivo de orgulho, para os outsiders seria a imagem da decadência. Para superar essa visão pejorativa os autores procuram inventariar as potencialidades da região identificadas como a manutenção da “vocação ruralista” do estado. Esses estudos apresentam a agricultura e a pecuária como a base de sustentação econômica da região. As demais atividades – industria, turismo, por exemplo – eram subsidiárias ou secundárias aquelas. Esses inventários são precedidos e/ou pautados por referências históricas à tradição e a vocação agrícola do Estado, ressaltando o ciclo cafeeiro do Vale do Paraíba identificado como o período áureo local. Projetando o futuro alicerçado na tradição agrária do estado compreende-se a veiculação da imagem de uma região que possuía sua identidade 22 Edgard Teixeira Leite. A Velha Província. Terra do Futuro. In: Anuário da Faculdade Fluminense de Filosofia.... pp.155-156 10 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria alicerçada nos valores agrários expressa, por um lado no estudo de Luiz Palmier sobre folclore, ou no outro sobre Oliveira Viana, expoente do pensamento conservador, “saquarema” que construiu a identidade fluminense sob o corte rural aristocrático do Vale do Paraíba, como explanou Dayl de Almeida. Nesses textos a história ocupa um lugar importante. Todas as palestras apresentam uma forte conotação histórica. Busca-se resgatar a especificidade local através da história. Celso Kelly, por exemplo, mostra que o fluminense seria o elemento primordial de integração nacional por possuir em seu território, além uma variada gama de regiões geo-climáticas, uma tradição de união entre os povos migrantes configurando assim o espaço privilegiado de brasilidade. Apresenta-se a evolução histórica da capitania e província ressaltando-se ser nesses períodos que foram constituídas as bases da “vocação” econômica local. Identifica-se o período imperial como o auge do poderio econômico e do prestígio político fluminense. idealiza-se essa fase como a Idade do Ouro a ser resgatada, por isso necessária de ser conhecida. A história tinha assim uma função prática. Apresentar a tradição local, aqueles “sólidos” caminhos para o desenvolvimento futuro da região. A história sozinha, no entanto, de nada serviria – como dizia Edgard Leite “o que importa não é o registro cronológico” – mas ela comporia um campo de reflexão que possibilitaria o estabelecimento de projetos para a recuperação econômica do território fluminense. Daí a Velha Província ser a Terra do Futuro e não do passado. 23 Edgard Leite, idem., p, 156 11