Brasil, Pátria Educadora, e o abismo existencial da Educação nas periferias urbanas. Os debates sobre o papel da Educação na transformação social brasileira se estenderam pela maior parte do século XX, adentrando o século XXI, incorrem no mesmo erro, ou seja, em sua miopia diante da realidade social. A emergência de novos atores sociais e de políticas afirmativas que se instituíram no país desde a Constituinte de 1988 geraram demandas sociais que deslocaram o tema para o centro dos debates políticos. Do tecnicismo instrumentalizador para uma Educação globalizadora que se propõe vinculada à vida, os questionamentos e as cobranças sobre o papel da Escola na sociedade, assim como das atribuições dos governos municipais, estaduais e federais, ampliaram-se diante do desafio social emergente. Quase vinte anos se passaram desde que a Lei nº 9.394 foi sancionada, e os embates mantem-se idênticos, do mesmo modo que as manobras políticas protelando com relação ao tema. Em vista de tal situação, uma política educacional efetiva, relacionada diretamente aos problemas sociais, é mantida distante de qualquer planejamento que se pretenda sério. Esse distanciamento encontra suas bases no próprio processo histórico que comporta os debates educacionais, visto esses atenderam (e atendem) demandas sem uma projeção ao bem estar social, mas no centro das relações sociais de classe e de produção, que dividiram e ainda dividem a sociedade em grupos econômicos distintos. Esses debates estabelecem uma relação entre classes sociais antagônicas com demandas que extrapolam uma política pública de Educação homogeneizadora. Os impasses de uma educação pública que implique em uma melhoria na qualidade social, meta prevista nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica de 2013, são mais complexos do que um investimento puro e simples na formação de professores, na modernização dos prédios e no fornecimento de merenda. É inegável que as questões estruturais (dentre elas, a salarial) são condicionantes na melhoria do serviço educacional brasileiro, mas não constituem o fim último das ações. A Escola é um espaço de convivência, e antes de tudo, um espaço social de múltiplas interações que transcende as perspectivas puristas de uma educação impessoal voltada aos conteúdos. Talvez, o impasse político e pedagógico que permeia a compreensão prática da Educação no Brasil atual seja o de que as escolas são vivas, portanto, mais do que prédios, são espaços sociais. E em muitas situações, principalmente nas periferias das grandes cidades, a Escola representa o único espaço de convivência pública capaz de concorrer com a rua. A Escola não significa. Pelo menos aquilo que se pretende dela: a transformação. De fato, em uma análise histórica, modificações decorrentes das políticas de alfabetização e democratização do ensino público são evidentes. Todavia, esse processo social demanda tempo, o comprometimento de gerações. Nesse contexto, a Escola sofre de uma crise existencial enquanto agente transformador. Pensada isoladamente, dentro do complexo ambiente social, a Escola, assim como os equipamentos de Saúde e Segurança, permanece um espaço obsoleto de conflitos sociais e culturais. O acesso e a permanência escolar ainda são o grande desafio do plano educacional. Mas são problemas concretos que devem ser pensados a partir de demandas concretas. Essas colocações geram no mínimo questionamentos como: qual a relação da Escola com a vida cotidiana? Qual a sua ação transformadora na região em que atende? Para quem a Escola é pensada? São questões pontuais que deveriam figurar nas análises estatísticas da Educação brasileira promovendo um debate mais consistente que relacione as altas taxas de evasão e reprovação ao seu ambiente social gerador. De acordo com o IBGE, os rendimentos econômicos estão diretamente relacionados á possibilidade de maior permanência escolar dos indivíduos. É um impasse entre as necessidades emergenciais dos indivíduos, sua formação cultural e a sua condição social que acabam interferindo significativamente nos resultados dos programas educacionais. Há nesses dados uma fronteira bem delimitada, de natureza social, étnica, geográfica e etária. Ignorado esse aspecto concreto, qualquer política educacional estará fadada ao fracasso. Não é de se estranhar, que esteticamente, um prédio escolar, lembra em muito uma ilha: ora colorida, contrastando com a paisagem; ora cinzenta absorvida pelo entorno. E culturalmente, representa mais um espaço alienígena, não integrado de modo pleno nas periferias das grandes cidades. Este impasse educacional encontra o seu maior potencializador em uma mentalidade social ainda funcionalista e imediatista, predominante no senso comum políticocultural. Estabelecer metas pensadas externamente ao espaço é uma forma de relativizar o problema. A crescente onda de violência nas escolas nos últimos anos (principalmente em áreas periféricas dos grandes centros) é reflexo da ausência de planejamento de ação. Em espaços precarizados, em que há falta de tudo, a Escola por si só não conseguirá promover transformação alguma. Se considerado assim, em um plano sociológico, quando o equipamento educacional do Estado chega às áreas periféricas, amplia as possibilidades locais, pois rompe com a rotina dos indivíduos, propondo algo externo e distante da marginalidade à qual os cidadãos ali são estigmatizados. A Escola democrática não negocia, violenta o espaço, apenas cumprindo com seu papel legal - o exercício do direito adquirido. Tal constatação se dá a partir de dois pontos divergentes: a construção histórica local e o aparato formativo padronizado transplantado para a região. Em todo espaço social existe um establishment local, e nas periferias não é diferente. Some-se que o abandono político-estrutural do Estado amplia uma cultura de estranhamento, plasmada em uma revolta reativa. Padronizada, a Escola, como braço político formativo estatal, pouco contribui nessas áreas. Devido a um alinhamento curricular rígido diante dos dilemas locais, cada vez mais distantes da vida e do cotidiano, capaz apenas de formar sujeitos frustrados, insatisfeitos em estarem ali no ambiente escolar. Não é de se estranhar também que, arquitetonicamente, muitas instituições de ensino lembrem manicômios e presídios. Espaços opressores com os quais o jovem e a criança não estabelecem uma identificação. Assim, não há uma política como ação para a Educação, o que há, reflete apenas uma legislação educacional, perdida em estatísticas. Distante da vida, a Escola não produz conhecimentos, apenas os reproduz, e esse distanciamento, a torna menos atrativa e mais violenta. Os dados educacionais dos últimos anos refletem esse quadro. Suas oscilações em todos os níveis da Educação Básica correspondem a um movimento contrário frente aos recursos federais para a área. Porém, o investimento concentra-se em um único ponto: a Escola. E uma educação pública de qualidade social subentende algo mais amplo, que afete a rotina das comunidades periféricas, que promova a humanização dos sujeitos nos locais em que mais necessitam, e não apenas lhe assegure o direito à matrícula e a uma sala de aula lotada. E isso, envolve Ministérios, Secretarias, e consequentemente, uma demanda econômica muito maior que aquilo que é investido. Por mais específicos que sejam os dados levantados e sistematizados pelo Ministério da Educação (Ideb) não refletem as realidades educacionais e seus agentes. Pois, não mensura as ações pedagógicas, a falta de professores, a sobrecarga de trabalho, os ambientes e materiais defasados para o exercício do magistério, os conflitos na comunidade local, as características do abismo socioeconômico e cultural, e muito menos os mecanismos de aprendizagem de crianças, adolescentes e jovens. Sobre esse aspecto, o de uma Educação enquanto Lei e a sua contraposição concreta, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê um amparo humanizador por parte do Estado que garanta o amplo desenvolvimento do indivíduo, o que, de fato, não ocorre. O ato de Humanizar em seu sentido amplo implica tirar o outro da condição marginal, dar-lhe uma perspectiva de futuro, o direito a sonhar. E isso só é possível quando se investe em todos os segmentos que contribuam para a formação humana, algo que transcende a bancada escolar. Essa ação é notoriamente insípida quando comparados os dados de escolas dos grandes centros situadas em periferias (geralmente com Ideb baixíssimo) aos de áreas centrais que agregam um público de alunos mais homogêneo social e culturalmente. Considerado o pressuposto caráter universal do direito a Educação e do modelo democrático no qual está inserida tal comparação é quase um absurdo: são públicos divergentes, com vivências culturais distintas, tendo como limitadores espaços geográficos, assim como a condição social. Nessa lógica, a Educação atua como um espelho da sociedade, reforçando e sedimentando os espaços dos indivíduos, não transformando as realidades. Salvo em casos isolados, a escola, cada vez mais fechada, torna-se uma ilha de corredores ruidosos e escuros para uma grande parcela da população extremamente dependente desse espaço. Ao selecionar as escolas, objetivando responder positivamente os índices de desenvolvimento educacional, os gestores transformam-nas em grandes “fábricas de rendimento”, promovendo a exclusão. Reproduzem a lógica histórica de nossa sociedade, enfatizando o que rotulam como “meritocracia”, e limitando àqueles de menor acesso à miséria de seu espaço cotidiano, e ao estigma de sua condição social. Se colocar a pensar uma nova Escola, para esse Brasil que se “vende” em seus diversos discursos do poder, é negar a essência educacional que se firmou em nosso imaginário sobre a questão. Pois, não se trata apenas de debater a igualdade pela qual os indivíduos são tratados diante da Lei, mas de se propor uma Educação Pública que realmente equacione as assimetrias sociais dos grandes centros e que possibilite o real acesso à cultura, ciência e ao esporte. Somados a esses, a Educação para a saúde, que começa no saneamento, na revitalização da área urbana e se estende a outros campos da vida social, componentes que transcendem e muito os muros da escola. A Educação como mecanismo de transformação social exige a participação efetiva de todos os segmentos sociais envolvidos nos processo, a Escola Democrática só funcionará quando todos assumirem o protagonismo da ação, quando os debates ampliarem suas ramificações para dentro e fora dos muros da Escola. Quando os currículos dialogarem com a realidade concreta das comunidades, estabelecendo uma conexão entre os saberes. O que se propõe como crítica a proposta educacional vigente, são conexões concretas entre esses “mundos de saberes”, mas isso é apenas uma pequena parcela daquilo que se problematiza como Educação. Para a efetivação de uma política educacional humanizada, o cotidiano tem que ser transformador de consciências. Logo o homem e o espaço se complementam, não há uma educação transformadora em espaços sociais que predominem áreas de moradia precária, ausência de atendimento a infância e a saúde, ou segurança preventiva, áreas desprovidas de espaços de lazer e convívio público, entre outros equipamentos públicos. Nesse sentido, a Educação corresponde a um campo de ação transformadora e efetiva, com uma perspectiva de cidadão a ser construído.