11987-42753-1-SP - Periódicos PUC Minas

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Entre Platão e Saramago: uma leitura desmondiana da relação entre a filosofia, o
mito e o poético através da metáfora da caverna1
(Between Plato and Saramago: a metaxological reflection on the relationship between
philosophy, myth and poetics through the metaphor of the Cave)
"Hoje é que estamos a viver, de fato, na Caverna de Platão, pois as imagens que nos
são mostradas da realidade, de certa maneira, substituem a realidade." (José
Saramago)
"A tentação conceitual da filosofia pode ser envergonhada pela seriedade espiritual da
grande poesia. ... (Entretanto,) ... tanto o filósofo quanto o poeta podem ser
originadores de uma profunda atenção-plena. O maravilhar-se ontológico frente ao ser
não poderá nunca ser exaurido." (William Desmond)
José Carlos Aguiar de Souza (Doutor em Filosofia, professor da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte e do Instituto Santo Tomás de
Aquino (ISTA).
Clésio Rodrigues Marques (Graduando em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte).
Resumo: O presente artigo visa abordar a problemática da identidade e relevância da
filosofia explorando a sua relação com literatura, através da abordagem de William
Desmond. O que é a filosofia? A questão é levantada à maioria das vezes de modo
meramente abstrato, como se fosse possível isolar a filosofia de sua interação com os
seus outros. Num certo sentido, afirma Desmond, não existe "filosofia pura"; o
pensamento filosófico não pode apenas pensar-a-si-mesmo, mas tem que se abrir para
uma intermediação respeitosa com os seus outros. A filosofia é uma participante da
comunidade metaxológica do ser. Ao intermediar com os seus outros, estes se tornam
cruciais para a constituição do próprio discurso filosófico. Platão, segundo Desmond, é
um dos filósofos que manteve o pensamento aberto ao espaço intermediário do ser. Ele
é um pensador plurívoco, para quem a filosofia não era apenas uma mera disciplina
acadêmica dentre outras. Existe uma abertura presente no pensamento platônico para a
alteridade recalcitrante expressa no mito, na literatura e na poesia. Ao explorar "o mito
da caverna" de Platão em diálogo com o poeta português Saramago, em sua obra A
Caverna discutiremos a abertura de Platão para os outros significativos do próprio
discurso dos filósofos.
Palavras-chave: Filosofia. Literatura. Metaxologia. Poético. Mito
Abstracts: This article aims to discuss the question of philosophy´s own identity by
analyzing its relation to literature through Desmond´s metaxological thought. What is
philosophy? This cannot be a merely abstract question inasmuch as it is not possible to
isolate philosophy from its others. As Desmond puts it in a certain sense there is no
"pure philosophy". Philosophical thought cannot be only a question of self mediation
but needs to open up itself to intermediating with its others. Philosophy is always
participating of the metaxological community of being. In this process of intermediation
1
O presente artigo é fruto de nossa pesquisa financiada pela PUC-Minas - FIP. Nossos agradecimentos.
2
its others are crucial to the constitution of philosophical discourse itself. Plato,
according to Desmond, was able to keep philosophical thought open to intermediation
to its others. He was a plurivocal thinker to whom philosophy was not one more
academic discipline. One needs to explore the openness left up by platonic thought to
being´s altarity as found in myth, literature and poetry. As we explore Plato´s myth of
cave in dialogue to the Portuguese writer Saramago in his book The Cave, we will
discuss Plato´s relation with the significant others to the philosopher´s discourse.
Keywords: Philosophy. Literature. Metaxology. Poetics. Myth.
Introdução
Uma questão vital para a filosofia na contemporaneidade diz respeito à sua própria
identidade e relevância, num contexto marcado pela fragmentação dos jogos de
linguagem. A derrocada da razão como grande matriz de fundamento da verdade coloca
em questionamento todo o movimento da filosofia desde Platão, que estabeleceu a
convergência entre verdade e ser tendo, por fundamento, uma relação peculiar intrínseca
com o intelecto humano.
William Desmond2 identifica no cenário filosófico contemporâneo duas tendências
igualmente insatisfatórias. A primeira, que tem em Hegel seu maior expoente, termina
sendo um tipo de univocidade dialética incapaz de se abrir genuinamente para os outros
modos do ser e do pensar. A segunda é a posição denominada "wittgensteiniana", que
advoga uma equivocidade de jogos de linguagem, que não formam um todo. Ele busca
um modo de intermediação, que acolha vozes outras ao próprio discurso filosófico e que
genuinamente se abra para a alteridade recalcitrante de modos outros do ser e do pensar.
(DESMOND, 2000, p. 2.)
O "ser-entre" (Being between) é central para o pensamento desmondiano. O espaço
intermediário do ser, constitutivo do pensar metaxológico, possui muitas dimensões e
encontra-se marcado pela intermediação das extremidades de intimidade e
universalidade. Ou seja, o "ser-entre" é ao mesmo tempo íntimo e universal: um
2
Desmond é um filósofo irlandês mas vive atualmente na Bélgica onde leciona filosofia na Katholieke
Universiteit Leuven (Louvain). Autor de muitos livros, ele é considerado o maior pensador vivo da
Irlanda e o seu pensamento tem se projetado, cada vez mais, no cenário filosófico contemporâneo.
Suas três obras principais, Being and the Between (1995), Ethics and the Between (2001) e God and the
Between (2008), formam uma trilogia que explora as muitas dimensões da intuição básica do seu
pensamente: a filosofia como metaxológica. A ideia do "ser-entre" aborda o caráter intermediário do
pensamento, que se situa entre diferentes modos de extremidades: entre a religião e a ciência, entre o
conhecimento e a perplexidade e assim por diante. Esse artigo se dedicará à questão do entre a filosofia
e o poético.
3
universal íntimo. Ele tematiza o caráter intermediário da filosofia entre uma pluralidade
de vozes, que se situam no meio (Between).
O termo "metaxologia" é um neologismo criado por Desmond para expressar o
caráter de intermediação do ser, que não pode ser reduzido nem à unidade unívoca nem
à pluralidade equívoca e tão pouco ao todo dialético. O espaço intermediário do ser não
é algo que possa ser reduzido a nenhuma dessas posições, na medida em que não é algo
externo a nós, mas trata-se de onde nos situamos enquanto seres "entre". Essa condição
intermediário-existencial da filosofia é o que Desmond denomina de metaxologia. O
termo é derivado do grego metaxu (entre) e logos (palavra). Trata-se de explorar o
espaço do intermediário, entre univocidades e equivocidades.3
O próprio Platão sugere, que a condição intermediária do ser humano entre os
deuses e os animais é pré-condição de possibilidade para o pensamento, que se situa
entre esses dois pólos. Segundo Desmond, nós não possuímos a completude dos deuses,
que não conhecem a falta e tão pouco possuímos a completude dos animais, que não
sabem por não conhecerem a si mesmos. Ao contrário, o ser humano carece e sabe da
sua carência. (DESMOND, 2008, p. 18)
A filosofia reflete essa situação intermediária e, por isso mesmo, não é a posse mas
a amizade ou amor pela sabedoria. Assim sendo, o que inicia o pensar filosófico é um
maravilhar-se pelo ser e, em seguida, pura perplexidade. (DESMOND, 2008, p. 18) O
primeiro se caracteriza pela abertura inicial do pensamento para além de qualquer
determinação do pensar. Segundo Desmond, a filosofia se liga ao dom da porosidade
primeira na qual o nosso "ser-entre" se realiza e que excede à curiosidade ou cognição
determinada. Por isso mesmo, o espaço intermediário do ser não pode ser inicialmente
um vazio a ser preenchido por modo cada vez mais determinados do pensamento.
(DESMOND, 2008, p. 18)
Já a perplexidade do pensamento-no-meio, pode ser poros daquilo que nos
ultrapassa. Trata-se de algo a mais do que a univocidade da matemática ou da ciência e
que abre o pensamento para a arte e a religião, ou seja, para o universal íntimo.
(DESMOND, 2008, p. 24) Este toca a idioticidade do ser na medida que mesmo se
referindo a algo universal, se abre para a mais profunda porosidade da alma, que é algo
idiótico. Trata-se de uma universalidade que ultrapassa a mera subjetividade bem como
a universalidade abstrata do universal.
3
Para uma melhor e compreensão do termo "metaxologia" ver o nosso artigo: "Entre a Sutiliza e a
Geometria: William Desmond e a Porosidade do Ser Religioso." Síntese V. 40 N. 126 (2013): 111-115.
4
A filosofia deve, pois, estabelecer um diálogo com os seus outros, ouvindo as vozes
outras às formas mais sistemáticas do pensar. A palavra "entre" pode ter muitos
significados, mas o que mais se aproxima do projeto desmondiano se traduz em termos
de uma abertura para além do sistema. Ele advoga uma filosofia plurívoca e abre o
pensamento para o ser-poético, o ser-estético e o ser-religioso. (DESMOND, 2008, p.
25) E nesse sentido, Platão soube como nenhum outro estabelecer esse ele entre a
filosofia e os seus outros.
I
Platão, enquanto pensador-do-meio, soube conciliar o pensamento filosófico
com os modos outros do ser e do pensar, sobretudo, o mito. No período anterior ao
pensamento platônico, “mythos” e “logos” estavam intimamente entrelaçados, sendo
que uma única expressão verbal poderia abarcar os seus significados: o discurso.
Somente no período clássico é que ocorrerá, em boa parte pelas teorizações do próprio
filósofo, um rompimento entre estes dois modos do pensar. O mito (mythos) continuou
significando uma narrativa fantástica e o logos (logos) se reafirmou, enquanto conceito,
como discurso racional. Sendo assim, ocorreu uma extensão semântica do logos, de um
simples “narrar, ou falar” para um discurso com uma base epistemológica bem
definida.4
Uma questão relevante a ser levantada é o porquê Platão se valer do mito
(mythos)? Em outras palavras, como entender o mito (mythos), na atmosfera espiritual
em que Platão vivia? Para Lima Vaz, o mito em Platão é uma espécie de "alegoria da
dialética” (VAZ, 2012, p. 38). Sendo assim, além de efetuar os desdobramentos teóricos
no âmbito do discurso racional (logos), Platão entende que os mitos (mythoi) têm um
papel de relevância argumentativa e de experiência humana, pois, trata-se de uma
linguagem atrativa, que faz parte da estrutura mental dos seres humanos. Segundo Lima
Vaz, “o leitor dos diálogos não deve permanecer ambíguo ou dúbio quando, ao seguir
4
Segundo Ernest Cassirer, o mito “enfrenta as nossas categorias fundamentais do pensamento. Sua
lógica – se é que tem uma lógica – não pode ser medida por nenhuma de nossas concepções de verdade
empírica ou científica” (CASSIRER, 2012 p. 124). Luc Brisson define o mito como "um discurso
inverificável, pois seu referente se situa em outro nível da realidade, inacessível tanto ao intelecto
quanto aos sentidos, ou então ao nível das coisas sensíveis, mas um passado do qual aquele que faz esse
discurso não tem experiência direta ou indireta” (BRISSON, 2014 p. 49). Nesse contexto, os mitos
(mythoi) são uma realidade simbólica e artificial criada pelos homens. Eles não possuem bases
epistemológicas, mas são capazes de nos ofertar uma “estrutura conceitual” acerca da realidade.
(CASSIRER, 2012 p. 128)
5
as demonstrações filosóficas, contraria, por desconhecimento, as narrativas míticas.”
(VAZ, 2012 p. 31). Por isso mesmo, segundo Vaz, devemos nos portar sempre com
sobriedade frente ao texto platônico. Os diálogos do mestre da academia não são de
fácil compreensão, pois. ao adotar tal modo de escrita, Platão como que se aproxima e
ao mesmo tempo se distancia da reflexão filosófica acerca do tema colocado em
discussão.
A teoria platônica do conhecimento atribui um status ontológico às idéias
(eidos), sendo que a dialética (dialektike), enquanto método discursivo e dialógico, é o
caminho de acesso, de elevação (anabasis), para que o aspirante a filósofo possa
contemplar as idéias em si. Entendemos, portanto, que a dialética em Platão, é uma
ciência discursivo-dialógica acerca das idéias. E de que forma o mito pode auxiliar no
acesso às idéias inteligíveis? Como homem grego, o mestre de Atenas sabia da
importância das narrativas míticas na formação e educação (paidéia) do homem grego.
O próprio Platão afirma que embora discorde das perspectivas éticas abordadas pelos
mitos tradicionais, os mitos homéricos configuram-se como sendo a fonte ordenadora
da conduta daquele povo. Com suas narrativas míticas Homero tornou-se mestre e guia,
não apenas dos posteriores poetas, mas também dos gregos como um todo. (Republica
595b e 595c)
Tanto Platão como seu discípulo Aristóteles deixaram registrado a importância
do encantamento ou espanto (thauma) como fator fundamental para a aprendizagem e
formação do filósofo. Com efeito, “pelas narrativas míticas, Platão parece ter desejado
produzir nos espíritos aquela persuasão que se designa pelo nome de experiência
estética.” (VAZ, 2012, p. 39) Trata-se, segundo Brisson, de uma espécie de
"encantamento," produzido pelo mito e que desempenha uma função terapêutica e
persuasiva na alma dos homens. (BRISSON, 2014 p. 40) Em outras palavras, Platão
quer exercer em seu leitor um “encantamento estético”, que o leve a ficar em um estado
de espírito (nous) favorável para o exercício da dialética. Sendo assim, mesmo que o
leitor não esteja em exercício dialético, ou seja, dialogando com outra pessoa, ainda
assim manterá um exercício dialógico com o texto. Portanto, uma primeira característica
do mito é exercer uma influência psico-estética em seus leitores.
Platão se mostra um perito em narrar histórias, (mythologein) mas deixa evidente
em seus diálogos a diferença entre o mito e logos. (Republica 376d e 501e) Contudo,
estes são intercambiáveis, eles “dialogam” entre si, possibilitando ao leitor um melhor
aproveitamento e compreensão
do conteúdo. Valendo-se de um termo do mundo
6
helênico, (hellenikos kosmos) Platão utiliza o mito com fins “psicagógicos”. Essa
expressão tem origem na palavra psikhé, que significa alma (entendida como mente), e
no verbo agogein que é o verbo conduzir. (SCHAFER, 2012, p. 220)
A psicagogia é a arte de conduzir a alma, de conduzir a mente para determinado
fim. Partindo deste pressuposto, Platão se vale do mito com o intuito de guiar a alma,
isto é, de guiar a mente do leitor para um determinado modelo de educação (paidéia).
Para Lima Vaz, o mito em Platão é um poderoso “recurso” para favorecer uma
atmosfera mental pertinente ao exercício dialético. O mito em Platão possui um caráter
filosófico sendo mais do que um simples adorno estilístico: trata-se de um complemento
ao discurso racional. (VAZ, 2012, p. 40)
Esta intermediação entre filosofia e mito como modo de discurso literário, ou
seja, como forma de linguagem oferece maior possibilidade de discorrer a respeito da
realidade do ser, pois segundo Platão, “foi assim, ó Glauco, que a história (mythos) se
salvou e não pereceu. E poderá salvar-nos, se lhe dermos crédito”. República, (621 c)
Para Jean-Pierre Vernant, ao exaltar o mito nessa passagem, Platão, mesmo que “meio
sério, meio zombeteiro, cumpre, ao fim do diálogo, a sua própria dívida com os temas
lendários que ele transpôs e que conservam um incomparável valor de sugestão de seu
enraizamento no passado religioso da Grécia” (VERNANT, 2008, p. 185). É
interessante observar que o historiador francês reconhece que Platão, embora seja um
crítico das perspectivas míticas, tenha sido ele mesmo um pensador que exaltasse e
mesmo glorificasse os mitos (mythoi) como um fator, se não fundamental, pelo menos,
importante, no processo de educação (paidéia) e formação do homem grego. Para
Vernant, Platão sempre se manteve algumas vezes sério outras vezes meio que
zombeteiro em seus diálogos. Isso revela o viés literário de sua obra. Somente nos
diálogos de maturidade é que essa característica não mais é observada.5
Outro aspecto importante a ser observado no estilo platônico é que alguns
saberes, que remontam às questões ético-religiosas são melhor compreendidos pela fala
mítica do que pelo próprio logos. As questões pertinentes ao que os antigos chamavam
de crença (pístis) seriam mais assimiláveis e aceitáveis se narradas em perspectivas
míticas. Nesse sentido, para Vernant, "a filosofia destronou o mito e tomou o seu lugar;
5
Para Trabattoni os diálogos da juventude por serem em sua totalidade diálogos aporéticos, são
portadores do método crítico-refutador, empregado por Sócrates, acompanhado de uma narrativa
mítica que teatraliza literariamente o texto. Já nos diálogos de maturidade, observamos o contrário, o
pensamento de Platão afasta-se do mito enquanto recurso discursivo-literário exatamente pelo fato de
sua filosofia assumir um aspecto mais assertivo e doutrinal. (TRABATTONI, 2010, p. 18)
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mas, se ela é válida é também por que soube salvar essa “verdade” que o mito exprimia
a sua maneira.” (VERNANT, 2008, p. 185) Os mitos (mythoi) não são portadores de um
saber epistemológico, entretanto, eles possuem seu valor no que tange ao exercício
intelectual acerca das realidades epistemológicas. O mito passa a definir o aspecto da
crença, pístis, em contraposição ao domínio da episteme ou certeza da ciência.
Entretanto, segundo Vernant, "pelo fato de ser conforme ao esquema mítico, o
desdobramento da realidade pela filosofia em modelo e imagem, nem por isso significa
menos o sentido de uma desvalorização do mito, rebaixado ao nível da imagem. Em
particular, Platão, Timeu, 29ss.” (VERNANT, 2008, p. 453)
A utilidade do mito se dá “por um lado, por que Platão pode falar apenas em
termos míticos acerca de certo tipo de referentes, isto é, de tudo aquilo que tange a alma
e ao passado longínquo." (BRISSON, 2014, p. 54) Essas realidade permanecem, por
assim dizer, fora do alcance tanto dos sentidos quanto da inteligência. Por outro lado, o
mito se encontra ligado ao domínio da ética e da política, para os não filósofos "em
cujas almas predominam a parte desiderativa (epithymía).” (BRISSON, 2014 p. 54)
Sendo assim, fica bastante claro que o mestre da Academia (academéia) distinguia bem
a fala epistemológica, lógica e racional (logos) do discurso não verificável e fabuloso
(mythos). Os mitos são compreendidos como “nobres mentiras”. Mas o fato de eles não
serem "verdadeiros" não importa a Platão, pois é exatamente o filósofo que consegue
abstrair deles os preceitos e recursos adequados para suas formulações filosóficas.
Brisson avalia que o mito se situa numa segunda ordem de valor, na medida em quem
ele é "verdadeiro ou falso de acordo com sua adequação ou inadequação com o discurso
que formula o filósofo acerca do mesmo assunto.” (BRISSON, 2014, p. 55)
II
Para Desmond, nós encontramos em Platão um senso de alteridade que implica
na possibilidade do pensamento pensar os seus outros e não apenas a si mesmo. Em
Platão, o outro não deve ser reduzido ao pensar filosófico. Segundo Desmond, a
filosofia possui uma dupla exigência de pensar a si mesmo e aos seus outros e Platão
nunca abandonou o mito para embarcar no puro pensamento do pensamento. Em
Parmênides, (130 c-e) Sócrates diz ter sido inspirado pelo oráculo de Delfos: gnatti
seanton. O autoconhecimento não pode se esquecer do outro.
Com a metáfora da caverna, Platão mostra que a natureza eterna das estruturas
de inteligibilidade são afirmadas e reafirmadas com a qualificação de que a eternidade
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se manifesta no tempo. (DESMOND, 1992, p. 63) Para Platão, o "maravilhar-se"
(thaumazein) é o pathos do filósofo, mas desde Descartes a dúvida tornou-se o início da
filosofia. A busca de uma total determinação do ser culmina em Hegel, que transformou
o amor filosófico pela sabedoria em conhecimento sistemático absoluto. (DESMOND,
1992, p. 245)
A metáfora da caverna, em seu longo percurso da antiguidade clássica até os
dias de hoje, continua sendo uma das projeções filosóficas, que mais ganhou vulto em
nossa tradição espiritual. Diversos são os pensadores que se debruçaram sobre esse mito
platônico. A “Caverna de Platão” já foi alvo de várias releituras. A alegoria é bem
conhecida: Platão imagina uma caverna, e nessa mesma caverna ele imagina
prisioneiros que se encontram em uma condição de acorrentamento. Estão todos de
costas para a entrada. Atrás desses homens, na entrada da caverna, existe uma espécie
de muro, ao longo do qual, alguns indivíduos transportam objetos erguidos acima do
muro e conversam entre si. Atrás destes, existe um fogo, graças a ele, os prisioneiros
podem ver no fundo da caverna as sombras dos objetos e ouvir os ecos gerados pelas
vozes. Se por algum motivo esses prisioneiros fossem desacorrentados,
soltos e
obrigados a se levantarem e olharem para os objetos reais, seus olhares seriam
ofuscados, não enxergariam bem e acreditariam que a verdadeira realidade era a que
viam antes, isto é, a da caverna, e não a que agora vêem. E se fossem levados para fora
da caverna, seus olhos seriam cegados pelos raios solares e não obteriam êxito na
tentativa de ver os objetos que pertencem ao mundo real. Dessa forma teriam que se
habituar lentamente. Primeiro observando apenas os reflexos. E, posteriormente, à noite
os corpos celestes como os astros luminosos e a lua. Só depois poderiam contemplar o
sol. (República, 516 b)
O próprio Platão ao final da exposição, através de Sócrates, explica a narrativa
exposta. (República, 517 b) Sendo assim, “estamos nós em uma situação
extraordinariamente favorável, por que o próprio Platão encarregou-se de comentá-la e
esclarecê-la, de maneira suficientemente clara, completa e concisa.” (JAEGER, 2013, p.
894) Segundo a explicação de Platão podemos dizer que esse mito representa de
maneira direta, a "subida" ao "mundo superior". Representa o percurso de acesso ao
mundo inteligível das formas perfeitas e imutáveis. Platão ainda faz uma analogia
direta, entre o sol, e, a Idéia do Bem (to agathon). Segundo Werner Jaeger, “a ascensão
para o alto e a contemplação do mundo superior é o símbolo do caminho da alma em
direção ao mundo inteligível.” (JAEGER, 2013, p. 893) Ou seja, o fim último ao qual
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Platão almeja chegar, conhecer é exatamente aquilo que sua intuição espiritual
denominava de mundo das idéias (noetos topos). Em outras palavras, “o conhecimento
do verdadeiro Ser representa ainda a passagem do temporal ao eterno. A última coisa
que na região do conhecimento a alma aprende a ver, “com esforço”, é a Idéia do Bem.”
(JAEGER, 2013, p. 893)
III
A Caverna de Saramago, segundo Barone, “é um livro multireferencial em
vários aspectos da modernidade globalizada." O livro VII da República de Platão, o
famoso Mito da Caverna, tem influência sobre essa obra de Saramago, que mantém com
esse livro o principal intertexto. (BARONE, Acesso em: 22 nov. 2015) O escritor
português reelabora o Mito da Caverna de maneira tal que percebamos de modo
objetivo os contrastes da sociedade globalizada. Sua obra, embora ficcional, é uma
tentativa de repensar a condição humana. O autor percebeu, tal como Platão, que nossa
sociedade globalizada possui dualidades e contrastes. Ele explora as dualidades
existentes entre opostos: luz e sombra, ignorância e conhecimento. Para Barone existe
um paralelismo entre a alegoria da caverna e o centro de Saramago, dando a entender
que em plena contemporaneidade "não estamos tão longe assim da Caverna de Platão."
(BARONE, Acesso em: 22 nov. 2015)
A caverna está para Platão, como o Centro, está para Saramago. O Centro se
configura como sendo um local visceral para os moradores daquela localidade. É o
ambiente onde se fazem compras de todas as ordens. É um ambiente onde todos
estudam e trabalham. Onde fazem suas recreações e lazeres. O Centro se mostra como
um organismo vivo, super organizado, metódico e com normas de conduta muito bem
definidas para aqueles que gozam de suas instalações. O Centro é mostrado como o
lugar do consumo exacerbado, e da fragmentação dos homens como meros
consumidores.6
As múltiplas imagens do centro, são as sombras da caverna, produtos a serem
consumidos por pessoas, que paulatinamente acabam abdicando de suas faculdades
racionais e se deixam levar pelas imagens. Para Barone, o Centro Comercial é pode ser
interpretado alegoricamente uma caverna moderna, onde tudo é artificial, a luz, as
Segundo Barone, “o centro comercial, que para nós brasileiros é mais conhecido como shopping Center,
já é prenunciado pelos condomínios dos bairros de classe alta, que se aproximam do centro comercial
proposto por Saramago, por compreender que nas cercanias dos conjuntos de condomínios tudo é voltado
para que aqueles moradores não precisem sair do bairro para terem o que precisam.” (BARONE, Acesso
em: 22 nov. 2015).
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vitrines da lojas e o cidadão é transformado em consumidor. O ser humano "imerge
novamente na penumbra e nas sombras fantasmagóricas, passando a acreditar nas
sombras como realidade.” (BARONE, Acesso em: 22 nov. 2015) Saramago não se
abstém de ser um questionador desta realidade. Percebemos que o Centro possui quase
que uma “onipresença” dentro da narrativa e dentro da própria vida das personagens.
Tal como Platão deliberava sobre a Caverna, Saramago entende que o Centro é o lugar
da ilusão e da fragmentação. Talvez por isso, os autores, tanto o grego, como o
português, deixem marcados a já dita “onipresença”, da Caverna para o grego, e a do
Centro para o português. Segundo Devalcir, o Centro "funciona como um personagem
alegórico, pois incorpora as ações negativas contra a família de Cipriano e contra outros
comerciantes." (DEVALCIR, Acesso em: 22 nov. 2015) O Centro experimenta um
crescimento vertiginoso e, que de algum modo, vai paulatinamente engolindo os
pequenos comerciantes e artesãos.
Na narrativa de Saramago, a personagem que talvez seja o eixo ordenador da
obra, venha a ser o oleiro Cipriano Algor. Um homem de sessenta e quatro anos, não
necessariamente um simples homem do campo, mas sim, um personagem e uma
personalidade marcante, que oferece ao leitor uma sensação e intuição, de que ele, é a
personagem na trama que direcionará os acontecimentos. Nesse sentido, Cipriano Algor
se aproxima do Sócrates de Platão enquanto personagem ordenadora da narrativa. Nesse
entendimento tendo em referência o Sócrates de Platão “torna-se um herói de um drama
filosófico, no qual a sua arte musical, a filosofia, de certo modo, ganha uma nova
definição.” (ERLER, 2012, p. 83)
IV
Para Desmond, tanto a voz filosófica, como a voz poética, são modos para se
alcançar uma compreensão possível do ser. Ele entende que essas vozes podem dialogar
entre si e, em alguns momentos, uma se silencia para auscultar a voz da outra. Desmond
mostra que nenhuma “especialidade” é capaz de portar em si de maneira integral a
intermediação do eu e do outro. “Entretanto, se não existe nenhum especialista do entre,
existem figuras que permitem uma interação mais livre à exigência da totalidade
humana” (DESMOND, 2000, p. 73). O poeta, como imagem arcaica do sábio, se mostra
como uma destas figuras. A poesia e a filosofia são dois modos de atenção-plena, pois
as duas se apresentam como representantes de um poder fundamental: a imaginação e a
razão. Com a imaginação, o poeta vai além das determinações da razão, já o filósofo,
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exerce sua atividade em categorias muito bem definidas de forma conceitual. Em
detrimento disso, Desmond entende que necessitamos "do poder da imagem e não
apenas da abstração do conceito para permanecer fiéis à concretude do meio”
(DESMOND, 2000, p. 75). A “imagem” é o exercício da voz poética, que tem por
mediadora a imaginação. Nesse sentido, imagens são uma perspectiva contrária a ao
rigor conceitual existente na filosofia, porém, Desmond as reconhece como benéficas
para atingirmos a concretude do meio. É importante observar que em alguns casos, o
discurso filosófico se mostra muito mais fantástico e imaginativo, repleto de
“reviravoltas dialéticas,” (DESMOND, 2000, p. 75) que por vezes se valem mais da
imaginação do que os poetas surrealistas. A voz poética nos possibilita atingir a
totalidade possível do ser. O poeta não faz afirmações conceituais acerca da realidade,
mas ele pode e desempenha o papel de despertar a atenção-plena concreta à
perplexidade. Para Desmond, “a admiração que a voz poética liberta é a mesma
admiração que se achava no início da filosofia. Nesse aspecto, a filosofia e a poesia são,
cada qual, um modo não-instrumental da atenção plena do meio.” (DESMOND, 2000,
p. 76) A filosofia e a poesia se configuram como sendo outros em interação. São
discursos diferentes, mas que dialogam entre si. Exercem mutuamente a alteridade, cada
uma com seus matizes e peculiaridades particulares. Uma com o rigor do conceito, e a
outra com a maleabilidade que a imaginação possibilita.
Sendo assim, a voz filosófica e a voz poética são vozes diferentes, mas não
dissonantes. Cada uma abrange a seu modo a ordem do real. A filosofia, seguindo as
perspectivas da racionalidade, descreve o ser e a realidade em premissas conceituais.
Mas a própria filosofia, como nos textos de Platão, se permite escutar o cântico dos
poetas, e aquelas verdades que somente a voz poética pode evocar. De comum forma, a
literatura, com suas expressões artísticas e fabulosas, em determinados momentos
aborda questões objetivas acerca do ser e da realidade através de perspectivas morais e
éticas.
Desmond concebe a filosofia como metaxológica, que se define na interação
com os seus outros significativos e que também incorporam o ideal da sabedoria
filosófica. Isso significa que a questão referente à identidade e ao papel da filosofia não
pode ser algo meramente abstrato. A filosofia não pode advogar para si uma identidade
unívoca estática na medida em que existe uma pluralidade de modos do ser filosófico.
(DESMOND, 1987, pp. 15-16.) Assim sendo, encontramos um duplo movimento de
automediação e de intermediação do pensamento filosófico com os seus outros. O
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espaço intermediário do meio não pode ser encapsulado por nenhuma das instâncias
auto e inter mediadas. Por isso mesmo, este permanece sempre aberto e outro a qualquer
tentativa sistemática de conceber o todo como mediando apenas consigo mesmo.
Para Desmond, o pensamento filosófico contemporâneo parece estar tomado por uma
certa fadiga; os filósofos se encontram céticos em relação a si mesmos, uma espécie de
hara-kiri do pensamento. (DESMOND, 1987, p.16.) Em suma, a filosofia se tornou um
problema para si mesma.
Ao propor o espaço intermediário do ser, Desmond concebe a filosofia como um
modo do ser e do pensar totalmente aberta aos seus outros, que são constitutivos da sua
própria identidade. Nessa nova configuração, o pensamento pensa tanto a si quanto aos
seus outros, reconhecendo uma alteridade recalcitrante que resiste a qualquer tentativa
de retorno à univocidade dialética, que em última instância não reconhece de fato o
outro enquanto outro.
Nesse sentido, Desmond recusa as retóricas da desconstrução e do fim da
filosofia presentes no pensamento continental europeu. Tão pouco aceita a eutanásia
efetuada pelo pensamento analítico anglo-americano com a sua natureza tecnicista e
lógica. (DESMOND, 1987, p. 17.) O papel da filosofia, enquanto pensamento que pensa
tanto a si mesmo quanto os seus outros, não é idêntico à autoreflexão. (DESMOND,
1987, p. 18.) Afinal, a verdade não será nunca posse do filósofo. Este pode no máximo
almejar ser um amigo da sabedoria. Portanto, o filósofo encontra-se sempre situado no
espaço intermediário do ser, buscando estar plenamente atento à comunidade
metaxológica do ser. A mediação filosófica se dá na interação com uma pluralidade de
vozes que compõem o meio. O pensamento não pode se fechar à alteridade.
(DESMOND, 1987, p. 19.) Segundo Desmond, "a verdade não é nunca posse ou
propriedade de ninguém." (DESMOND, 1987, p. 20.)
A busca filosófica emerge na comunidade metaxológica do ser, onde o filósofo
pode estar incerto no que tange respostas absolutas, mas se interroga plenamente-atento
sobre questões fundamentais. A filosofia é esse interrogar plenamente-atento.
(DESMOND, 1987, p. 20.) A filosofia coloca questões extremas sobre as origens e o
fim, que se manifestam no espaço complexo do meio. Estas questões últimas vão além
das respostas domesticadas do pensamento unívoco e suas determinações conceituais.
Enquanto abertura reflexiva a filosofia não se sente em casa com o ser, ao mesmo tempo
em que ao se colocar questões últimas busca, de algum modo, estar radicalmente em
casa com o ser. Por isso mesmo, as suas questões não podem ser meramente abstratas
13
no "deserto da verdade", presente no meio. O filósofo encontra-se sempre eticamente
situado.
A hermenêutica desmondiana abre o pensamento para as figuras significativas
outras ao pensamento filosófico e, ao mesmo tempo, constituintes do discurso da
filosofia. No que tange a poesia e a literatura enquanto seus outros significativos, "o
poeta representa a imagem arcaica do sábio." (DESMOND, 1987, p. 35.) A arte e a
lógica, a imagem e o conceito não estão em oposição uns aos outros.7
Segundo Desmond, para permanecermos fiéis ao espaço intermediário do meio,
o filósofo necessita da imagem e do conceito. (DESMOND, 1987, p. 36.) Entretanto, o
filósofo não escreve prosa, muito embora como o poeta ele seja um aventureiro da
mente, um pensador da alteridade. (DESMOND, 1987, p. 36.) Na medida em que o ser
não é mera univocidade e tão pouco pura equivocidade, no excesso de toda a
articulação, tanto o filósofo quanto o poeta se alternam no caráter excessivo do ser. A
imagem poética resiste a qualquer modo de redução, encontrando-se aberta a uma
variedade de possíveis interpretações. Um poema apresenta uma conjunção de opostos
que resistem à redução logicista. O maravilhar-se que o poeta apresenta em suas
imagens é o mesmo encontrado nas origens da filosofia. (DESMOND, 1987, p. 36.)
Essas imagens mostram, muitas vezes, os limites da análise e a pobreza das abstrações
filosóficas.
A hermenêutica metaxológica abre espaço para que o filósofo possa ser poético.
Entretanto não se pode reduzir a poesia à filosofia ou vice versa. A voz do poeta e o seu
por imaginativo alarga a voz da filosofia. As especulações filosóficas são a poesia da
razão. Entretanto, podemos detectar áreas de tensão entre o poeta e o filósofo na medida
em que a imagem poética pode tanto revelar quanto esconder a verdade. Não se pode
escapar da questão à respeito da verdade da imagem. (DESMOND, 1987, p. 37.) A
imagem poética é livre; a filosofia deve pensar criticamente sobre a verdade revelada
pela imagem. Para permanecer fiel à verdade do espaço metaxológico do ser, a
especulação filosófica não pode apenas consentir em qualquer possibilidade, já que a
imagem pode distorcer o original. Isso significa que a hermeneuticamente as imagens
podem ser vazias. (DESMOND, 1987, p. 38.) Nós necessitamos mais do que imagens, o
filósofo busca a verdade em termos reflexivos e abstratos.
7
Desmond discorda da oposição nietzschiana entre Homero e Platão como sendo a antítese
fundamental da vida. Ele relembra que paradoxalmente Nietzsche em sua prática filosófica personificou
a figura do filósofo-poeta. Ver: DESMOND, 1987, p. 35.
14
Levando-se em conta a crítica que William Desmond faz ao que entendemos por
filosofia como sendo abstrações racionais, muitas vezes tecnicistas, que não se abrem
genuinamente para o ser em sua totalidade, o posicionamento dialógico de Platão se
mostra eficaz e atual. Com sua proposta metaxológica, Desmond entende que a filosofia
deve dialogar com seus outros, que deve ser menos tecnicista, para que possa dialogar
com a pluralidade de vozes que temos na atualidade.
Desmond se refere à uma “velha tradição” que afirma que depois de Sócrates a
filosofia ficou sedentária. Ou seja, estão em seus gabinetes presos as suas abstrações e
não mais no espaço público da ágora. Ao se tornar um saber técnico especializado, a
figura do “outro” perdeu paulatinamente seu espaço e status no discurso dos filósofos.
(DESMOND, 1992 p. 253) Um possível e desejável intercâmbio entre filosofia e
literatura como formas de linguagem, possuem uma maior possibilidade de discorrer a
respeito da realidade e do ser. Pois como nos deixou registrado Platão: “Foi assim, ó
Glauco, que a história (mythos) se salvou e não pereceu. E poderá salvar-nos, se lhe
dermos crédito”. República, (621 c). A Caverna de Saramago exemplifica como tanto
o filósofo quanto o poeta podem ser originadores de uma profunda atenção-plena.
Platão testemunha a existência de uma espécie de alteridade interna, outra ao
logos filosófico e, que excede a razão especulativa. O filósofo é alguém intermediário
fazendo a mediação entre essas duas condições do pensamento. A filosofia é mais do
que uma doutrina lógica. (DESMOND, 1992 p. 253) Desse modo, uma alteridade
indomável paira sempre sobre o noesis noeseos de Aristóteles e sobre o retorno último
do pensamento no Espírito Absoluto. A filosofia é mais do que o pensamento que si
pensa a si mesmo.
No Teeteto, (174a ss) Sócrates retoma a estória de Tales e da serva trácia. Tales
estava andando de noite absorto em seus pensamentos sobre o céu estrelado acima de
sua cabeça e totalmente alheio ao solo onde pisava. Ele caiu em um buraco provocando
o riso da serva trácia, zombando de sua queda. (DESMOND, 1992 p. 256) A filosofia
tenta caminhar com a cabeça mas o resultado é ridículo. O riso da serva ainda ecoa e
assombra o filósofo, pois pode significar que a filosofia não faça sentido algum, que ela
seja ridícula.
Ao mesmo tempo em que medeia consigo, o pensamento tem que se abrir para
uma alteridade que não será nunca totalmente absorvida pelo pensamento conceitual. A
metaxologia desmondiana se coloca entre a dupla exigência do pensamento: pensar a si
mesmo ao mesmo tempo que se abre para a alteridade recalcitrante do ser. O
15
pensamento ocidental, sobretudo com a guinada da modernidade, testemunhou a
atenuação do "espírito de sutiliza", para acentuar o "espírito geométrico" (Pascal).
A filosofia não possui apenas um outro significativo e o pensamento filosófico
tem que ser mais do que o pensamento que pensa e medeia apenas consigo mesmo.
(DESMOND, 2000, p. 15) Ela precisa intermediar com a alteridade do que lhe são
outros. Desmond oferece uma série de outros significativos que fazem parte do próprio
filosofar: o acadêmico, o técnico, o cientista, o poeta, o sacerdote, o revolucionário, o
herói e o sábio. Essas figura são, por assim dizer, iluminadoras do próprio discurso
filosóficos; eles habitam a comunidade metaxológica do ser e expressam uma energia
original que não pode ser reduzida pela voz do filósofo. A própria filosofia terá que se
definir na interação com os seus outros e, conseqüentemente, ela não possui uma
identidade estática e unívoca; ela é potencialmente plurívoca.
O ideal tradicional de sabedoria estava ligado a um senso de intermediação, que
em muito se difere da preocupação exclusiva da filosofia "pura." Toda e qualquer
possibilidade humana fundamental traz consigo a implicação com o todo e, desse modo,
é uma questão que envolve a sabedoria. O filósofo não possui a sabedoria de modo
exclusivo. Existe uma complexidade que vai além do pensamento pensando a si mesmo.
A filosofia tem que pensar também os seus outros e nos limites do pensamento a
complexidade do ser demanda que a filosofia cante os seus outros. No canto a filosofia
reconhece que ela é apenas uma voz em meio à pluralidade de vozes. Enquanto abertura
autoreflexiva para a alteridade recalcitrante do ser, ela não pode se fechar num
monólogo consigo mesma.
16
Considerações finais
A metaxologia é a expressão de uma generosidade hermenêutica que busca
refletir sobre o espaço intermediário entre a filosofia e os seus outros. Isso exige
explorar de modo sistemático os temas presentes no espaço intermediário do ser.
Entretanto, o pensamento metaxológico explora temas que se encontram no limite da
compreensão mais sistemática do pensar forçando a filosofia a se abrir para
perplexidades outras à determinação do pensamento autônomo moderno.8
A filosofia neste espaço intermediário tem que estar plenamente-atenta à
ambigüidade do ser ao mesmo tempo em que é levada para os limites do pensamento
mais sistemático ao tratar de temas que exigem mais do que o espírito geométrico pode
alcançar. Isso demanda um espírito de sutileza que vá além do sentido moderno de
teoria, que parte da hipótese instrumental que nos oferece entendimento e domínio da
realidade.
A questão da filosofia e dos seus outros tem que ser abordada por um espírito de
sutiliza capaz de se abrir para a porosidade do mistério elusivo das coisas, que uma
teoria analítica ou clareza geométrica não conseguem penetrar A univocidade da teoria
cientifica não é capaz de penetrar a matriz ambígua do ser. A filosofia, segundo
Desmond, tomada como mera tecnicalidade puramente argumentativa não consegue
abarcar o caráter excessivo do ser.
Desmond argumenta, tomando Sócrates como exemplo, a origem religiosa da
filosofia, que precipitou a própria perplexidade filosófica. Apesar das diferenças entre
8
A guinada epistêmica cartesiana e o ideal científico operado pela ciência moderna com a sua
pretensão de dar uma resposta unívoca ao ser das coisas se tornam reticentes à matriz ambígua do ser,
que nutriu a racionalidade do passado. Desde os primórdios da filosofia, filósofos como Platão estavam
cientes da inutilidade da filosofia em contraposição à instrumentalidade da razão, que se configurou
quase que como normativa da racionalidade, sobretudo, depois de Descartes. De fato, a nova ciência foi
vista como conferindo benefícios práticos para a humanidade. Entretanto, os filósofos especulativos,
como Platão, estavam cientes que o pensar filosófico está ligado à ativação de uma energia da mente
para além da mera instrumentalidade. (DESMOND, 1992 p. 49) Com o sucesso metodológico do
pensamento moderno, (WHITEHEAD, 1985, p. 69) que permitiu ao homem o exercício efetivo de
domínio e senhorio sobre as coisas, sobretudo a natureza, a filosofia foi se tornando cada vez mais
fechada em si mesma. Enquanto pensamento que si pensa apenas a si mesmo, a filosofia foi perdendo,
paulatinamente, a sua relevância no quotidiano do saber. Contudo, a vitória dos sentidos lógicos e a
implementação do projeto de uma razão meramente instrumental, esquecida do caráter especulativo
do pensar, tende a tomar tudo como meio para um determinado fim, incluindo o ético e o outro. A
grandeza da razão especulativa é que esta não transforma o espaço intermediário do ser em mero meio,
na medida em que mantém uma vigilância atenta plenamente para o ser enquanto possuindo um
caráter elusivo e equívoco, que escapa à mente instrumental. Trata-se de uma vigilância do pensar em
relação ao ser que é totalmente outro à instrumentalidade da razão.
17
as duas existe uma intimidade profunda entre o mito e a filosofia. Ou seja, o mito
aponta para acontecimentos que se colocam em excesso à completa determinação finita
do pensamento, para além da objetivação e da subjetivação. Eles devem ser pensados
tanto como algo íntimo que ao mesmo tempo insinuam algo universal. (DESMOND,
2005, p. 13)
Ao explorar a figura do poeta enquanto outro significativo da filosofia a
metaxologia concebe o poeta como possuidor de uma recalcitrância que resiste a
completa conceitualização. O poeta para a filosofia antiga não é um mero especialista da
experiência estética como se configurou após Kant. Para os gregos, ele era aquele que
conservava a sabedoria tradicional, sendo guardião das imagens do divino.
(DESMOND, 1990, p. 35)
Platão não era inimigo dos artistas e dos poetas, mas foi quem melhor
representou a voz do filósofo expressa em diálogos dramáticos. A filosofia e a poesia
são mediadores complementares da alteridade do ser. A filosofia tem que se mover para
além do “postulado finitista” e seu enunciado básico de que ao pensar o ser como finito
e nada mais do que finito, então, não se é possível pensar nada além. (DESMOND,
2005, p. 25.) Ao advogar a pobreza da filosofia, a metaxologia desafia os filósofos a se
abrirem para além das autossatisfações do conhecimento mais sistemático da filosofia
tradicional. Assim, novas porosidades do pensar podem aflorar de modo mais rico e
promissor do que o exercício da filosofia enquanto pensamento que se pensa apenas a si
mesmo.
Em suma, o pensamento se esvazia por assim dizer de sua pretensão de completa
determinação do ser e se coloca na dimensão do hiperbólico, (DESMOND, 2005, p. 20)
que vai além da cognição determinada das ciências. Trata-se de uma espécie de retorno
ao zero: uma profunda abertura ao enigma ontológico do ser. (DESMOND, 2005, p. 13)
Existem espaços que são “entres” e estes se constituem como poros de comunicação
entre o pensamento e o que é outro ao pensamento. Esta porosidade encontra-se aberta à
realidade última sendo requerida uma sutileza do pensar para adentrarmos o universal
íntimo. (SOUZA, 2013, p. 123)
18
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