CONTROLE DO DENGUE: DEVEMOS MANTER A MESMA ESTRATÉGIA? Maria Lucia Fernandes Penna1 Quando o problema é controle do dengue, aparentemente já conhecemos a resposta técnica: controle do Aedes aegypty através do trabalho de guardas sanitários, que devem periodicamente visitar todas as edificações urbanas. A força ideológica desta estratégia tradicional, que tem o apoio da figura mítica de Oswaldo Cruz, o patrono da saúde pública brasileira, se expressa na abordagem dos meios de comunicação ao cobrir o controle do dengue, onde este ponto jamais é problematizado. Em julho passado, participei do Seminário Internacional de Avaliação do Programa Nacional de Controle de dengue, no qual o ponto de partida da discussão colocado pelo Secretário de Vigilância em Saúde foi a demanda de explicação para o reduzido impacto da aplicação de recursos financeiros vultuosos. A hipótese levantada na reunião, para verificação futura no processo de avaliação, foi de ineficiência técnica das ações dos agentes de controle de endemias, cerca de 20.000 em todo o país. Tendo pessoalmente testemunhado a visita de agentes sanitários a residências, tanto na cidade do Rio de Janeiro quanto em Manaus, quando se limitaram a colocar larvicidas em ralos utilizados diariamente, ou seja, que dificilmente se constituem em criadouros, acredito ser esta hipótese muito provável. A questão que se coloca, no entanto, é se a atuação de agentes capacitados tecnicamente, capazes de identificar criadouros corretamente e, portanto, diminuir a densidade vetorial através da visita domiciliar, produzirá impacto efetivo sobre o comportamento do dengue. Na reunião também se pode ouvir o depoimento de secretário municipal de saúde, representante do CONASEMS, sobre o retorno imediato aos níveis de infestação vetorial, se interrompidas temporariamente as visitas dos agentes de saúde, o que revela a fragilidade desta estratégia, mesmo quando corretamente executada. 1 Doutora em Saúde Pública. Professora Adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. End.: Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º andar - Maracanã - CEP: 20550-040 E-mail: [email protected] C A D . S A Ú D E C O L E T ., R I O DE J A N E I R O , 15 (2): 287 - 290, 2007 – 287 MARIA LUCIA FERNANDES PENNA Atualmente, o programa de controle de dengue tem uma imagem na opinião pública muito parecida com os programas de controle do Aedes no começo do século XX, ou seja, é baseado na intervenção estatal dentro da residência das pessoas através dos mata-mosquitos, existindo uma confusão entre as responsabilidades públicas e privadas. Durante a epidemia 2001/2002 no Rio de Janeiro, a grande imprensa convocava a população a limpar as praças públicas, ao mesmo tempo em que o poder público solicitava poder para invadir propriedades fechadas, e os mata-mosquitos visitavam residências. A alternativa é um programa de controle do dengue onde a sociedade civil seja responsável pelo controle larvar nas áreas privadas. Que envolva o grande empresariado no controle larvar e de formas adultas nas suas empresas, as associações do comércio nas áreas onde exista grande circulação de pessoas, deixando ao poder público municipal as tarefas de garantir o suprimento contínuo de água (evitando armazenamento improvisado), a regulação das construções urbanas evitando aspectos que propiciam criadouros (por exemplo, construções com jardineiras implantadas no projeto, que vazias acumulam água das chuvas), o controle de criadouros nas áreas públicas, e o controle de formas aladas nas áreas de grande circulação humana durante a circulação do vírus. Em resumo, um novo programa de controle, como proposto pela Organização Pan-America de Saúde/Organização Mundial de Saúde (OPS/OMS), no qual a responsabilidade é compartilhada pelo nível governamental e pela sociedade civil. Para que tal programa seja possível, em primeiro lugar é preciso que se reconheça a impossibilidade da erradicação do Aedes e, portanto, do dengue. Isto significa uma mudança de discurso, em que a circulação do vírus do dengue não seja uma coisa estranha a nós, mas, sim, uma conseqüência de habitarmos áreas urbanas em um clima tropical. Sendo assim, todos devemos estar comprometidos com o controle vetorial de forma permanente, e as ações devem ser reforçadas segundo o comportamento sazonal da população vetorial. É preciso também envolver amplos setores da sociedade civil, em especial urbanistas, engenheiros e arquitetos, no sentido de discutir a questão dos vetores como parte de sua atividade. O empresariado também deve ser mobilizado. Lembro da sua contribuição na informação para saúde no início da epidemia de Aids. É hora de separar o espaço público do privado no controle do dengue, assim como empresas de cidadãos. Da mesma forma que é de responsabilidade de uma empresa a não emissão de poluentes na atmosfera, também o é não possuir um macro criadouro de Aedes. Em termos práticos, temos que distinguir o que deve ser normalizado e fiscalizado do que deve ser executado diretamente pelo poder público. 288 – C A D . S A Ú D E C O L E T ., R I O DE J A N E I R O , 15 (2): 287 - 290, 2007 CONTROLE DO DENGUE: DEVEMOS MANTER A MESMA ESTRATÉGIA? O grande desafio desta proposta é como viabilizar as ações privadas de controle no ambiente doméstico. As campanhas públicas têm priorizado a eliminação de criadouros, o que diminui a vulnerabilidade. No entanto, a eliminação total de criadouros é impossível. Assim, é preciso que a população seja corretamente informada sobre o comportamento sazonal do vetor e sobre o seu desenvolvimento. Por exemplo, a informação de que a larva nunca se desenvolve até a forma alada em menos de 7 dias (11 a 18 dias, a 260 ºC) permitiria a vigilância e eliminação de possíveis criadouros com periodicidade menor do que esta. O comportamento doméstico do Aedes, em contraste com outros mosquitos semi-domésticos ou silvestres, também não foi devidamente esclarecido. A população manifesta constantemente preocupação pela proximidade de florestas. Dizer que o dengue se pega em casa não basta. A malária transmitida pelo Anopheles darlingi também se pega em casa, embora seus criadouros sejam naturais, em contraste com os criadouros do Aedes aegypti fabricados pelo homem. Além de informação, a população precisa ter acesso a larvicidas para uso doméstico. O biolarvicida Bacillus thuringiensis variedade israelense (BTi) é utilizado na água de consumo humano por recomendação do próprio Ministério da Saúde, e é disponível para a compra nos Estados Unidos para uso doméstico. Seu uso é incentivado pelas autoridades sanitárias da cidade de Nova York, preocupadas com o controle de mosquitos transmissores de encefalite causada pelo vírus do Nilo Ocidental. Trata-se de um produto inofensivo para mamíferos e sem registro do desenvolvimento de resistência em campo. Sua distribuição à população carente e venda em geral em apresentação para uso doméstico pode, sem dúvida, implementar de modo importante o controle intra-domiciliar do mosquito. Acredito que a população deva receber a melhor e mais recente informação possível, ter meios de comunicação com os responsáveis pelo controle vetorial e acesso a todos os meios disponíveis para o controle vetorial doméstico, de sua responsabilidade. Diante de uma epidemia, o controle vetorial entra na pauta política. Mas, se a epidemia não tivesse ocorrido? Haveria bônus político? Como outros desastres naturais, as epidemias precisam ser tangíveis para que a população valorize as intervenções. Como mencionado acima, para uma mudança é preciso admitir nossa convivência com o problema dengue, ou seja, com o risco para a saúde. Não faz parte da nossa cultura anunciar “coisas ruins”. Na verdade, popularmente “coisa ruim” não deve sequer ser mencionada, havendo por isto várias palavras que devem ser evitadas, como a palavra câncer. Na peça de teatro “O Inimigo do Povo”, de Ibsen, um médico denuncia a contaminação de fontes de água em uma estância hidro-mineral. A questão da peça era encobrir ou não um risco à saúde. Precisamos decidir se o anúncio de riscos sanitários é uma atitude dos inimigos do povo ou de seus amigos. C A D . S A Ú D E C O L E T ., R I O DE J A N E I R O , 15 (2): 287 - 290, 2007 – 289