Artigo Sbece - Felipe Alvares

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A PEDAGOGIA DA AUTENTICIDADE: AS IDENTIDADES PRODUZIDAS
NOS DISCURSOS NATIVISTAS
Autoria: Felipe Batistella Alvares – UFSM
Co-autoria: Dr. Luis Fernando Lazzarin – UFSM
Introdução
No contexto do que se chama nativismo, é possível perceber os investimentos
que o músico nativista faz para autenticar sua identidade e a verossimilhança desse
sujeito com o “ser gaúcho”. Este argumento não defende a existência de um gaúcho
“estandardizado”, que produziria os músicos nativistas, de forma padronizada, mas sim
que há diferentes práticas discursivas que colocam em movimento o enunciado1 da
autenticidade para produzir a identidade do músico nativista. Assim, como será
discutido a seguir, não há apenas “um” gaúcho; logo, podemos ter vários estandards de
músico nativista.
As representações sobre música gaúcha, música nativista, música tradicionalista,
e música campeira são atravessadas por discursos como nativismo, gauchismo e
tradicionalismo. A intenção deste texto não é definir ou fixar conceitos acerca desses
termos, mas, com a finalidade de situar o leitor, será feito uma breve explanação sobre o
que se diz a respeito deles.
Na busca de algum aporte, buscamos autores que se dedicam a produzir
conceitos sobre a “cultura gaúcha”. O termo “gauchismo” é o menos explicado nos
livros mas, mesmo assim, ele está onipresente no campo discursivo da cultura gaúcha.
Segundo Nunes (1996, p. 211), gauchismo significa “costume, hábito de gaúcho.
Palavra, expressão ou construção característica da fala gaúcha”. Sobre tradicionalismo
gaúcho, Salvador Lamberty diz ser “um estado de consciência, que busca preservar as
boas coisas do passado, sem conflitância com o progresso, por cultos e vivências”.
(LAMBERTY, 1989, p. 22). Em relação a nativismo, esse mesmo autor diz ser um
movimento que exalta as “coisas do Rio Grande do Sul”, o qual mantém um trabalho
1
Sobre enunciado: O ato da fala é uma enunciação, já o enunciado, é a subjetividade produzida por essa
enunciação. “Foucault define enunciado não por meio de seus elementos formais (gramaticais,
lingüísticos ou proposicionais), mas por suas conexões com um domínio epistemológico mais amplo que
permite que certas coisas sejam ditas e outras não, que certos enunciados sejam possíveis e outros não”.
(SILVA, 2000, p. 50)
que busca por uma música de raiz. (LAMBERTY, 1989, p. 52). O historiador Tau Golin
traz uma abordagem que coloca em grau de equiparação esses termos e inventa o
tradinativismo.
Considero como tradinativistas aqueles que militam no
Tradicionalismo e/ou Nativismo, como cultuadores e/ou criadores,
sem terem inquietações reais que os levem a uma ruptura com a
cultura tradicional ontologicamente hegemônica no Rio Grande do
Sul. (GOLIN, 1983, p. 46).
Não há apenas uma interpretação sobre os termos que definem o campo
simbólico do gauchismo e nem a possibilidade de estabelecer fronteiras fixas sobre
esses conceitos. Isso também acontece com a música nativista, pois definir qual estilo
uma banda ou um artista possui, ou seja, rotular um trabalho musical sob um gênero
específico é um exercício sempre controverso. Não são poucas as discussões sobre “o
que é” ou “o que não é” música gaúcha. Isso faz com que o campo do “gauchismo”
represente um lugar repleto de lutas por imposição de significados. Nesse sentido,
iremos tratar “músico nativista” como um sujeito que procura fazer uma música que
seja legitimada como gaúcha. Contudo, não procuramos por uma música gaúcha
verdadeira, original, mas sim sobre as diferentes músicas e músicos.
Existe uma busca em exaltar a identidade nativista, que incorpora muitas
características do gauchismo. O movimento nativista busca por uma música que seja de
raiz, original, ou puramente gaúcha. Logo, para ser músico nativista é necessário ter a
identidade de gaúcho, tocar música de gaúcho. Esse discurso é entendido como
hegemônico, pois ele circula nos festivais e nos Centro de Tradições Gaúchas (CTG’s).
No entanto, esse discurso não é o único, ele é inventado e reinventado dentro de práticas
discursivas heterogêneas.
Sob o rótulo “música gaúcha”, é recorrente serem citados o nativismo, o
tradicionalismo, o tchêmusic, o MPG (música popular gaúcha), ou ainda a música
campeira ou a música missioneira, os quais são representados por nomes como Luis
Marenco, Tchê Garotos, Os Serranos, Noel Guarani, entre muitos outros. Entretanto, se
partirmos de um pressuposto geográfico e considerarmos que toda manifestação
artístico-musical, que tenha suas práticas de criações, gravações e apresentações, sejam
realizadas dentro do Rio Grande do Sul, podemos, então, atribuir o rótulo “música
gaúcha” a bandas de pop/rock como Papas da Língua, Engenheiros do Hawai, Cidadão
Quem, Chimarruts.
Selecionamos, para análise, a entrevista intitulada “Gaúcho sem bagualismo”,
cedida ao jornal Diário de Santa Maria pelo músico Érlon Péricles, no dia 12 de maio de
2010, a respeito do lançamento de seu Cd “Rio Grande Véio”. A partir da materialidade
escolhida, o trabalho pretende problematizar os discursos que estão sendo colocados em
movimento no corpus dessa entrevista. Procuramos entender como é constituída a
identidade desse músico, considerando que este sujeito está inserido em um jogo de
constantes disputas por significação.
A abordagem teórica desse artigo está inspirada no campo dos Estudos Culturais
e em suas aproximações com a educação, de modo que, a partir do entendimento desse
campo, utilizamos alguns conceitos que consideramos importantes para guiar as
investigações sobre as identidades do músico nativista. Para Silva (2004), os Estudos
Culturais são um campo de teorização e investigação que surgiu a partir do
questionamento sobre o conceito de cultura como definição exclusiva as chamadas
“grandes obras” literárias e artísticas. A universidade e a escola, anteriormente tidas
como únicos espaços legítimos na produção de saberes, passam a ser questionados
quanto a suas fronteiras. “Tal como a educação, as outras instâncias culturais também
são pedagógicas, também têm uma “pedagogia”, também ensinam alguma coisa”
(SILVA, 2004, p. 139). Nesse sentido, os significados produzidos acerca da música
nativista assumem um caráter cultural, e assim a música nativista é uma instância
pedagógica que ensina modos de ser.
“A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes
grupos sociais, situados em posições diferencias de poder, lutam pela imposição de seus
significados à sociedade mais ampla” (SILVA, 2004, p. 133-134). Partindo da ideia de
que qualquer ação social tenha algo de cultural e que toda cultura pode ter um efeito
pedagógico, esse trabalho irá examinar a entrevista citada entendendo-a como um
artefato cultural, que ensina modos de ser e produz identidades nativistas. Nesse
sentido, discutimos como a linguagem e o discurso assumem um papel performativo na
produção dos sujeitos e dos saberes, bem como as relações de poder estabelecidas na
narrativa desse músico.
A linguagem tem um papel central nessa trama. Ela não apenas descreve ou fala
sobre os músicos e as músicas ou revela uma realidade pré-existente, mas sim seu papel,
agora, assume um caráter produtivo. Ou seja, a “realidade” é resultante de uma ação
produtiva operada pela linguagem, ela deixa de ser quem revela o real sentido das
coisas, para se tornar produtora desse sentido. Quando se fala sobre a música nativista,
não se está descrevendo uma música que já existe, mas produzindo significados acerca
dessa música. Assim, o significado “surge não das coisas em si – a “realidade” – mas a
partir dos jogos de linguagem e dos sistemas de classificação nos quais as coisas são
inseridas”. (HALL, 1997, p. 12).
O termo discurso “refere-se tanto à produção de conhecimento através da
linguagem e da representação quanto ao modo como o conhecimento é
institucionalizado,
modelando
práticas
sociais
e
pondo
novas
práticas
em
funcionamento” (HALL, 1997, p. 27). O discurso constitui o sujeito através do
movimento de suas práticas, ou seja, esse sujeito existe dentro de um conjunto de
discursos que respeitam uma estrutura de normas socialmente aceitas. Não é
simplesmente a ação do falar, o ato de narrar sobre algo, “mas é todo conjunto de
enunciados que formam o substrato inteligível para as ações graças ao seu duplo caráter
judicativo e veridicativo” (VEIGA-NETO, 2003, p. 93).
Esse “conjunto de discursos” é colocado em movimento, negociando, resistindo,
impondo significados, enfim, produzindo subjetividades. O campo cultural da música
nativista bem como as narrativas da entrevista analisada apresentam uma
heterogeneidade discursiva, que são representadas por instâncias como: regulamentos de
festival, a literatura, os discursos tradicionalistas, a mídia especializada etc. Essas
instâncias serão consideradas nesse trabalho como artefatos culturais. Por artefatos
culturais consideramos “sistemas de significação implicados na produção de identidade
e subjetividades, no contexto de relações de poder” (SILVA, 2004, p. 142).
O caráter heterogêneo diz respeito a como se produzem os discursos enunciados
na narrativa de Érlon Péricles, considerando as relações de poder estão em jogo quando
o músico entrevistado busca legitimar sua identidade, como esse poder movimenta os
discursos, que efeitos ele gera sobre a produção da identidade do músico. Entretanto,
essa abordagem propõe um poder horizontal, disseminado, no qual todos os discursos
exercem poder, uns sobre os outros. Tratamos de um poder que não é repressivo,
opressivo, que proíbe, que regra, ou que é imposto de uma maneira vertical, por
exemplo, o tradicionalismo tem um discurso dominante sobre o nativismo. Nessa
relação não há um dono, que use o poder como instrumento de dominação. O poder está
na base das relações sociais, está disposto nas formas como os sujeitos se relacionam
entre si.
Não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e
homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os
outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o
poder – desde que não seja considerado de muito longe – não é algo
que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos.
(FOUCAULT, 1979. p. 183)
Os artefatos do gauchismo
Os discursos e como eles se movimentam, ou seja, que discursos e que efeitos
são produzidos sobre os sujeitos são discussões centrais nesse artigo. Dessa forma,
propomos investigar, parcialmente, os artefatos culturais e as práticas discursivas que
inventam e regulam o músico nativista. Portanto, desenvolvemos essa seção com o
objetivo de elencar, de maneira sucinta, alguns dos principais artefatos culturais
atuantes nas invenções das identidades nativistas. Realizamos, então, um mapeamento
parcial sobre os discursos que produzem subjetividades, demarcam fronteiras,
estabelecem normas e verdades acerca do músico nativista.
Segundo Oliven (2010), a figura do gaúcho não teve sempre o significado
heróico encontrado na literatura e na historiografia regional. Anteriormente ao herói, o
discurso que circulava sobre a identidade do gaúcho era de “marginal”, chamado
também de guasca ou de gaudério, homem sem paradeiro que vivia do contrabando de
gado. Esse sentido pejorativo atribuído ao termo foi reelaborado e passou a ter um
significado positivo. Prevalece até nossos dias um discurso que enaltece um gaúcho
guerreiro, destemido, que luta com amor a sua terra. Para Campos (2008), essa
reelaboração é articulada pela literatura, tendo como ponto inicial deste processo, a obra
“O Gaúcho” de José de Alencar. Essa seria a pioneira em evidenciar um “gaúcho herói”.
É importante também considerar o surgimento das sociedades literárias e o
surgimento de novos autores retratando um gaúcho estandardizado, um herói.
A
Sociedade Partenon Literário (1868), o Grêmio Gaúcho (1898), a União Gaúcha em
Pelotas (1899) são movimentos literários que se preocupam em preservar as tradições
do Estado, e tinham como objetivo reunir intelectuais, interessados em fomentar,
através da literatura, uma cultura autêntica rio-grandense. Jacks (2003) nomeia de
“regionalismo literário”, a atividade de um grupo de autores, dentre os quais Simões de
Lopes Neto e também Érico Veríssimo, Augusto Meyer, Cyro Martins, entre outros.
Em 1948 é criado o primeiro Centro de Tradições Gaúchas (CTG) do Rio
Grande do Sul, e junto a ele, o movimento tradicionalista. Segundo Lessa (2008), o
momento histórico em que viviam era rodeado pela insatisfação do cenário cultural do
final da segunda guerra mundial. “Porto Alegre nos fascinava com seus anúncios
luminosos e gás neon (...), as lojas de discos punham em nossos ouvidos as irresistíveis
harmonias de Harry James”, e o autor completa dizendo que preferiam a “segurança do
pago”, os amigos, as atividades de encilhar o cavalo e as rodas de galpão. É de acordo
com esse encadeamento de ideias que surge Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG),
que diferentemente dos movimentos anteriores, Partenon Literário e Grêmio Gaúcho
tinham a intenção de reviver as tradições gaúchas, ao invés de escrever sobre elas.
Articulado a essas práticas, no ano de 1953 acontece o “despertar da música
regional” (LESSA, 2008), que produz, até o ano de 1970, uma série de novos cantores
gaúchos, com trabalhos de explícito rótulo gaúcho, como por exemplo: Conjunto
Farroupilha, Os Gaudérios, Luis Menezes, Teixeirinha, Telmo de Lima Freitas e José
Mendes, são alguns dos expoentes da música gaúcha desta época. Traziam, em seus
repertórios, músicas como Piazito Carreteiro (Luiz Menezes), Gaúcho de Passo Fundo
(Teixeirinha), Prenda Minha (Telmo de Lima Freitas), Para Pedro (José Mendes).
Na década de 1970, estão em cena os festivais nativistas. O pioneiro foi a
Califórnia da Canção Nativa, criado em 1971, na cidade de Uruguaiana-RS. A
Califórnia surge com o propósito de renovar a música feita até o momento, a qual,
segundo os seus promotores, “por um lado, se erguia contra os estrangeirismos e
comercialismos da massificação cultural dos meios de comunicação de massa; por
outro, se opunha ao que de mais popular havia” (DUARTE, 2002, p. 18).
Inúmeros eventos do gênero foram criados no Rio Grande do Sul,
Musicanto/Santa
Rosa,
Tertúlia/Santa
Maria,
Coxilha
Nativista/Cruz
Alta,
Seara/Carazinho, Vigília/Cachoeira do Sul, Círio/Pelotas, Tafona/Osório, entre muitos
outros, e já se passaram quase 40 anos de atividades ininterruptas voltadas para o que se
chama música nativista. Hoje há um mercado de trabalho estabelecido pelos festivais, o
qual produziu um efetivo de profissionais especializados; instrumentistas, cantores,
letristas, imprensa, empresas de sonorização, etc. Como produto desse mercado
observa-se um significativo crescimento de espaços destinados a divulgação e
fomentação dessa música em programas de rádio e televisão, CTG’s, projetos culturais,
e até mesmo em eventos dentro de escolas e universidades.
O nativismo abriu espaço para as manifestações de cunho regional no
interior da indústria cultural, criando um mercado próspero para este
segmento e, ao mesmo tempo, ampliando a penetração do movimento
junto ao grande público” (JACKS, 2003, p. 66).
Instituições midiáticas atentaram a esse movimento, e programas de rádio,
revistas, jornais, editoras de livros e programas de televisão, assim como gravadoras
fonográficas, são criados para atuar especificamente na música e na cultura gaúcha.
Gaúcho sem bagualismo
As sociedades literárias, os movimentos tradicionalistas e nativistas, as rádios, os
jornais, a televisão, formam uma rede de significações, articuladas por relações de
poder, e de formas específicas, colocam em movimento os discursos do campo
simbólico da música nativista. Nesse sentido os artefatos culturais configuram-se em
um espaço privilegiado na produção dos modos de ser do músico nativista, ou seja,
assumem uma função pedagógica, e em um sentido amplo instituem verdades e
produzem subjetividades. “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter
e de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que trazem
consigo” (FOULCAULT, 1996, p. 44).
Ao falar sobre seu último trabalho fonográfico, o músico Érlon Péricles afirma
que este “é um CD mais campeiro, procurando afirmar, principalmente, essa ligação
minha com o campo e as coisas mais gaúchas”. Como já foi abordado nesse texto, a
identidade nativista mantém uma íntima relação com os aspectos do ser gaúcho. O
gaúcho herói, o tradicionalismo dos CTG’s, o nativismo dos festivais, a busca por uma
música de raiz são os enunciados que predominam sobre a autenticidade do músico
nativista, que busca fazer uma música gaúcha original. Érlon Péricles apresenta uma
negociação sobre sua identidade de músico nativista, na qual trata de estabelecer as
diferenças entre o seu modo de ser gaúcho de outros discursos.
A primeira impressão que o título “Gauchismo sem bagualismo” nos sugere é a
afirmação da identidade de gaúcho baseado na negação do bagualismo. Esse título pode
nos remeter a uma identidade fixa, entretanto, ele só foi produzido porque existe o
gauchismo “com” bagualismo, o que configura uma negação em prol de uma identidade
“sem” bagualismo. Nesse sentido, a “identidade e a diferença estão em uma relação de
estreita dependência” (SILVA, 2009, p.74). De modo geral, a diferença é considerada
como o resultado da identidade. Presume-se que o original é a identidade, e o produto é
a diferença. “Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela
qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos” (SILVA, 2009, p. 76). O que é e
o que não é gaúcho ou gaúcho bagual não é algo dado pela natureza, algo original, ou
uma herança genética do músico entrevistado, mas sim uma verdade produzida
discursivamente por esse sujeito. Aqui a linguagem está determinando a identidade e o
que é diferente dela, dentro de um complexo sistema linguístico que demarca as
fronteiras entre os modos de ser.
Eu sou da lida campeira mais diária, tirar leite com o pai, ir botar as
vacas na mangueira...Nunca fui um ginete, um domador. Talvez por
isso que me identifique um pouquinho mais com o urbano. Tenho
esse cuidado de não deixar bagualismo, fazer meio termo – revela
Érlon.
Há um grande cuidado em estabelecer suas condições de existência respeitando
as fronteiras do “fazer música nativista autêntica” e do “fazer música nativista nãoautêntica”. Para que o músico seja legitimado como gaúcho, é necessário apresentar um
discurso que estabeleça seu caráter de pureza, de originalidade e de autenticidade
enquanto um “ser” gaúcho. Para isso, Péricles revela seu envolvimento com a “lida
campeira”. Porém, logo ele diz não ser ginete, e alega que isso faz com que tenha
alguma proximidade com o “urbano”.
Nessa reportagem são usados os termos campeiro, urbano e gaúcho sem
bagualismo, na busca de legitimar a identidade do artista. Primeiro o músico evidencia
uma nova fase de seu trabalho e mostra seu interesse em se tornar mais campeiro.
Afirma-se campeiro pelo fato de ter trabalhado com o manejo de animais (vacas,
galinhas), ao mesmo tempo em que rejeita o sentido bagual (de rudeza e falta de
refinamento) comumente associado aos trabalhadores que lidam com o gado. Assim há
uma negociação em ser um músico campeiro que teria uma identidade mais próxima das
características urbanas de educação e civilidade. Na entrevista analisada, são produzidas
enunciações de, simultaneamente, uma música gaúcha “com” bagualismo e outra “sem”
bagualismo. Essa última pode ser percebida no uso do termo campeiro, que sugere um
“meio termo” entre as duas.
Sob a perspectiva dos Estudos Culturais, que entendem cultura de forma não
essencialista, é preciso lançar outro olhar, um olhar que aceita a condição de impureza
das culturas. A “pureza”, a “originalidade”, a “autenticidade” são características
exaustivamente defendidas em alguns discursos sobre música. É comum ver nos livros
de folcloristas posições essencialistas defendendo uma “música de raiz”, opondo-se às
manifestações da cultura de massa e alegando que a influência da TV, do rádio e da
internet acabam com as tradições gaúchas. Nessa perspectiva, identidades culturais não
podem ser consideradas autóctones, seu caráter é sempre de incerteza, não competindo a
sua condição de existência, mas sim aos discursos que as produzem.
Essas misturas culturais vêm sendo tratadas sob o termo “hibridação”, a que
pode ser definida como: “(...) processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas
discretas, que existam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas”. (CANCLINI, 2008, p. 19). É possível dizer que o “hibridar cultural”
é um movimento de constantes reinvenções, através do uso, intencional ou não, de
algumas características de uma prática cultural em outra. O autor questiona a existência
de identidades puras ou autênticas e defende que toda a identidade está abarcada nos
processos de hibridação entre diferentes culturas, ou seja, essas não possuem “essências
autocontidas e a-históricas”.
Em um questionamento sobre a receptividade do seu trabalho novo, Péricles diz
que o álbum, por ser mais campeiro, tem uma melhor aceitação do público. Todavia,
isso causa uma insatisfação dos colegas músicos, “isso porque tenho uma tradição nos
festivais, que é algo mais erudito”. Logo após ele afirma: “Em termos de mercado, está
sendo muito bem aceito”.
Nesse trecho, há dois aspectos importantes a serem tratados na análise: primeiro
o artista mostra que é preciso estar sempre negociando sua identidade, ora para se
legitimar junto ao público, ora para não ser menosprezado pela crítica dos colegas. Isso
mostra uma preocupação com o resultado estético de sua música. Contudo, essa
preocupação se configura em uma estratégia de identidade em prol de seu sucesso
profissional, pois ele precisa vender seus CD’s para manter seu sustento. “Quem
consome é o povo, os amigos têm de andar junto para dar uma força”. No final dessa
seção da entrevista, o músico se justifica, alegando que é necessário fazer uma música
que o “povo” queira escutar, e se defende neste aspecto, tendo o cuidado de legitimar
sua música junto aos colegas músicos, alertando que deveriam ajudá-lo ao invés de
lançar críticas.
O segundo aspecto é referente à música usada como recurso econômico por esse
artista, uma vez que ele precisa se moldar ao mercado, seguindo as tendências
mercadológicas, o que se fez necessário para que o mesmo possibilite subsistência ao
trabalho. Quando ele negocia sua identidade para ter aceitação do público, pois “quem
consome é o povo”, ele está preocupado com o resultado mercadológico de seu
trabalho. Segundo Yúdice (2004, p. 25), “o papel da cultura expandiu-se como nunca
para as esferas política e econômica”, servindo como recurso para solução de problemas
sociais e também gerando oportunidades de geração de renda – empregos. Nesse
sentido, outra força que investe na identidade do músico é a questão econômica, sendo
que resultado quantitativo da venda de shows e CD’s contribui para a produção das
subjetividades e dos discursos incorporados pelo artista.
Contudo, não queremos fazer uma crítica à postura do artista, não pretendemos
“desqualificar essa estratégia como sendo uma perversão da cultura, ou como uma
redução cínica dos modelos simbólicos ou dos estilos de vida a uma mera política”
(YÚDICE, 2004, p.454). O artista precisa negociar sua identidade, e trabalhar em prol
dos padrões do mercado para alavancar sua profissão. Nesse sentido, a identidade do
músico nativista vem sendo produzida pelas relações de poder articuladas por diversos
artefatos: o gauchismo, o mercado etc. No entanto, este sujeito não é só um produto
discursivo, mas é também um produtor de discursos. Quando ele diz que sua música é
campeira, mas com um linguajar urbano, está produzindo um novo sentido a essa
música.
Considerações finais
Durante o texto, buscamos investigar sobre como a identidade do músico
nativista é constituída. A literatura, as sociedades literárias, os primeiros músicos
gaúchos, o movimento tradicionalista, os festivais nativistas e os aparatos como
televisão e jornais tornam-se, nessa perspectiva teórica dos estudos culturais, instâncias
pedagógicas. Esses artefatos culturais moldam os modos de ser do músico nativista. Os
discursos inseridos nesse campo cultural exercem poder sobre os sujeitos, produzindo
subjetividades e identidades. Os sujeitos, por sua vez, também exercem poder dentro
desse sistema e reelaboram as identidades.
Os resultados desse artigo serão sempre passíveis de novas significações e são
localizados e temporais, ou seja, falo de um lugar específico em um tempo determinado.
As conclusões que trazemos nesse trabalho são provisórias, incertas, sujeitos de novas
interpretações. “Assim, a contingência parece ser nosso limite, abdicar à pretensão de
totalidade também significa admitir e aceitar a provisoriedade do conhecimento”.
(COSTA, 2007, p. 148)
Os discursos que inventam o nativismo são operados através das relações de
poder entre músicos e artefatos culturais, que se constituem em uma instância
pedagógica, sendo que seus discursos, impregnados do enunciado da autenticidade,
procuram impor seus significados. O músico precisa afirmar sua identidade perante o
público, para que consiga vender seus shows e discos. Os festivais são coordenados por
sujeitos, que trazem subjetividades também reguladas não somente, mas fortemente pela
autenticidade. Os jornais, as rádios, a literatura, a internet estão em jogo, exercendo
poder, atravessando e sendo atravessado por múltiplas significações. Isso acarreta uma
séria de negociações, embates e hibridizações de identidades. Nesse processo, a própria
atividade profissional do músico gera esse movimento de produção e reprodução de
identidades.
Referências
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