A PEDAGOGIA DA AUTENTICIDADE: AS IDENTIDADES PRODUZIDAS NOS DISCURSOS NATIVISTAS Autoria: Felipe Batistella Alvares – UFSM Co-autoria: Dr. Luis Fernando Lazzarin – UFSM Introdução No contexto do que se chama nativismo, é possível perceber os investimentos que o músico nativista faz para autenticar sua identidade e a verossimilhança desse sujeito com o “ser gaúcho”. Este argumento não defende a existência de um gaúcho “estandardizado”, que produziria os músicos nativistas, de forma padronizada, mas sim que há diferentes práticas discursivas que colocam em movimento o enunciado1 da autenticidade para produzir a identidade do músico nativista. Assim, como será discutido a seguir, não há apenas “um” gaúcho; logo, podemos ter vários estandards de músico nativista. As representações sobre música gaúcha, música nativista, música tradicionalista, e música campeira são atravessadas por discursos como nativismo, gauchismo e tradicionalismo. A intenção deste texto não é definir ou fixar conceitos acerca desses termos, mas, com a finalidade de situar o leitor, será feito uma breve explanação sobre o que se diz a respeito deles. Na busca de algum aporte, buscamos autores que se dedicam a produzir conceitos sobre a “cultura gaúcha”. O termo “gauchismo” é o menos explicado nos livros mas, mesmo assim, ele está onipresente no campo discursivo da cultura gaúcha. Segundo Nunes (1996, p. 211), gauchismo significa “costume, hábito de gaúcho. Palavra, expressão ou construção característica da fala gaúcha”. Sobre tradicionalismo gaúcho, Salvador Lamberty diz ser “um estado de consciência, que busca preservar as boas coisas do passado, sem conflitância com o progresso, por cultos e vivências”. (LAMBERTY, 1989, p. 22). Em relação a nativismo, esse mesmo autor diz ser um movimento que exalta as “coisas do Rio Grande do Sul”, o qual mantém um trabalho 1 Sobre enunciado: O ato da fala é uma enunciação, já o enunciado, é a subjetividade produzida por essa enunciação. “Foucault define enunciado não por meio de seus elementos formais (gramaticais, lingüísticos ou proposicionais), mas por suas conexões com um domínio epistemológico mais amplo que permite que certas coisas sejam ditas e outras não, que certos enunciados sejam possíveis e outros não”. (SILVA, 2000, p. 50) que busca por uma música de raiz. (LAMBERTY, 1989, p. 52). O historiador Tau Golin traz uma abordagem que coloca em grau de equiparação esses termos e inventa o tradinativismo. Considero como tradinativistas aqueles que militam no Tradicionalismo e/ou Nativismo, como cultuadores e/ou criadores, sem terem inquietações reais que os levem a uma ruptura com a cultura tradicional ontologicamente hegemônica no Rio Grande do Sul. (GOLIN, 1983, p. 46). Não há apenas uma interpretação sobre os termos que definem o campo simbólico do gauchismo e nem a possibilidade de estabelecer fronteiras fixas sobre esses conceitos. Isso também acontece com a música nativista, pois definir qual estilo uma banda ou um artista possui, ou seja, rotular um trabalho musical sob um gênero específico é um exercício sempre controverso. Não são poucas as discussões sobre “o que é” ou “o que não é” música gaúcha. Isso faz com que o campo do “gauchismo” represente um lugar repleto de lutas por imposição de significados. Nesse sentido, iremos tratar “músico nativista” como um sujeito que procura fazer uma música que seja legitimada como gaúcha. Contudo, não procuramos por uma música gaúcha verdadeira, original, mas sim sobre as diferentes músicas e músicos. Existe uma busca em exaltar a identidade nativista, que incorpora muitas características do gauchismo. O movimento nativista busca por uma música que seja de raiz, original, ou puramente gaúcha. Logo, para ser músico nativista é necessário ter a identidade de gaúcho, tocar música de gaúcho. Esse discurso é entendido como hegemônico, pois ele circula nos festivais e nos Centro de Tradições Gaúchas (CTG’s). No entanto, esse discurso não é o único, ele é inventado e reinventado dentro de práticas discursivas heterogêneas. Sob o rótulo “música gaúcha”, é recorrente serem citados o nativismo, o tradicionalismo, o tchêmusic, o MPG (música popular gaúcha), ou ainda a música campeira ou a música missioneira, os quais são representados por nomes como Luis Marenco, Tchê Garotos, Os Serranos, Noel Guarani, entre muitos outros. Entretanto, se partirmos de um pressuposto geográfico e considerarmos que toda manifestação artístico-musical, que tenha suas práticas de criações, gravações e apresentações, sejam realizadas dentro do Rio Grande do Sul, podemos, então, atribuir o rótulo “música gaúcha” a bandas de pop/rock como Papas da Língua, Engenheiros do Hawai, Cidadão Quem, Chimarruts. Selecionamos, para análise, a entrevista intitulada “Gaúcho sem bagualismo”, cedida ao jornal Diário de Santa Maria pelo músico Érlon Péricles, no dia 12 de maio de 2010, a respeito do lançamento de seu Cd “Rio Grande Véio”. A partir da materialidade escolhida, o trabalho pretende problematizar os discursos que estão sendo colocados em movimento no corpus dessa entrevista. Procuramos entender como é constituída a identidade desse músico, considerando que este sujeito está inserido em um jogo de constantes disputas por significação. A abordagem teórica desse artigo está inspirada no campo dos Estudos Culturais e em suas aproximações com a educação, de modo que, a partir do entendimento desse campo, utilizamos alguns conceitos que consideramos importantes para guiar as investigações sobre as identidades do músico nativista. Para Silva (2004), os Estudos Culturais são um campo de teorização e investigação que surgiu a partir do questionamento sobre o conceito de cultura como definição exclusiva as chamadas “grandes obras” literárias e artísticas. A universidade e a escola, anteriormente tidas como únicos espaços legítimos na produção de saberes, passam a ser questionados quanto a suas fronteiras. “Tal como a educação, as outras instâncias culturais também são pedagógicas, também têm uma “pedagogia”, também ensinam alguma coisa” (SILVA, 2004, p. 139). Nesse sentido, os significados produzidos acerca da música nativista assumem um caráter cultural, e assim a música nativista é uma instância pedagógica que ensina modos de ser. “A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferencias de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla” (SILVA, 2004, p. 133-134). Partindo da ideia de que qualquer ação social tenha algo de cultural e que toda cultura pode ter um efeito pedagógico, esse trabalho irá examinar a entrevista citada entendendo-a como um artefato cultural, que ensina modos de ser e produz identidades nativistas. Nesse sentido, discutimos como a linguagem e o discurso assumem um papel performativo na produção dos sujeitos e dos saberes, bem como as relações de poder estabelecidas na narrativa desse músico. A linguagem tem um papel central nessa trama. Ela não apenas descreve ou fala sobre os músicos e as músicas ou revela uma realidade pré-existente, mas sim seu papel, agora, assume um caráter produtivo. Ou seja, a “realidade” é resultante de uma ação produtiva operada pela linguagem, ela deixa de ser quem revela o real sentido das coisas, para se tornar produtora desse sentido. Quando se fala sobre a música nativista, não se está descrevendo uma música que já existe, mas produzindo significados acerca dessa música. Assim, o significado “surge não das coisas em si – a “realidade” – mas a partir dos jogos de linguagem e dos sistemas de classificação nos quais as coisas são inseridas”. (HALL, 1997, p. 12). O termo discurso “refere-se tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento” (HALL, 1997, p. 27). O discurso constitui o sujeito através do movimento de suas práticas, ou seja, esse sujeito existe dentro de um conjunto de discursos que respeitam uma estrutura de normas socialmente aceitas. Não é simplesmente a ação do falar, o ato de narrar sobre algo, “mas é todo conjunto de enunciados que formam o substrato inteligível para as ações graças ao seu duplo caráter judicativo e veridicativo” (VEIGA-NETO, 2003, p. 93). Esse “conjunto de discursos” é colocado em movimento, negociando, resistindo, impondo significados, enfim, produzindo subjetividades. O campo cultural da música nativista bem como as narrativas da entrevista analisada apresentam uma heterogeneidade discursiva, que são representadas por instâncias como: regulamentos de festival, a literatura, os discursos tradicionalistas, a mídia especializada etc. Essas instâncias serão consideradas nesse trabalho como artefatos culturais. Por artefatos culturais consideramos “sistemas de significação implicados na produção de identidade e subjetividades, no contexto de relações de poder” (SILVA, 2004, p. 142). O caráter heterogêneo diz respeito a como se produzem os discursos enunciados na narrativa de Érlon Péricles, considerando as relações de poder estão em jogo quando o músico entrevistado busca legitimar sua identidade, como esse poder movimenta os discursos, que efeitos ele gera sobre a produção da identidade do músico. Entretanto, essa abordagem propõe um poder horizontal, disseminado, no qual todos os discursos exercem poder, uns sobre os outros. Tratamos de um poder que não é repressivo, opressivo, que proíbe, que regra, ou que é imposto de uma maneira vertical, por exemplo, o tradicionalismo tem um discurso dominante sobre o nativismo. Nessa relação não há um dono, que use o poder como instrumento de dominação. O poder está na base das relações sociais, está disposto nas formas como os sujeitos se relacionam entre si. Não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder – desde que não seja considerado de muito longe – não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. (FOUCAULT, 1979. p. 183) Os artefatos do gauchismo Os discursos e como eles se movimentam, ou seja, que discursos e que efeitos são produzidos sobre os sujeitos são discussões centrais nesse artigo. Dessa forma, propomos investigar, parcialmente, os artefatos culturais e as práticas discursivas que inventam e regulam o músico nativista. Portanto, desenvolvemos essa seção com o objetivo de elencar, de maneira sucinta, alguns dos principais artefatos culturais atuantes nas invenções das identidades nativistas. Realizamos, então, um mapeamento parcial sobre os discursos que produzem subjetividades, demarcam fronteiras, estabelecem normas e verdades acerca do músico nativista. Segundo Oliven (2010), a figura do gaúcho não teve sempre o significado heróico encontrado na literatura e na historiografia regional. Anteriormente ao herói, o discurso que circulava sobre a identidade do gaúcho era de “marginal”, chamado também de guasca ou de gaudério, homem sem paradeiro que vivia do contrabando de gado. Esse sentido pejorativo atribuído ao termo foi reelaborado e passou a ter um significado positivo. Prevalece até nossos dias um discurso que enaltece um gaúcho guerreiro, destemido, que luta com amor a sua terra. Para Campos (2008), essa reelaboração é articulada pela literatura, tendo como ponto inicial deste processo, a obra “O Gaúcho” de José de Alencar. Essa seria a pioneira em evidenciar um “gaúcho herói”. É importante também considerar o surgimento das sociedades literárias e o surgimento de novos autores retratando um gaúcho estandardizado, um herói. A Sociedade Partenon Literário (1868), o Grêmio Gaúcho (1898), a União Gaúcha em Pelotas (1899) são movimentos literários que se preocupam em preservar as tradições do Estado, e tinham como objetivo reunir intelectuais, interessados em fomentar, através da literatura, uma cultura autêntica rio-grandense. Jacks (2003) nomeia de “regionalismo literário”, a atividade de um grupo de autores, dentre os quais Simões de Lopes Neto e também Érico Veríssimo, Augusto Meyer, Cyro Martins, entre outros. Em 1948 é criado o primeiro Centro de Tradições Gaúchas (CTG) do Rio Grande do Sul, e junto a ele, o movimento tradicionalista. Segundo Lessa (2008), o momento histórico em que viviam era rodeado pela insatisfação do cenário cultural do final da segunda guerra mundial. “Porto Alegre nos fascinava com seus anúncios luminosos e gás neon (...), as lojas de discos punham em nossos ouvidos as irresistíveis harmonias de Harry James”, e o autor completa dizendo que preferiam a “segurança do pago”, os amigos, as atividades de encilhar o cavalo e as rodas de galpão. É de acordo com esse encadeamento de ideias que surge Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), que diferentemente dos movimentos anteriores, Partenon Literário e Grêmio Gaúcho tinham a intenção de reviver as tradições gaúchas, ao invés de escrever sobre elas. Articulado a essas práticas, no ano de 1953 acontece o “despertar da música regional” (LESSA, 2008), que produz, até o ano de 1970, uma série de novos cantores gaúchos, com trabalhos de explícito rótulo gaúcho, como por exemplo: Conjunto Farroupilha, Os Gaudérios, Luis Menezes, Teixeirinha, Telmo de Lima Freitas e José Mendes, são alguns dos expoentes da música gaúcha desta época. Traziam, em seus repertórios, músicas como Piazito Carreteiro (Luiz Menezes), Gaúcho de Passo Fundo (Teixeirinha), Prenda Minha (Telmo de Lima Freitas), Para Pedro (José Mendes). Na década de 1970, estão em cena os festivais nativistas. O pioneiro foi a Califórnia da Canção Nativa, criado em 1971, na cidade de Uruguaiana-RS. A Califórnia surge com o propósito de renovar a música feita até o momento, a qual, segundo os seus promotores, “por um lado, se erguia contra os estrangeirismos e comercialismos da massificação cultural dos meios de comunicação de massa; por outro, se opunha ao que de mais popular havia” (DUARTE, 2002, p. 18). Inúmeros eventos do gênero foram criados no Rio Grande do Sul, Musicanto/Santa Rosa, Tertúlia/Santa Maria, Coxilha Nativista/Cruz Alta, Seara/Carazinho, Vigília/Cachoeira do Sul, Círio/Pelotas, Tafona/Osório, entre muitos outros, e já se passaram quase 40 anos de atividades ininterruptas voltadas para o que se chama música nativista. Hoje há um mercado de trabalho estabelecido pelos festivais, o qual produziu um efetivo de profissionais especializados; instrumentistas, cantores, letristas, imprensa, empresas de sonorização, etc. Como produto desse mercado observa-se um significativo crescimento de espaços destinados a divulgação e fomentação dessa música em programas de rádio e televisão, CTG’s, projetos culturais, e até mesmo em eventos dentro de escolas e universidades. O nativismo abriu espaço para as manifestações de cunho regional no interior da indústria cultural, criando um mercado próspero para este segmento e, ao mesmo tempo, ampliando a penetração do movimento junto ao grande público” (JACKS, 2003, p. 66). Instituições midiáticas atentaram a esse movimento, e programas de rádio, revistas, jornais, editoras de livros e programas de televisão, assim como gravadoras fonográficas, são criados para atuar especificamente na música e na cultura gaúcha. Gaúcho sem bagualismo As sociedades literárias, os movimentos tradicionalistas e nativistas, as rádios, os jornais, a televisão, formam uma rede de significações, articuladas por relações de poder, e de formas específicas, colocam em movimento os discursos do campo simbólico da música nativista. Nesse sentido os artefatos culturais configuram-se em um espaço privilegiado na produção dos modos de ser do músico nativista, ou seja, assumem uma função pedagógica, e em um sentido amplo instituem verdades e produzem subjetividades. “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter e de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que trazem consigo” (FOULCAULT, 1996, p. 44). Ao falar sobre seu último trabalho fonográfico, o músico Érlon Péricles afirma que este “é um CD mais campeiro, procurando afirmar, principalmente, essa ligação minha com o campo e as coisas mais gaúchas”. Como já foi abordado nesse texto, a identidade nativista mantém uma íntima relação com os aspectos do ser gaúcho. O gaúcho herói, o tradicionalismo dos CTG’s, o nativismo dos festivais, a busca por uma música de raiz são os enunciados que predominam sobre a autenticidade do músico nativista, que busca fazer uma música gaúcha original. Érlon Péricles apresenta uma negociação sobre sua identidade de músico nativista, na qual trata de estabelecer as diferenças entre o seu modo de ser gaúcho de outros discursos. A primeira impressão que o título “Gauchismo sem bagualismo” nos sugere é a afirmação da identidade de gaúcho baseado na negação do bagualismo. Esse título pode nos remeter a uma identidade fixa, entretanto, ele só foi produzido porque existe o gauchismo “com” bagualismo, o que configura uma negação em prol de uma identidade “sem” bagualismo. Nesse sentido, a “identidade e a diferença estão em uma relação de estreita dependência” (SILVA, 2009, p.74). De modo geral, a diferença é considerada como o resultado da identidade. Presume-se que o original é a identidade, e o produto é a diferença. “Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos” (SILVA, 2009, p. 76). O que é e o que não é gaúcho ou gaúcho bagual não é algo dado pela natureza, algo original, ou uma herança genética do músico entrevistado, mas sim uma verdade produzida discursivamente por esse sujeito. Aqui a linguagem está determinando a identidade e o que é diferente dela, dentro de um complexo sistema linguístico que demarca as fronteiras entre os modos de ser. Eu sou da lida campeira mais diária, tirar leite com o pai, ir botar as vacas na mangueira...Nunca fui um ginete, um domador. Talvez por isso que me identifique um pouquinho mais com o urbano. Tenho esse cuidado de não deixar bagualismo, fazer meio termo – revela Érlon. Há um grande cuidado em estabelecer suas condições de existência respeitando as fronteiras do “fazer música nativista autêntica” e do “fazer música nativista nãoautêntica”. Para que o músico seja legitimado como gaúcho, é necessário apresentar um discurso que estabeleça seu caráter de pureza, de originalidade e de autenticidade enquanto um “ser” gaúcho. Para isso, Péricles revela seu envolvimento com a “lida campeira”. Porém, logo ele diz não ser ginete, e alega que isso faz com que tenha alguma proximidade com o “urbano”. Nessa reportagem são usados os termos campeiro, urbano e gaúcho sem bagualismo, na busca de legitimar a identidade do artista. Primeiro o músico evidencia uma nova fase de seu trabalho e mostra seu interesse em se tornar mais campeiro. Afirma-se campeiro pelo fato de ter trabalhado com o manejo de animais (vacas, galinhas), ao mesmo tempo em que rejeita o sentido bagual (de rudeza e falta de refinamento) comumente associado aos trabalhadores que lidam com o gado. Assim há uma negociação em ser um músico campeiro que teria uma identidade mais próxima das características urbanas de educação e civilidade. Na entrevista analisada, são produzidas enunciações de, simultaneamente, uma música gaúcha “com” bagualismo e outra “sem” bagualismo. Essa última pode ser percebida no uso do termo campeiro, que sugere um “meio termo” entre as duas. Sob a perspectiva dos Estudos Culturais, que entendem cultura de forma não essencialista, é preciso lançar outro olhar, um olhar que aceita a condição de impureza das culturas. A “pureza”, a “originalidade”, a “autenticidade” são características exaustivamente defendidas em alguns discursos sobre música. É comum ver nos livros de folcloristas posições essencialistas defendendo uma “música de raiz”, opondo-se às manifestações da cultura de massa e alegando que a influência da TV, do rádio e da internet acabam com as tradições gaúchas. Nessa perspectiva, identidades culturais não podem ser consideradas autóctones, seu caráter é sempre de incerteza, não competindo a sua condição de existência, mas sim aos discursos que as produzem. Essas misturas culturais vêm sendo tratadas sob o termo “hibridação”, a que pode ser definida como: “(...) processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. (CANCLINI, 2008, p. 19). É possível dizer que o “hibridar cultural” é um movimento de constantes reinvenções, através do uso, intencional ou não, de algumas características de uma prática cultural em outra. O autor questiona a existência de identidades puras ou autênticas e defende que toda a identidade está abarcada nos processos de hibridação entre diferentes culturas, ou seja, essas não possuem “essências autocontidas e a-históricas”. Em um questionamento sobre a receptividade do seu trabalho novo, Péricles diz que o álbum, por ser mais campeiro, tem uma melhor aceitação do público. Todavia, isso causa uma insatisfação dos colegas músicos, “isso porque tenho uma tradição nos festivais, que é algo mais erudito”. Logo após ele afirma: “Em termos de mercado, está sendo muito bem aceito”. Nesse trecho, há dois aspectos importantes a serem tratados na análise: primeiro o artista mostra que é preciso estar sempre negociando sua identidade, ora para se legitimar junto ao público, ora para não ser menosprezado pela crítica dos colegas. Isso mostra uma preocupação com o resultado estético de sua música. Contudo, essa preocupação se configura em uma estratégia de identidade em prol de seu sucesso profissional, pois ele precisa vender seus CD’s para manter seu sustento. “Quem consome é o povo, os amigos têm de andar junto para dar uma força”. No final dessa seção da entrevista, o músico se justifica, alegando que é necessário fazer uma música que o “povo” queira escutar, e se defende neste aspecto, tendo o cuidado de legitimar sua música junto aos colegas músicos, alertando que deveriam ajudá-lo ao invés de lançar críticas. O segundo aspecto é referente à música usada como recurso econômico por esse artista, uma vez que ele precisa se moldar ao mercado, seguindo as tendências mercadológicas, o que se fez necessário para que o mesmo possibilite subsistência ao trabalho. Quando ele negocia sua identidade para ter aceitação do público, pois “quem consome é o povo”, ele está preocupado com o resultado mercadológico de seu trabalho. Segundo Yúdice (2004, p. 25), “o papel da cultura expandiu-se como nunca para as esferas política e econômica”, servindo como recurso para solução de problemas sociais e também gerando oportunidades de geração de renda – empregos. Nesse sentido, outra força que investe na identidade do músico é a questão econômica, sendo que resultado quantitativo da venda de shows e CD’s contribui para a produção das subjetividades e dos discursos incorporados pelo artista. Contudo, não queremos fazer uma crítica à postura do artista, não pretendemos “desqualificar essa estratégia como sendo uma perversão da cultura, ou como uma redução cínica dos modelos simbólicos ou dos estilos de vida a uma mera política” (YÚDICE, 2004, p.454). O artista precisa negociar sua identidade, e trabalhar em prol dos padrões do mercado para alavancar sua profissão. Nesse sentido, a identidade do músico nativista vem sendo produzida pelas relações de poder articuladas por diversos artefatos: o gauchismo, o mercado etc. No entanto, este sujeito não é só um produto discursivo, mas é também um produtor de discursos. Quando ele diz que sua música é campeira, mas com um linguajar urbano, está produzindo um novo sentido a essa música. Considerações finais Durante o texto, buscamos investigar sobre como a identidade do músico nativista é constituída. A literatura, as sociedades literárias, os primeiros músicos gaúchos, o movimento tradicionalista, os festivais nativistas e os aparatos como televisão e jornais tornam-se, nessa perspectiva teórica dos estudos culturais, instâncias pedagógicas. Esses artefatos culturais moldam os modos de ser do músico nativista. Os discursos inseridos nesse campo cultural exercem poder sobre os sujeitos, produzindo subjetividades e identidades. Os sujeitos, por sua vez, também exercem poder dentro desse sistema e reelaboram as identidades. Os resultados desse artigo serão sempre passíveis de novas significações e são localizados e temporais, ou seja, falo de um lugar específico em um tempo determinado. As conclusões que trazemos nesse trabalho são provisórias, incertas, sujeitos de novas interpretações. “Assim, a contingência parece ser nosso limite, abdicar à pretensão de totalidade também significa admitir e aceitar a provisoriedade do conhecimento”. (COSTA, 2007, p. 148) Os discursos que inventam o nativismo são operados através das relações de poder entre músicos e artefatos culturais, que se constituem em uma instância pedagógica, sendo que seus discursos, impregnados do enunciado da autenticidade, procuram impor seus significados. O músico precisa afirmar sua identidade perante o público, para que consiga vender seus shows e discos. Os festivais são coordenados por sujeitos, que trazem subjetividades também reguladas não somente, mas fortemente pela autenticidade. Os jornais, as rádios, a literatura, a internet estão em jogo, exercendo poder, atravessando e sendo atravessado por múltiplas significações. Isso acarreta uma séria de negociações, embates e hibridizações de identidades. Nesse processo, a própria atividade profissional do músico gera esse movimento de produção e reprodução de identidades. Referências CAMPOS, Antonio E. Z de. De andarilho a herói dos pampas: história e literatura na criação do gaúcho herói. Dissertação de mestrado. Caxias 2008. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Editora da USP, 2008. COSTA, Marisa V. Uma agenda para jovens pesquisadores. Caminhos investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. 2 ed. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2007. DUARTE, Colmar Pereira. Califórnia da canção nativa: marco de mudanças na cultura gaúcha. Porto Alegre: Editora Movimento, 2002. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. ______. A Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. GOLIN, T. A ideologia do gauchismo. 3. Ed. Porto Alegre:Tchê, 1983. HALL, Stuart. 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