São os Anticorpos Anti-Célula Endotelial Relevantes no Transplante Renal? Aline Benjamin Luís Cristóvão de Moraes Sobrino Porto Luciane Faria de S. Pontes Laboratório de Histocompatibili dade – HLA – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ. RESUMO O transplante (Tx) renal representa o tratamento de escolha para a maioria dos pacientes renais terminais, entretanto, apesar da evolução e surgimento de novos imunossupressores e avanços nos testes pré-Tx, os médicos ainda se deparam com o obstáculo da rejeição. A rotina laboratorial pré-Tx inclui as tipificações HLA I e II, as provas cruzadas e a pesquisa de anticorpos reativos contra painel de linfócitos, que busca detectar anticorpos anti-HLA pré-formados. A ocorrência de rejeição entre pares HLA-idênticos e com prova cruzada negativa levou à busca de outras células-alvo que não fossem os linfócitos. Sendo a superfície do endotélio vascular a primeira linha de contato entre o receptor e o órgão transplantado, e os vasos o primeiro e mais importante alvo de ataque durante a rejeição, vários estudos foram realizados enfocando o papel da célula endotelial na rejeição, concluindo que existe uma associação entre anticorpos anti-célula endotelial e rejeição do enxerto renal. (J Bras Nefrol 2004;26(2): 104-108) Descritores: Transplante renal. Rejeição de enxerto. Anticorpos. Antígenos HLA. Célula endotelial. ABSTRACT Are The Anti-Endothelial Cell Antibodies Important In Kidney Transplantation? The kidney transplantation (Tx) is the most important treatment for most of the renal patients, however, despite the evolution and appearance of new imunos supressors and progresses in pre-Tx tests, the specialists have to come across the rejection obstacle. The pre-Tx laboratorial routine includes the HLA I and II typing, the crossmatch and the investigation of panel reactive antibodies, loo king for pre-formed anti-HLA antibodies. The occurrence of rejection between HLA-identical siblings with a negative crossmatch led to the search of others tar get-cells other than limphocytes. Being the surface of the vascular endothelium the first contact line between the receptor and the transplanted organ, and the vases the first and most important attack target during the rejection, several studies were accomplished focusing the role of the endothelial cell in the rejec tion, concluding that there is an association between anti-endothelial cell anti bodies and kidney rejection. (J Bras Nefrol 2004;26(2): 104-108) Keywords: Kidney transplantation. Graft rejection. Antibodies. HLA antigens. Endothelial Cell. INTRODUÇÃO Recebido em 18/08/2003 Aprovado em 09/03/2004 Atualmente, o transplante renal (TxR) representa o tratamento de escolha para a maioria dos pacientes portadores de insuficiência renal terminal. Avanços ocorridos nas últimas décadas no que se refere à imunossupressão J Bras Nefrol Volume XXVI - nº 2 - Junho de 2004 levaram ao aumento na sobrevida de enxertos a curto e longo prazo1, porém, apesar da evolução e surgimento de novas e eficazes drogas imunossupressoras e avanços nos testes pré-transplante a fim de aumentar sua sensibilidade, os médicos ainda se deparam com o obstáculo da rejeição. A rejeição pode ser definida como uma reação imunológica onde o órgão transplantado é reconhecido como nonself e pode ser classificada como hiperaguda, acelerada, aguda e crônica, com base em parâmetros temporais, clínicos e patológicos. A pior delas é a rejeição do tipo hiperaguda, onde ocorre perda imediata do enxerto devido à existência, no receptor, de anticorpos pré-formados anti-ABO (IgM ou IgG) ou anti-HLA classe I (IgG) doador-específicos2. Tipificações HLA e testes pré-transplante têm como objetivo avaliar o match entre doador e receptor e detectar a existência de anticorpos anti-HLA no receptor, respectivamente. Estes testes eram realizados e o são até hoje tendo como células-alvo os linfócitos, com base em dois princípios: todos os antígenos do órgão transplantado são representados nos linfócitos e todos os antígenos detectados nos linfócitos são importantes componentes do tecido transplantado3. Os linfócitos foram, então, considerados por muitos anos como as células principais no processo da rejeição. Entretanto, a ocorrência de rejeição entre pares HLA-idênticos e com prova cruzada negativa levou os pesquisadores a buscar outras células-alvo que não fossem os linfócitos. Sendo a superfície do endotélio vascular a primeira linha de contato entre o receptor e o órgão transplantado, e sendo os vasos o primeiro e mais importante alvo de ataque durante a rejeição, vários estudos se iniciaram enfocando o papel da célula endotelial (CE) neste processo. A CÉLULA ENDOTELIAL A superfície revestida por CE em um ser humano adulto é composta por aproximadamente 1 a 6 x 1013 células, pesando em torno de 1kg e cobrindo uma área de superfície de aproximadamente 1 a 7 m2 4. O endotélio foi considerado por muitos anos como uma barreira inerte que recobria a parte interna dos vasos. Hoje, o endotélio é considerado um constituinte de um tecido metabólico que regula uma variedade enorme de respostas biológicas e funções fisiológicas (quadro 1). O endotélio é um epitélio pavimentoso simples, sendo as suas células unidas por junções oclusivas e comunicantes. Uma característica importante das CE é a presença, em seu citoplasma, de inclusões eletrodensas em forma de bastonetes, os corpos de Weibel-Palade5. 105 Nessas inclusões citoplasmáticas, está estocado o fator de Von Willebrand, que atua como uma proteína carreadora para o fator VIIIc, que faz parte da via intrínseca da coagulação sangüínea6. O endotélio vascular pode ser considerado como um órgão heterogêneo e dinâmico que possui funções secretórias, sintéticas, metabólicas e imunológicas vitais para os seres humanos7. Regula o fluxo de substâncias nutrientes, de diversas moléculas biologicamente ativas e de células sangüíneas através de todo o organismo humano. Ele é seletivamente permeável, possuindo receptores para várias moléculas na membrana celular, incluindo proteínas (fatores de crescimento, proteínas coagulantes e anticoagulantes), partículas de transporte de lipídios (LDL), metabólitos (óxido nítrico e serotonina) e hormônios (endotelina-1). O endotélio possui um papel central na regulação do tônus vascular e do fluxo sangüíneo, através da secreção e captação de substâncias vasoativas que agem de modo parácrino, contraindo ou dilatando leitos vasculares específicos em resposta a diversos estímulos; também possui importantes ações anticoagulantes, antiplaquetárias e fibrinolíticas. O endotélio pode, também, ser considerado como um órgão imunocompetente, já que ele expressa antígenos de histocompatibilidade e antígenos de grupo sangüíneo8, além de apresentar antígenos tecido-específicos9. As CE, sendo células nucleadas, expressam moléculas HLA classe I. O tratamento de CE de veia umbilical humana (HUVEC) – que são as CE mais utilizadas para estudo em cultura – com interferon-γ (IFNγ) e fator de necrose tumoral-α (TNFα), aumenta a expressão de moléculas HLA classe I por estas células e faz com que elas passem a expressar também moléculas HLA classe II, podendo atuar como células apresentadoras de antígenos10. Quando o endotélio é ativado em resposta a doenças inflamatórias, agudas ou crônicas, ou por citocinas, ele pode sofrer mudanças tanto morfológicas como antigênicas, aumentando a expressão de moléculas com atividades diferenciadas, como as moléculas de adesão selectina-E, selectina-P, moléculas de adesão celular aos vasos (VCAM-1, vascular cell adhesion molecule-1), Quadro 1- Principais funções das Células Endoteliais • • • • • • Regulação da coagulação Controle do tônus vascular Adesão e transmigração de leucócitos e células tumorais Secreção de fatores de crescimento para neovascularização Regulação da perfusão e permeabilidade na microcirculação Secreção e resposta a autacóides como prostaglandinas, angiotensinas, adrenalina e vasopressina • Controle do transporte de moléculas através do plasma e fluidos intersticiais pela presença de poros, transporte através de vesículas e receptores de membrana específicos 106 AC endoteliai: relevância no TX Figura 1 - Esquema representativo de vaso sanguíneo de um rim transplantado, em corte longitudinal, mostrando: (a) Reconhecimento por anticorpos pré-formados anti-HLA classe I (IgG) doador-específicos. (b) Reonhecimento por receptores de células T auxiliares (*) ou citotóxicos (♦) de peptídeos doador-específicos apresentados por moléculas HLA classe II e classe I, respectivamente. (c) Reconhecimento, por anticorpos pré-formados, de antígenos CE-específicos expressos na superfície celular. (d) Antígenos CE-específicos citoplasmáticos podem ser liberados após lise do endotélio, sensibilizando o paciente para um transplante consecutivo. moléculas de adesão leucócito-endotélio (ELAM1,endothelial leucocyte adhesion molecule-1) e moléculas de adesão intercelular (ICAM-1, intercellular adhesion molecule-1). Essas moléculas de membrana são responsáveis pelo estabelecimento de um contato intercelular direto, bem como pelo contato entre célula e matriz extracelular, podendo também funcionar como moléculas acessórias nas interações leucocitárias 11. As CE também estão implicadas no processo de rejeição de órgãos sólidos (figura 1). Tais células desempenham três papéis cruciais no processo de rejeição do enxerto: 1) elas estimulam o sistema imune do receptor através da apresentação de aloantígenos aos linfócitos do mesmo, iniciando o processo de rejeição; 2) respondem a estímulos do receptor, como, por exemplo, a citocinas inflamatórias, promovendo uma inflamação dentro do enxerto e trombose, que contribui para lesão do órgão transplantado; 3) a camada endotelial que recobre os vasos do enxerto é o primeiro alvo para a resposta imune do receptor contra o órgão transplantado12. A CÉLULA ENDOTELIAL COMO ALVO NA REJEIÇÃO Um número significativo de pacientes não apresenta anticorpos anti-HLA na prova cruzada pré-transplante e, mesmo assim, ocorre perda precoce do enxerto renal. Realmente, alguns pacientes nunca desenvolvem anticorpos linfocitotóxicos contra o doador e/ou contra um painel ao acaso e, mesmo assim, rejeitam seguidos transplantes13. Anticorpos que reagiam exclusivamente contra CE foram observados em pacientes após rejeição renal, o que mostrou que antígenos de superfície expressos em CE poderiam ser importantes no componente vascular da rejeição de enxertos renais14. Foram definidos 8 diferentes grupos de antígenos específicos de CE15; contudo, até hoje, ainda não há na literatura dados significativos a respeito da caracterização molecular destes antígenos endotélio-específicos. Em 1977, então, foi descrito o Sistema EM, co-expresso em CE e monócitos16. Experimentos de redistribuição antigênica sugeriram que esses antígenos estavam localizados em moléculas separadas dos antígenos HLA na superfície da célula17. Mais recentemente, foi confirmada esta independência molecular entre antígenos HLA-ABC e moléculas presentes em células endoteliais alvos de anti-soros de pacientes que haviam rejeitado enxerto renal18. A descoberta de que esse novo sistema antigênico era compartilhado por células endoteliais e monócitos levantou esperanças a respeito da tipificação destes antígenos, utilizando, então, os monócitos como célulasalvo devido à facilidade de obtenção destas células frente às células endoteliais. Entretanto, Baldwin III e cols.19 chegaram à conclusão de que nem todos os antígenos monocíticos eram expressos no endotélio vascular renal, explicando então, o porquê de anticorpos anti-monócitos nem sempre estarem correlacionados com rejeição renal. Portanto, a célula endotelial possui antígenos próprios não presentes em monócitos. Anticorpos pré-formados no receptor contra antígenos presentes em células endoteliais e monócitos do doador freqüentemente levam à rejeição do enxerto em pares HLA-idênticos, enquanto anticorpos dirigidos contra antígenos expressos exclusivamente em monócitos parecem ser benignos 20. Assim, sendo consenso que o alvo ideal era a célula endotelial, o grande obstáculo para a realização das provas cruzadas prospectivas passou a ser a fonte de células endoteliais específicas do doador. Na procura de um substrato adequado para a prova cruzada, Moraes e cols.21 testaram soros de pacientes que rejeitaram enxerto renal contra cortes de pele específicos do doador por imunofluorescência indireta (IFI), na tentativa de utilizar os capilares da derme como células-alvo. Entretanto, os capilares da derme não mostraram os resultados esperados, mas os autores observaram uma forte fluorescência na epiderme da pele normal. A marcação dos queratinócitos era predominantemente citoplasmática e detectável, mesmo em altas diluições dos soros testados. A essa nova técnica, denominaram “crossmatch de pele”. J Bras Nefrol Volume XXVI - nº 2 - Junho de 2004 A maioria dos trabalhos relaciona anticorpos anticélula endotelial com rejeição acelerada, mas alguns autores já relataram a participação deste anticorpo em rejeições do tipo hiperaguda e crônica22,23. De acordo com alguns autores, a prova cruzada poderia ser realizada por citotoxicidade dependente de complemento (CDC), utilizando a célula endotelial como alvo 24,25. Contudo, há alguns trabalhos que mostram que o método de IFI é o mais sensível, detectando títulos mais baixos de anticorpos e mostrando, inclusive, correlação com rejeição crônica, o que é menos freqüentemente demonstrado por citotoxicidade26. Muitos autores demonstraram os anticorpos anti-célula endotelial utilizando outras metodologias, como citometria de fluxo27-29 e ELISA 30. Moraes e cols.31 observaram, por citometria de fluxo, uma fraca expressão de antígenos EM na superfície de células endoteliais, o que contra-indicaria a prova cruzada por citotoxicidade. Recentemente, foi demonstrado que antígenos não-HLA, alvos de anti-soros de pacientes que haviam rejeitado enxerto renal, estavam distribuídos ao redor do núcleo e difusos pelo citoplasma, e uma fraca expressão na membrana também foi observada18. Entretanto, o mesmo não havia sido relatado por SumitranKaruppan e cols. 28, que caracterizaram uma proteína presente na membrana de células endoteliais, que se mostrou um alvo para anticorpos presentes no soro de um paciente que rejeitou três enxertos renais, mas não para soros de pacientes normais ou pacientes transplantados sem episódios de rejeição. Há, atualmente, muitos estudos demonstrando a importância dos anticorpos anti-célula endotelial. Shin e cols.32 observaram que o título destes anticorpos nos soros pré e pós-transplante de pacientes transplantados renais pode ser um bom indicador de rejeição aguda e também útil para o monitoramento deste tipo de rejeição. Entretanto, ainda não está bem estabelecido o valor do monitoramento da evolução do transplante renal através da pesquisa destes anticorpos, pois o maior foco de atenção continua sendo os anticorpos anti-HLA doadorespecíficos33. Recentemente, Poppa e cols.34 demonstraram que CE doador-específicas circulantes podem ser detectadas no sangue periférico de receptores de enxerto renal, 107 estando freqüentemente associadas com rejeição aguda e infecção por citomegalovirus. Tais autores concluíram, então, que a presença de CE doador-específicas circulante é conseqüência de lesões pós-transplante no endotélio do enxerto. Entretanto, estes autores não avaliaram se tais CE circulantes seriam capazes de induzir a formação de anticorpos específicos. CONCLUSÃO A natureza do estímulo que resulta na produção de anticorpos reativos contra células endoteliais não está completamente esclarecida. A nosso ver, o próprio ato cirúrgico pode provocar lesão mecânica do endotélio, no sítio de anastomose ou durante a perfusão do rim, expondo os antígenos citoplasmáticos que induziriam a formação de anticorpos específicos (figura 1). No paciente pré-sensibilizado por transplante anterior, isso levaria à rejeição aguda acelerada (tipo resposta secundária), enquanto que nos pacientes não pré-sensibilizados isso poderia levar a uma resposta de anticorpos controlável por imunossupressão, e não deletéria ao transplante. Até o presente momento, infelizmente ainda não há, na rotina laboratorial, uma prova pré-transplante que avalie a presença de anticorpos anti-CE, o que tornaria possível testar os soros dos pacientes antes do transplante e também fazer um monitoramento após o transplante – principalmente em pacientes candidatos a retransplante que perderam outros enxertos sem a presença de anticorpos anti-HLA. No futuro, com a caracterização precisa do alvo destes anticorpos específicos de CE, talvez se torne possível implantar um teste que detecte tais anticorpos, contribuindo, então, para um aumento na sobrevida dos transplantes renais. AGRADECIMENTO A Fernando Real, estagiário de iniciação científica da Divisão de Medicina Experimental do INCa, pela elaboração do desenho esquemático. REFERÊNCIAS 1. Cortesini R. Transplantation in the new millennium. Transplantation 2001;33:47-8. 2. Helderman, Goral JH, Goral S. Transplantation Imunobiology. In: Danovitch GM, editor. Handbook of kidney transplantation. 3th ed. Philadelphia: Lippincott Willams & Wilkins; 2000. p. 17-38. 3. Baldwin III WM, Claas FH, van Es LA, van Rood JJ. Distribution of endothelial-monocyte and HLA antigens on renal vascular endothelium. Transplant Proc 1981;13(1):103-7. 4. Augustin HG, Kozian DH, Jonhson RC. 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