iii. conclusão

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III. CONCLUSÃO
303
III. CONCLUSÃO
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
304
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
305
1. Discussão.
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
306
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
307
1. Discussão.
Este trabalho nasceu na confluência de três fontes de informação e formação
pessoal: a psicoterapia de inspiração comportamental e cognitiva e a docência de duas
disciplinas, Psicologia Educacional e Dificuldades de Aprendizagem. No cruzamento
de informações e de questões provenientes destes três domínios e das respectivas áreas
de aplicação (clínica, formação de professores e intervenção psico-educacional)
surgiram contradições e perplexidades, dúvidas e necessidades. A motivação para este
estudo e a formulação das primeiras hipóteses surgiram nesse contexto. Depois, todo o
projecto foi sendo desenvolvido em interligação com o exercício profissional e a
investigação nestes diferentes domínios. Talvez por uma necessidade pessoal de
integração e coerência, procuraram-se pontos de contacto e zonas de intersecção.
Em psicoterapia comportamental e cognitiva, os problemas pessoais, emocionais
ou comportamentais são concebidos no quadro da Psicologia do Desenvolvimento, da
Psicologia Cognitiva e da Psicologia da Aprendizagem. A Psicopatologia é um quadro
de referência, mas o mal estar sentido por quem procura a terapia é analisado de uma
forma funcional, em contexto, em função de objectivos pessoais e de critérios de
adaptação. O certo e o errado, o saudável e o doente, o normal e o anormal, são formas
populares de descrever os problemas e as dificuldades, mas não correspondem de facto
às concepções propostas por estes modelos.
Quando no campo das Dificuldades de Aprendizagem o essencial parece ser
distinguir entre dois tipos de alunos (os que “têm” e os que “não têm” dificuldades) isso
coloca qualquer terapeuta de orientação cognitivo-comportamental em dissonância, em
conflito, em dificuldade. E como nesta perspectiva as dificuldades podem ser motivo ou
oportunidade de crescimento (desenvolvimento) ou de mudança (inovação, descoberta,
reformulação) o desafio estava aberto. Tratava-se de tentar responder essencialmente a
uma questão nuclear: como podem as dificuldades de aprendizagem ser concebidas
simultaneamente como limitações (distúrbios) e, por outro lado, como oportunidades de
mudar e de crescer?
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
308
Numa breve síntese, é possível constatar que os resultados obtidos nos quatro
estudos reunidos neste trabalho, se encontram, de modo geral, dentro das expectativas e
hipóteses formuladas.
Tal como se esperava, o Estudo 1, que integra a tradução e adaptação para
língua
portuguesa
do
Questionário
Epistemológico
(versão
para
estudantes
universitários), apresenta uma estrutura factorial similar a outras anteriormente
observadas para a população americana. Oferece neste momento a possibilidade de
utilização de três escalas: (1.) para um estudo de crenças pessoais sobre a natureza do
conhecimento; (2.) de crenças sobre processos de conhecimento e de aprendizagem; e
(3.) de crenças sobre o acesso ao conhecimento. O estudo efectuado permitiu confirmar
as propriedades psicométricas desta adaptação. Este questionário também poderá vir a
ser utilizado como instrumento de auto-observação (e debate) em programas de
intervenção junto de estudantes universitários e na formação de professores.
No Estudo 2, identificaram-se quatro perspectivas pessoais ou de senso comum
sobre Dificuldades de Aprendizagem (Disfuncional, Processual, Interdependente e
Funcional), que integram nove concepções mais específicas. Verifica-se que, de modo
geral, é possível fazer corresponder todas estas perspectivas e concepções pessoais,
intuitivas e de senso comum, a quase todos os modelos e concepções científicas sobre
Dificuldades de Aprendizagem desenvolvidos na comunidade científica, nas últimas
décadas. Este paralelismo entre concepções pessoais e científicas é especialmente
interessante pela enorme diversidade de respostas, incluindo perspectivas mais
“conservadoras”, concepções estáticas e deterministas, mas reflectindo também
algumas das perspectivas científicas mais actuais e inovadoras. De uma forma natural
e quase espontânea, alguns dos estudantes inquiridos revelam concepções pessoais
muito mais complexas, relativas e construtivistas do que seria provável encontrar em
muitos membros da comunidade científica, que persistem na defesa de posições
anteriores.
No Estudo 3, procedeu-se ao desenvolvimento de uma segunda versão do
Questionário Epistemológico para estudantes do ensino secundário (QEES). Esta nova
versão apresenta uma estrutura factorial paralela à observada na versão para estudantes
universitários, com bons resultados ao nível das propriedades psicométricas analisadas.
Além disso, entre outros aspectos, foi possível observar uma crescente maturidade,
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
309
conceptual e epistemológica, ao longo da escolaridade, entre o início do secundário
(10º ano) e o final das licenciaturas no ensino universitário (4º e 5º anos). Isto parece
confirmar o papel da escola (ao nível do ensino superior) na formação científica e
epistemológica dos estudantes e a necessidade de rever e reforçar a formação de
professores neste domínio (para os níveis básico e secundário).
Por fim, no Estudo 4, verificou-se que as crenças pessoais sobre dificuldades de
aprendizagem podem ser abordadas através de um novo instrumento (QCDA), um
complemento específico aos dados obtidos com o Questionário Epistemológico.
Embora se confirme a necessidade de uma revisão e de estudos posteriores,
observaram-se desde já algumas relações significativas entre esta nova escala e as
escalas de segunda ordem do QEES, nomeadamente, sugerindo que as dificuldades
tendem a ser concebidas de forma mais positiva e adaptativa (Escala de Dificuldades
Processuais) em alunos que revelam uma maior maturidade na escala de Processos de
Conhecimento e de Aprendizagem no Questionário Epistemológico. Uma vez mais se
verifica que as crenças de senso comum apresentam uma estrutura multidimensional
complexa e que pode ser descrita de forma ortogonal. Constatou-se que as crenças
sobre Dificuldades de Aprendizagem podem ser descritas simultaneamente em várias
dimensões (e não apenas numa, como inicialmente se esperava), por vezes com grande
ambivalência e aparente contradição. São resultados a rever em estudos posteriores.
Com base na revisão bibliográfica efectuada e nos resultados obtidos nos quatro
estudos desenvolvidos, parece útil sintetizar e acrescentar a esta discussão final, alguns
aspectos conceptuais. Podem referir-se, nomeadamente, elementos relativos ao
contexto, à funcionalidade e o desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem.
Tanto numa perspectiva de senso comum como numa perspectiva científica,
vimos que é possível conceber a existência de dificuldades de aprendizagem
funcionais enquadradas por crenças e concepções adaptativas. Por outro lado,
considera-se que criar condições para o aparecimento de determinadas dificuldades
é condição necessária para uma maior qualidade no ensino e na aprendizagem.
Em termos pessoais, o que assim se sintetiza não constitui realmente uma
conclusão ou um ponto de chegada nesta dissertação. Pelo contrário, o paralelismo entre
estas duas asserções constitui-se como um dos vectores essenciais para todo este
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
310
trabalho. Algo que foi surgindo gradualmente, na formação de professores, no ensino de
autores como Piaget ou Bruner, no desenvolvimento de programas de estimulação
metacognitiva e da capacidade de auto-regulação (Gonçalves, 1992), na docência e no
exercício da psicoterapia. Agora, no momento de rever todo este percurso, talvez seja
possível ir um pouco mais longe, num breve jogo de palavras que se pretende também
de reflexão conceptual. Em educação como em psicoterapia, a mudança pode ocorrer
quando, no uso das palavras (narrativas, metáforas, diálogo socrático, etc.) se
(re)descobrem significados e se (re)pensam crenças e concepções.
Há cerca de oito anos, num dos livros que mais contribuiu para o
desenvolvimento deste projecto de investigação (Finlan, 1994), surgiu uma frase que
tem servido de mote para reflexão e conversa em muitas aulas das disciplinas de
“Dificuldades de Aprendizagem” e de “Psicologia Educacional”:
“Existem no mundo, dois tipos de pessoas:
as que dividem as pessoas em dois grupos e as que não o fazem.”
Esta frase, citada no texto original em língua inglesa, surge como proveniente de
autor anónimo (ob. cit. , p. 59). O que, no contexto de um trabalho sobre concepções de
senso comum, tem um valor acrescido. No entanto, o que se assim se diz não parece
nem comum nem consensual. Mas pode fazer pensar, pensar sobre o papel dos rótulos e
das classificações simplificadoras. No domínio das dificuldades de aprendizagem, como
em tantos outros, surgem por vezes tentações maniqueístas e reducionistas. Pais e
professores colocam muitas vezes a questão em termos simples: pretendem saber se o
aluno realmente “tem ou não tem” dificuldades de aprendizagem. “Não ter” traduz-se
em descanso, “ter” é motivo de uma preocupação e perturbação por vezes extrema. No
contexto deste jogo de palavras, poderia talvez propor-se uma versão mais
“Shakespeariana” mas muito menos dramática: a questão essencial de cada dificuldade
poder “ser ou não ser” modificável, funcional ou mesmo necessária (e, entre outros
aspectos, aceitar correr o risco de aprender).
Centenas de estudos e de investigadores têm tentado, em vão, um diagnóstico
tão precoce e tão redutor quanto possível, na tentativa de integrar todos os casos num
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
311
número limitado (e limitador) de categorias. E no entanto, na frase de Bernard Shaw “a
ciência nunca resolve um problema sem criar dez novos problemas”. Pelo menos no
domínio das dificuldades de aprendizagem, parece que tem sido assim. Muitas das
tentativas de classificação adiantadas até ao momento (veja-se por exemplo, a forma
utilizada no DSM) não ajudam nem na descrição nem na compreensão do problema, não
facilitam a reeducação nem uma intervenção adequada1. A separação de alunos
“difíceis” ou em dificuldade, tem muitas vezes uma reduzida eficácia sobretudo se não
for secundada por outras medidas de facilitação processual e de ajuda específica,
podendo conduzir à desistência, à exclusão e a situações de profecia auto-realizada. Para
Finlan, como para muitos outros autores (e.g. Marinoff, 1999; Stanovich, 1993), são
precisamente os fundamentos subjacentes às tentativas de classificação de dificuldades e
distúrbios de aprendizagem que devem ser questionados, por problemas de
fundamentação empírica, mas sobretudo por insuficiências conceptuais e critérios de
avaliação inadequados2.
Um diagnóstico diferencial pode ser importante mas não é o aspecto
fundamental. Pode rotular e estigmatizar o aluno e não informa realmente sobre o que
fazer ao nível da intervenção. Num contexto educacional, as dificuldades só podem ser
efectivamente apoiadas se forem descritas e analisadas em contexto, situacional, social e
pessoal. Conhecer crenças e concepções pessoais sobre este problema, saber como
modificar crenças desadaptadas e incentivar pressupostos mais adaptativos, pode ajudar
de forma significativa a uma intervenção de natureza preventiva ou remediativa.
Neste trabalho sugere-se a possibilidade de conceber e definir o conceito de
Dificuldade de Aprendizagem de uma forma diferente. Por analogia com o que se passa
noutros domínios de aplicação da Psicologia (Psicoterapia, por exemplo), não são as
pessoas que devem ser divididas em dois grupos distintos, nem a questão pode ser
colocada em termos de um “ter ou não ter” uma qualquer dificuldade ou patologia. As
dificuldades, na vida como na escola, ocorrem em contexto, pessoal, situacional e
temporal. Sobrepõem-se no tempo ao próprio processo de aprendizagem. Devem ser
1
“There are only two things wrong with special education... it isn’t special and it isn’t education.
(Metzner, citado por Finlan, 1994).
2
“...dar o nome de síndroma a um qualquer estado não significa que saibamos aquilo que
estamos a dizer, mesmo nos casos em que há algo de errado em termos clínicos.” (Marinoff, 1999)
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
312
concebidas de forma interactiva e dinâmica, enquanto processos, entidades em
desenvolvimento, de carácter mais ou menos funcional e adaptativo.
As dificuldades não caracterizam alunos, antes são um elemento que pode servir
à caracterização de situações, contextos e projectos de aprendizagem. E só em função
desse contexto serão mais ou menos valorizadas, como mais ou menos graves; só em
função desse contexto se desenvolverão de forma mais ou menos positiva, de forma
mais ou menos funcional.
Sugere-se, deste modo, que as dificuldades podem ser concebidas como
entidades em desenvolvimento (e não como estados ou traços persistentes). As
dificuldades modificam, modificam-se e são modificáveis ao longo do tempo.
E não são as pessoas (como na frase citada), nem os alunos, que devem ser alvo
de classificação nem de discriminação em categorias distintas. Mas como, no fundo, as
dicotomias e as taxonomias nos ajudam no saber e no fazer, então que se escolham
conceitos, metáforas e modos de classificação que em si mesmos ajudem à mobilidade,
à modificabilidade cognitiva e ao desenvolvimento.
Neste sentido, podemos considerar que existem afinal, não tanto dois tipos de
pessoas, mas apenas dois tipos de dificuldades: dificuldades funcionais e
disfuncionais, dificuldades mais e menos facilitadoras da aprendizagem, mais e menos
adaptativas.
ƒ
Podem dizer-se disfuncionais, todas as dificuldades que podem favorecer
situações de desadaptação pessoal, todas as que contribuam para reduzir,
limitar ou prejudicar o processo de aprendizagem.
ƒ
Podem designar-se como funcionais, todas as dificuldades que se constituem
como desafio, oportunidade, incentivo ao esforço e à aprendizagem.
Perante o mesmo tipo de dificuldades e em situações que poderiam parecer
similares, constata-se que alguns alunos se mantêm confiantes e com forças renovadas
para vencer os obstáculos e outros, paralisam, sentem-se impotentes e sem capacidades
para continuar. Os primeiros parecem encontrar motivação e inspiração nas dificuldades
(dificuldades funcionais) enquanto para os outros tudo parece inútil, demasiado difícil e
impossível de ultrapassar (dificuldades disfuncionais). O que separa estes dois grupos
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
313
de alunos? O que determina o êxito ou o insucesso, a força ou a impotência? Porque é
que perante dificuldades, alguns alunos se superam a si próprios, vão em frente,
enquanto outros se sentem completamente “ultrapassados” e se deixam ficar para trás?
Esta questão tem sido respondida de diferentes modos e recebido contributos de
diferentes domínios, entre os quais se podem referir: vinculação precoce
(“attachment”), desenvolvimento cognitivo, auto-estima, expectativas de sucesso,
história de aprendizagem, motivação, atribuição causal (Heckhausen, 1987; Licht, 1983;
Shell, Colvin & Bruning, 1995).
No dia-a-dia, numa perspectiva de senso comum, na voz de quem de psicologia
“nada sabe” talvez se pudesse ouvir algo de muito mais simples: “o mais importante é
acreditar, se um aluno não acredita, nunca vai ser capaz”. Acreditar. Acreditar ou não
acreditar. Numa perspectiva de senso comum, a palavra acreditar parece vagamente
associada à ideia de “esperança” ou de “confiança”. Sinónimo de confiar, ter confiança.
Mas, também numa acepção comum, a noção de crença pode ser referida de uma outra
forma. Por vezes soa a crendice, a superstição, a ignorância ou incultura. Na melhor das
hipóteses, as crenças são vistas como parte integrante da filosofia popular ou da
religião. Voz do povo ou voz de Deus. Nada que a ciência possa, saiba ou queira
dissecar.
Não é esta, no entanto, a perspectiva epistemológica que orienta este trabalho. O
estudo de uma Psicologia do Senso Comum, o estudo de crenças e concepções pessoais,
pode ser essencial em termos práticos, teóricos e epistemológicos. Em termos práticos,
os dados assim obtidos podem constituir um auxiliar precioso para a intervenção
psicológica, individual ou institucional, para a prevenção e para a divulgação de
informação científica, para a terapia, para as diversas formas de apoio ou de reeducação.
Em termos teóricos, pode ser relevante para a reconceptualização de um conceito tão
pouco específico como o conceito de dificuldade de aprendizagem. Uma dificuldade de
aprendizagem não é apenas um deficiente produto ou resultado escolar. Uma
dificuldade é (ou deve ser concebida como) um problema de adaptação pessoal a um
contexto ou situação de aprendizagem. Como sucede noutras áreas de intervenção
clínica que se baseiam em modelos de aprendizagem (por exemplo, intervenção
comportamental-cognitiva) o problema só pode ser adequadamente definido em
contexto: num contexto social, situacional e pessoal (cognitivo, emocional,
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
314
comportamental, mas também conceptual). A percepção sobre todos estes níveis ou
contextos muda de pessoa para pessoa, em função de factores de mediação cognitiva (e
de variáveis moderadoras), e entre todos os aspectos que poderíamos nomear, em
função de crenças e concepções pessoais. Erros lógicos, distorções cognitivas, crenças
irracionais, expectativas e atribuições, determinam comportamentos mais ou menos
adaptativos, de maior ou menor sucesso. Numa perspectiva pós-moderna, os limites
entre os quais decorre a existência de cada indivíduo, são em grande parte estabelecidos
por si mesmo (Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001) e pela forma como organiza e atribui
significado ao que o envolve.
Em síntese: tradicionalmente, numa perspectiva diferencial, importa sobretudo
distinguir entre alunos, tipos, categorias e sub-categorias de dificuldades, problemas e
distúrbios de aprendizagem. Esta é uma perspectiva essencialmente normativa e
legislativa, centrada em critérios prévios, exteriormente impostos, com base em
fundamentos, pressupostos e princípios teóricos ou decorrentes de dados empíricos, por
análise comparada entre grupos de estudantes. É uma perspectiva organizadora, que
procura a segurança e a estabilidade no diagnóstico, mas de reduzida utilidade na
definição de objectivos, no planeamento da intervenção e na monitorização dos
resultados.
De modo diferente, numa perspectiva funcional pretende-se sobretudo uma
distinção tão precoce quanto possível entre dificuldades (e não entre alunos). Trata-se,
essencialmente, de tentar descrever, analisar e compreender no seu modo de
funcionamento (mais do explicar na sua origem) um complexo sistema de factores e de
relações que contribuem para o aparecimento e manutenção de dificuldades
potencialmente desadaptativas (disfuncionais). Mais do que classificar tipos e subtipos
de problemas em função de áreas curriculares ou de categorias de tarefas escolares
(escrita, leitura, cálculo, etc.) importa sobretudo analisar o modo de funcionamento
pessoal, o modo de processamento e de gestão processual, caso a caso e em contexto.
Além disso, a forma como o próprio aluno e a sua envolvência interpretam e reagem às
dificuldades de aprendizagem, pode contribuir ou determinar de forma significativa os
resultados obtidos (e a obter no futuro) qualquer que seja a tentativa e o esforço de
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
315
intervenção. Para cada dificuldade analisada em contexto, para cada aluno em cada
situação específica, importa sobretudo:
1) avaliar produto e processo de forma integrada, para a determinação de um
estado actual (linha de base) na origem da queixa docente, associada ao insucesso
escolar ou que possa constituir um risco potencial para o aparecimento de dificuldades
futuras;
2) avaliar e determinar aspectos funcionais que inibam ou prejudiquem o
aparecimento de comportamentos e de estratégias mais adequadas e eficazes, tanto ao
nível dos produtos como dos processos de aprendizagem;
3) sugerir e planear formas de intervenção e de avaliação intra-individual que
permitam acompanhar a evolução e possam facilitar a superação das dificuldades
identificadas; que possam orientar e conduzir, alunos e professores, à descoberta de
alternativas pessoais e curriculares, para a compensação de défices, para a redefinição
de objectivos, elaboração de projectos de aprendizagem e de vida.
Por fim, pode dizer-se que este trabalho, considerado no seu conjunto, teve como
objectivo: tentar aprender, numa perspectiva científica, sobre crenças e concepções
pessoais, inerentes a uma perspectiva intuitiva, na pesquisa de múltiplas relações entre
tudo aquilo em que se acredita e o sucesso pessoal, na vida como na escola.
Mais especificamente, o tema das dificuldades de aprendizagem foi abordado
numa perspectiva só recentemente analisada em Psicologia Educacional, na intersecção
com a chamada psicologia do senso comum (“folk psychology”): o estudo de crenças e
concepções pessoais sobre o conhecimento e sobre a aprendizagem (incluindo as
crenças e concepções pessoais sobre as próprias dificuldades).
Um trabalho como este corresponde essencialmente a um projecto e a um
processo de aprendizagem, pontuado por inúmeras questões e múltiplas dificuldades
(práticas, pessoais e profissionais, emocionais e cognitivas, mas sobretudo, dificuldades
de aprendizagem). Porque de acordo com os pressupostos deste trabalho, um projecto
de investigação decorre essencialmente de forma isomorfa a qualquer outro percurso de
aprendizagem. E porque, de acordo com o que ficou dito em capítulos anteriores, as
dificuldades podem ser desafios e oportunidades, do ponto de vista pessoal, estas
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
316
sugestões são talvez o principal produto deste percurso de aprendizagem. São uma
tentativa de resposta, de reequilíbrio e reconceptualização de muitas das dificuldades
que estiveram na sua origem ou que foram surgindo ao longo do caminho. Espera-se
que possam constituir mais um contributo para uma urgente reflexão e revisão do
conceito genérico de “Dificuldade de Aprendizagem”.
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
317
2. Estudos posteriores.
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
318
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
319
2. Estudos posteriores.
Os resultados obtidos, tanto do ponto de vista quantitativo como do ponto de
vista qualitativo, parecem confirmar o interesse pelo estudo de crenças e concepções
pessoais sobre dificuldades de aprendizagem, mas deixam ainda sem resposta muitos
aspectos que se julgam da maior importância, nomeadamente: a forma como crenças e
concepções interagem com outras variáveis, o modo como evoluem ao longo do tempo
ou como se relacionam com crenças e concepções pessoais noutros domínios.
Estes resultados poderão ser aprofundados em estudos posteriores, de entre os
quais se indicam apenas alguns exemplos.
A generalidade dos estudos publicados sobre dificuldades de aprendizagem
concentra-se numa perspectiva transversal e estática. Pelo contrário, estudos de natureza
mais longitudinal ou desenvolvimentista, que acompanhem a evolução das dificuldades
ao longo do tempo, podem também ajudar a esclarecer como se processa a evolução de
crenças e concepções. O estudo de caso, os diários, os portfolios, as histórias de vida,
os estudos ex-post facto, em alunos de maior e de menor sucesso, com diferentes
experiências de dificuldade, parecem extremamente necessários. Compreender o ponto
de vista de quem vive (com) uma dificuldade, é talvez um dos aspectos essenciais.
Essencial para um apoio mais adequado, que englobe não só os aspectos curriculares,
mas também a estimulação de aspectos atitudinais, emocionais e conceptuais (Ryden,
1997).
Numa área em que a variabilidade é imensa (variabilidade ao nível dos
currículos, dos métodos, dos recursos, das influências socio-culturais, dos estilos e
práticas docentes, etc.) talvez seja verdadeiramente impossível encontrar padrões
distintivos comuns. Talvez só a compreensão da individualidade, a comparação entre
individualidades e o estabelecimento de quadros conceptuais que alberguem e
descrevam as diferenças (mais do que as semelhanças) pode esclarecer (e ajudar a usar)
todo o potencial do conceito de dificuldades de aprendizagem.
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
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III. CONCLUSÃO
320
A comparação entre estudantes de diferentes níveis de escolaridade (secundário
e universitário) sugere a existência de um processo gradual de maturação
epistemológica. No entanto, fica por esclarecer qual a origem desta evolução, se ocorre
ou não em todos os indivíduos, independentemente da influência escolar. Isto é, fica
por esclarecer até que ponto as crenças de outros jovens não universitários evoluem ou
não da mesma forma. Fica por confirmar até que ponto a escola contribui de forma
determinante neste processo de amadurecimento ou se todos os alunos, mesmo os que
abandonam precocemente o sistema escolar, se vão desenvolvendo do ponto de vista
epistemológico com base numa informação veiculada pelos media, na sociedade ou no
meio cultural. Fica por determinar, se não são estes afinal os factores determinantes,
mesmo que modestamente secundados pela escola, ou mesmo que ineficazmente
contrariados na escola.
Embora fosse um dos aspectos previstos no início deste projecto, não se
concretizou o estudo das relações entre concepções pessoais sobre a aprendizagem e o
ensino (Bruner, 1996; Lonka, Joram & Brysson, 1996) e concepções pessoais sobre
Dificuldades de Aprendizagem. Os dados que permitiriam estudar esta relação foram
recolhidos, transcritos e estão neste momento preparados para um procedimento de
análise de conteúdo que permita a identificação de segmentos relevantes, a sua
categorização e relacionação com as respostas dadas pelos mesmos estudantes à questão
sobre concepção de dificuldade de aprendizagem, já tratada e aqui descrita no âmbito do
Estudo 2. deste trabalho.
Alguns estudos sugerem que as dificuldades de aprendizagem podem exercer um
efeito mais positivo (maior funcionalidade) em situações onde nomeadamente os pais
incentivam a prática e o desenvolvimento noutras áreas de mestria (Reis, Neu &
McGuire, 1997). Os alunos que têm a oportunidade de aprender a superar-se e às suas
dificuldades desenvolvem atitudes e hábitos mais eficazes e adaptativos. Algumas das
competências assim desenvolvidas podem constituir um factor determinante do êxito
pessoal e profissional. Isto significa que as dificuldades, ao invés de serem concebidas
como “um mal maior” podem, em condições adequadas, constituir uma oportunidade de
auto-descoberta e de desenvolvimento de competências que de outro modo não se
revelariam. Um estudo comparado de práticas e crenças parentais pode contribuir para
um maior esclarecimento sobre as formas mais eficazes de intervenção e apoio no
contexto familiar.
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
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III. CONCLUSÃO
321
3. Implicações psicoeducacionais.
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
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III. CONCLUSÃO
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
322
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
323
3. Implicações psicoeducacionais.
A
concluir
este
trabalho,
analisam-se
algumas
das
implicações
psicoeducacionais decorrentes, implicações que podem ser consideradas essencialmente
a dois níveis: ao nível das atitudes e práticas pedagógicas no domínio das dificuldades
de aprendizagem e ao nível da formação de professores, inicial ou contínua.
•
Atitudes e práticas pedagógicas no domínio das dificuldades de
aprendizagem.
Conceber e compreender o conceito de dificuldades de aprendizagem não é no
essencial diferente do que significa compreender qualquer outro aspecto no domínio da
aprendizagem ou do ensino, ou mesmo qualquer outra instância da vida pessoal e
interpessoal. As dificuldades de aprendizagem devem ser encaradas num contexto de
significação e desenvolvimento pessoal.
Isto significa que é necessário disputar, relativizar ou modificar, concepções que
definam a aprendizagem como um processo sequencial, neutro e objectivo, prejudicado
por inúmeros erros e dificuldades. É necessário substituir o domínio da resposta correcta
como condição de progressão e critério de qualidade do ensino ou da aprendizagem. É
fundamental criar condições, em termos pessoais e institucionais, de superação de uma
escola que no nosso tempo, “mais parece existir para avaliar os alunos do que para os
ajudar a aprender” (Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001, p.63). É urgente substituir
crenças, concepções, atitudes e práticas que há muito poderiam já estar ultrapassadas,
pelo exercício consciente de actualização e construção de uma escola que responda aos
desafios da pós-modernidade. No início de um novo século, exige-se uma escola mais
centrada nos processos do que nos produtos, que promova a individualidade no respeito
pela diversidade e na pluralidade (Ashman & Conway, 1993, 1997; Denti & Katz, 1996;
Greene, 1994; Novak, 1998; Mintzes & Wandersee, 1998a). Porque a sociedade actual
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem –
Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. CONCLUSÃO
324
espera de cada indivíduo que seja capaz de lidar com problemas novos, de forma
adaptada, flexível e auto-regulada, que acredite em si próprio e se mantenha disponível
para correr o risco de continuar a aprender e a investir no seu desenvolvimento pessoal
(Bullard, 1996; Glenn & Nelsen, 1989; Osborne, 2000).
Numa perspectiva construtivista, “the single most important factor influencing
learning is what the learner already knows” (Mintzes & Wandersee, 1998b, p.80).
Alguns métodos e estratégias de ensino parecem mais de acordo com esta perspectiva.
A avaliação dinâmica, como o próprio nome indica, surge como alternativa (ou
em complemento) de uma avaliação de estado e pode ser um instrumento essencial, no
pressuposto de que é possível mudar e ajudar a mudar (Campione & Brown, 1987;
Cruz & Almeida, 1996; Lidz, 1991; Moats, 1994).
O trabalho de projecto, os diários de aula, o portfolio, o contrato comportamental
e muitas outras estratégias de diferenciação pedagógica têm vindo a ser gradualmente
introduzidos na escola portuguesa. Dado que todas as propostas instrucionais de
inspiração construtivista requerem uma aplicação flexível, adaptada a cada situação e
contexto, a utilização destes métodos pode ser ainda mais prejudicada do que em outros
casos, por falta de formação e de experiência, e sobretudo, por um insuficiente
entendimento dos pressupostos teóricos e epistemológicos destes modelos. Com
formação adequada, muitos outros métodos além dos que aqui ficam referidos poderão
vir a ser ensaiados, estruturados e desenvolvidos (Eggen & Kauchak, 1997; Hresko,
Parmar & Bridges, 1996a; Joyce, Calhoun & Hopkins, 1997; Przesmycki, 1991, 1994;
Reid & Leamon, 1996; Thomas, 1993; Woolfolk, 1998), num espírito que se espera de
permanente actualização e de investigação em acção.
No ensino recíproco, no diálogo socrático, na reflexão partilhada, pode
promover-se a auto-regulação e a reestruturação cognitiva, facilita-se a mudança e a
aprendizagem. Pode dizer-se que se aprende de forma holística no sentido em que os
significados são mais eficazmente adquiridos em conjunto, num contexto significativo
e partilhado por todos os participantes (Brown et al., 1993; Poplin, 1988a; Stone &
Reid, 1994).
Por outro lado, todos estes métodos devem reflectir-se e ter aplicação específica
ao nível da prevenção do insucesso e no apoio a alunos em risco ou gravemente
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III. CONCLUSÃO
325
limitados por dificuldades de aprendizagem sentidas como bloqueadoras e quase
inultrapassáveis.
Ainda uma nota final, centrada em testemunhos obtidos no contexto clínico.
Alguns alunos precocemente diagnosticados como tendo dislexia, dizem ter sofrido de
tal forma com o problema, reconhecem tão claramente as carências educacionais e os
erros sucessivamente cometidos ao nível do apoio, na escola, na família e na sociedade,
que nalguns casos são levados a optar por uma escolha profissional neste domínio.
Dizem que querem vir a ser psicólogos, professores ou educadores. Desejam ajudar
outras crianças com este tipo de problemas, dar-lhes o tipo de apoio que eles próprios
nunca tiveram ou só tardiamente receberam. Esta atitude militante esbarra muitas vezes
com os limites e as exigências do sistema, que muitas vezes inviabiliza a progressão
destes alunos para o ensino médio ou superior. No entanto, numa perspectiva socioconstrutivista, seria fundamental assegurar que alguns destes alunos pudessem receber a
formação adequada, aliar essa formação ao conhecimento intuitivo e experiencial que
têm sobre o problema e que pudessem vir a exercer neste domínio, como acontece desde
há muito noutros países (Ferri et al. 2001).
•
Formação de professores.
As concepções e as crenças pessoais de professores e de outros técnicos com
intervenção na área das dificuldades de aprendizagem, quer sejam de carácter intuitivo
ou geradas no contexto da formação, podem influenciar a forma como virão a actuar e a
intervir junto dos alunos. As suas práticas e escolhas metodológicas podem ter um
efeito, por vezes determinante, não só ao nível do apoio dado aos alunos em risco ou já
em dificuldade, mas também ao nível do modo de desenvolvimento das dificuldades de
aprendizagem.
Este conceito de desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem serve
essencialmente para salientar que as dificuldades existem em contexto, ocorrem e
evoluem num contexto, são avaliadas, diagnosticadas e apoiadas num contexto. A sua
existência deve ser concebida, não como uma característica pessoal do próprio aluno,
antes como uma característica da forma como o aluno se integra, interage e se relaciona
com o contexto, e vice-versa, da forma como o contexto integra, interage e se relaciona
com o aluno.
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III. CONCLUSÃO
326
Ao sugerir que as dificuldades devem ser concebidas como entidades em
desenvolvimento de carácter funcional ou disfuncional, isto implica naturalmente a
necessidade de introduzir algumas alterações ao nível da formação de professores.
Sugere-se que na formação de professores e de outros técnicos para futura intervenção
no contexto educativo, sejam criadas as condições para uma modificação efectiva de
concepções e crenças pessoais sobre a noção de dificuldade como, de modo mais geral,
sobre a própria aprendizagem. Não basta adquirir informação e formação sobre modelos
e práticas (Raposo, 1990). Até porque “a prática de ensino tende a contrariar e a anular
os efeitos da formação” (Estrela & Estrela, 1977, p.65). No fundo, as verdadeiras
mudanças, as aprendizagens significativas só ocorrem a nível conceptual, quando se
mudam pressupostos e esquemas prévios, quando se discutem e abalam crenças
intuitivas, quando se passa da teoria à acção, da análise genérica e generalizadora ao
estudo de caso e à solução de problemas específicos num contexto determinado.
Mesmo os elementos teóricos oferecidos durante a formação devem servir mais
ao desenvolvimento pessoal e conceptual de cada professor, do que à prescrição de
práticas ou a uma tentativa de sedução e adesão a modelos teóricos específicos.
Na formação em epistemologia genética, por exemplo, mais do que um
contributo para uma compreensão sobre o desenvolvimento psicológico dos alunos,
mais do que informar sobre processos de construção e desenvolvimento do
conhecimento, sugere-se uma análise e reflexão sobre este modelo (incluindo
pressupostos, metodologias, dificuldades e evolução histórica do modo de conceber as
questões em estudo). Sob uma adequada orientação, pode constituir uma ocasião
privilegiada de reflexão, de discussão e de descoberta epistemológica. Pode contribuir
para dar a conhecer aos futuros professores, procedimentos de investigação científica
menos divulgados, de carácter menos positivista e de maior utilidade para a sua própria
auto-formação, promovendo um exercício profissional de qualidade crescente. O
método clínico, o estudo de caso, a observação sistemática, etc. podem ser introduzidos
em projectos de investigação em acção, em propostas de análise e renovação de
ambientes e actividades educacionais. Mas podem também conduzir a uma reflexão
sobre o próprio processo de aquisição e reformulação do corpus científico de cada
disciplina a ensinar, oportunidade de reflexão e aprendizagem sobre princípios
epistemológicos fundamentais.
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III. CONCLUSÃO
327
Na formação de professores, como aliás na psicoterapia, “o nosso objecto de
trabalho é a pessoa do professor e o conjunto de processos experienciais que o possam
tornar mais complexo3, mais flexível e mais disponível para compreender e autorizar
múltiplas vozes, culturalmente aceites, ou culturalmente necessárias” (Ferreira-Alves &
Gonçalves, 2001, p.72). Esta perspectiva pressupõe a criação de condições para um
desenvolvimento pessoal de cada formando a todos os níveis, incluindo uma maior
mestria e eficácia no ensino mas também uma maior valorização e envolvimento
pessoal, maior auto-conhecimento, maior equilíbrio e maior aceitação de desafios4.
Sendo desde há muito considerada uma profissão de risco, exercida quase sempre de
uma forma muito autónoma, verifica-se que as exigências da função docente se tornam
ainda maiores na época actual. O desenvolvimento tecnológico e a globalização
proporcionam o confronto de múltiplas perspectivas, concorrentes e relativas,
estimulam o aparecimento de novas realidades, novas tarefas e, necessariamente, de
novos problemas. Tudo isto proporciona a emergência de dúvidas sobre aquilo que
outrora era consensual (Gergen, 1992, citado por Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001,
p.21).
Neste sentido, “a escola da pós-modernidade terá que ser uma escola, não de
realidades, mas uma escola de possibilidades” (Gonçalves e Ferreira-Alves, 1995,
p.137). Do ponto de vista epistemológico, esta abertura à complexidade, à pluralidade,
mesmo à inovação, será mais acessível a todos aqueles que entendam o conhecimento
como relativo, contextualizado e em permanente construção. O desenvolvimento de
uma “pedagogia da situação” (Estrela & Estrela, 1978), exige uma articulação profícua
3
Como ficou referido num dos testemunhos analisados no estudo 2., por um dos estudantes
universitários do curso de formação inicial de professores: “Julgo que se ultrapassa uma dificuldade
quando se ganha consciência de que "alguma coisa" deixou de ser complicada para passar a ser complexa.
Esta passagem é fruto do "ganhar sentido".” (TEXT: univ.L17)
4
“A menos que o professor valorize, respeite, goste e se aceite a si próprio, ele não pode atingir o
valor, o respeito, o gosto e aceitação dos estudantes; a menos que o professor tenha uma alta opinião de si
próprio, ele não pode ter uma alta opinião dos estudantes; a menos que o professor seja sensível a si
próprio, ele não pode ser sensível aos estudantes.” (Schmier, 1995, citado por Ferreira-Alves &
Gonçalves, 2001, p.123).
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III. CONCLUSÃO
328
entre conhecimento e acção, numa constante inter-relação entre teoria e prática
pedagógica. Num constante esforço de adaptação e de articulação, que supõe e exige
uma mudança de atitudes, um comprometimento pessoal de cada professor (De Corte,
2000) numa constante busca de significado (Frankl, 2000). Numa tentativa de
identificação e de superação de dificuldades, concebidas como inerentes e decorrentes
de qualquer esforço de aprendizagem, na necessidade de construção e de reconstrução
de percursos e planos, de formação e de acção pedagógica5.
Neste sentido, também as dificuldades colocadas pela existência de alunos em
dificuldade podem constituir (e ser concebidas como) um desafio, como uma
permanente (e persistente) oportunidade de mudança e de reconstrução de uma escola
diferente. Se todos os alunos fossem e permanecessem, iguais e simples, se tudo fosse
fácil e a aprendizagem fluisse, cada professor teria provavelmente muito menos
ocasiões para reflectir sobre a sua prática, sobre os limites das suas estratégias e das
“suas” teorias, pessoais ou científicas. A possibilidade de estar atento, de aproveitar e
aprender o mais possível com um tal contributo, parece dependente, entre outros
aspectos, de crenças e concepções pessoais sobre o conceito de “Dificuldade de
Aprendizagem”, tal como estão difundidas na comunidade e como podem ser
individualmente assumidas (modeladas, mobilizadas ou modificadas) por alunos e
professores, por investigadores e por todos os outros intervenientes no domínio da
educação.
5
“Uma parte do desânimo e do mal-estar sentidos por muitos professores poderá explicar-se por
essa incapacidade de transposição para a prática de um ideal pedagógico, com todo o sentimento de
incongruência que isso acarreta.” (Estrela & Estrela, 1978, p. 83).
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