o fim da farsa neoliberal

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O FIM DA FARSA NEOLIBERAL
Francisco de Assis Penteado Mazetto,
Professor Adjunto do Departamento de
Geociências, ICH, UFJF,
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas
“Paulino Soares de Sousa” da UFJF.
[email protected]
O estouro da “bolha imobiliária” nos Estados Unidos da América se apresenta como o
último ato de uma peça teatral funesta que iludiu os inocentes úteis para beneficiar o capitalismo
corporativo e explorador desse início do século XXI e arrastou o mundo para sua maior crise
econômica desde 1929. A “grande mídia”, submissa e obediente ao sistema vigente, se nega a
reconhecer o fim de uma era marcada pela hegemonia de um sistema sócio-econômico injusto,
concentrador de renda e ecologicamente devastador para o planeta. Para discorrer sobre o assunto,
os órgãos formadores de opinião lançam mão de eufemismos tratando a crise como um desajuste
econômico, uma disfunção do sistema capitalista que pode ser corrigida. Porém, essa correção só é
possível rasgando a cartilha neoliberal, através de forte intervenção estatal, usando trilhões de
dólares de recursos públicos, para salvar especuladores gananciosos do mercado financeiro.
Por outro lado, a parte mais fraca da corrente, os pobres mutuários americanos, não são alvo
de preocupação da primeira versão do plano Bush/Paulson de salvamento. Apenas as grandes
corporações financeiras são tratadas como essenciais para manter o bem comum e estabilidade
econômica, evitando-se o risco sistêmico. Em tudo, parece um New Deal às avessas, ao invés de
beneficiar primeiro a população lesada pelos especuladores, o pacote keynesiano de Bush visa
garantir a sobrevida e talvez a sobrevivência de um sistema desmoralizado. Foi somente no
Congresso que o pacote recebe emendas, a contragosto da equipe econômica da Casa Branca, que
podem atender a população afetada diretamente pela crise.
Para caracterizar melhor a crise seria importante contextualizá-la no processo histórico
procurando explicar como a farsa neoliberal começou a conquistar terreno nos centros do poder
mundial. Depois de arrasar a economia mundial em 1929, com a conseqüente Grande Depressão
dos anos 30, a elite burguesa liberal culpa hipotéticas intervenções estatais para o evento, sabendo
que o Estado pouco ou nada interveio naquela situação catastrófica causada pelo mesmo
capitalismo predatório de 2008. Não bastasse todo o malefício social causado pelo capitalismo
liberal na I e II Revolução Industrial, as últimas décadas do século XX assistiram o ressurgimento
de um filho maldito deste, o neoliberalismo. Uma ideologia da classe dominante, uma corrente de
pensamento dita anti-keynesiana, que teve defensores na Escola Austríaca de Economistas, do
gabarito de Von Mises e Hayek e da Escola de Chicago com Milton Friedman. No entanto, na
prática, a teoria não segue os nobres princípios propostos por seus estudiosos: livre iniciativa do
empreendedor; crescimento econômico e elevada produtividade; eficiência da economia de livre
mercado para gerar renda. Para muitos estudiosos, o neoliberalismo surge já no século XIX, como
uma reação às revoluções do proletariado de cunho marxista.
Novamente, a palavra liberdade é apropriada pelo novo liberalismo: “a liberdade de
escolher”, “o mercado livre”, “a liberdade do consumidor”, “a liberdade do empreendedor”. Todos
esses jargões são impropriamente ligados, ou mesmo usados como sinônimos de democracia,
sendo que o poder do povo, da maioria da população, é o que menos importa nesse sistema nefasto.
Como pode haver “liberdade” em um rebanho composto de ovelhas e lobos? Quem sabe através do
Darwinismo Social, que sobrevivam os mais aptos, nesse mercado competitivo justo, com
oportunidades iguais para todos: “Nos últimos cinco séculos de desenvolvimento e expansão
geográfica do capitalismo, a concorrência se estabelece como regra. Agora, a competitividade
toma o lugar da competição. A concorrência atual não é mais a velha concorrência, sobretudo
porque chega eliminando toda forma de compaixão. A competitividade tem a guerra como
norma. Há, a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o, para tomar seu lugar.” (SANTOS,
2000, p.46)
Com o colapso do comunismo na URSS e Europa Oriental a partir a Queda do Muro de
Berlim em 1989, não haveria mais resistências relevantes no planeta à expansão do capitalismo
neoliberal, consolidando a hegemonia norte-americana fundada no domínio do capitalismo
financeiro. Os efeitos sociais do neoliberalismo, a doutrina mestra do processo de globalização da
economia, são os piores possíveis e retratados pela enorme concentração de renda verificada mesmo
nos países centrais que adotaram com mais entusiasmo essa doutrina econômica e social despótica,
os EUA e o Reino Unido (ver gráfico).
Concentração de Renda em Alguns Países
(*coeficiente de Gini) fonte: CIA, 2002-2005
*quanto m ais próxim o de 1 = m aior concentração
1
0,7
0,6
0,56
0,45
0,36
0,28 0,26 0,25
si
l
B
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O Reino Unido, por exemplo, sofreu a desmontagem de seu “Estado Assistencial” durante
os anos do thatcherismo, fato que provocou o declínio da economia real do país, através da
privatização do setor de infra-estrutura (energia, comunicações, transportes públicos) e da
desnacionalização de sua indústria, principalmente a automobilística, tornando o país um refém do
capitalismo financeiro. No item distribuição de renda houve uma clara regressão no Reino Unido,
antes do governo Thatcher o país tinha o mesmo índice de Gini da Suécia (0,25). Atualmente, o
Reino Unido ostenta um dos piores índices de Gini da Europa Ocidental (ver gráfico), como
também sofre a deterioração dos serviços públicos prestados pelo Estado. O mesmo fato ocorreu
com a economia estadunidense que assiste a falência de suas principais indústrias automobilísticas
(GM, Ford e Chrysler), vítimas de um modelo de capitalismo de consumo neoliberal predatório,
concentrador de renda, baseado no desperdício, individualismo, opulência, hedonismo e desrespeito
aos mais básicos princípios ecológicos, insistindo em produzir veículos de uso individual com
dimensões avantajadas e elevado consumo de combustível. O setor de serviços também não é
poupado pelo capitalismo global, a procura de mão-de-obra barata gera a transferência de call
centers dos EUA para a Índia, por exemplo. Sobre a distribuição de renda nos EUA, sua
concentração foi significativa, pois apesar do excepcional aumento do PIB por habitante nas últimas
décadas, o coeficiente de Gini apresentou uma elevação de 0,40 em 1971 para 0,47 em 2004, sendo
que a porcentagem da renda nacional que vai para os 20% mais ricos passou de 44% para 50% no
mesmo período. (ONU, 2006) A concentração da renda em nível mundial, segue a mesma tônica
com o impacto da globalização neoliberal a partir da década de oitenta. O coeficiente de Gini que já
era de 0,63 em 1988 e passou a 0,67 em 2005.
O último foco de resistência ao modelo neoliberal a ser vencido seriam as sociaisdemocracias da Europa. O Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), foi penosamente construído
após a Grande Depressão e II Guerra Mundial, e tentava conciliar um capitalismo menos agressivo
com uma política de Estado voltada ao bem estar da população. Porém, parte da Europa Ocidental
incluindo potências como a Alemanha e a França se mantêm fiéis aos princípios sociais democratas
apesar de algumas reformas de cunho neoliberal. No restante do mundo, a “onda neoliberal” foi
encarada como modernizadora, própria e ajustada à nova economia da Era da Informática. Os
parques industriais dos países centrais neoliberais são transferidos, quase por completo, para a Ásia
onde as condições são mais atraentes às grandes corporações, com mão-de-obra barata e sem
direitos e benefícios da legislação trabalhista ou das restrições das leis de proteção ambiental.
O país dominante do processo de globalização, os EUA, também perde grande parte se sua
economia produtiva em seu território preferindo investir pesado na produção de conhecimento
tecnológico (know how), o que garante patentes estratégicas no setor da informática e biotecnologia
para suas multinacionais. Como o sistema educacional de base norte-americano é precário, se
recorre à importação maciça de cérebros para as Universidades que, por sua vez, são mantidas
majoritariamente por recursos públicos, sendo que beneficiam o capital sob controle privado. Além
do domínio e monopólio tecnológico, os EUA procuram controlar os principais organismos
financeiros e comerciais do planeta (FMI, OMC e Banco Mundial), bem como a principal matériaprima energética, o petróleo. Para tanto, a potência hegemônica necessita manter um aparato bélico
ao custo de um trilhão de dólares ao ano, que possibilite intervenções no Oriente Médio, a principal
área produtora. Uma economia sem lastro com déficit crônico, fruto e obra dos princípios
neoliberais, se sustenta amarrando a economia mundial em sua teia perversa: “A globalização mata
a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se
voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um
quase nada.” (SANTOS, 2000, p.65)
O mercado livre e sem fronteiras se revela como mais uma falácia do neoliberalismo quando
colocado na prática. Na verdade esses princípios só valem para os países periféricos, já que os
países centrais continuaram protecionistas nas áreas mais estratégicas de sua economia, como
também nas áreas mais frágeis, a exemplo da agricultura altamente subsidiada.
Nos países subdesenvolvidos os efeitos da globalização neoliberal foram devastadores. Os
países chamados emergentes, como o Brasil, México e Argentina viram suas economias serem
desnacionalizadas pelo avanço das grandes corporações. O “mercado livre” e sem fronteiras
facilitou a expropriação das empresas estatais e dos recursos naturais desses países. O caso
brasileiro foi o mais escandaloso e os anos noventa assistiram a venda (doação) de empresas
estratégicas para o desenvolvimento nacional, como a CSN, a Vale do Rio Doce e a Telebrás em
um processo criminoso de privatização, lesivo aos interesses nacionais. A única grande empresa
que se salvou em parte foi a Petrobrás, a última jóia da coroa cobiçada pelo grande capital
internacional. Enfim, um patrimônio construído ao longo de mais de 50 anos de investimento
público foi doado para exploração privada em poucos minutos de leilão na Bolsa de Valores.
Outra área essencial, a de infra-estrutura básica, se tornou alvo pelo processo privatização,
em especial o abastecimento público de água. Em forma de oligopólio, cerca de meia dúzia de
multinacionais avançam sobre o bem natural mais precioso para a manutenção da vida no planeta.
Alguns exemplos da América Latina são ilustrativos: Em 1995 a província de Tucumán na
Argentina privatizou os serviços de abastecimento de água e, como primeira medida, a empresa
concessionária aumentou em 104% o preço dos serviços. Em 2000, Cochabamba na Bolívia fez o
mesmo e, como resultado, teve o preço dos serviços triplicados, sendo que a empresa
concessionária impediu até a captação da água da chuva para o consumo doméstico, foi a
privatização da chuva. Através de grande pressão de movimentos populares, a situação foi
alterada em ambos os casos com a volta dos serviços ao controle público. Uma pergunta fica no ar:
Como um país pobre como Bolívia pode se dar ao luxo de privatizar a água? Foram fortes pressões
do FMI e Banco Mundial como medida para flexibilizar e desregular o mercado boliviano.
Felizmente, o novo governo de Evo Morales decidiu rescindir o contrato com a multinacional
francesa, que também era responsável pelo abastecimento da capital, La Paz. Alguns países como o
Reino Unido, França e Chile têm seu sistema de abastecimento de água quase todo privatizado e
pagam as maiores tarifas do mercado mundial. Na África do Sul a situação foi mais dramática, a
privatização resultou no corte de água potável a cerca de 10 milhões de consumidores por falta de
pagamento das tarifas abusivas. Como conseqüência aumentou bastante a incidência de doenças
relacionadas ao uso de águas não tratadas como a cólera e a diarréia.
Voltando ao tema da crise econômica, um fato importante a se destacar foi o bombardeio
ideológico imposto pelos veículos de comunicação de massa. A primeira tática foi a falta de
informação, já que as empresas fraudulentas não são transparentes ou socialmente controladas e
sonegam informações de seu estado de saúde financeira até para seus acionistas. Depois que a bolha
especulativa explode, a tática seguida é isentar o modelo capitalista, principalmente o
estadunidense, de qualquer culpa sobre a crise. O fatalismo do processo capitalista é enaltecido por
analistas renomados: “é o melhor sistema por que não foi inventado por ninguém”; “o capitalismo
tirou o homem da Idade da Pedra e o colocou na Era da Informática”. A primeira frase procura
justificar o sistema como sendo o “mais natural”, tão bom e essencial como os elementos da
natureza. A segunda, procura incutir na mentalidade das pessoas que não existe outra opção: é o
único sistema que traz o progresso à sociedade. Em plena crise, o capitalismo norte-americano é
louvado por suas duvidosas virtudes: é mais vigoroso, é mais versátil, é mais dinâmico e capaz de
se recuperar mais rápido do que o capitalismo europeu que está impregnado da intervenção estatal.
O fato de o sistema capitalista colocar cerca de dois terços da humanidade em estado de pobreza e
extrema miséria não é considerado por esses cínicos analistas.
Mas, o desenrolar da crise vai se tornando dramático e ocorre o inevitável, a pátria do
“Estado Mínimo” é obrigada a fazer as maiores intervenções de sua história no mercado financeiro,
comprando com o recurso do Estado, títulos e ações de empresas falidas. A partir dessa fase, não é
mais possível mascarar a crise, ela não é apenas financeira, mas sim do próprio modelo sócioeconômico vigente na Era da Globalização. A doutrina neoliberal é, finalmente, desmascarada e
desmoralizada por ela própria, corroída por suas próprias contradições: “O desatinado
neoliberalismo, realmente não afeta em nada e nem mesmo arranha as estruturas obsoletas
que definiram a economia colonial e a economia dependente. Pelo contrário, disfarçado em
roupagens que fantasiam o novo, o neoliberalismo consagra o que temos de mais velho, aquilo
que precisa realmente ser superado” (SODRÉ, 1998, p.110)
A atual crise pode não ser tão profunda ou durar tanto tempo, como em 1929, graças à forte
ação estatal de fundamento keynesiano que, na verdade, representa mais uma sobrevida ao
capitalismo. Entretanto, as forças mais conservadoras dos EUA resistem às mudanças mais
profundas no atual modelo, uma nova Bretton Woods parece ser uma ameaça ao seu poder
hegemônico.
Um fato importante é ressaltar que a crise pode ter seu lado positivo quando deixa claro e
evidente que o modo de produção capitalista é o fracasso da sociedade humana. Ele é incapaz de
proporcionar uma sociedade justa, solidária, igualitária e fraterna. Insustentável por sua própria
natureza, o capitalismo tem sido reproduzido enquanto sistema pela adição homeopática da práxis
socialista, como pequenas concessões pontuais diante das pressões da classe trabalhadora.
Contudo, o fim da farsa neoliberal não significa o seu fim, necessariamente. A classe dominante
necessita desse sistema para sua reprodução, e não vai abrir mão de seus princípios fundamentais
dominando o modelo sócio-econômico mundial. A ação das forças progressistas nesse momento
histórico seria da maior importância, apesar dos movimentos sociais e as organizações políticas de
esquerda terem sido desmobilizados e desarticulados durante as duas últimas décadas do domínio
neoliberal. A História não acabou, a sociedade tem uma incrível capacidade de se recriar e abrir
novos horizontes em sua busca continua em elevar o espírito humano.
Referências Bibliográficas:
CARVALHO, Pedro. “Globalização, a ofensiva do capital e a crise estrutural do capitalismo”. O
Militante, 01/SET/2006. Disponível: www.pcp.pt/publica/militant/
GENTILI, Pablo. Globalização Excludente. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
HARVEY, David. Neoliberalismo – História e Implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
JULIBONI, Márcio. “Emergentes já lideram perdas nas bolsas”, Portal Exame, 02/11/2008.
Disponível: www.portalexame.abril.com.br
KRUGMAN, Paul. A Desintegração Americana. São Paulo: Record, 2006.
ONU, World Economic and Social Survey, 2006.
SADER, Emir e GENTILI, Pablo. Pós-Neoliberalismo. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007.
SANTOS, Milton. Por Uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Record, 2000.
SINGER, Paul. Globalização e Desemprego. São Paulo: Editora Contexto, 1998.
SODRÉ, Nelson W. A Farsa do Neoliberalismo. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1998.
TAVARES, Maria da Conceição. “Deus Mercado Virou Diabo”, Pátria Latina, 25/09/2008.
Disponível: www.patrialatina.com.br
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