JAQUIEL ROBIMSON HAMMES DA FONSECA A EXIGÊNCIA DE MANUTENÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL NA TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL EM URBANA MARÍLIA 2011 JAQUIEL ROBIMSON HAMMES DA FONSECA A EXIGÊNCIA DE MANUTENÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL NA TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL EM URBANA Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito, sob orientação do Prof. Dr. Ruy Carneiro de Jesus. MARÍLIA 2011 FONSECA, Jaquiel R. Hammes da. A EXIGÊNCIA DE MANUTENÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL NA TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL EM URBANA / Jaquiel Robimson Hammes da Fonseca – Marília: Unimar, 2011, 165 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso de Direito da Universidade de Marília, Marília, 2011. 1. Área de Reserva Legal 2. Propriedade Rural Urbana. I. Fonseca, Jaquiel R. Hammes da. 3. Propriedade JAQUIEL ROBIMSON HAMMES DA FONSECA A EXIGÊNCIA DE MANUTENÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL NA TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL EM URBANA Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social, sob orientação do Prof. Dr. Ruy de Jesus Marçal Carneiro. Aprovado pela Banca Examinadora em 13/05/2011. ____________________________________________ Prof. Dr. Ruy de Jesus Marçal Carneiro Orientador (a) ___________________________________________ Prof. (a) Dr.(a) Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador __________________________________________ Prof.(a) Dr.(a) Walkiria Martinez Heinrich Ferrer Dedico este trabalho: Aos meus pais João e Roseli pelo apoio incondicional, sem o qual não seria possível a concretização desse desafio, a minha esposa Ana Paula que participou de todas as minhas angústias e satisfações proporcionados pelo o programa de mestrado ofereceu, além da compreensão pelos momentos que não estive presente em razão da realização desse desafio e a minha irmã Bibiany pelo carinho sempre demonstrado. Agradecimentos: A todos aqueles que participaram dessa luta, em especial aos meus pais e a minha esposa, aos quais serei eternamente grato, ao meu professor orientador Ruy de Jesus Carneiro Marçal o qual sempre cumpriu com seu dever e sempre exigiu o melhor de mim, sem o qual não teria sido possível a finalização desse trabalho, bem como ao amigo Pedro Geraldo, com quem compartilhei inúmeros quilômetros de viagem e histórias, além de todos os colegas e professores, com os quais tenho a certeza da construção de uma enorme amizade. Muito obrigado! A EXIGÊNCIA DE MANUTENÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGA NA TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL EM URBANA Resumo: A preocupação com o meio ambiente é necessária e de fundamental importância, cujo maior objetivo é assegurar a perpetuação da espécie humana e o exercício da vida de modo digno, inclusive para as futuras gerações, tendo sido para isso, inclusive alçado pela Constituição como direito fundamental da pessoa humana, haja vista disposição do Art. 225. O Texto constitucional a fim de efetivar o direito fundamental citado estabeleceu uma série de medidas a serem implementadas, dentre as quais exige a criação de espaços de proteção ambiental, os quais merecerão tratamento especial, sendo que a supressão e alteração dos mesmos somente serão permitidas mediante a edição de lei, e é nessa modalidade que se inserem as áreas de reserva legal, cuja disciplina fora dada pelo “Código Florestal”, que impõem para as propriedades rurais privadas instituírem o determinado espaço, de acordo com os percentuais estabelecidos, tendo como fim especial a proteção e a manutenção da biodiversidade local, servindo de abrigo as espécies da fauna e da flora. Ocorre que em face do acelerado processo de urbanificação que o Brasil fora comedido a partir de meados do século passado, as propriedades rurais foram e estão sendo transformadas em urbanas, consequentemente destruindo ou se eximindo da responsabilidade de instituição e manutenção das áreas de reserva legal. Este desrespeito vem ocorrendo sob o fundamento de que a obrigatoriedade de manutenção desse espaço existe tão-somente enquanto a propriedade estiver destinada a fins rurais, assim, alterada sua destinação para urbana, não mais estará sujeita a obrigatoriedade de manutenção da reserva, acrescenta-se a isso a alegação de que a competência legislativa sobre a ordenação do uso do solo urbano é atribuído aos entes municipais, o que lhes possibilitaria extinguir ou permitir a extinção das áreas de reserva legal. Ocorre que, conforme estudo realizado, verifica-se que essa conduta danosa ao ambiente é ilegal, pois a Constituição determinou que os espaços de proteção ambiental só podem ser suprimidos em razão da edição de lei, a qual em face do Art. 24, I e VI competirá à União, aos Estados Federados e ao Distrito Federal legislarem de forma concorrente sobre direito urbanístico e sobre florestas, determinação essa que restringe a competência legislativa municipal. Por fim, visto que a área de reserva legal constitui espaço protegido de âmbito nacional, tão-somente lei nacional poderia permitir a sua supressão ou alteração Palavras-chave: Área de Reserva Legal. Propriedade Rural. Propriedade Urbana. THE NECESSITY OF MAINTAINING LEGAL RESERVE AREAS WHEN PROPERTIES ARE TRANSFERRED FROM RURAL TO URBAN AREAS Abstract: Concern for the environment is necessary for the perpetuation of humankind and the dignified pursuit of life for current and future generations, as guaranteed in Article 225 of the Constitution. To this end, the Constitution cites a series of measures that, among other things, necessitate the creation of natural areas requiring environmental protection such that the abolition or modification of such areas is only allowed by a declaration of law. These measures also applies to legal reserves, which are protected under the Forestry Code which requires the establishment of rural properties whose purpose it is to protect and maintain local biodiversity. Since the middle of the last century Brazil has experienced accelerating urbanization. Consequently, rural properties are being increasingly transformed into urban properties and thus absolved of the responsibility for the establishment of legal reserves. This failure occurs because for urban properties, including ones that were once rural, maintenance of reserves is no longer obligatory. Furthermore, legislative jurisdiction for the regulation of urban land-use is allocated to local entities which have the power to terminate, or permit the termination of legal reserves. The current study shows that this environmentally damaging conduct is illegal because the Constitution mandates that environmental protection areas can only be eliminated through declaration of law. This, in light of article 24, I and VI, competes with the Union of Federated States and the Federal District to concurrently legislate on forests and urban law which restricts municipal legislative powers. Finally, since legal reserves are protected nationwide, only national law can allow their removal or alteration. Keywords: Legal Reserve Area. Rural Property. Urban Property. LISTA DE ABREVIATURAS ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade Art. – Artigo. Arts. – Artigos. APP – Área de Preservação Permanente ARL – Área de Reserva Legal CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente CF – Constituição Federal CTN – Código Tributário Nacional EC – Emenda Constitucional ET – Estatuto da Terra INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPTU – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana ITR – Imposto Territorial Rural LC – Lei complementar ONU – Organização das Nações Unidas PD – Plano Diretor STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça SUMÁRIO INTRODUCÃO .....................................................................................................10 1. 1.1. 1.2. 1.3. 1.4. DIREITO DE PROPRIEDADE ..............................................................14 DIREITO DE PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS.........22 PROPRIEDADE RURAL X PROPRIEDADE URBANA ........................ 26 ÁREA DE EXPANSÃO URBANA .......................................................... 33 INTERVENÇÃO À PROPRIEDADE ........................................................ 36 2. 2.1. 2.2. 2.3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE .............................................. 45 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA ............................... 49 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL ................................... 56 FUNÇÃO SOCIAL AMBIENTAL ............................................................63 3. 3.1. DIRETO AO AMBIENTE ....................................................................... 67 ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS ........... 75 4. 4.1. 4.1.1. 4.1.2. 4.1.3. 4.1.4. 4.1.5. 4.1.6. 4.2. 4.3. 4.3.1. 4.3.2. 4.3.3. “RESERVA LEGAL”............. ................................................................ 81 CARACTERÍSTICAS .............................................................................. 97 Obrigatoriedade de Averbação ................................................................... 97 Inalterabilidade da Destinação ................................................................... 106 Restrições Legais de Exploração ................................................................ 108 Gratuidade .................................................................................................. 109 Delimitação e Demarcação ......................................................................... 109 Isenção Tributária ....................................................................................... 110 NATUREZA JURÍDICA ............................................................................ 111 FORMAS DE RECOMPOSIÇÃO ............................................................. 119 Recomposição mediante plantio ................................................................. 120 Regeneração Natural ................................................................................... 122 Compensação .............................................................................................. 123 5. A EXIGÊNCIA DE MANUTENÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL NA TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL EM URBANA....................................................................................................128 APLICAÇÃO DO “CÓDIGO FLORESTAL” .........................................129 Parcelamento do solo urbano ......................................................................133 Competência Legislativa ............................................................................ 135 A Imutabilidade da “reserva legal” e a Averbação..................................... 142 A Imutabilidade da “reserva legal e a obrigação propter REM ................. 143 5.1. 5.1.1. 5.1.2. 5.1.3. 5.1.4. 5.2. REGULARIZAÇÃO DO DEFICIT AMBIENTAL ........................................143 5.3. ÁREAS VERDES E A “RESERVA LEGAL” .........................................146 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 151 REFERÊNCIAS ................................................................................................... 154 INTRODUÇÃO A proteção ambiental, com o início deste novo século, consagra-se como objeto de fundamental importância à preservação da espécie humana, merecendo e justificando a tutela jurídica especial que tem recebido, seja no campo nacional ou transnacional. No entanto, em especial no ordenamento brasileiro, observar-se-á que, para a concretização de tais medidas com intuito de assegurar especialmente a perpetuidade da vida e o seu exercício de modo digno, será inevitável a adoção de medidas interventivas por parte do Estado frente aos direitos individuais. Direitos que, até então, eram praticamente intocáveis, principalmente no que tange ao direito de propriedade, o qual deverá receber nova roupagem e limites. É sob essa breve e geral introdução que o tema proposto se insere: a exigência de manutenção da área de “reserva legal” na transformação da propriedade rural em urbana, pois a existência do referido espaço de proteção se materializa como instrumento essencial à proteção ambiental; consequentemente, é mecanismo à garantia da vida, aqui no seu aspecto mais amplo e no que diz respeito ao ser humano, contribuindo ainda para que este possa usufruir de uma vida digna. A área de “reserva legal” é espaço de proteção ambiental que incide sobre as propriedades rurais, cuja instituição decorreu por via do “Código Florestal”, Lei n.º 4.771, de 15 de setembro de 1965, sendo um dos instrumentos de efetivação ao direito fundamental transgeracional ao ambiente sadio, expresso no Art. 225 da Constituição Federal. O espaço protegido em debate vem sendo rotineiramente destruído sob o fundamento de que a manutenção desse espaço somente se sustenta enquanto permanecer a propriedade com a natureza rural. Assim, alterada sua destinação para urbana, desaparece a obrigatoriedade de manutenção da área de “reserva legal”. Dessa forma, o debate proposto visa demonstrar a obrigatoriedade da manutenção desse espaço protegido mesmo quando a propriedade rural tiver sua natureza alterada para urbana, pois é a interpretação que melhor se coaduna com a pretensão disposta pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional vigente; pretende, também, analisar a posição doutrinária e jurisprudencial a ser dada ao tema, a qual se demonstra bastante controvertida e superficial, muitas vezes limitando- se à análise das áreas de “reserva legal” junto às áreas de expansão urbana, e conferir a respeito da competência do Município legislar sobre a matéria. Contudo, para o desenvolvimento que fora proposto, é necessário inicialmente verificar as nuances que cerceiam o direito de propriedade, pois a instituição e a manutenção das áreas de “reserva legal” junto às propriedades rurais incidem direitamente sobre o exercício dos direitos do proprietário inerentes à propriedade. Nesse norte, constatar-se-á que, no campo do direito de propriedade, o século XX é marcado por presenciar uma profunda alteração na estrutura desse instituto. A propriedade privada individual consagrada pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial, se fragiliza, dificultando sua sustentação jurídica, o que importará na relativização dos atributos inerentes ao direito de propriedade, fato decorrente de um novo elemento, denominado de função social da propriedade. A conseguinte constitucionalização da funcionalização do direito de propriedade, inicialmente abordada pelas constituições mexicana e alemã, altera significativamente a abordagem do direito de propriedade, determinando inclusive uma conduta positiva do proprietário, no sentido favorável à coletividade, tendo em vista a identificação de um fim maior a ser perseguido: o bem-estar e a vida digna. Observar-se-á que a funcionalização da propriedade não determina o fim privatístico desta; apenas altera sua estrutura, estabelecendo um novo significado, passando haver a existência de um dever inserido junto aos direitos inerentes à propriedade, o qual deverá ser observado necessariamente pelo proprietário, sob pena de ser privado dos direitos que exerce sobre o bem tutelado. Nesse mesmo frisar, relevante demonstrar a experiência constitucional brasileira frente ao direito de propriedade, desde o Texto constitucional de 1824 até o de 1988, verdadeiro marco da sociabilização do direito de propriedade que, apesar de manter a garantia à propriedade privada prevista nas constituições anteriores, estabeleceu uma nova roupagem ao instituto. Ela exigiu o cumprimento de uma função social, elemento este que, inclusive, é fundamento para a intervenção por interesse social do Estado na propriedade privada em face de condicioná-la ao exercício dessa função social, pois este como princípio da ordem econômica também possui compromisso com os fatores produtivos e a justiça social. Destacar-se-á a inovação constitucional, estabelecendo tratamento diferenciado às propriedades urbanas e rurais quanto à obediência de sua função social, demonstrando a preocupação do constituinte em relação às propriedades rurais, haja vista sua relevante função de manutenção da biodiversidade existente. Nesse mesmo sentido, verificar-se-ão os aspectos jurídicos da função social e a competência municipal, por via do Plano Diretor, para a efetivação dessa determinação constitucional, bem como a análise quanto à distinção entre propriedade urbana, propriedade rural e área de expansão urbana, a fim de verificar quais propriedades obrigadas a instituição da área de “reserva legal”. Contatar-se-á a divergência existente no que se refere às propriedades destinadas a fins rurais, mas localizadas no perímetro urbano das cidades, relevante para o entendimento se estas devem ou não instituir e manter a área de “reserva legal”. Ainda no campo do direito de propriedade, relevante verificar as nuances que circundam a intervenção do Estado junto às propriedades privadas, seu fundamento e o amparo na função social e suas espécies, a fim de verificar se a exigência de instituição e manutenção das áreas de “reserva legal” se insere nesse contexto e sob qual modalidade. Em outro foco do trabalho será analisado o tratamento constitucional e infraconstitucional conferido à proteção ambiental, a identificação de um ambiente sadio como direito fundamental da pessoa humana e os mecanismos de efetivação deste direito posto pelo constituinte. Dentre essas medidas visualiza-se a determinação de criação de espaços ambientais territoriais a serem especialmente protegidos, onde a modificação e a supressão tão-somente poderão ocorrer mediante edição de lei; sendo assim, sob esse gênero e fundamento que se insere a área de “reserva legal”. Após a realização dos delineamentos que permitam e justificam a existência e a manutenção da área de “reserva legal” nas propriedades rurais, tendo em vista que estas estão sujeitas ao cumprimento da função social e ao dever de proteção ambiental [o qual é incumbido a todos, indistintamente], verificar-se-ão os contornos jurídicos que cercam o instituto da área de “reserva legal”: essência, finalidade, conceito, limites e evolução histórica, bem como a análise jurisprudencial e doutrinária sobre o tema. Não suficiente a isso, estabelecer-se-ão os enfoques à natureza jurídica e às características do instituto da área de “reserva legal”, em especial à divergência existente a respeito da obrigatoriedade de averbação dessas áreas junto às matrículas dos respectivos imóveis e o papel fiscalizador a ser exercido pelos cartórios de registros de imóveis, bem como a impossibilidade de alteração desse espaço após sua criação, além dos meios previstos pelo legislador para a adequação dos proprietários rurais as exigências legais, como a recomposição e a compensação. Por fim, demonstrar-se-á a obrigatoriedade de manutenção da área de “reserva legal” quando da transformação da propriedade rural em urbana, tendo em vista que o instituto é meio essencial à preservação da biodiversidade, sendo medida interventiva do Estado que incide sobre a propriedade rural a fim de condicionar a propriedade ao cumprimento da função social; bem como meio eficaz a corroboração a defesa ambiental, tendo em vista assegurar o exercício do direito fundamental ao ambiente sadio para “as presentes e futuras gerações”. No mais, verificar-se-á que a manutenção da área de “reserva legal” é compatível com a propriedade urbana, visto que o “Código Florestal” e o “Estatuto da Cidade” não são normas excludentes; ambas condicionam suas forças ao atendimento da função social da propriedade. Assim, o parcelamento das áreas rurais em urbanas não subtrai o dever de manutenção do espaço protegido em debate, não competindo ao Município permitir, sob o fundamento de legislar sobre interesse local, a supressão dessas áreas, pois o dano ambiental transpassa ao interesse local; e também em face de caber tão-somente à União a competência legislativa de autorizar a supressão e a alteração da área de “reserva legal”. 1. DIREITO DE PROPRIEDADE Antes de versar sobre qualquer existência de limitação ao direito de propriedade, aqui tomado no seu sentido mais amplo, da função social da propriedade à área de “reserva legal”, focos deste trabalho, necessário primeiro estabelecer os contornos jurídicos e históricos que cercam o instituto da propriedade, para tão-somente depois tratar das nuances constitucionais e infraconstitucionais que repercutem na aplicação do “Código Florestal” nas áreas urbanas, rurais e de expansão urbana, tendo em vista que as limitações ao direito de propriedade não surgiram repentinamente; são frutos de um longo processo na história das civilizações, onde a principal protagonista fora a propriedade. Nessa linha de raciocínio, importante estabelecer que propriedade e o direito de propriedade são institutos diversos, sendo que o segundo confere a roupagem do primeiro, delineando seus contornos, os quais são variáveis conforme a legislação de cada país e o contexto histórico que está inserido, desse modo, “não se pode, portanto, fazer confusão entre direito de propriedade com seu objeto que é a coisa em si (a propriedade)” 1. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece: Direito de propriedade é a expressão juridicamente reconhecida à propriedade. É o perfil jurídico da propriedade. É a propriedade, tal como configurada em dada ordenação normativa. É, em suma, a dimensão ou o âmbito de expressão legítima da propriedade: aquilo que o direito considera como tal. Donde, as limitações ou sujeições de poderes do proprietário impostas por um sistema normativo não se constituem em limitações de direitos, pois não comprimem nem deprimem o direito de propriedade, mas, pelo contrário, consistem na 1 CARNEIRO, Ruy de Jesus Marçal. Organização da Cidade: Planejamento Municipal, Plano Diretor, Urbanificação. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 24. própria definição deste direito, compõem seu delineamento e, deste modo, lhe desenham contornos. Na Constituição – e nas leis que lhe estejam conformadas – reside o traçado da compostura daquilo que chamamos direitos de propriedade em tal ou qual país, na época tal ou 2 qual. Traçada a diferença entre propriedade e o direito de propriedade, o ponto de partida da discussão dirige-se à origem do instituto da propriedade, que apesar de distinto do direito de propriedade, possui sua história interligada, e é, na maioria das vezes, de difícil separação. Quanto à origem, há várias teorias sobre o tema: a) teoria da ocupação: de acordo com essa teoria, a mera ocupação seria suficiente à configuração da existência de propriedade; b) teoria da especificação: é a força do trabalho do homem sobre a coisa que atribui a ele a propriedade sobre o local; c) teoria da lei: a propriedade é fruto da lei, do direito, da vontade humana; d) teoria da natureza humana: reflete que a propriedade é inerente à existência humana.3 Todavia, considerar-se-á, para o presente estudo, apenas a teoria da natureza humana e a teoria da lei, em face da maior relevância atribuída a elas no contexto doutrinário. A primeira teoria defende que a propriedade é um direito natural, inerente ao homem; existindo o homem, existe a propriedade: “ela representa condição de existência de liberdade de todo o homem”,4 tendo John Locke como seu principal defensor. A segunda teoria, que nega o direito natural, sustentada pelos positivistas, em especial Thomas Hobbes, afirma que só existe a propriedade a partir da existência do Estado, a partir da configuração de uma instituição civilmente organizada, em especial, com a existência de um ordenamento jurídico, pois a propriedade é instituto criado e garantido por lei. Porque [...] antes da constituição de um Estado todas as coisas estão em situação comunitária, e não há nada que alguém possa dizer ser seu sem que um outro possa dizer, com o mesmo direito, a mesma coisa (quando tudo é comum, nada é propriedade dos indivíduos 2 BANDEIRA DE MELO, Celso. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito Público, v. 20, n. 84, out/dez. 1987. p. 39. 3 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. v. 3, 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 82-84. 4 Idem, ibidem, p. 84. singulares), deriva de que o conceito de propriedade surgiu por meio da constituição do Estado; e se afirma que é propriedade de alguém aquilo que ele pode deter para si, segundo as leis e em virtude da autoridade do Estado, ou seja, em virtude da vontade de quem detém a soberania.5 Ressalta-se que, quanto à origem da propriedade, já se passou mais de um século desde as primeiras indagações sobre o tema. Entretanto, até hoje não há uma posição definitiva sobre ela, encontrando-se vários autores com sustentação doutrinária diversa. Assim, de um lado, admite-se a existência do direito de propriedade antes mesmo da criação do Estado, pois há relatos que as primeiras civilizações das quais se tem registro já apresentavam contornos que delineavam a existência do instituto; todavia, nelas a propriedade possuía apenas uma “feição comunitária”,6 ou seja, a noção de propriedade estava diretamente ligada à coletividade. A coisa, o bem era pertencente a todos de uma determinada comunidade, onde se utilizava a terra de forma conjunta, havendo propriedade individual somente em relação aos frutos do trabalho do homem. Doutro norte, como já salientado, alguns defendem que a propriedade possui sua origem atrelada ao surgimento do Estado, uma vez que “onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas”.7 Não obstante, independentemente do entendimento adotado é inegável que a evolução do instituto da propriedade ao longo da história ganha maior relevância a partir do surgimento do Estado, principalmente quanto à individualização da propriedade, a qual está diretamente relacionada à conquista de liberdade pelo homem. Apesar de haver indícios de propriedade privada coletiva nos primórdios da humanidade, em especial, a partir do período neolítico, dar-se-ão passos largos até a Grécia Antiga, onde se encontrarão bases mais sólidas quanto à existência do instituto da propriedade privada, por via de registros, quanto à divisão de terras entre os membros dos grupos familiares.8 Nesse sentido, interessante destacar que a ideia inicial da propriedade privada decorria essencialmente de fatores religiosos, na crença a deuses 5 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1992. p. 103. 6 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 99. 7 HOBBES, Tomaz. O Estado Natural e o Pacto Social. Disponível em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/hobbes.htm>. Acesso em: 28 dez. 2010. 8 BOBBIO, Norberto, NICOLA, Mateucci, GIANFRANCO, Pasquino. Dicionário de Política. v. 2, 3. ed. Brasília: UNB, 1991. p. 1.030. e ao culto de perpetuação de seus antepassados, estabelecendo assim um vínculo entre a terra e a família. 9 No entanto, foi por via dos romanos que o instituto da propriedade se desenvolveu, sendo que, igualmente aos gregos, inicialmente, a propriedade possuía cunho religioso e familiar, em face da preservação dos antepassados mortos, vinculando assim a família à terra, inclusive com a inserção de marcos para identificação do solo sagrado de cada família. Sendo, como era, algo sagrado, onde os deuses eram louvados, onde o chão se prestava para o repouso eterno dos membros da família, túmulo que nunca se deslocava do lugar original, e onde as libações eram ritualizadas, geração após geração, evidentemente que o homem antigo havia de preservar este lugar como seu, propriedade sua. Não podia dali se afastar, porque se o fizesse estaria negando a sua origem, a sua família, o seu chão. Preservava-o, portanto.10 O heredium constitui a primeira manifestação propriamente dita de propriedade que se tem conhecimento na Roma Antiga; neste, era atribuído lote de terra a cada chefe de família, e sua principal característica fora o vínculo hereditário que se criava entre a família e a propriedade. Posteriormente, nos séculos que se passaram, há registro de novas formas de propriedade: a) quiritária; b) bonitária; c) provincial e; d) peregrina. Importante citá-las, pois junto a elas há registro do surgimento das formas de aquisição, de transmissão, de reinvidicação, de sucessão, além do domínio, da posse, do uso e do gozo da propriedade. 11 Justiniano sistematizou os quatro diferentes tipos de propriedade; para ele, esta apresentava características bem nítidas: o jus utendi, fruendi et abutendi, tendo ainda a propriedade em Roma um caráter absoluto, ilimitado, oponível aos outros indivíduos, exclusivo (sobre o mesmo solo não pode haver mais de uma propriedade embora, possa haver vários proprietários indivisos) e perpétuo (no sentido em que era exercido o direito à propriedade sem prazo determinado, mas perpetuamente), sendo transmitida pela traditio, que estava sujeita ao 9 WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 75-78. 10 CARNEIRO, Ruy de Jesus Marçal. Organização da Cidade: Planejamento Municipal, Plano Diretor, Urbanificação. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 26. 11 ALVIM, Rui Carlos Machado. Análise das concepções romanas da propriedade e das obrigações – reflexos do mundo moderno. Revista de Direito Civil, Imobiliário Agrário e Empresarial. v. 12, n. 4. p. 15-30, abr./jun., 1980. pagamento de impostos e sobre a qual pesavam inúmeras limitações impostas por necessidade de administração pública.12 Mesmo após o desaparecimento das formas de propriedade acima citadas em face de diversos motivos, os atributos da propriedade romana que foram adquiridos ao longo dos séculos permaneceram, tendo sido ela considerada, em um primeiro momento, como perpétua, exclusiva e absoluta, mas não ilimitada, tendo em vista que estava sujeita às limitações de interesse público e de direito privado. O direito de propriedade era tido como absoluto em face do proprietário ter assegurado, de forma irrestrita, a possibilidade de usar, gozar e dispor da coisa livremente, da forma que pretendia. Quanto ao fator exclusivo, referia-se ao fato de a propriedade somente estar sujeita ao seu titular; perpétuo no sentido de que a propriedade subsistiria inclusive com a morte do proprietário, sendo transmitida aos seus sucessores, não se extinguindo com o seu uso. Num segundo momento, a propriedade no direito romano sofreu modificações, absorvendo em seu conceito um elemento mais social.13 A propriedade na Idade Média também sofrerá modificações em comparação ao Estado romano, principalmente decorrentes dos incessantes conflitos armados e da decadência do Império Romano. O Feudalismo, marco da Idade Média, é caracterizado pela divisão dos institutos da propriedade para mais de uma pessoa; o domínio passa a ser de exclusividade do senhor feudal, cabendo aos servos/camponeses [vassalos] apenas a utilização da terra, o que denominaríamos hoje de posse. Os vassalos cultivavam o solo em troca da terra para moradia e para produção, além de proteção do senhor feudal, sujeitando-se, ainda, ao pagamento de tributos a esse senhor, pois ele possuía o domínio da propriedade. “Esta configuração bipartida da sociedade feudal origina a figura da enfiteuse no âmbito do direito civil.” 14 Ainda sob a égide da Idade Média, iniciaram-se, no âmbito da Igreja, manifestações de cunho social, em especial contra a exploração dos camponeses e no sentido de que a propriedade e seus frutos deveriam ser revertidos em benefício de todos e que a propriedade, obra de Deus, deveria estar voltada ao bem-estar social de todos. 12 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações urbanas ao direito de propriedade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 19. 13 Idem, ibidem, p. 15-21. 14 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações urbanas ao direito de propriedade. São Paulo: Atlas, 2010, p. 22. Os principais propulsores dessa ideia foram Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, sustentando, ainda, a propriedade individual em desfavor da coletiva. O período pós-idade média é marcado pelos ideais da Revolução Francesa, em que se priorizou a concentração de todos os direitos inerentes à propriedade em uma pessoa. A inviolabilidade da propriedade passa a constituir requisito fundamental do instituto, recebendo inclusive conotação de direito sagrado: “ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob a condição de justa e prévia indenização”. 15 A doutrina francesa, exteriorizada pelo “Código Napoleônico”, proliferou pelos demais países da Europa, ratificando a ideia de propriedade absoluta, perpétua, natural, individual e exclusiva, além da máxima proteção dos direitos “mínimos” individuais e pela não interferência do Estado, sendo a propriedade, a partir daí, a propulsora da economia. Os valores adotados na Revolução Francesa, em especial a proteção da propriedade individual, contribuíram para a Revolução Industrial, processo ocorrido na Inglaterra no século XVIII, que determinou, em síntese, a passagem da economia agrícola para a industrial, massificando os trabalhadores e expandindo os meios de produção. Diante desse universo, de perpetuação e da exclusividade da propriedade pósRevolução Francesa e mediante sua eclosão na Revolução Industrial, constata-se que essa proteção atingia somente uma irrisória parcela da população [os burgueses], pois somente eles tinham acesso à propriedade; logo, em nada significava a proteção da propriedade individual, uma vez que a maioria da população estava afastada do exercício desse direito. Nesse sentido, posicionaram-se Karl Marx e Friederich Engels, responsáveis pela doutrina que culminaria na Revolução Russa de 1917. O comunismo se caracteriza pela abolição da propriedade burguesa e não pela abolição da propriedade em geral. (...) Causamos horror falar em abolir a propriedade privada. Mas a propriedade privada na atual sociedade já está abolida para nove décimos da população. Se ela ainda existe para um grupo reduzido é justamente porque deixou de existir para esses nove décimos. Portanto, vossa acusação contra nós é 15 MIRANDA, Jorge. Textos históricos do Direito Constitucional. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990. p. 54. a de nós propormos abolir uma forma de propriedade que, para subsistir, tem de privar a imensa maioria da população de qualquer tipo de propriedade. Em uma palavra, vós nos acusais de queremos abolir vossa propriedade. Tendes razão, é justamente esse o nosso objetivo. 16 Acrescenta-se ao Manifesto Comunista a eclosão dos movimentos sociais, principalmente os de operários, que culminariam no surgimento das organizações sociais, cuja bandeira é a luta por direitos sociais, exigência de uma prestação positiva por parte do Estado que até então se mantinha inerte aos anseios da sociedade, em face ao primado do Liberalismo. Além das exigências por direitos sociais, os movimentos também reivindicaram limitação ao direito de propriedade burguesa. Diante da ascensão das organizações sociais, como o surgimento dos sindicatos, do iminente estado de caos nas cidades, da constatação que a Economia por si só não conseguiria eliminar as distorções sociais existentes, torna-se indispensável uma intervenção estatal nela própria, atuando como apaziguador das revoltas sociais, assumindo para si a responsabilidade de ofertar os mínimos necessários à vida; nota-se que ainda não se falava em vida digna. Observa-se que a propriedade individual, absoluta e exclusiva se torna um obstáculo para viabilização da atuação ativa do Estado como promovedor das garantias sociais, havendo assim, a necessidade de uma relativização desse conceito liberal de propriedade. Isso não ocorreu de forma imediata, mas sim por via de um lento processo, marcado por lutas operárias e interesses burgueses, cujo resultado culminaria em uma nova configuração do direito de propriedade, denominado função social da propriedade. Não existem certezas quanto à origem doutrinária desse novo instituto ou dessa nova “roupagem” do conceito de propriedade. Entretanto, no campo constitucional apareceu pela primeira vez na Constituição mexicana de 1917, e a grande propulsora dessa ideia para os demais textos constitucionais do mundo foi a Constituição de Weimar [Alemanha] de 1919. A configuração do Estado Contemporâneo, voltado para a proteção dos direitos sociais e o caráter marcadamente social da constituição de Weimar influenciaram grande parte das constituições dos Estados contemporâneos, que incorporaram a noção de Propriedade vinculada a uma Função Social. Dentre os países que explicitaram em seus 16 MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. 6. ed. São Paulo: Global, 1986. textos constitucionais a Função Social da Propriedade cita-se, a título de exemplo, Brasil, Itália, Espanha, Bolívia, Venezuela, Honduras, Paraguai, El Salvador e, Panamá. 17 Portanto, pode-se afirmar que a partir da constitucionalização da limitação social à propriedade na Constituição alemã passa-se a ruir a sustentação dos ideais liberais de propriedade pelo mundo, difundindo, assim, uma nova concepção para as Constituições modernas, sendo conhecida pelos seus elementos sociais a serem emprestados, principalmente, às propriedades privadas imóveis e rurais. Antecipa-se que as constituições brasileiras, promulgadas ou outorgadas, não assumiram o caráter social de forma repentina; a propriedade privada foi perdendo seu caráter absoluto gradativamente, tendo na Constituição Federal de 1988 a consagração da materialização dos atributos sociais emprestados ao direito de propriedade, conforme se vislumbrará em tópico específico, exposto a seguir. Por fim, estabelecidos os traços históricos que circundaram o instituto da propriedade, necessário agora, antes de adentrar ao estudo da legislação pátria, definir o referido instituto. Tal definição não parte de um marco zero; faz-se importante resgatar os contornos jurídicos emprestados à propriedade ao longo dos anos, ao passo que, como exposto, ele não sofrera grandes transformações, e sim, adaptações. Nesse sentido, estabelece-se como o ponto de partida a definição colocada pelo direito romano: iura utendi, fruendi et abutendi. De maneira eficaz e de fácil absorção, o conceito romano de propriedade, que continua com suas bases firmes até a atualidade, apenas apresentando um novo acabamento, retratava que o proprietário detinha a faculdade de: i) usar a coisa, retirando dela todos os benefícios que ela o possibilite, sem que isso altere sua substância; ii) gozar, aproveitar de todos os frutos que a coisa gerar; iii) dispor a coisa, permitindo ao proprietário deteriorar, consumir, emprestá-la, aliená-la, inclusive destruíla se assim o pretender. 18 A configuração do direito de propriedade romano se propagou pelo ocidente, sendo que cada legislação nacional, de acordo com suas peculiaridades, com seu 17 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função Social e Ambiental da Propriedade. São Paulo: Momento Atual, 2003. p. 26. 18 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. v. 3, 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 84. período na História e com seus valores, foi responsável por moldá-lo às suas necessidades e conveniências. Nota-se que o “Código Napoleônico” o definiu como “o direito de gozar e de dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos”.19 Nesse mesmo aspecto, quase cem anos mais tarde, o “Código Civil Brasileiro de 1916”, Lei n.º 3.076, de 1º de janeiro de 1916, manteve a mesma estrutura, conforme se verifica em seu Art. 524: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.” 20 Importante destacar que o direito de propriedade, apesar de toda a varredura histórica realizada estar direcionada, exclusivamente, para a propriedade imóvel, tal conceito abrange, também, objetos móveis e, inclusive, bens imateriais. É um direito que recai sobre bens corpóreos ou incorpóreos, de forma absoluta, é um poder jurídico por excelência, que se apresenta como um direito intenso, intangível e sagrado, como a própria projeção da personalidade humana no campo patrimonial.21 Nota-se que o conceito de direito de propriedade exposto acima está diretamente relacionado à teoria do direito natural, sendo esta a que prevaleceu por muito tempo. No entanto, apesar de extrapolar o foco desse trabalho, acrescenta-se que foram desenvolvidas outras teorias, como a teoria individualista da propriedade, em que a esta fora alçada a categoria de direito subjetivo, seguida posteriormente, pela concepção naturalista do direito subjetivo, elaborada por Ihering, sustentando que o direito subjetivo é um interesse juridicamente protegido e, por fim, a teoria social da propriedade, que pode ser considerada a genitora da função social da propriedade.22 É de acordo com a teoria social da propriedade, propagada aos demais países por via da Constituição de Weimar de 1919, que o “Código Civil Brasileiro de 2002”, Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, manteve o direito de propriedade como a faculdade do uso, gozo e disposição da propriedade, acrescentando-lhe o dever de se atender a um fim social, econômico e ambiental: 19 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: v. 3, 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 88. 20 BRASIL. Lei n.° 3.076, de 1º jan. 1916. Dispõe sobre o Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071.htm>. Acesso em: 28 dez. 2010. 21 JOSSERAND, Louis. La propriedad y otros derechos reales y principales. v. III, n. I, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-América, Bosch. p. 79. Apud MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações urbanas ao direito de propriedade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 22. 22 CAMPOS JUNIOR, Raimundo Alves de. O conflito entre direito de propriedade e o meio ambiente. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009. p. 93. Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.23 Portanto, entende-se que ao direito de propriedade não é possível atribuir um conceito pronto e acabado; seu conteúdo é e será fruto da legislação e do contexto histórico, social e geográfico no qual está inserido, sendo certo, no entanto, que ele possui suas origens atreladas ao direito romano, sofrendo adaptações ao longo dos séculos e, conforme a legislação brasileira vigente, significa que a faculdade de o proprietário usar, gozar, dispor e reaver a coisa somente poderá ser exercida em consonância com os fins sociais e econômicos, além do atendimento as normas ambientais, sob pena de lhe ser retirada a proteção constitucional conferida à propriedade. 1.1. DIREITO DE PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS A evolução dos atributos do direito de propriedade é plenamente constatada nas diversas constituições brasileiras, acompanhando, com certo atraso, os posicionamentos adotados pelos precursores das novidades quanto ao assunto propriedade. Entretanto, não se pode omitir a consideração de que antes mesmo da Independência do Brasil já havia resquícios de uma finalidade social emprestada às propriedades rurais, pois as regras da Coroa Portuguesa possuíam uma preocupação com o que era produzido. Cita-se o sistema das Sesmarias, onde foram concedidas grandes porções de terra sob a condição de obter-se determinado aproveitamento do solo, o qual era imposto diretamente por Portugal. Além desse, posteriormente, houve a edição da Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como a “Lei de Terras”, a qual previu o confisco à coroa das terras concedidas nas Sesmarias que não cumpriram os níveis de aproveitamento estabelecidos. 23 BRASIL, Lei n.° 10.406, de 10 jan. 2002. Institui o Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 28 dez. 2010 Logo, no campo constitucional, seguindo a tendência liberal da época, as Constituições do Brasil de 1824 e 1891 retratam o caráter absoluto e perpétuo do direito subjetivo de propriedade, presente no “Código Napoleônico”. No Art. 179, XXII da Constituição de 1824, tem-se a prova da garantia plena do exercício da propriedade, podendo o Poder Público exigir seu uso caso seja necessário, mediante prévia indenização e, tão-somente, nos casos disciplinados em lei. 24 A Constituição de 1891, no que tange ao direito de propriedade, aperfeiçoou sua técnica legislativa, ao prever que somente será permitida a desapropriação nos casos de necessidade ou utilidade pública, sempre mediante indenização prévia. 25 Acrescenta-se, ainda, que o Texto de 1891 transferiu parte significativa das terras devolutas, antes pertencentes à Coroa, para os Estados. No Texto de 1934, apesar de ser pós-Constituição de Weimar, foi sensível às mudanças quanto ao direito de propriedade, abstendo-se formalmente à chamada função social. Certamente, porém, não se pode negar a evolução ocorrida, tendo em vista a determinação que o exercício do direito de propriedade não poderá ser contra o interesse social ou coletivo, impondo ao proprietário um dever de abstenção, proibindo as condutas contra o interesse social ou coletivo. Outro avanço percebido na Constituição Federal de 1934 refere-se à ausência da proteção plena da propriedade e a menção, pela primeira vez, de uma preocupação social, proibindo, assim, o abuso do direito de propriedade. O Texto de 1934 manteve a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública mediante prévia indenização, acrescentando que o Poder Público poderia usar a propriedade particular nos casos de perigo iminente, sendo que, nesse caso, a indenização seria após o uso dela. 26 Infelizmente, a Carta de 1937 retrocedeu quanto ao mínimo caráter social emprestado à propriedade no Texto anterior, retomando o caráter absoluto individual 24 BRASIL. Constituição (1824). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em: 10 set. 2009. 25 BRASIL, Constituição (1891). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao91.htm>. Acesso em: 10 set. 2009. 26 BRASIL, Constituição (1934). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao34.htm>. Acesso em: 11 set. 2009. dos ideais liberais, prevendo apenas que seria protegida a propriedade e que seus limites seriam disciplinados por lei. 27 Certamente, a Constituição Federal de 1946 foi o marco inicial do caráter social emprestado aos Textos Constitucionais brasileiros a partir de então, em especial ao direito de propriedade, estabelecendo nova roupagem a esse instituto, superando aquele caráter absoluto e individual que prevalecera durante séculos. O constituinte de 1946 tratou com maestria o tema, primeiramente ao estabelecer a possibilidade de desapropriação por interesse social, disciplinado no Art. 141, § 16 da Constituição. Todavia, o maior avanço estabeleceu-se no “Título da Ordem Econômica e Social”, em que se condicionou, expressamente, o direito de propriedade ao bem-estar, acrescentando, ainda, que a propriedade é um instrumento para o alcance da justa distribuição da propriedade, conforme o Art. 147 do Texto.28 Mesmo diante do recrudescimento do período autoritário vivido pelos brasileiros a partir da década de 1960, o caráter social atribuído ao direito de propriedade fora mantido, inserindo inclusive a função social de propriedade como princípio da ordem econômica, como meio para se atingir a justiça social.29 Foi sob a órbita da Constituição Federal de 1946 que foi editada a Lei n.º 4.504, de 30 de novembro de 1964, denominada “Estatuto da Terra”, cujos objetivos sociais eram a execução de uma Reforma Agrária e a promoção da Política Agrícola no país. Pode ser sintetizada, como norma de orientação, a promoção da redistribuição de terra no Brasil, a fim de atender o princípio da justiça social, concretizando assim, pelo menos no plano legal, o preceito constitucional da função social da propriedade. No entanto, os preceitos sociais dispostos pelo “Estatuto da Terra” infelizmente não foram lançados ao mundo dos fatos, situação que possibilitou, ainda mais, o fortalecimento da classe latifundiária. No que tange à confirmação dos direitos e garantias sociais protegidos constitucionalmente, destaca-se a amplitude destes direitos trazidos pela Constituição Federal de 1988. Dentre eles, a função social da propriedade assume posição relevante, devendo ser cumprida independentemente do objeto que recair à propriedade. 27 Idem, ibidem. BRASIL, Constituição (1946). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao46.htm>. Acesso em: 13 set. 2009. 29 BRASIL, Constituição (1967). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>. Acesso em: 13 set. 2009. 28 A Constituição Federal de 1988 manteve o direito de propriedade com seu status de fundamental, integrando o rol do Art. 5º, mais especificamente no inciso XXII. Entretanto, logo em seguida dispôs que a propriedade atenderá uma função, estabelecendo assim a necessidade do cumprimento de um pré-requisito para a plena proteção constitucional do instituto da propriedade. Nesse mesmo norte, encontram-se outras disposições-limites sobre a propriedade, rotuladas como direitos fundamentais, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social e, ainda, a possibilidade de uso da propriedade pelo poder público nos casos de iminente perigo público. Além disso, o constituinte de 1988 estabeleceu a propriedade privada e a função social da propriedade como princípios da “Ordem Econômica e Financeira”, fato que importa na submissão da propriedade privada ser utilizada com o fim de se atingir a justiça social, mais um instrumento para a busca da existência digna. Tal transformação resulta também em uma modificação dos elementos do direito de propriedade. Como fora explanado anteriormente, o direito de propriedade durante o passar dos séculos teve sua concepção modificada, ocorrendo a mitigação do seu caráter absoluto, exclusivo e perpétuo, assumindo uma feição limitada, precária e social, devido exclusivamente ao implemento paulatino da funcionalização da propriedade. Entretanto, os elementos constitutivos da propriedade subsistem às transformações ocorridas no campo constitucional, evidentemente, agora assumindo uma nova roupagem. Os elementos clássicos do direito de propriedade presentes no Código Civil de 1916 continuam dispostos na nova legislação civil instituída em 2002. A propriedade privada permanece com seu conteúdo atribuído aos poderes de usar, gozar e dispor da coisa, além do poder de reavê-la de quem injustamente a detenha. No entanto, apesar da manutenção formal do seu conteúdo, os elementos da propriedade sofreram profundas alterações, acompanhando posicionamento constitucional do instituto, sobrepondo-se aos caracteres absoluto, exclusivo e perpétuo, figurantes do Estado Liberal. O Código Civil de 2002, assumindo a tendência de socialização do instituto da propriedade e seguindo os preceitos da nova ordem constitucional que se instaurou a partir de 1988, estabeleceu em seu texto que a existência dos direitos de usar, gozar e dispor da coisa está condicionada a finalidades econômicas e sociais, dentre elas, a proteção ambiental, além da proibição de atos que possam acarretar prejuízo a outros e a previsão da possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou interesse social. Desse modo, observa-se que a função social da propriedade estabelece respaldo jurídico constitucional e legal para a relativização dos atributos absoluto, exclusivo e perpétuo que recaiam sobre o tradicional direito de propriedade. Portanto, como se observará adiante, a função social da propriedade consiste muito mais que um fundamento para intervenção do Estado na propriedade, mas em um “princípio de transformação da sociedade capitalista, sem socializá-la”.30 1.2. PROPRIEDADE RURAL X PROPRIEDADE URBANA A tarefa de definir o que consiste a propriedade rural e urbana é árdua, visto que o tema apresenta grande discussão e posições doutrinárias antagônicas, ambas com fortes fundamentos. Ocorre que é fundamental para este trabalho o enfrentamento dessa questão, pois a definição de tal instituto é o fator determinante a aplicação do “Código Florestal” ou do Plano Diretor das Cidades aos prolongamentos urbanos, decorrentes do crescimento das cidades e, consequentemente, do aumento do perímetro urbano. No entanto, para o combate da questão suscitada no parágrafo anterior, faz-se necessário trazer os delineamentos legislativos e judiciais sobre o tema. Primeiramente, é oportuno salientar que as primeiras legislações sobre o assunto estavam sob o alicerce da Constituição Federal de 1946 e fora a Emenda Constitucional n.º 10, de 9 de novembro de 1964, que instituiu competência à União para legislar sobre direito agrário, além de autorizar a criação do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, cuja competência também pertencia à União. A Constituição Federal de 1946 não possuía, em seu texto, capítulo ou seção destinada ao processo legislativo; versava vagamente sobre a propositura e votação de projetos de leis. Nesse diapasão, é de se entender que nesse período tão-somente havia leis ordinárias, além da possibilidade da emissão de decretos pelo Presidente da República nos casos específicos. 30 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 72. O primeiro dispositivo legal a tratar especificamente do assunto foi a Lei n.º 4.504 de 30 de novembro de 1964, o “Estatuto da Terra”, que definiu o imóvel rural no seu Art. 4º, I: I – „Imóvel Rural‟, o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada;31 Nota-se que o regramento citado adotou, como critério identificador do imóvel rural, o fato dele estar destinado à exploração de atividade agrícola, pecuária ou agroindustrial, pouco importando assim a sua localização, seja na área urbana ou rural do Município, pois ele seria considerado como imóvel rural. No entanto, a partir de 25 de outubro de 1966 começa a polêmica sobre o tema, pois nessa data fora editada a Lei nº. 5.172, conhecida como “Código Tributário Nacional”, cujo texto normativo apresentou novo entendimento sobre o assunto. Esse código adota o critério da localização para a determinação do imóvel rural ou urbano, tendo em vista que o Art. 29 do referido diploma estabeleceu como hipótese de incidência do Imposto Territorial Rural o fato de a propriedade estar localizada fora da zona urbana da cidade. Desse modo, observa-se a adoção de um critério residual para determinação da imóvel rural, em que aquilo não configurado como propriedade urbana seria considerada rural e, consequentemente, sujeita ao Imposto Territorial Rural. Art. 29. O imposto, de competência da União, sobre a propriedade territorial rural tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localização fora da zona urbana do Município.32 Nesse mesmo norte, o “Código Tributário” também estabeleceu a hipótese de incidência do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana. 31 BRASIL, Lei n.° 4.504, de 30 nov. 1964. Dispões sobre o Estatuto da Terra e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>. Acesso em: 4 abr. 2011. 32 BRASIL, Lei n.° 5.172, de 25 out. 1966. Dispões sobre o Sistema Tributário Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 4 abr. 2011. Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município. § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II abastecimento de água; III - sistema de esgotos sanitários; IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.33 Antes mesmo dos entes municipais poderem comemorar a possibilidade de novas receitas, haja vista a certeza de um incremento de novas propriedades sujeitas ao imposto municipal, o então Presidente da República Castello Branco, dois dias após a edição do “Código Tributário Nacional”, cuja vigência se daria a partir de 1º de janeiro de 1967, editou o Decreto nº. 59.428, de 27 de outubro de 1966, regulamentando o “Estatuto da Terra” e reforçando a adoção do critério da destinação para se definir propriedade rural ou urbana. Não bastasse a celeuma já criada pela edição do Decreto, cuja posição hierárquica no ordenamento jurídico era indubitavelmente inferior à Lei nº. 5.172/66, fora editado, logo em seguida pelo Executivo, o Decreto-lei nº. 57, de 18 de novembro de 1966, que reintroduziu o critério da destinação como elemento definidor do imóvel rural e urbano. Insta esclarecer que a espécie normativa “Decreto-lei” fora criada pelo Ato Institucional de n.º 2, de 27 de outubro de 1965. Tal instrumento poderia ser utilizado pelo Presidente da República para legislar sobre todas as matérias, no caso de recesso parlamentar do Congresso Nacional. Assim, o instrumento normativo agora utilizado apresentava, aparentemente, a mesma força normativa da Lei que editou o “Código Tributário Nacional”, excepcionando a extensão do Art. 32 do “Código Tributário Nacional”, pois determinou expressamente que os imóveis destinados a explorações extrativa, agrícola, pecuária ou 33 BRASIL, Lei n.° 5.172, de 25 out. 1966. Dispões sobre o Sistema Tributário Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 4 abr. 2011. agroindustrial estariam sujeitos ao Imposto Territorial Rural. Nota-se a redação do Art. 15 do referido Decreto-lei: Art 15. O disposto no art. 32 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não abrange o imóvel de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial, incidindo assim, sobre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobrado. 34 A edição do citado Decreto-lei não cessou a insegurança jurídica existente, pois não havia certeza sobre qual diploma deveria ser aplicado ao caso pelo fato de haver dúvidas que pairavam a respeito de qual posto hierárquico figurava o referido Decretolei, se era inferior, superior ou equivalente às leis strictu sensu. Isso ocorreu pelo fato de o Decreto-lei representar uma inovação legislativa e inserida no ordenamento por uma via completamente antidemocrática. Em 1967 ocorreu uma nova transformação no ordenamento jurídico brasileiro: surge o novo Texto constitucional que, para este trabalho, merece importância em face do surgimento de uma nova espécie normativa, a chamada “lei complementar”. A Carta Federal de 1967 apresentou uma relevante novidade em comparação ao Texto anterior. Trouxe em seu bojo uma seção específica destinada ao processo legislativo, sendo que em seu Art. 49 discriminou as espécies normativas a serem utilizadas conforme disciplina constitucional, sendo elas: i) emendas à Constituição; ii) leis complementares à Constituição; iii) leis ordinárias; iv) leis delegadas; v) decretosleis; vi) decretos legislativos; vii) resoluções. Esse documento disciplinou, ainda, que as matérias de cunho tributário que estabelecessem normas gerais deveriam ser editadas por via de leis complementares, conforme disciplina o § 1º do Art. 19 da Carta, as quais, para serem aprovadas, exigiam quórum mais elevado, maioria absoluta dos membros. Nesse mesmo sentido, por força do Art. 173, I e III da Carta de 1967, os atos legislativos realizados com fundamento nos Atos Institucionais foram aprovados e excluídos de apreciação do Poder Judiciário, situação em que se enquadrou o Decretolei de n.º 57, de 18 de novembro de 1966. 34 BRASIL, Decreto-lei n.° 57, de 18 nov. 1966. Altera os dispositivos sobre lançamento e cobrança do Imposto sobre Propriedade Territorial Rural. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/DecretoLei/Del0057.htm>. Acesso em: 4 abr. 2011. A outorga de nova ordem constitucional traz ao bojo uma nova celeuma, haja vista que a Lei n.º 5.172/66, a qual versa sobre o “Código Tributário Nacional” e o Decreto-lei de n.º 57/66, que disciplina o lançamento e a cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, foram editados com status de lei ordinária. Não suficiente à celeuma ressaltada no parágrafo anterior, o Legislativo se valeu da edição da Lei n.º 5.868, de 12 de dezembro de 1972, cujo conteúdo versava sobre a criação do “Sistema Nacional de Cadastro Rural” para findar o assunto e restabelecer a segurança jurídica perdida há algum tempo no que se referia à incidência ou não do Imposto Predial e Territorial Urbano às propriedades localizadas na zona urbana, mas destinadas a fins rurais. Inseriu-se, assim, em seu Art. 6º, a seguinte redação: Art. 6º - Para fim de incidência do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, a que se refere o Art. 29 da Lei número 5.172, de 25 de outubro de 1966, considera-se imóvel rural aquele que se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal ou agroindustrial e que, independentemente de sua localização, tiver área superior a 1 (um) hectare. (Execução suspensa pela RSF nº 313, de 1983) Parágrafo único. Os imóveis que não se enquadrem no disposto neste artigo, independentemente de sua localização, estão sujeitos ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, a que se refere o Art. 32 da Lei número 5.172, de 25 de outubro de 1966. (Execução suspensa pela RSF nº 313, de 1983) 35 Ocorre que, em 1974, o Supremo Tribunal Federal foi acionado para decidir a respeito da natureza da Lei n.º 5.172/66 e do Decreto-lei n.º 57/66, que sob a relatoria do ministro Xavier de Albuquerque, pronunciou que as referidas normas foram recepcionadas pela Carta de 1967 com status de lei complementar, sendo que o Art. 15 do Decreto-lei n.º 57/66, derrogou tacitamente os artigos 29 e 32 do “Código Tributário Nacional”, conforme ementa abaixo: IMPOSTO TERRITORIAL URBANO. NÃO INCIDE SOBRE IMÓVEL UTILIZADO NA EXPLORAÇÃO AGRO-PASTORIL, AINDA QUE SITUADO NOS LIMITES DA ZONA URBANA, DEFINIDA EM LEI MUNICIPAL. NEGAÇÃO DE VIGENCIA, PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS, AO ART. 15 DO D1. 57, DE 18.11.66, MODIFICADOR DA NORMA CONTIDA NO ART. 32, 35 BRASIL, Lei n.° 5.868, de 12 dez. 1972. Cria o Sistema Nacional de Cadastro Rural. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5868.htm>. Acesso em: 4 abr. 2011. DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. 36 RECURSO Corroborando com entendimento acima exposto, o Art. 6º da Lei n.º 5.868/72 fora apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, por via do Recurso Extraordinário de n.º 93.850-8 proveniente de Minas Gerais, que teve como relator o Ministro Moreira Alves, cuja decisão fora a favor da inconstitucionalidade do artigo citado. Prevaleceu-se, assim, o entendimento que tanto a Lei n.º 5.172/66 e o Decreto-lei n.º 57/66 foram recepcionados pela Carta de 1967 com status de lei complementar, conforme ementa abaixo transcrita: IMPOSTO PREDIAL. CRITÉRIO PARA A CARACTERIZAÇÃO DO IMÓVEL COMO RURAL OU COMO URBANO. A FIXAÇÃO DESSE CRITÉRIO, PARA FINS TRIBUTÁRIOS, E PRINCÍPIO GERAL DE DIREITO TRIBUTÁRIO, E, PORTANTO, SÓ PODE SER ESTABELECIDO POR LEI COMPLEMENTAR. O C.T.N. SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DO S.T.F., E LEI COMPLEMENTAR. INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 6., E SEU PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI FEDERAL 5.868, DE 12 DE DEZEMBRO DE 1972, UMA VEZ QUE, NÃO SENDO LEI COMPLEMENTAR, NÃO PODERIA TER ESTABELECIDO CRITÉRIO, PARA FINS TRIBUTÁRIOS, DE CARACTERIZAÇÃO DE IMÓVEL COMO RURAL OU URBANO DIVERSO DO FIXADO NOS ARTIGOS 29 E 32 DO C.T.N. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO, DECLARANDO-SE A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 6. E SEU PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI FEDERAL 5.868, DE 12 DE DEZEMBRO DE 1972. 37 (grifo nosso) Apesar do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, enganam-se aqueles que pensam que a discussão referente ao critério a ser utilizado para a identificação da propriedade rural fora apaziguada e encerrada, pois os Tribunais superiores continuaram sendo submetidos à apreciação da matéria em diversas oportunidades, não chegando ainda a uma decisão definitiva. 36 BRASIL, Supremo Tribunal Federal: 2ª Turma. Recurso Extraordinário n.° 76057/PR. Recorrente: Jaime Canet Junior. Recorrida: Prefeitura Municipal de Bela Vista do Paraíso. Relator: Min. Xavier de Albuquerque. Julgamento em: 10 maio 1974. Publicado em: 07 jun. 1974. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(76057.NUME.%20OU%207605 7.ACMS.)&base=baseAcordaos>. Acesso em: 11 abr. 2010. 37 BRASIL, Supremo Tribunal Federal: Tribunal Pleno. Recurso Extraordinário n.° 93.850-8/MG. Recorrente: Jair Rodrigues Pereira. Recorrida: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Relator: Min. Moreira Alves. Julgamento em: 20 maio 1982. Publicado em: 27 ago. 1982. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=93850&base=baseAcordaos> Acesso em: 11 abr. 2010. Ressalta-se que, com o advento da Constituição Federal de 1988, permaneceu-se o entendimento de que o “Código Tributário Nacional” fora recepcionado sob o status de lei complementar. As propriedades urbana e a rural foram ambas disciplinadas no Texto Constitucional no título referente à “Ordem Econômica e Financeira”, sendo que a primeira integrada ao capítulo da “Política Urbana” e a segunda, no capítulo referente à “Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária”. A “Política Urbana” foi regulamentada pela Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001, conhecida como o “Estatuto da Cidade”, que não trouxe em seu bojo a definição da propriedade urbana; estabeleceu somente os comandos diretivos à propriedade urbana a favor do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, além de determinar o Plano Diretor como um dos instrumentos da Política Urbana, cabendo a este estipular exigências de ordenação da cidade, a serem observadas nas propriedades urbanas, para que seja atendida a função social. O Art. 41 da citada lei determinou que a obrigatoriedade da elaboração e a aprovação de Plano Diretor para os Municípios com mais de 20 mil habitantes; e o Art. 42 determinou que o referido plano devesse conter, no mínimo, as delimitações das áreas urbanas, onde pode ser aplicado o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsória dessas áreas, bem como as áreas que poderão ter o uso do solo alterado, desde que realizada uma contrapartida pelo beneficiário. Não obstante, necessário ainda estabelecer que, para a definição da zona urbana do Município, é indispensável a observância do § 1º do Art. 32 do “Código Tributário Nacional”, para que seja disponibilizado, pelo ente federativo municipal, pelo menos dois dos seguintes melhoramentos: i) meio-fio ou calçamento; ii) abastecimento de água; iii) sistema de esgoto; iv) iluminação pública; v) escola primária ou posto de saúde localizados a pelo menos três quilômetros do imóvel, com exceção daquelas propriedades que estiverem localizadas no perímetro urbano, mas que estejam destinadas à exploração rural. A “Política Agrária” fora regulamentada por meio da Lei n.º 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que trouxe em seu Art. 4º a definição de imóvel rural, cujo entendimento veio de encontro à disposição prevista no Art. 15 do Decreto-lei n.º 57/66, adotando o critério da destinação: Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se: I - Imóvel Rural - o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agro-industrial; 38 Os ordenamentos recentes citados acima, embora importantes para o tema, não interferem na posição trazida pelo “Código Tributário Nacional” e pelo Decreto-lei n.º 57/66 quanto à definição de imóvel rural, frente ao reconhecimento deles como leis complementares. Corroborando esse entendimento, destaca-se voto do senhor Ministro Sydney Sanches sobre o tema, proferido em 1998: Antes mesmo que o C.T.N. entrasse em vigor, o que ocorreu a 1º de janeiro de 1967 (art. 218), seu art. 32 foi alterado pelo art. 15 do Decreto-Lei n. 57, de 18.11.1966. (...) Esse Decreto-lei n. º 57/66 também foi recebido não só como lei formal, atendido, assim, também nesse caso, o princípio da legalidade, mas como de natureza complementar pela C.F. de 1967 e pela E.C. n.º 1/69 (...).39 Conclui-se nesse momento, no que tange à caracterização do imóvel rural ou urbano, que se aplica a teoria da destinação do imóvel, pouco importando sua localização, haja vista a posição do Supremo Tribunal Federal em admitir que o Decreto-lei n.º 57 derrogou tacitamente parte dos Artigos 29 e 32 do “Código Tributário Nacional”. Subentende-se, consequentemente, que a propriedade urbana é aquela localizada no perímetro urbano do Município, a ser definida pelo Plano Diretor, cuja atividade não seja a exploração agrícola, pecuária, extrativa-vegetal, florestal ou agroindustrial, pois a propriedade rural é aquela destinada a fins rurais, independentemente de sua localização. É nesse sentido que se posiciona o Superior Tribunal de Justiça: TRIBUTÁRIO. IPTU. IMÓVEL LOCALIZADO EM ÁREA URBANA. EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADES ESSENCIALMENTE RURAIS. IPTU. NÃO-INCIDÊNCIA. PRECEDENTE. 38 BRASIL, Lei n.° 8.629, de 25 fev. 1993. Dispõe sobre a Reforma Agrária. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8629.htm>. Acesso em: 11 abr. 2010. 39 BRASIL, Supremo Tribunal Federal: Tribunal Pleno. Recurso Extraordinário n.° 140.773/SP. Recorrente: Prefeitura Municipal de Sorocaba. Recorrido: Paulo Adolpho de Carvalho Borges. Relator: Min. Sydney Sanches. Julgamento: 8 out. 1998. Publicado em: 4 jun. 1999. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=208480>. Acesso em: 11 abr. 2010. 1. Não incide IPTU, mas ITR, sobre imóveis nos quais são exploradas atividades essencialmente rurais, ainda que localizados em áreas consideradas urbanas por legislação municipal. Precedente: REsp 1.112.646/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 28/08/2009, submetido ao art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ.40 1.3. ÁREA DE EXPANSÃO URBANA A área de expansão urbana, no que tange à disciplina constitucional e infraconstitucional, apresenta-se de maneira bastante singela, uma vez que o §1º do Art. 182 do Texto se limita atribuir ao Plano Diretor a sua disciplina, assim como o “Estatuto das Cidades”, que se limitou a repetir o Texto Constitucional, exposto no seu Art. 40, estabelecendo: “O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”. Desse modo, apesar da legislação insuficiente, as áreas de expansão urbana deverão ser definidas pelo Plano Diretor de cada Município, as quais são caracterizadas como áreas destinadas ao crescimento das cidades. Elas visam a atender determinação legal exposta pelo “Estatuto da Cidade” quanto ao planejamento urbano, desde que os loteamentos destinados a ocuparem estas áreas tenham fins de habitação, indústria ou comércio, e sejam aprovados pelos órgãos competentes, como bem disciplina o § 2º do Art. 32 do “Código Tributário Nacional”, inclusive sem a necessidade de observância de, pelo menos, dois dos requisitos previstos no parágrafo primeiro do Art. 32. Tal afirmação implica em dizer que o Município, ao definir as áreas de expansão urbana, não necessita disponibilizar nenhum dos serviços de melhoramento dos quais menciona o § 1º do Art. 32 do “Código Tributário Nacional”, permitindo, assim, a cobrança do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, desde que o imóvel não esteja destinado a fins rurais. Nesse ponto, é sólida a posição do Superior Tribunal de Justiça, como bem fica demonstrado na ementa transcrita abaixo: 40 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 2ª Turma. Recurso Especial n.° 1150408/SP; Recorrente: José Papile e outro. Recorrido: Município de Pirajuí. Relator Min. Castro Meira. Julgamento em: 28 set. 2010. Publicado em: 19 nov. 2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=iptu+imovel+rural&&b=ACOR&p=true&t=& l=10&i=2>. Acesso em: 29 dez. de 2010. TRIBUTÁRIO. IPTU. IMÓVEL SITUADO EM ÁREA CONSIDERADA URBANIZÁVEL OU DE EXPANSÃO URBANA. INCIDÊNCIA. INTERPRETAÇÃO DO ART. 32 E §§ 1º E 2º, DO CTN. PRECEDENTES. 1. Recurso Especial interposto contra v. Acórdão segundo o qual “a lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo quando localizadas fora das zonas definidas como zonas urbanas, pela lei municipal, para efeito da cobrança do IPTU, porquanto inaplicável, nessa hipótese, o disposto no parágrafo 1º, do artigo 32, do CTN, por força do comando emergente do parágrafo 2º, do mencionado artigo, porque este dispositivo excepciona aquele”. 2. Incide a cobrança do IPTU sobre imóvel considerado por lei municipal como situado em área urbanizável ou de expansão urbana, mesmo que a área não esteja dotada de qualquer dos melhoramentos elencados no art. 31, § 1º, do CTN. 3. Interpretação feita de modo adequado do art. 32 e seus §§ 1º e 2º, do CTN. 4. Precedentes das Primeira e Segunda Turmas desta Corte Superior. 5. Recurso não provido.41 Contudo, a atribuição direcionada à legislação municipal sobre a definição e os atributos da área de expansão urbana, por via do Plano Diretor, não implicam numa ampla discricionariedade do agente municipal, tendo em vista a obrigatoriedade de se observar outros diversos diplomas legais. Nesse sentido, o próprio “Estatuto da Cidade” estabelece como uma de suas diretrizes que a política urbana, a ser concretizada pelo Plano Diretor, deve visar cidades sustentáveis, devendo garanti-la para “as presentes e futuras gerações”, corroborando com o Art. 225 da Constituição Federal, que versa sobre a proteção do meio ambiente. Não suficiente a isso, a política urbana possui o dever de regular a ordenação e o controle do uso do solo, de modo a evitar, entre outras coisas, a poluição e a degradação ambiental; recai sobre ela também o dever de proteção, recuperação e conservação do meio ambiente natural e artificial, bem como a regularização fundiária, que deverá observar necessariamente as normas ambientais, como bem disciplina o Art. 2º, VI, “g”, XII e XIV do Estatuto. Doutro norte, de acordo com o exposto no capítulo anterior, as áreas de expansão urbana não interferem na definição de propriedade urbana ou rural e suas 41 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 1ª Turma. Recurso Especial n.° 433.907/DF. Recorrente: Cooperativa Habitacional Onze de Janeiro Ltda. Recorrido: Distrito Federal. Relator Min. José Delgado. Julgado em: 27 ago. 2002. Publicado em: 23 set. 2002. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ ita.asp?registro=200200525056&dt_publicacao=23/09/2002>. Acesso em: 2 jan. 2011. implicações legais, haja vista que, conforme posicionamento legal e jurisprudencial, o critério a ser utilizado para essa identificação é o da destinação da propriedade, pouco importando sua localização. Verifica-se que a utilização e a conceituação legal do instituto da área de expansão urbana busca, essencialmente, o planejamento urbano, sendo um mecanismo a ser utilizado pelos administradores públicos municipais para organizar preventivamente o crescimento das cidades; evita-se, assim, o crescimento desordenado que há muito tempo se cristalizou nos principais centros urbanos brasileiros, em face do êxodo rural intensificado a partir de meados do século passado. Tal fenômeno, êxodo rural, trouxe consequências irreparáveis às cidades, tendo em vista o seu rápido processo e a falta de planejamento, fiscalização e aptidão das autoridades da época. A principal vítima fora o meio ambiente, que viu áreas protegidas pela legislação ambiental serem ocupadas e deterioradas, principalmente aquelas destinadas às áreas de preservação permanente, cuja degradação apresenta-se em estado preocupante, estabelecendo uma situação praticamente irreversível. Ocorre que, apesar de o êxodo rural apresentar-se de modo muito mais lento do que o ocorrido no século passado, ele ainda permanece, possuindo agora outros atores. Se a falta de planejamento, de fiscalização e de preparo por parte dos administradores não pode mais constituir desculpa à urbanização desordenada e à lesão ao meio ambiente, surge agora outro vilão, inclusive com amparo legal: a área de expansão urbana, que, por via de legislações municipais, avança sobre as áreas de “reserva legal” protegidas pelo “Código Florestal”, tendo em vista a transformação de propriedades rurais em loteamentos urbanos, aniquilando as reservas florestais. É inegável a importância ecológica das reservas florestais à preservação dos biomas presentes no Brasil, que são insuscetíveis de permuta, não havendo mecanismo urbano de proteção que se equivale a ela; essas reservas constituem bem de uso comum do povo, não sendo possível admitir sua supressão sob a alegação das propriedades rurais transformarem-se em urbanas, sob a força de legislação municipal que simplesmente amplia o perímetro das zonas urbanas. Nesse sentido, surgem as primeiras indagações sobre o tema: pode o poder público municipal, com fundamento no interesse local, criar áreas de expansão urbana, retirando das propriedades, até então rurais, a obrigatoriedade de manutenção das reservas exigidas pelo “Código Florestal”, sobrepondo, assim, ao interesse constitucional de preservação do meio ambiente? 1.4. INTERVENÇÃO À PROPRIEDADE Inicialmente, cumpre ressaltar a extensão da expressão e do conteúdo “intervenção”. Na simples acepção da palavra, pode-se entender como a ação de alguém, de algum órgão ou de algum país de interferir ou intervir em alguma coisa ou alguém que não seja de sua responsabilidade, cujo objeto que recaia a ação esteja fora de seu grau normal de atuação, independentemente ou não do aceite daquele que sofrera a interferência. Trata-se aqui da intervenção do Estado no particular, tendo como campo de sustentação o ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, observa-se a permissividade da sua ocorrência em face da proteção do mercado econômico, o qual é denominado “intervenção no domínio econômico”, e a intervenção do Estado junto à propriedade privada a fim de garantir o bem-estar coletivo, haja vista a exigência de atendimento à função social da propriedade. Para o tema proposto e por razões didáticas, limitar-se-á o foco na intervenção ao instituto da propriedade privada. Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles disciplina como intervenção à propriedade “todo ato do Poder Público que compulsoriamente retira ou restringe direitos dominiais privados ou sujeita o uso de bens particulares a uma destinação de interesse público”. 42 Complementa o jurista que a intervenção na propriedade privada pode encontrar respaldo para ocorrência tanto na necessidade ou utilidade pública, ou, ainda, no interesse social. No entanto, faz importante consideração: o fundamento que respalda a atuação do Estado na propriedade privada deverá ocorrer tão-somente via lei federal, o que não se confunde com o ato executório interventivo, cuja competência é atribuída a todos os entes federativos.43 42 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 580. 43 Idem. p. 580-581. Observa-se que ao longo da História brasileira, diante das transformações constitucionais ocorridas ao direito de propriedade, a atuação interventiva do Estado sempre existiu; entretanto, o seu objetivo, a sua forma e o seu alcance passaram por grandes alterações. Inicialmente, como já explanado, a propriedade possuía uma feição extremamente individualista, constituindo em um direito absoluto. Assim sendo, o papel interventor do Estado restringia-se a garantir o exercício pleno desse instituto e, excepcionalmente, podendo nela intervir de forma ativa nos casos de necessidade ou utilidade pública, hipóteses em que era necessário o pagamento de prévia indenização. Com o realçar das constituições modernas, pautadas no bem-estar, e com fundamento na dignidade da pessoa humana e na prevalência do interesse coletivo sobre o individual, a intervenção do Estado na propriedade ganhou novos contornos e novas restrições administrativas que relativizaram o caráter absoluto da propriedade. Não suficiente a isso, visualiza-se a consolidação da função social como elemento essencial à garantia do direito de propriedade. O referido elemento está previsto no Art. 5º, XXIII e no Art. 170, III da Constituição Federal, sendo responsável por exigir do proprietário uma atuação positiva mais favorável ao interesse social estipulado pelo Estado. Assim, constatada a existência de permissão constitucional no que concerne à intervenção do Estado na propriedade privada, cumpre agora ressaltar as formas que essa intervenção poderá ocorrer; convém, entretanto, salientar a necessidade de tais atos estatais estarem disciplinados por lei, aqui no seu sentido amplo, haja vista o atendimento ao princípio da legalidade, cujo administrador público encontra-se vinculado. Existem diversas formas de o Estado intervir na propriedade privada, e no que concerne à classificação dessas intervenções, a doutrina tem encontrado um terreno bastante arenoso em face da existência de diversos entendimentos conflitantes sobre o tema, principalmente a respeito das limitações administrativas. Observa-se que existe posicionamento no sentido de que as restrições e as limitações administrativas constituem um único instituto; existem aqueles que sustentam as restrições como espécie do gênero “limitação administrativa”; e, ainda, há quem defenda que são institutos distintos, ambos como espécies do gênero “intervenção à propriedade”. Tendo em vista a diversidade de posicionamentos sobre esse tema, e não havendo interesse e necessidade de esmiuçá-lo para o trabalho proposto, limitar-se-á a estabelecer as classificações propostas por alguns doutrinadores, dando ênfase ao instituto das limitações e servidões administrativas. No entanto, faz-se necessário esclarecer que a identificação da intervenção à propriedade como gênero justifica-se especialmente em face da previsão da função social da propriedade como princípio, disposto tanto no Art. 5º, como no Art. 170 da Constituição Federal. Não suficiente a isso, acrescenta-se a obrigatoriedade do Estado em orientar e impulsionar as condutas dos particulares ao encontro do bem-estar. Diógenes Gasparini44 coaduna-se com o posicionamento de que a intervenção ao direito de propriedade privada é gênero, elencando como espécies as seguintes: a) limitação administrativa; b) servidão; c) ocupação temporária; d) requisição; e) desapropriação; e f) parcelamento e edificação compulsória. Nesse mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho45 propõe também a adoção da intervenção à propriedade como gênero; no entanto, apresenta como espécies a intervenção restritiva e a intervenção supressiva, as quais serão classificadas conforme a natureza e os efeitos da intervenção junto à propriedade. A restritiva refere-se àquela em que Estado restringe e condiciona o uso da propriedade, sem interferir no titular do domínio, tendo como suas modalidades: a) a servidão administrativa; b) a requisição; c) a ocupação temporária; d) as limitações administrativas; e e) o tombamento. E a supressiva identifica-se como aquela em que o Estado interfere diretamente no domínio da propriedade, retirando-a do seu titular e transferindo, para si, características que configuram a desapropriação. José Afonso da Silva classifica o tema adotando as limitações ao direito de propriedade como gênero, estabelecendo como espécies: a) as restrições; b) as servidões; e c) a desapropriação. “As restrições limitam o caráter absoluto da propriedade; as servidões e outras formas de utilização da propriedade alheia limitam o caráter exclusivo; e a desapropriação, o caráter perpétuo”. 46 44 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 584. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 663. 46 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 279. 45 Hely Lopes Meirelles47 adota classificação semelhante à proposta por Diógenes Gasparini, apenas não identificando o parcelamento e edificação compulsória como uma espécie da intervenção. Sua classificação do gênero intervenção dispõe da seguinte forma: a) a desapropriação; b) a servidão administrativa; c) a requisição; d) a ocupação temporária; e e) a limitação administrativa. Para esse estudo, merecem atenção as intervenções à propriedade, conhecidas como “limitações administrativas”, ou nas palavras de José Afonso da Silva como “restrições”, bem como as servidões, em face da necessidade de enquadrar a área de “reserva legal” florestal como espécie desta ou daquela natureza. Observa-se que, apesar de possuírem nomenclatura distinta, as “limitações administrativas” e as “restrições” possuem o mesmo conteúdo, motivo que permite adotar os termos como sinônimos, pois ambas identificam a intervenção do Estado ao caráter absoluto da propriedade, interferindo nos direitos de uso, fruição, modificação e alienação da propriedade. Conceituam as limitações administrativas como aquelas imposições de caráter geral, tendo em vista exigir do proprietário condutas que condicionam a propriedade ao cumprimento da função social.48 “É toda imposição geral, gratuita, unilateral e de ordem pública condicionadora do exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social”;49 condiciona, de forma impositiva, o exercício dos direitos dominiais de todos os proprietários que se enquadram na determinação legal, sem a sujeição de qualquer pagamento de indenização por parte do Estado. Limitações ao direito de propriedade tais como a proibição do cultivo de certas culturas, práticas culturais, ou atividades econômicas (p. ex: as hipóteses de corte raso de florestas, de corte de árvores de significativo valor genético ou de importância para o desenvolvimento de fármacos, do uso para pastoreio em áreas de solo sensíveis. Considerados como tais em plano de manejo de unidade de conservação) não ensejarão aos proprietários dos imóveis afetados o direito a qualquer indenização.50 47 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 581. 48 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 657. 49 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 612. 50 SOUZA, Paulo Roberto Pereira de. A Regularidade Ambiental do Imóvel Rural. Advocacia Ambiental: segurança jurídica de empreender. Rio de Janeiro: Lumen&Juris, 2009. p. 130. As limitações administrativas, assim como todas as demais formas de intervenção, possuem como fundamento o interesse público, a utilidade pública e o interesse social, circunstâncias que legitimam a atuação unilateral da Administração Pública em exigir determinados comportamentos que interferem diretamente nos direitos de uso, gozo e disposição da propriedade, mas sem excluí-los; apenas condicionando-os aos preceitos constitucionais exigidos a fim de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Dessa forma, prudente salientar que essas restrições não podem, de forma alguma, impedir de maneira significativa o exercício dos direitos inerentes ao proprietário; devem atender aos ditames do princípio da razoabilidade, não implicando em uma inutilização econômica da propriedade. A propósito, posiciona-se com propriedade Paulo Roberto Pereira de Souza sobre o assunto, afirmando que: Por outro lado, se a limitação ou restrição ao direito de propriedade eliminar, por completo, o uso econômico da propriedade, ou o direito de alienação, ou ainda, o direito de exclusão, então, sim, se configura uma ofensa efetiva ao direito de propriedade, emergindo para seu titular jus à indenização, podendo considerar-se tal ato como uma desapropriação indireta. É o que ocorre nas hipóteses de instituição de algumas unidades de conservação, assim como parques, nacional, 51 estadual ou municipal e as reservas indígenas ou extrativistas. O caráter geral infere que as restrições deverão ser criadas com intuito de atingir um universo de destinatários que se enquadram na situação prevista em lei ou atos administrativos, não podendo haver especificações ou distinções; diferentemente do que ocorre na servidão administrativa, na requisição e na ocupação temporária, as quais são criadas para atingir determinada(s) propriedade(s). É a generalidade presente nas limitações administrativas que possibilita ao Estado intervir na propriedade privada, sem que tal fato implique na obrigatoriedade de indenizar o proprietário. No entanto, essa limitação não deve importar em supressão significativa aos direitos de propriedade, devendo as limitações administrativas, como ditas, atenderem ao elemento da razoabilidade. 51 Idem, ibidem, p. 131. José dos Santos Carvalho Filho52 ressalta que as limitações administrativas também encontram fundamento no exercício do poder de polícia, que identifica as restrições como condicionamentos à liberdade e à propriedade, fundadas na necessidade de atender ao interesse coletivo. Ora, diante de um Estado Democrático de Direito acredita-se não ser possível que limitações à propriedade e à liberdade possam encontrar amparo no exercício de um atributo típico do “Estado de Polícia”, arbitrário e ditatorial do qual o Brasil foi refém durante o regime militar, em face de toda atuação estatal estar sujeita aos mandamentos legais, aqui no seu sentido mais amplo. Não suficiente a isso, a utilização do termo “poder de polícia” encontra-se em desuso, apesar de ainda utilizada por diversos autores. Tal expressão é emprestada de grave equívoco, pois primeiramente não se trata de poder e, sim do exercício de competências; por segundo, em face da adjetivação polícia, como já salientado acima, traz alusão a atividades exercidas sob a via da força, do autoritarismo, da arbitrariedade, elementos totalmente contrários ao Estado Democrático de Direito. As limitações administrativas diferem das demais formas de intervenção em face de suas normas autorizadoras serem, necessariamente, constituídas por atos legislativos ou administrativos gerais, enquanto a servidão, a requisição, a ocupação temporária e o tombamento derivarem de atos singulares. Outro ponto que a diferencia das demais é o motivo que leva a sua instituição: enquanto as limitações se fundam em interesses públicos abstratos, nas demais formas o motivo é a realização de obras e serviços públicos.53 Visto a impropriedade, na tentativa de impor as intervenções à propriedade como atribuição do “poder de polícia”, resta esclarecer as diferenças que tocam às limitações administrativas das demais formas interventivas à propriedade. Merece atenção a diferenciação das limitações administrativas do instituto da servidão, haja vista a linha diferencial entre um e outro ser bastante tênue e, ainda, por haver posicionamento no sentido das áreas de “reserva legal” constituírem espécie de servidão, e não uma restrição. Servidão administrativa “é o direito real que assujeita um 52 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lúmen&Júris, 2007. p. 678. 53 Idem, ibidem, p. 679. bem a suportar uma utilidade pública, por força da qual ficam afetados parcialmente os poderes do proprietário quanto ao seu uso ou gozo”.54 De acordo com o conceito, vislumbra-se que as servidões referem-se a atos concretos e direcionados a bens determinados, que afetam diretamente o exercício dos direitos inerentes ao proprietário, enquanto as limitações administrativas são direcionadas a atingir os bens de forma abstrata e indeterminada. Pode-se estabelecer como diferença fundamental entre os dois institutos, por ora analisados, que as limitações administrativas agem como se fosse uma moldura ao exercício dos direitos de propriedade, impondo ao proprietário certos comportamentos, para que se atinja a finalidade pretendida pelo legislador, em especial a função social da propriedade. Por outro lado, a servidão quando é instituída interfere diretamente nos direitos inerentes ao proprietário, limitando-os ou até mesmo extinguindo alguns deles. Nas servidões administrativas há um ônus real – ao contrário das limitações –, de tal modo que o bem gravado fica em um estado de especial sujeição à utilidade pública, proporcionando um desfrute direto, parcial, do próprio bem (singularmente fruível pela Administração ou pela coletividade em geral).55 Outro ponto importante à distinção dos dois institutos diz respeito à obrigatoriedade do Poder Público em indenizar o proprietário nas hipóteses de ocorrência dessas intervenções. Como visto, a servidão constitui no uso da propriedade privada pelo Estado a fim de permitir a execução de algum serviço ou obra pública, necessário ao atendimento do interesse público, sem haver a incorporação da propriedade ao patrimônio do Estado. Desse modo, em face de a utilização do bem privado pelo Estado estar lastreada pelo interesse público, tão-somente justifica-se a existência de uma indenização caso ocorra algum dano à propriedade do particular. Nota-se que tal indenização difere daquela a ser paga nos casos de desapropriação, pois na servidão ocorre somente o uso da propriedade. A isenção ao dever de indenizar o proprietário por parte do Estado nos casos da instituição de limitações administrativas decorre da abrangência erga omnes do 54 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 833. 55 Idem, ibidem, p. 834. instituto, da sua indeterminação de sujeitos e bens e da sua abstração. Entretanto, configurando a restrição como hipótese de expropriação, haverá, sim, o dever de indenizar. Tendo em vista as limitações administrativas visarem compatibilizar o uso da propriedade aos preceitos constitucionais do bem-estar social, da prevalência do interesse coletivo sobre o particular e das necessidades sociais, econômicas e ambientais, encontra-se um enorme leque destas no ordenamento brasileiro. Elas podem ser divididas em limitações de direito privado e em limitações de interesse público ou social, as quais não podem ser confundidas, pois possuem natureza e finalidade distintas, bem como regramentos próprios. Dentre as limitações de interesse privado, citam-se a título exemplificativo as servidões prediais e as decorrentes do direito de vizinhança. “As limitações administrativas são editadas em benefício do bem-estar social, enquanto os direitos de vizinhança são estabelecidos para a proteção da propriedade privada e como garantia de segurança, conforto, sossego e saúde dos que a utilizam”.56 No entanto, para o tema aqui proposto, resta importante tão-somente o estudo das restrições administrativas de interesse público, voltadas à proteção e conservação do ambiente, seja no uso do solo urbano ou rural, em especial a área de “reserva legal”, cujo tema será versado adiante. Por fim, é de suma importância consolidar o entendimento sobre a diferença entre as limitações ao exercício da propriedade e a função social a ser emprestada à propriedade. “Há, assim, duas coisas distintas. De um lado, o poder de polícia, capaz de impor limitações ao direito de propriedade. De outro, a exigência de que esta cumpra sua função social”.57 A função social da propriedade exige uma atuação positiva do proprietário, que direcione a propriedade ao cumprimento de um fim coletivo e que extrapole os interesses do proprietário. Independentemente das limitações administrativas impostas por lei, a função social integra a estrutura do direito de propriedade, constituindo seu próprio núcleo, e o simples fato de ser proprietário importa na assunção de um dever deste frente à sociedade, enquanto as restrições consistem em mais um mecanismo, de 56 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 588. TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2003. p. 164. 57 ordem infraconstitucional a direcionar que seja atendida a determinação constitucional da função social da propriedade. Portanto, as limitações administrativas estabelecem restrições ao uso e ao gozo do exercício do direito de propriedade, sendo meio coercitivo para impulsionar o alcance da função social. Enquanto a função social da propriedade não se enquadra como uma limitação, e sim, com um próprio fim a ser emprestado à propriedade, há um lastro social a ser exercido pelo proprietário para que este possa desfrutar dos benefícios individuais que a propriedade possa lhe trazer, conforme será melhor explanado a seguir. 2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A função social da propriedade é fruto do Estado Social que se expandiu para várias partes do mundo, pós-Constituição alemã de 1919, sobrepondo-se aos ideais liberais em vigor até então. O instituto da propriedade é o ponto principal da mudança, pois se deixa o caráter absoluto e individual de lado e assume-se uma função coletiva, um fim destinado a atender aos interesses sociais; ocorre uma relativização do exercício dos direitos inerentes à propriedade, pois esta é a “escolhida” como meio necessária para se atingir a justiça social. O Estado Social não preza pelo fim do instituto da propriedade privada; apenas determina que este esteja também voltado para o atendimento do bem-estar social e que contribua para o alcance da dignidade da pessoa humana, devendo haver uma compatibilização dos interesses individuais e coletivos e, no caso de dissonância entre eles, deverá sempre prevalecer o interesse coletivo. Nota-se que a Constituição Federal de 1988 segue esse posicionamento ao elencar o direito de propriedade e o atendimento à função social como direitos individuais fundamentais. O constituinte, ao expor seguidamente no Art. 5º a proteção da propriedade privada e o dever desta obedecer a uma função social, pretendeu impor limites ao direito de propriedade, ponderando os dois institutos com o mesmo “peso” jurídico-social. A Constituição Federal não prioriza nenhum deles, pois ambos são instrumentos para o alcance dos objetivos da “Ordem Econômica e Financeira” e da “Ordem Social”. É notório que o ordenamento jurídico não deve ser visto de forma isolada, pois se constitui um sistema harmônico por excelência, devendo, suas regras e princípios, obrigatoriamente compatibilizarem entre si, fato que autoriza a limitação ao direito individual de propriedade, pois este não pode ser analisado sob um prisma isolado. Importante reafirmar que a limitação tratada aqui não diz respeito àquelas do direito administrativo explicitadas anteriormente. Essa possui caráter constitucional e abrange diretamente a estrutura do direito de propriedade,58 ou seja, a função social da propriedade não se confunde com as limitações de uso e gozo do direito administrativo e com aquelas do direito de vizinhança. A função social adere-se à propriedade, fazendo-se parte integrante daquela, legitimando os direitos inerentes ao proprietário daqueles que cumprem com a função social. A função social da propriedade absorve os interesses individuais do proprietário, estabelecendo limites quanto à fruição do seu direito, mas tal direito fundamental continua protegido, sofrendo apenas uma modificação no seu conteúdo. Entende-se, assim, que o exercício dos direitos inerentes à propriedade somente serão legítimos se o proprietário condicionar a propriedade ao desempenho de uma finalidade social: de produção, de proteção ao meio ambiente, de moradia, entre outras. Entretanto, a análise quanto ao cumprimento da função social da propriedade não é taxativa, e existem vários critérios a serem observados, os quais dependerão principalmente do objeto. Nesse sentido, Eros Graus defende que a função social importa numa ação ativa, em condutas positivas; a propriedade, compatível com o Art. 170, III, é aquela que desenvolve mais que o atendimento ao interesse individual. Acrescenta o autor: À propriedade dotada de função individual respeita o art. 5º, XXII do texto constitucional; de outra parte a „propriedade que atenderá a sua função social‟, a que faz alusão ao inciso seguinte – XXIII – só pode ser aquela que exceda o padrão qualificador da propriedade como dotada da função individual. À propriedade-função social, que diretamente importa à ordem econômica – respeita o princípio inscrito no art. 170, III. No mais, quanto à inclusão do princípio da garantia da propriedade privada dos bens de produção entre os princípios da ordem econômica, tem o condão de apenas afetá-los pela função social – conúbio entre os incisos II e III do art. 170, mas, além disso, de subordinar o exercício em instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna.59 58 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. Malheiros: São Paulo, 2005. p. 281-282. 59 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 243. Como salientado anteriormente, o constituinte estabeleceu como princípios da “Ordem Econômica e Financeira” tanto a propriedade privada como a função social da propriedade. Alguns juristas, como João Mangabeira,60 defendem que melhor teria sido a inserção desses institutos apenas nessa última. Certamente, a inserção dos citados diplomas apenas como princípios da “Ordem Econômica e Financeira” seriam suficientes para os fins que almejam. Entretanto, existem raízes históricas que impedem um rompimento total; há fortes laços da propriedade privada com o individualismo liberal, a qual ainda possui adeptos doutrinários, além do fato de a Constituição Federal se configurar de forma dirigente e pragmática, principalmente quanto aos direitos fundamentais, devido a diversos fatores, entre eles o receio de proteção contra as violações ocorridas nos períodos autoritários que antecederam a promulgação dessa Norma Fundamental. Na contramão dos principais doutrinadores, não se observa exagero por parte do constituinte quando da inserção do direito de propriedade como direito individual e como princípio da “Ordem Econômica e Financeira”. Acredita-se na existência de finalidades diferentes: a propriedade privada como princípio do Art. 170 da Constituição Federal busca enfatizar que o campo da atividade econômica pertence, em regra, à iniciativa privada, e os meios de produção devem pertencer ao particular, sendo que estes possuem a obrigação de impor um fim econômico e social às suas atividades. Por outro lado, a propriedade privada como direito fundamental individual apresenta-se como meio de garantir o instituto, e estabelece que aquela propriedade cumpridora da função social permanece com a proteção constitucional, assim não assistindo razões àqueles que acreditam no seu desaparecimento. Acrescenta-se que a sobrevivência da propriedade privada é necessária e essencial à economia capitalista, não sendo possível dissociar-se daquela. Os preceitos da “Ordem Econômica e Financeira” têm como fundamento a busca pela existência digna e a justiça social, o que reforça a necessidade de socialização do conteúdo do direito de propriedade. Esse instituto deve estar voltado à produção com o fim de atender aos anseios individuais e coletivos, uma compatibilização entre o interesse público e o uso privado. 60 MANGABEIRA, João. Em torno da Constituição. São Paulo: Ed. Nacional, 1934. v. II. Apud TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2003. Certo quanto à compatibilização dos princípios dispostos nos incisos II e III do Art. 170, é necessário discorrer sobre a discussão doutrinária proposta por Duguit, o qual admite que a propriedade seria a própria função social e que não contém nela própria, como afirma a maioria da doutrina. O autor acrescenta que sem a função social não existiria a propriedade, desprezando-a totalmente como direito subjetivo. Para DUGUIT, os direitos subjetivos de caráter individualista, são noções de ordem puramente metafísica, por basearem-se unicamente na vontade e na hierarquia de vontades, entendendo que não existem direitos subjetivos, mas sim funções Sociais. Aponta a ocorrência de uma transição do paradigma individualista e metafísico do Direito Moderno para um novo paradigma, mais realista, embasado ma noção de funções que o individuo deve desempenhar enquanto membro da sociedade.61 A contribuição de Duguit é de grande valia, pois ascendeu à discussão sobre essa nova configuração do direito de propriedade. Mas essa teoria não prevaleceu, pois como já salientado, a propriedade possui relação ínfima com a economia capitalista, não sendo possível desprezar tal instituto como direito individual. Críticos a essa corrente sustentam que a propriedade como função somente seria possível diante de um Estado socialista, onde os meios de produção pertencem ao Estado e estariam exclusivamente voltados ao bem comum. Após a não prevalência do entendimento da propriedade como função, surgiu, posteriormente, o entendimento de que o conteúdo da função social seria definido pelo legislador ordinário em face da natureza programática da Constituição Federal. Diante de tal posicionamento, possibilitaria ao legislador que restringisse um princípio constitucional, retirando a carga valorativa que os princípios possuem. Os princípios constitucionais são de aplicação imediata, não necessitando de norma posterior a fim de efetivá-los. Quanto à estrutura, consolida-se o entendimento de a função social ser elemento interno do direito de propriedade, fazendo parte da estrutura deste. Nesse sentido, Gustavo Tepedino afirma: 61 DUGUIT, Leon. Las Transformaciones Del Derecho – Publico y Privado. Trad. Adolfo G. Posada e Ramón Ja‟es. Buenos Aires: Editorial Helista, s/d. 268 p. Apud CAVEDON, Fernanda de Sales. Função Social e Ambiental da Propriedade. São Paulo: Momento Atual, 2003. p. 48. A partir daí, transforma-se a concepção segundo o qual o proprietário deteria amplos poderes, limitados apenas externa e negativamente, na medida em que o legislador imponha confins para o exercício regular de direito. Diversamente, os poderes concedidos ao proprietário adquirem legitimidade na medida em que o exercício concreto da propriedade desempenhe função merecedora de tutela, tendo em conta os centros de interesse extraproprietários alcançados pelo exercício do domínio, a serem preservados e promovidos na relação jurídica da propriedade, como expressão de sua função social. 62 No entanto, o fundamento-matriz da função social da propriedade recaía no abuso de direito, encontrando forma de conter o poder ilimitado que o proprietário detinha sobre a propriedade liberal. A função social da propriedade, após quase um século desde a sua constitucionalização, carece de uma definição. Apontam-se os valores, os ideais, os atributos a serem observados; no entanto, seu conceito continua aberto e obscuro. É possível resumi-lo a um instrumento de relativização do direito subjetivo do direito público, atribuindo aos direitos de usar, gozar e dispor um dever de direcionar a propriedade também para a satisfação dos interesses coletivos, sendo que ele possui, ainda, a capacidade de legitimar a proteção constitucional conferida ao direito de propriedade. Entendemos a função social da propriedade como o plexo de limitações ou restrições legais que regulam o uso da propriedade visando coibir o seu mau uso e evitar o seu individualismo, sem no entanto alterar-lhe a substância, visando o bem-estar da coletividade, valorizando a essência do ser humano e possibilitando a sua sobrevivência com dignidade.63 Contudo, apesar de não encontrar uma definição exata sobre a função social da propriedade, a Constituição Federal buscou fornecer elementos para sua materialização, principalmente no que tange à propriedade rural, onde estabeleceu requisitos objetivos a serem observados, os quais serão analisados em tópico específico; no que concerne à propriedade urbana, determinou a autoridade municipal à criação de regras quanto ao 62 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 337. 63 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações urbanas ao direito de propriedade. São Paulo: Atlas, 2010. P. 61. ordenamento das cidades, a fim de se garantir o bem-estar das pessoas de acordo com as regras de competência estabelecidas nos Arts. 21 a 24 da Constituição Federal. 2.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA O Legislador constituinte estabeleceu tratamento diferenciado à função social da propriedade urbana em relação à propriedade rural. Para esta, apresentou quais os requisitos deverão ser observados e, para aquela, a Constituição Federal determinou que o poder público municipal executasse uma política de desenvolvimento urbano que teria como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, de modo a atender ao bem-estar de todos. Acrescenta-se que o Legislador constituinte foi taxativo ao determinar que a propriedade urbana atenderá a função social quando cumprir com as exigências de ordenação da cidade dispostas no Plano Diretor. Com o intuito de disciplinar os Arts. 182 e 183 da Constituição Federal, o legislador ordinário editou a Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada “Estatuto da Cidade”. O objetivo dessa lei é o de regular o uso da propriedade urbana em favorecimento do interesse coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, acrescentando ainda, a necessidade de a propriedade urbana estar também voltada à consecução de fins sociais, como à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, bem como do equilíbrio ambiental, conforme exposto no parágrafo único do Art. 1º da referida Lei, transcrito abaixo: Art. 1o Na execução da política urbana, de que tratam os Artigos 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.64 (grifo nosso) Extrapolando um pouco o foco deste trabalho, o referido parágrafo merece pequena análise, em face de disciplinar que a propriedade urbana possui, como uma de suas finalidades, o “bem-estar dos cidadãos”. Será tão-somente dos cidadãos? 64 BRASIL, Lei n.° 10.257, de 10 jul. 2001. Estabelece as diretrizes gerais da política urbana. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. Cabe aqui, inicialmente, ressaltar que o termo “cidadão” ou o exercício da cidadania possui muitas facetas, sendo-lhe atribuídos inúmeros predicados pelas diversas Ciências, como a Filosofia, a Sociologia e as Ciências Sociais; no entanto, para esse enfoque, importa apenas a sua roupagem jurídica. Assim, conforme parte da doutrina, cidadão é aquele atributo que está diretamente relacionado ao exercício de participação da pessoa no direcionamento político estatal, seja por via da escolha dos representantes políticos, ou como próprio representante, ou, ainda, por via da participação popular: plebiscitos, referendos e na defesa de ato administrativo lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico. José Afonso da Silvar resume que o cidadão “no direito brasileiro, é o indivíduo que seja titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas consequências”.65 A definição legal de cidadão ocorreu por via da Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965, conhecida como “Lei da Ação Popular”, que por via do § 3º do seu Art. 1º estabelece que a prova de cidadania ocorra por meio do título de eleitor. Nota-se que tal lei fora editada sob a vigência da Constituição Federal de 1946, e com certeza apresentou caracteres à cidadania bastante diferentes dos quais existem hoje, sob a égide da Constituição Federal de 1988. Desse modo, realizadas sintéticas considerações, pugna-se por duas afirmações excludentes: a) o “Estatuto da Cidade” emprestou ao § 3º do Art. 1º terminologia errônea, tendo em vista que é suficientemente transparente e que, ao se referir a “cidadão”, busca a lei atingir toda uma universalidade, não só àqueles detentores de direitos políticos, e sim, a toda pessoa humana, pois o bem-estar é para todos, interesse da coletividade; b) a definição de “cidadão”, realizada por via da “Lei de Ação Popular”, não se coaduna com os preceitos da Constituição vigente, pois não reflete a totalidade dos seus atributos e não se limita ao exercício dos direitos políticos, haja vista que a cidadania constitui fundamento da República Federativa do Brasil. Ela infere diretamente no exercício de todos os direitos individuais fundamentais, sendo prudente afirmar, assim, que tal definição não fora recepcionada pelo Texto vigente. A discussão é tamanha, merecendo um trabalho específico e especial, cujo foco ultrapassa os contornos deste estudo; no entanto, antes de retornar ao debate proposto, 65 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. Malheiros: São Paulo, 2005. p. 346. acrescenta-se que, com a adoção da primeira opção, a título exemplificativo, os absolutamente incapazes, os presos condenados com sentença transitada em julgado, bem como os estrangeiros, os menores de 16 (dezesseis anos), os maiores, mas com direitos políticos suspensos, não seriam considerados cidadãos, haja vista que o exercício de cidadania está limitado tão-somente àqueles aptos a exercerem os direitos políticos, sendo portanto, prudente afirmar que o § 3º da “Lei da Ação Popular” não foi recepcionada pelo Texto vigente. Retomando o tema proposto, destaca-se a inserção constitucional que atribuiu ao legislador municipal a competência para estabelecer as exigências para o cumprimento da função social da propriedade urbana, cujo conteúdo não se confunde com a competência concorrente disciplinada no Art. 24, I da Constituição Federal, mas por força do Art. 30, VIII, que se refere à competência do Município em “promover no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. Essa norma se justifica, provavelmente, em face de ser o Município o mais apto a identificar e resolver as peculiaridades locais, além da dificuldade de se estabelecer uma regra geral para os mais de cinco mil municípios brasileiros. Essa competência de legislar sobre os meios de se efetivar a função social da propriedade urbana trata-se de uma “atribuição” de poderes. Para a operacionalização dessa “atribuição” constitucional, o legislador infraconstitucional elegeu instrumentos para se chegar ao fim pretendido, adotando uma série de medidas, dentre elas, o Plano Diretor. O “Estatuto da Cidade” elenca as diretrizes gerais a serem seguidas pelo ente municipal na elaboração do Plano Diretor, e ainda traz outros instrumentos para o alcance do fim almejado pela norma: o bem-estar. Nota-se, de antemão, a importância conferida ao Plano Diretor como instrumento efetivador da função social da propriedade urbana, ressaltando que não é o único. O Plano Diretor consiste em um plano de direcionamento das atividades das cidades, o qual não se limita à ordenação da ocupação do uso do solo urbano, “configurando muito mais em um instrumento de diretrizes econômicas, sociais, físicas e ambientais, direcionadas ao saneamento básico, moradia, lazer, cultura, transporte, abastecimento de água, preservação ambiental.” 66 Diógenes Gasparini afirma: O plano diretor é, assim, o instrumento básico de política de desenvolvimento e expansão urbana e parte integrante do processo de planejamento, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e prioridades nele contidas, rezam o art. 40 e seu parágrafo 1º (da Lei 10.257/2001). Embora sua precípua razão seja determinar a função da propriedade urbana, deve o plano diretor englobar o território municipal por inteiro, abarcando tanto a zona urbana como rural, conforme esta determinado no parágrafo 2º do art. 40 do Estatuto da Cidade. 67 (grifo nosso) Nesse ponto, quanto ao trecho destacado, o conceito apresentado acima e a disciplina do § 2º do Art. 40 do “Estatuto da Cidade” merecem considerações quando atribuem, ao Plano Diretor, a função de ordenamento tanto da área urbana como da área rural do Município, pois contrariam o Texto Constitucional. Nota-se que a Constituição Federal, ao disciplinar a propriedade rural e a urbana, a fez de maneira isolada, atribuindo requisitos diversos e próprios para cada uma delas, sendo que, ao versar sobre a política urbana, estabeleceu o Plano Diretor como instrumento básico para a orientação do atendimento das funções sociais das cidades. Isso difere substância e materialmente de Município, sendo assim, imprescindível a diferenciação dos institutos da cidade e do município. No que tange às cidades, Ruy de Jesus Marçal Carneiro traz o ensinamento de Robert Ezra Park: [...] A cidade é algo mais do que um amontoado de homens individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde, telefones etc.; algo mais também do que mera constelação de instituições e dispositivos administrativos – tribunais, hospitais, escolas, polícia e funcionários civis de vários tipos. Antes, a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está 66 CARNEIRO, Ruy de Jesus Marçal. Organização da Cidade: Planejamento Municipal, Plano Diretor, Urbanificação. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 118-119. 67 GASPPARINI, Diógenes. O Estatuto da Cidade. São Paulo: NDJ, 2002. p. 195. envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana. 68 Nota-se que o Município, como um todo que é, não apresenta uma relação intensa de pessoas; refere-se diretamente a uma extensão territorial, urbana e rural, com autonomia e independência política, administrativa e financeira. Já consubstanciando a distinção exposta acima, é vedado ao Plano Diretor versar sobre o desenvolvimento do Município, extrapolando os limites da urbe, o que não implica em afirmar que não exista planejamento do Município como um todo, pois existe, sim, mas este não ocorrerá por via do Plano Diretor, e sim por via de um planejamento municipal. Visto, portanto, que a atuação do poder público municipal pauta-se na aplicação da função social da propriedade urbana, aos rigores das determinações contidas nos planos diretores das cidades, instrumento que confere, inclusive, alto poder de intervenção à propriedade privada, desde que elaborado com vista ao bem-estar social. A exigência de uma função social da propriedade urbana está alicerçada no direito social/comunitário, que em face de uma ampla interligação entre os sujeitos, do convívio em comunidade e do uso de ambientes comuns, geram uma maior possibilidade de conflito de interesses. Assim, o direito urbanístico deve atuar preventivamente, estabelecendo deveres sociais quanto à utilização da propriedade privada. Nesse mesmo sentido, o “Estatuto da Cidade” estabelece, em seu Art. 2º, I, o dever do Estado em garantir cidades sustentáveis aos indivíduos, ou seja: a cidade deve estar apta à realização de seus fins, como moradia, transporte, lazer, educação, para que esse fim possa ser atingido. A intervenção à propriedade é permitida, pois ela possui, em seu elemento interno, um dever social; há a prevalência do interesse coletivo sobre o individual. Para Spantigatti em análise ao art. 3º da Constituição italiana, a função social da propriedade „constitui um equilíbrio entre o interesse privado e o interesse público que orienta a utilização do bem e predetermina 68 PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para investigação do comportamento humano no meio urbano. In: O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. p. 26. Apud CARNEIRO, Ruy de Jesus Marçal. Organização da Cidade: Planejamento Municipal, Plano Diretor, Urbanificação. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 114-115. seu uso, de sorte que se pode obter, nos modo de vida e nas condições de moradia dos indivíduos, um desenvolvimento pleno da personalidade. Nesta construção está claro que o interesse do indivíduo fica subordinado ao interesse coletivo por uma boa urbanização, e que a estrutura interna do direito de propriedade é um aspecto instrumental no respeitante ao complexo sistema da disciplina urbanística‟. 69 Relevante apontar que no âmbito urbano, a função social se apresenta com elevado grau de efetividade e de interferência ao direito subjetivo da propriedade. Este permanecerá protegido, não podendo ser suprimido tão-somente se a função social da propriedade urbana for cumprida, sendo que esta ocorrerá se o proprietário atender as disposições impostas pelo Plano Diretor. Nesse sentido, Nelson Saule Júnior contribui: [...] a propriedade urbana cumpre com sua função social quando: 1. observa a democratização do uso, ocupação e a posse do solo urbano, para conferir oportunidade de acesso ao solo urbano e à moradia; 2. promove a justa distribuição dos ônus e dos encargos decorrentes das obras e serviços de infraestrutura urbana; recupera, para a coletividade, a valorização imobiliária decorrente da ação do Poder Público; 3. gera recursos para o atendimento da demanda de infraestrutura e de serviços, provocada pelo adensamento proveniente das edificações e das áreas não servidas; 4. promove, o adequado aproveitamento dos vazios urbanos ou dos terrenos subutilizados ou ociosos. 70 De acordo com o autor, o cumprimento da função social da propriedade urbana não se esvazia nas hipóteses citadas, pois tal princípio possui alta carga valorativa, podendo absorver novos conteúdos conforme casos concretos. Entretanto, a adoção pelo legislador ordinário desse princípio contribui para sua interpretação, principalmente diante da estipulação das diretrizes gerais do Art. 2º do “Estatuto da Cidade”, as quais deverão ser observadas pelo legislador municipal e pelo intérprete da norma em comento. Outro avanço constitucional referente à função social da propriedade urbana diz respeito à estipulação de sanções às quais estará sujeito o proprietário que não cumprir com as exigências estipuladas no Plano Diretor. O Art. 182, § 4º da Constituição 69 SPANTIGATTI, Federico. Manuale di Diritto Urbanístico. p. 261. Apud SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2005. p. 74. 70 SAULE JR., Nelson. O tratamento constitucional do plano diretor como instrumento de política urbana. Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 54 Federal confere ao Poder Público Municipal a faculdade de exigir o adequado aproveitamento do solo mediante a imposição de penas, que poderão ser adotadas sucessivamente no caso de haver a continuidade do desrespeito à função social. A primeira sanção a ser imposta ao proprietário que não cumprir com sua função social diz respeito à possibilidade de o poder público ordenar o parcelamento ou a edificação do imóvel não utilizado, subutilizado ou não edificado, inclusive com a previsão de prazo certo, o qual não poderá ser inferior a um ano para ocorrer o protocolo do projeto, a contar da notificação e não menor que dois anos para iniciar a obra, contados a partir da aprovação do projeto. Por seguinte, após a observação de que não foram realizados a edificação ou o parcelamento, compete ao poder público municipal instituir a tributação progressiva do Imposto Predial Territorial e Urbano (IPTU). O “Estatuto da Cidade”, em seu Art. 7º, estipula que a majoração progressiva ocorrerá durante cinco anos, sendo que o § 1º estipula que a alíquota não poderá ultrapassar 15% (quinze por cento). Por fim, mantendo-se o desrespeito às normas de ordenação da cidade após o prazo de cinco anos, a propriedade poderá ser desapropriada mediante o pagamento em títulos da dívida pública, os quais deverão ser aprovados previamente pelo Senado Federal, com prazo de resgate em até 10 anos, mediante prestações anuais, iguais e sucessivas, conforme estipula o Art. 8º, § 1º do “Estatuto da Cidade”. Acrescenta-se que essa ordem de sanções deve ser respeitada obrigatoriamente, tendo em vista ser uma determinação constitucional. A estipulação de sanção pelo Texto Constitucional reforça ainda mais o caráter social a ser emprestado à propriedade urbana, desfazendo aquela ideia que tão-somente a propriedade rural estaria sujeita a uma aplicação social. Ruy de Jesus Marçal Carneiro estabelece que as disposições constitucionais consubstanciam um único objetivo: [...] obrigar o proprietário de imóvel urbano a que sua propriedade cumpra uma „função social‟, pois o enunciado do §4º do Art. 182, incisivamente impele a que o mesmo dê uma destinação em benefício da sociedade ao seu terreno vazio, ocioso ou descuidado, ou seja, „não edificado, subutilizado ou não utilizado‟ (destacou-se), visando à consecução adequada da política urbana do Município e evitando-se, desta maneira, a especulação imobiliária, cancro antissocial que viceja nas cidades. 71 No entanto, para a efetivação das disposições constitucionais é necessário que as autoridades municipais assumam o poder conferido a elas pela Constituição Federal e disciplinem o uso do solo urbano, a fim de que satisfaçam o bem-estar, mediante a edição do Plano Diretor da cidade. Conclui-se que o Plano Diretor é o instrumento básico a ser instituído a fim de garantir o bem-estar dos habitantes da cidade, sendo obrigatório, conforme a Constituição Federal, para os Municípios com mais de 20 (vinte) mil habitantes. Todavia, a falta de obrigatoriedade para os demais não exime a responsabilidade de garantir aos seus habitantes o bem-estar, pois a Política Urbana é obrigatória para todos os Municípios. Os agentes públicos devem adotar outros instrumentos, conforme previstos no Art. 4º do “Estatuto da Cidade”, a fim de garantir a segurança, o bem-estar e o equilíbrio ambiental das cidades. 2.2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL Nota-se que a função social da propriedade apenas apareceu explicitamente no Texto Constitucional de 1946, ao determinar que a propriedade estaria condicionada ao bem-estar social, impondo uma ação positiva do proprietário. Entretanto, a respeito da função social da propriedade rural, alguns autores registram que o citado instituto já existia no Brasil colonial, na época das Sesmarias. Nesse sentido, Fernando Pereira Sodero acrescenta: [...] de fato, na concessão de Sesmarias, fora determinado que se concedessem glebas em quantidade que um homem de cabedais pudesse explorar [...] E que se ele não a explorasse dentro de um determinado lapso de tempo, que era prefixado, esta terra reverteria ao patrimônio da Ordem de Cristo, que era administrada por Portugal. 72 De fato, é possível perceber a existência de uma obrigatoriedade, um ônus de explorar a terra sob a pena de ser ela revertida à Coroa Portuguesa. Mas admitir a 71 72 CARNEIRO, Ruy de Jesus Marçal. Organização da Cidade. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 105. PEREIRA SODERO, Fernando. Institutos básicos de direito agrário. São Paulo, 1987. p. 57. existência de uma função social da propriedade é bastante questionável, tendo em vista que não havia nenhuma preocupação social por parte portuguesa, e sim uma preocupação de povoar, arrecadar tributos e marcar território. É certo que a origem da função social da propriedade está diretamente relacionada aos fins rurais, vista a finalidade em produzir alimentos. No Brasil, essa ordem não ocorreu de forma diferente: a expressão “função social da propriedade rural” foi primeiramente disciplinada no “Estatuto da Terra” de 1964, provavelmente, servindo como elemento orientador à Constituição Federal no que tange à função social da propriedade rural. Nota-se a redação legal: “Art. 2º - É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei”. 73 A respeito da função social da propriedade rural, o constituinte de 1988 abordou o tema de forma a oferecer uma maior objetividade, sendo possível admitir, inclusive, que houve uma constitucionalização das regras adotadas pelo “Estatuto da Terra”. Esse estatuto foi acrescentado de pequenas modificações e, como em vez de adotar níveis adequados de produtividade, estabeleceu a obrigatoriedade do uso adequado e racional da propriedade. O constituinte discorreu sobre o tema no capítulo referente à “Ordem Econômica e Financeira”, demonstrando sua preocupação em vincular o instituto rural a uma finalidade econômica, tendo em vista a propriedade rural relacionar-se diretamente à produção de alimentos, à proteção ambiental e à imensa quantidade de terras ociosas no Brasil. Além disso, a realidade agrária apresenta graves distorções sociais que afrontam a justiça social e o princípio da ordem econômica, fato que também justifica sua inserção neste Capítulo. Nessa acepção, José Afonso da Silva 74 afirma que a natureza da propriedade rural é a de produção, pois está diretamente ligada à sobrevivência humana, sendo, assim, o motivo para proteção constitucional do instituto. Existe uma importância ainda maior quanto à instituição da função social da propriedade rural em face da política agrária e da reforma agrária, instrumentos do 73 BRASIL, Lei n.° 4.504, de 30 nov. 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4504.htm>. Acesso em: 20 set. 2009. 74 SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 819. direito agrário essenciais à diminuição das desigualdades sociais no campo. Assim, aquela propriedade que não cumpre com sua função possui destinação certa [a reforma agrária], sempre observando os procedimentos legais. Fernando Pereira Sodero esclarece sobre o regime jurídico da terra: “fundamenta-se na doutrina da função social da propriedade, pela qual toda riqueza produtiva tem uma finalidade social e econômica, e quem a detém deve fazê-la frutificar, em benefício próprio e da comunidade que vive”. 75 O entendimento quanto à finalidade social a ser emprestada à propriedade já existia; ocorre que há uma identificação maior pelo constituinte de como ela seria realizada, sendo que a própria Constituição Federal determina sanção no caso de descumprimento da chamada função social da propriedade rural. Assim sendo, o interesse social que prevalece sobre o individual é a utilização da propriedade conforme os ditames constitucionais do Art. 186 da Constituição Federal, atendendo simultaneamente os seguintes requisitos: a) a utilização racional e adequada da propriedade; b) a utilização adequada dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente; c) a obediência às disposições que regulam as relações de trabalho; e d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. Assim sendo, ausente um dos requisitos não é possível considerar a propriedade como cumpridora de seu papel social. A Lei n.º 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, chamada de “Lei da Reforma Agrária”, efetivou ainda mais as exigências quanto à função social, estabelecendo regras efetivas ao cumprimento das normas constitucionais. Referente à utilização adequada e racional da terra, a lei estabelece como adequada aquela propriedade que cumprir com graus de utilização e eficiência da terra, além de se respeitar a vocação natural da terra. O ser racional equivale a ser obediente e cumprir, no trabalho da terra as práticas usuais e proveitosas, os avanços técnicos conhecidos e possíveis, a tecnologia, enfim. Há formas diferenciadas de utilização da terra. Entre elas, existe a mais proveitosa, porque de acordo com a técnica mais moderna e já aprovada pela experiência. A racionalidade do tratamento deve buscar este proveito e esta melhor utilidade. Em outras palavras, o racional equivale à obediência do meio tratativo da terra considerado cientificamente mais correto. Olhando sob o aspecto da destinação econômica da terra, a racionalidade visa harmonizar, finalisticamente, o que a experiência e a ciência oferecem e o objetivo 75 PEREIRA SODERO, Fernando. Curso de Direito Agrário: o estatuto da terra. Brasília: Fundação Petrônio Portella/MJ, 1982. p. 25. final do tratamento. O ser adequado leva em consideração, buscandose harmonizar, a aptidão especifica de agrariedade da terra. Umas servem para plantio de arroz, outras para plantio de milho, outras para pecuária, etc. O tratamento adequado deve levar em consideração esta capacidade potencial que a terra oferece. O objetivo não é a monocultura, mesmo porque a prática da rotatividade e da policultura é saudável. O que se pretende é evitar uma utilização em desacordo com a aptidão da terra, para que não se chegue, a final, com um aproveitamento insatisfatório. Na busca do melhor resultado no utilizar a terra a adequação tem sido relevante. 76 A citada Lei 8.629, em seu Art. 6º, § 1º, define que a propriedade será produtiva quando atingir grau de utilização da terra igual ou superior a 80% (oitenta por cento). Esse valor será calculado por meio da relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área total aproveitável do imóvel. Assim, é produtiva a propriedade que atingir esses limites e, por consequência, recebe proteção constitucional contra a desapropriação por interesse social. Já o § 2º do Art. 6º determina que o grau de eficiência deverá ser igual a 100% (cem por cento) quando se tratar da utilização da terra para cultivo de vegetais. Para tal cálculo, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária [INCRA]. No caso de exploração da pecuária, divide-se o número total de animais pelo índice de lotação estabelecido pelo INCRA. O resultado obtido em cada caso deve ser dividido pela área efetivamente utilizada e posteriormente multiplicada por 100 (cem). Nota-se que os critérios estabelecidos pela legislação possuem natureza técnica e caráter concreto. Assim, aquela propriedade que não atingir esses índices não poderá ser considerada como produtiva, e logo estará sujeita à desapropriação mediante o pagamento por títulos da dívida agrária que serão resgatados em até 20 (vinte) anos. Ressalta-se que não cabe a este estudo estabelecer juízo de valor quanto aos índices estabelecidos pelo órgão competente. A abordagem restringe-se apenas aos aspectos jurídicos relevantes ao cumprimento da função social da propriedade rural. O segundo requisito previsto pela Constituição Federal diz respeito à utilização adequada dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente. Esse dispositivo consiste de grande valia e importância na sociedade atual e nos sistemas jurídicos, a 76 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: v. 2. São Paulo: Saraiva, 1989. ponto de falar-se em uma função social ambiental, ao qual serão feitos comentários abaixo; mas acrescenta-se que, diferentemente do estabelecido na regra anterior, a lei infraconstitucional careceu de concretude nesse ponto, pois estabeleceu como propriedade adequada à função social aquela que mantém as características próprias do meio natural e a qualidade dos recursos ambientais, notando-se, pois, a alta carga subjetiva apresentada. Assim, apesar da existência de vasta legislação ambiental, a efetivação de desapropriações por descumprimento a esse requisito encontra vastas dificuldades, principalmente em face de as normas ambientais preverem, como pena, a reparação e a multa, deixando de lado a desapropriação. Entretanto, isso não significa a sua impossibilidade de aplicação, tendo em vista a permissividade constitucional referente ao tema e a Lei n.º 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que dispõe sobre a reforma agrária e estabelece que a desapropriação por interesse social deve ser aplicada ao imóvel rural que não atenda a sua função social. Mas infelizmente, na prática, essa norma ainda carece de utilização, seja por falta de vontade política do administrador público, seja por inaplicação da regra constitucional pelos julgadores que pouco corroboram a construção do direito. Estes se limitam a repetir o direito material previsto na norma infraconstitucional, pois a propriedade desprovida de área de “reserva legal” é propriedade nociva ao meio ambiente e não cumpre com sua função social; logo, é desamparada dos direitos inerentes à propriedade, e consequentemente sujeita à desapropriação. A terceira exigência constitucional aplicada às propriedades rurais refere-se à obrigatoriedade de observar as disposições que regulam as relações de trabalho. Essa regra impõe aos proprietários rurais o dever de cumprirem as normas relativas ao direito do trabalho, sejam os contratos individuais ou coletivos de trabalho, sejam os contratos agrários de arrendamento e parceria. Do mesmo modo que a exigência anterior, essa regra carece de aplicação prática. Alguns doutrinadores alegam que o instituto carece de uma legislação específica para o tema, disciplinando a desapropriação frente ao desrespeito das normas trabalhistas. Por outro lado, vislumbra-se a existência de fundamento legal suficiente para sua aplicação além da regra constitucional; o “Estatuto da Terra” dá suporte às desapropriações, pois determina que aquela propriedade que não cumpre com sua função social poderá ser objeto de desapropriação. Assim, por exemplo, constando a existência de trabalho escravo em uma propriedade, o aplicador do direito responsável teria o dever de desapropriar aquela unidade. Por último, e não menos importante, a Constituição Federal exige que, no exercício das atividades inerentes à propriedade, a busca pelo bem-estar seja sempre necessária, assim entendida como aquela que objetiva o atendimento das necessidades vitais básicas dos que trabalham a terra, cumprem as normas de segurança do trabalho e não provocam conflitos e tensões sociais no imóvel. Conforme Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira77, os requisitos constitucionais para o cumprimento da função social da propriedade estão relacionados a três aspectos: econômico, social e ecológico. O aspecto econômico refere-se à exigência de produção; o social condiz com a observância das normas trabalhistas e ao bem-estar daqueles envolvidos na terra; e o ecológico, à necessidade de proteção e conservação dos recursos naturais. Assim, a violação de qualquer das exigências constitucionais enseja na perda da proteção constitucional da propriedade e, consequentemente, surge a possibilidade de desapropriação. O “Código Civil” de 2002 adota posicionamento nesse sentido: O CC de 2002, nos §§ 4º e 5º do art. 1228, prevê a possibilidade de privação do direito de propriedade no caso de „extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico‟. Neste caso, na ação reivindicatória proposta pelo proprietário, o juiz pode negar a reivindicação e fixar „justa indenização‟, valendo a sentença, após o pagamento, como „título para o registro do imóvel em nome dos possuidores‟. Não se trata de indenização prévia, porque os possuidores já se encontram no imóvel reivindicado pelo proprietário, e o pagamento da indenização por parte dos possuidores é requisito apenas para que seja concedido título para que estes possam realizar o registro como novos proprietários; ou seja, no exercício da função social, perde o proprietário, neste caso, seu direito de proteção da posse e da propriedade: [...]78 Isso acontece diferentemente das sanções previstas para as propriedades urbanas violadoras da função social, em que a gravidade da sanção irá sendo gradativamente aumentada e a desapropriação somente é possível depois de adotadas outras medidas. 77 PEREIRA, R. P. da C. R. Reforma Agrária: um estudo jurídico. Belém: CEJUP, 1993. p. 63. BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. 78 No que tange à propriedade rural, a Constituição Federal restringe o tipo punitivo à desapropriação por interesse social. Assim, infringido qualquer um dos incisos do Art. 186 do Texto Maior, compete à autoridade promover a desapropriação do imóvel. Para Fábio Konder Comparato: Instrumento clássico para realização da política de redistribuição de propriedades é a desapropriação por interesse social. Ora, essa espécie de expropriação não representa sacrifício de um direito individual às exigências de necessidade ou utilidade público-patrimonial. Ela constitui, na verdade, a imposição administrativa de uma sanção, pelo descumprimento do dever, que incumbe a todo proprietário, de dar a certos e determinados bens uma destinação social. Por isso mesmo, é antijurídico atribuir ao expropriado, em tal caso, uma indenização completa, correspondente ao valor venal do bem mais juros compensatórios, como se não tivesse havido abuso do direito de propriedade. A Constituição (...) não fala em indenização pelo valor de mercado, mas sim em justa indenização, o que é bem diferente. A justiça indenizatória, no caso, é obviamente uma regra de 79 proporcionalidade. A desapropriação é uma sanção constitucional imposta àquela propriedade em deficit com seu caráter social. A indenização justa não deve ser confundida com o valor venal do imóvel, tendo em vista tratar-se de uma punição, com fundamento na justiça social. No entanto, há posição no sentido de que a desapropriação por descumprimento à função social não estaria sujeita à indenização. Diferentemente, não cabe indenização, tourt court, quando o Poder Público, procedendo em conformidade com o suporte constitucional da função socioambiental, regrar a forma de uso, privilegiar – ou mesmo interditar – usança em detrimento de outras. A Constituição não confere a ninguém o direito de beneficiar-se de todos os usos possíveis e imagináveis de sua propriedade.80 Portanto, nota-se que a função social da propriedade rural enseja grave consequência ao proprietário que desrespeitá-la, seja no aspecto econômico, social ou ecológico, pelo menos no campo teórico, visto que na prática visualiza-se pouca concretização, em especial quando a sua falta decorrer de respeito às normas 79 COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In: STROZAKE, Juvelino José (org.). A questão agrária e a justiça. São Paulo: RT, 2000, p. 144-145. Apud. TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2 ed. São Paulo: Método, 2003, p. 161. 80 BENJAMIN, Antônio Herman V. Desapropriação reserve florestal legal e áreas de preservação permanente. In: Temas de direito ambiental e urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 73. trabalhistas e ambientais, cuja responsabilidade recai a toda sociedade, principalmente ao Estado. Não averbar, não recuperar, não preservar a vegetação nativa da reserva legal é contrariar normas de proteção ambiental, pois os dispositivos relativos à reserva legal, já citados neste trabalho, têm natureza de norma de proteção ambiental, Logo, o desrespeito a estas normas relativas à reserva legal deveria sujeitar, em nossa opinião, a propriedade rural, onde estas infrações tivessem ocorrido, à desapropriação para fins de Reforma Agrária.81 (grifo nosso) 2.3. FUNÇÃO SOCIAL AMBIENTAL Inicialmente, cumpre ressaltar que não pairam dúvidas sobre a existência de uma obrigação ambiental a ser observada pelas propriedades, sejam elas urbanas ou rurais, sejam com fim residencial ou econômico, mesmo sem haver uma previsão legal expressa da função social ambiental; e muito menos uma construção doutrinária sólida referente ao tema, tendo em vista que à Constituição Federal e às leis infraconstitucionais somente referem-se especificamente a função social típica do Art. 170, III, assim como a maioria da doutrina. Porém, sob a análise da roupagem constitucional que foi dada ao meio ambiente pelo Texto de 1988, é possível, sim, fazer alusão a uma função ambiental, em face de a Constituição Federal consistir em um complexo e harmônico sistema, capaz de integrar e compatibilizar as normas; e ainda pelo fato de ter atribuído à propriedade privada e ao meio ambiente importante contornos jurídicos, os quais se entrelaçarão obrigatoriamente em função dos fundamentos e objetivos estabelecidos pelo constituinte. No entanto, sob uma leitura literal e restritiva da Constituição Federal, a função social ambiental ou socioambiental da propriedade pode demonstrar carecer de uma estrutura própria, sendo considerada uma ramificação da função social prevista no Art. 170, III do Texto, visualizada como um “braço” desta, possuindo atribuição específica de sujeitar às propriedades aos fins ambientais pretendidos. Sob esse enfoque, fundamenta-se tal posição, primeiramente em face de a função social possuir, como sua principal atribuição, a vinculação geral da propriedade privada 81 MAGALHÃES, Vladimir Garcia. “reserva legal”. Revista de Direitos Difusos, v. 6, n. 32. p. 117-156, jul./ago. 2005. São Paulo: Aprodab. p. 138. a uma destinação social. A função social é um complexo de determinações que visam à compatibilidade da propriedade com os interesses sociais, entres os quais não pairam dúvidas que o meio ambiente é elemento integrante. Dessa forma, não há como admitir uma propriedade que desrespeita o meio ambiente como adequada à função social. Assim, a proteção do meio ambiente é um dos requisitos a serem cumpridos para que seja alcançada a função social. Ao se tentar demonstrar o conteúdo da função ambiental da propriedade, esta é considerada como um elemento da função social da propriedade, que é um conceito anterior e de alcance mais amplo que a função atribuída àquele instituto advindo da necessidade de manutenção de meio ambiente equilibrado. Embora estas duas categorias não sejam antagônicas – ao contrário, são complementares – tem-se a função social ambiental da propriedade como uma característica marcante da Constituição de 1988, que considera a problemática ambiental parte da social e vice-versa. 82 Outro ponto que contribui ao entendimento de que a função social ambiental integra a função social esculpida no Art. 170, III da Constituição Federal refere-se ao tratamento dado pelo próprio Texto ao cumprimento da função social da propriedade rural. Tem-se em vista que um dos elementos exigidos para sua adequação diz respeito à utilização adequada dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente, retratando que a proteção ambiental constitui apenas uma das faces da função social propriamente dita. Enquanto isso, a construção doutrinária da função social ambiental como um elemento independente passa, com certeza, pela inserção da proteção ao meio ambiente como princípio da “Ordem Econômica e Financeira”. Este está ao lado dos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade e da identificação do meio ambiente como “bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida”, bem como ao tratamento especial que lhe foi conferido pelo constituinte. É sob o prisma de sistema constitucional que devem ser observados os princípios da “Ordem Econômica e Financeira”, compatibilizando-os entre si a fim de que se alcancem os objetivos fundamentais traçados na Constituição Federal. Nesse sentido, a soberania nacional, a propriedade privada, a função social, a livre concorrência, a proteção do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e 82 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade. Ciência Jurídica. Belo Horizonte: Jurisbras, 1998. p. 315. sociais e a busca do pleno emprego, bem como o tratamento favorecido às pequenas empresas, são elementos indissociáveis; todos responsáveis por direcionar as atividades econômicas ao encontro da justiça social. Não há, assim, qualquer obstáculo para a compatibilização desses princípios, o que certamente permite afirmar que: “la combinación dogmática de la „utilización racional de los recursos naturales‟com la „función social de la propriedad‟ puede conducir a la categoria de „función ecológica de la propriedad‟” 83 A análise da função ambiental frente à “Ordem Econômica e Financeira” ocorre em face de ser sob a tutela de que a propriedade privada se materializa, seja como instrumento de produção de riquezas, seja como bem suscetível de valor econômico. Esses fatores são decorrentes do modelo capitalista estabelecido, o que importa em afirmar que a propriedade é um dos pilares de sustentação de um dos fundamentos da “Ordem Econômica e Financeira”: a livre iniciativa. A propriedade implica, para todo detentor de uma riqueza, a obrigação de empregá-la em acrescer a riqueza social, e, mercê dela, a interdependência social. Só ele pode cumprir certo dever social. Só ele pode aumentar a riqueza geral, fazendo valer a que ele detém. Se faz, pois, socialmente obrigado a cumprir aquele dever, a realizar a tarefa que a ele incumbe em relação aos bens que detenha, e não pode ser socialmente protegido se não a cumpre, e só na medida em que a cumpre. 84 Doutro norte, a propriedade privada, como já vista anteriormente, não pode ser utilizada de forma absoluta e ilimitada sob o fundamento da livre iniciativa, haja vista a existência de limites internos e externos, dentre eles a função social da propriedade, prevista inclusive na parte que trata dos “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”; e a proteção do meio ambiente, consagrado como direito fundamental da pessoa humana. Essas restrições à propriedade privada, as quais não se confundem com aquelas do direito administrativo, como já dito, decorrem do fato de a ordem econômica ter como objetivo garantir a existência digna de todos, se apresentando como um instrumento à justiça social, a uma “Ordem Social”, em que o meio ambiente 83 SERRANO MORENO, José Luis. Ecología y Derecho: Principios de Derecho Ambiental y Ecología Jurídica. Granada: Comares, 1992. p. 308. Apud CAVEDON, Fernanda de Salles. Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003. p. 122. 84 DUGUIT, Léon. Manual de derecho constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 276. Apud TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Método, 2003. p. 152. ecologicamente equilibrado é parte integrante; assim, pode-se afirmar que o meio ambiente é meio e fim da “Ordem Social”. Dessa forma, entende-se que a proteção ao meio ambiente também é um dos elementos internos do direito de propriedade, capaz de vincular positivamente o exercício dos direitos de proprietário, assim como a funcionalização social emprestada à propriedade. Não suficiente a isso, a percepção do meio ambiente como bem difuso, pertencente a todos e essencial à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações, corrobora também na consolidação de uma função ambiental a ser emprestada às propriedades. O Código Civil brasileiro, atendendo os ditames expostos na Constituição Federal, elevou a importância da proteção ambiental a um patamar superior, rompendo com qualquer barreira ainda sobrevivente da propriedade como direito absoluto. Visualiza-se que o Art. 1.228, em seu § 1º, vincula a propriedade ao atendimento dos ditames das ordens econômica, social e ambiental. Art. 1228. [...] § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.85 Assim, tendo em vista o enfoque constitucional atribuído ao meio ambiente, tanto como princípio da “Ordem Econômica e Financeira” e como elemento essencial à “Ordem Social”, reconhecendo-o como direito fundamental atrelado à vida humana, “essencial à sadia qualidade de vida” das presentes e futuras gerações, é prudente a identificação de uma função socioambiental, apresentando-se um dos elementos internos da propriedade. 85 BRASIL, Lei n.° 10. 406, de 10 jan. 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/2002/L10406.htm . Acesso 05. jan. 2011. 3. DIREITO AO MEIO AMBIENTE A nova ordem constitucional, instaurada em 1988, deixa transparente a sua preocupação ambiental. Tanto que atribuiu um capítulo específico para o tema, como um elemento da “Ordem Social”, elevando-o inclusive como direito fundamental da pessoa humana, quando dispõe no Art. 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado [...]”. A proteção ambiental, abrangendo a preservação da Natureza em todos os seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio ecológico, visa tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade da vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana. (grifo do autor) 86 86 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 58. A percepção pelo constituinte da necessidade de um ambiente sadio como direito fundamental é correlato lógico do fundamento constitucional que assegura a todos uma vida digna, o qual só é possível alcançar por via da garantia do bem-estar, que compreende indubitavelmente a relação harmoniosa entre homem e ambiente. No entanto, para o ordenamento jurídico assumir essa proteção fundamental, fora necessário primeiro desvincular a ideia de que a preocupação ambiental tão-somente se atrelava aos campos da Moral e da Economia. Nesse norte, Vicente Ráo ressalta o papel social nessa transformação: [...] em sua origem, essa regra não possuía um conteúdo próprio, confundindo-se, como se confundia, com as regras morais e econômicas; mas, quando da consciência social do grupo a reputou necessária e passou a reclamar sua aplicação por meios coercitivos, então e daí por diante transformou-se em regre de direito. 87 Importante destacar que a alteração da consciência social ambiental não constituiu uma ação imediata e muito menos se encontra findada; pelo contrário: é lenta e gradual, tendo muito ainda por percorrer, mas há de se destacar o grande avanço já realizado, em especial a percepção de que o Universo não é submetido apenas à realização das necessidades do homem, bem como que a degradação ambiental poderá representar a extinção da espécie humana. Para essa alteração cultural e educacional foram relevantes várias reuniões, convenções e manifestações ocorridas no cenário internacional. Entre elas a “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano”, realizada na cidade de Estocolmo [Suécia] em 1972, sendo que para o presente tema, ressalta-se o princípio 1 da “Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano”, cujo texto já defendia a existência de um direito fundamental ao ambiente de qualidade. Princípio 1 – O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene da obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. 88 87 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. v. 2, 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 577. 88 Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.scribd.com/full/6305358?access_key=key-mp8k7oq8evcz1gpag57>. Acesso em: 2 abr. 2011. Nesse contexto, ainda em 1972, foi realizada em Paris a XVII Sessão da “Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura” que resultou na “Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”, cujo texto integrou o ordenamento brasileiro por via do Decreto n.º 80.978 de 12 de dezembro de 1977. Esse texto é considerado por Fábio Konder Comparato89 como a primeira norma a admitir a existência de um direito da humanidade. Após a “Conferência de Estocolmo”, inúmeros acordos, reuniões e convenções foram realizados com o intuito de proteger o meio ambiente. Destaque para a ˝Conferência da Organização das Nações Unidas˝ [ONU] realizada no Rio de Janeiro em 1992, onde o direito fundamental ao ambiente de qualidade fora reafirmado pela “Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”.90 O direito fundamental ao “meio ambiente equilibrado”, utilizando expressão adotada pelo constituinte brasileiro, configura direito supraindividual, que transcende a individualidade da pessoa e é diretamente relacionada aos direitos de fraternidade e solidariedade, denominados “direitos de terceira dimensão”. Sobre esses direitos, é importante mencionar o comentário de Paulo Bonavides: A consciência de um mundo partido em nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que se assenta sobre a fraternidade, conforme assinala Karel Vasak, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção 91 específica de direitos individuais ou coletivos. Hamilton Alonso Junior 92 estabelece válida a relação entre a necessidade de preservação ambiental e a sua percepção humanística, esta decorrente da deflagração de solidariedade que se expandiu pelo Planeta, em especial pelos movimentos e convenções internacionalmente realizadas, bem como a percepção de que tal direito é 89 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, 381. 90 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 818. 91 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 522. 92 ALONSO Jr., Hamilton. Direito fundamental ao meio ambiente e ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 39-40. inerente à natureza humana; no entanto, ambos não são suficientes para sua inserção como direito fundamental. Por conseguinte, assegura o autor que a identificação do ambiente sadio como direito fundamental possui amparo material e formal, não necessitando, inclusive, que para tal adjetivação necessite estar previsto como tal, seja na Constituição Federal ou em outro texto legal. Para sustentação de sua posição, aborda o ensinamento de José Joaquim Gomes Canotilho para a identificação, como fundamental, é necessário que “[...] a ideia de fundamentalidade material insinua que o conteúdo dos direitos fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade”. 93 De acordo com a posição sobredita, para a identificação do ambiente sadio como direito materialmente fundamental, não é necessário que ele se apresente como tal, sendo suficiente para sua identificação a sua consonância com os fundamentos e princípios do Estado. Por conseguinte, não há como negar a fundamentalidade do ambiente sadio, tendo em vista que ele coaduna-se perfeitamente com os fundamentos propostos pela Constituição Federal, em especial o fato de ser elemento indissociável à dignidade da pessoa humana e à cidadania, pois sem um ambiente saudável não é possível o desfrute desses direitos. No aspecto formal, também não assiste dúvidas quanto à identificação do ambiente sadio como fundamental, haja vista que a Constituição Federal em seu Art. 5º, § 2º estabelece que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, inclusive com aplicação imediata, conforme o § 1º do mesmo Art. 5º. 94 Assim, não suficiente o fato da existência de um ambiente sadio enquadrar aos princípios previstos no Texto, o Brasil também aderiu, em 24 de janeiro de 1992, ao “Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”. Esse acordo passou a vigorar no País a partir de 24 de abril de 1992, em face de edição do Decreto n.º 591, de 6 de julho de 1992, o qual assegura às pessoas o mais elevado nível de saúde 93 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 355. 94 ALONSO Jr., Hamilton. Direito fundamental ao meio ambiente e ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 41-43. física e mental, devendo para isso, entre outras medidas, o Estado melhorar as condições ambientais.95 Realizadas essas considerações, não há como negar a existência de um direito fundamental a um ambiente sadio, ou, conforme a expressão adotada pela Constituição Federal [Art. 225], a um “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Identificada a fundamentalidade do ambiente sadio, resta verificar o tratamento constitucional conferido a esse direito fundamental. Em seu Art. 225, caput, a Constituição Federal, inicialmente, cuidou de versar sobre o bem a ser tutelado: “o meio ambiente ecologicamente equilibrado” que é aquele ambiente desprovido de poluição, não lesivo à vida, cuja titularidade pertence a todas as pessoas humanas. Ele apresentase como um contraponto, tendo em vista que ao mesmo tempo em que todos têm direito a um ambiente sadio, todos possuem também o dever de protegê-lo, pois o bem tutelado é de “uso comum do povo”, de natureza difusa e representa um direito intergeracional, devendo ser preservado para as gerações futuras, em face do princípio da solidariedade entre as gerações; a norma ainda impõe especialmente ao Estado, um dever de proteção, atribuindo-o inclusive responsabilidade objetiva no caso da ocorrência de dano ambiental. Nesse diapasão, salienta-se acrescentar o conceito de ambiente formulado pelo Ministro Celso de Mello quando do julgamento do Mandado de Segurança n.º 22.164-0SP: [...] como um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações. 96 A proteção ambiental nessa nova Ordem é de imensa magnitude; não se limita a ações isoladas, e seus diversos mecanismos e ações estão direcionados ao alcance do bem-estar, possuindo, inclusive, o condão de interferir diretamente nas atividades econômicas, bem como na propriedade privada. Isso se deve ao fato de a “Ordem Econômica e Financeira”, além de ter como um de seus fins a justiça social, possui 95 Idem, ibidem. BRASIL, Supremo Tribunal Federal: Tribunal Pleno. Mandado de Segurança n.° 22.164-0/SP. Impetrante: Antônio de Andrade Ribeiro Junqueira. Impetrado: Presidente da República. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento em: 30 out. 1995. Publicado em: 17 nov. 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=85691>. Acesso em: 5 abr. 2011. 96 como um dos limites restritivos à livre iniciativa a preservação ambiental, regra esta que impede que qualquer fim econômico seja alcançado sob o amparo da degradação ambiental. Retornando à análise do Art. 225, assumindo o ambiente sadio com direito fundamental, deste modo, indisponível, pois também está direcionado ao atendimento das gerações futuras, observa-se que o Legislador constituinte, ao versar sobre a proteção ambiental, estabeleceu seus contornos gerais, conforme disposto no caput; todavia, foi além, haja vista que prescreveu também instrumentos a serem observados pelo Poder Público e pelos particulares, a fim de efetivar a concretização desse direito fundamental, descritos nos parágrafos do Art. 225 da Constituição Federal. Nesse sentido, José Afonso da Silva97 descreve o Art. 225, visualizando três grupos distintos de normas: o primeiro, localizado no caput, o autor identifica como “norma-princípio”, “norma matriz”, aquela que identifica o direito ao ambiente sadio; por segundo, são as “normas instrumentos”, responsáveis por garantir a concretude do direito, cujo conteúdo é direcionado exclusivamente ao Poder Público; por fim, visualizam-se as “determinações particulares” que, em face de seu relevante interesse ecológico, merecem cuidados especiais a fim de adequação ao princípio maior estabelecido no caput. Exposta a existência de um direito fundamental ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, correlato imediato do direito à vida, necessário verificar os instrumentos constitucionais a serem adotados para assegurar a sua efetividade. A primeira medida concretizadora do direito fundamental em questão, disciplinada pela Constituição Federal refere-se ao dever de “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” [Art. 225, §1º, I]. A medida acima disposta, de forma bastante simplificada, visa à adoção de medidas pelo Poder Público, nas esferas federal, estadual e municipal, direcionadas a proteger e recuperar aquilo já degradado nos “processos ecológicos essenciais”, os quais podem ser entendidos como “aqueles que garantem o funcionamento dos ecossistemas e contribuem para a salubridade e higidez do meio ambiente”. 98 97 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 52. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 158. 98 Ainda referente à primeira medida, mas a respeito do “manejo ecológico das espécies”, “significa lidar com elas de modo a conservá-las e, se possível, recuperá-las.” 99 Aduzindo ao conceito exposto, tal incumbência infere que o Poder Público deve adotar medidas para que a utilização dos recursos naturais não se esgote, privilegiando o uso sustentável, assim como medidas de recuperação das espécies e ecossistemas, transferindo-as, caso necessário, para outras áreas, onde possam manter ou recuperar suas características naturais. A segunda medida a ser observada pelo Poder Público se referirá a todas as esferas de governo, compreendendo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, acerca da preservação e restauração da integridade do patrimônio genético do País, bem como da fiscalização das instituições que atuam nessa área. “Preservar a biodiversidade significa reconhecer, inventariar e manter o leque dessas diferenças de organismos vivos. Nesse sentido, quanto mais diferenças existirem, maiores serão as possibilidades de vida e de adaptação às mudanças”.100 Não desdenhando a preservação das espécies e dos ecossistemas existentes, a preocupação com o patrimônio genético assume grandes proporções, incontroláveis e imprevisíveis diante do avanço da Ciência e da Tecnologia, ou melhor, da Biotecnologia, em que o surgimento de novos micro-organismos ocorre rotineiramente, sejam com fins medicinais, alimentares, agrotóxicos ou meramente capitalistas. Desse modo, é fundamental o exercício de um controle integral dessas atividades, em face da imprevisibilidade dos danos em caso de alteração, criação ou aniquilamento genético das espécies, pois foi diante dessa preocupação que fora editada a Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005, cujo conteúdo versou sobre normas de segurança e meios de fiscalização das atividades que envolvam a modificação genética de organismos. Ainda versando sobre as incumbências do Poder Público em face da preservação do ambiente, verifica-se que o constituinte impôs a criação de “espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos”, conforme disciplina o Art. 225, §1, III, sendo que, quanto a este item, tecer-se-ão mais comentários em tópico especial, exposto a seguir. 99 Idem, ibidem, p. 159. Idem, ibidem, p. 161. 100 Logrando êxito, o constituinte exigiu, do Poder Público, a edição de lei a fim de normatizar a obrigatoriedade de realização de “Estudo Prévio de Impacto Ambiental” no caso de “instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente”; a inserção coaduna-se com o princípio da prevenção, prevenindo assim, que qualquer obra ou atividade quando em construção ou acabada possa ensejar risco ou lesão ao meio ambiente. No entanto, destaca-se que a lei que a Constituição Federal faz referência já existia, tendo sido recepcionada pela nova Ordem, [à Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981], que versa sobre a “Política Nacional do Meio Ambiente”. Essa política dispõe, como um de seus instrumentos, o estudo de impacto ambiental, cuja competência para estabelecer normas gerais para sua operacionalização é do Conselho Nacional do Meio Ambiente [CONAMA], conforme disciplina o Art. 8º, I da citada lei. No mais, resta acrescentar que o estudo deve ser prévio, anterior ao licenciamento ambiental, bem como a obrigatoriedade de sua publicidade, inclusive por via de audiências públicas. Dando continuidade aos instrumentos constitucionais que visam assegurar a efetividade de um “ambiente ecologicamente equilibrado”, visualiza-se que também é dever do Poder Público, conforme o Art. 225, § 1º, V, “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substancias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. A operacionabilidade desse dispositivo fora concedida pela Lei n.º 7.802, de 11 de julho de 1989, alterada pela Lei n.º 9.974, de 6 de junho de 2000, que disciplina sua abrangência no seu Art. 1º, transcrito abaixo: Art. 1º A pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, serão regidos por esta Lei.101 O inciso VI do § 1º do artigo em análise versa sobre a educação ambiental, atribuindo ao Poder Público a sua institucionalização em todos os níveis. Essa previsão 101 BRASIL, Lei n.° 7.802, de 11 jul. 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7802.htm>. Acesso em: 30 jan. 2011. é de suma importância, pois não há mecanismos de preservação e recuperação ambiental suficientes se a sociedade continuar desprovida de educação ambiental. É tãosomente com ela que será possível transformar o consumo desenfreado dos bens naturais, cuja pratica tomou conta da sociedade, para um consumo sustentável, em que as ações sustentáveis, bem como a utilização de recursos renováveis, sejam privilegiadas. Ações como essa somente serão possíveis por via de investimentos na educação neste sentido que fora editado, apesar de tardiamente a Lei n.º 9.795, de 27 de maio de 2004, regulamentar a previsão constitucional em debate e atribuir ênfase na formação da conscientização ecológica. Por último, mas não menos importante, o Art. 225, § 1º, VII, atribui ao Poder Público o dever de proteger a fauna e a flora, devendo combater ações que coloquem risco a suas funções ecológicas e a extinção, bem como o tratamento cruel a animais. É sob este fundamento que várias normas infraconstitucionais foram recepcionadas pela Constituição Federal e outras leis foram posteriormente editadas, demonstrando o atendimento da vontade constitucional pelo legislativo; no entanto, como é notória, tal ação não é suficiente. É necessário um maior comprometimento e responsabilização do executivo, por via da implantação de políticas públicas voltadas a este fim e de ações de fiscalização e de repressão, bem como uma maior participação do Judiciário, seja por meio da celeridade nos processos ou pela atribuição de penas mais severas, sem esquecer, evidentemente, de uma participação mais efetiva do Ministério Público. A Constituição Federal inicia as atribuições de proteção ambiental dirigidas aos particulares com a mais degradante das atividades para o ambiente: a exploração de recursos minerais, cuja lesão ao ambiente é irremediável. Não há como explorar recursos minerais sem agredir a natureza, necessitando, assim, de medidas reparadoras e compensadoras, sendo evidente que a degradação não pode ter como justificativa a compensação. Constatando a gravidade dessa atividade, o constituinte determinou que quem “explorar os recursos minerais fica obrigado a recuperar o ambiente degradado, de acordo com a solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei” [Art. 225, § 2º]. Nota-se que a recuperação da área degradada será realizada conforme diretrizes estabelecidas pelo órgão público. O § 3º do Art. 225 simboliza a enorme preocupação do constituinte com a degradação ambiental. Ele impõe que o autor de ato lesivo ao ambiente deverá recuperálo, deixá-lo no estado como era antes da degradação e, não suficiente a isso, sujeitar-se- á ainda as sanções de natureza civil e penal. Assim constata-se que um único ato lesivo ao ambiente pode ensejar numa tripla punição, garantida constitucionalmente. A Constituição Federal confere proteção especial à Floresta Amazônia, à Mata Atlântica, à Serra do Mar, ao Pantanal Mato-grossense e à Zona Costeira, reconhecendo-as como patrimônio nacional, em face de suas peculiaridades e riquezas biologias, bem como o risco de lesão e desaparecimento, como é o caso da Mata Atlântica. A proteção especial implica no seu uso limitado, conforme condições previstas em lei, que assegurem a preservação ambiental. Importante frisar que a identificação desses importantes redutos de riqueza ambiental como “patrimônio nacional” não implica em dizer que eles constituem bens da União, pois as propriedades localizadas nessas regiões permanecem com seus legítimos proprietários; no entanto, passam a contar com um “administrador de um patrimônio que pertence à coletividade”.102 Preceitua ainda a Constituição Federal, no capítulo referente à proteção ambiental, que “são indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais”, bem como a obrigatoriedade da localização da instalação de usinas com reatores nucleares serem definidas por lei federal, conforme bem disciplinam os §§ 5º e 6º do Art. 225. Esses artigos representam, ainda mais, a preocupação ambiental conferida pelo Texto de 1988. Portanto, após a proteção especial conferida ao ambiente pela Constituição Federal, cabe ao legislador infraconstitucional, ao executor das políticas públicas de todos os âmbitos de atuação, bem como a toda a coletividade, adotar as medidas capazes de assegurar a preservação ambiental para “as presentes e futuras gerações”, pois o ambiente saudável constitui elemento indissociável à dignidade da pessoa humana, em face do bem-estar que proporciona. Assim, nesse contexto, deve ser respeitada a exigência de instituição e conservação das áreas de “reserva legal”, pois formam um meio relevante ao bem-estar coletivo e à preservação ambiental para as próximas gerações. 3.1. 102 ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 14. Antes mesmo de adentrar ao estudo principal, que são as áreas de “reserva legal”, é necessário contextualizar, ou melhor, situar onde está inserido determinado instituto. Dessa forma, observar-se-á que ele não é elemento isolado de proteção, e sim apenas uma das formas, inserido num complexo conjunto de proteção ambiental, uma espécie do gênero “espaços territoriais e componentes a serem especialmente protegidos”. A principal referência legislativa que trata sobre a conservação/proteção de áreas com fim ambiental, a qual é a responsável por atribuir toda a sustentação constitucional ao tema, está disposta no Art. 225, § 1º, III da Constituição Federal. Apresentam-se os “espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos” como um dos instrumentos a serem utilizados pelo Poder Público para assegurar o direito a todos de ter um “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Art. 225. §1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. José Afonso da Silva conceitua esses espaços como: Áreas geográficas públicas ou privadas (porção do território nacional) dotadas de atributos ambientais que requeiram sua sujeição, pela lei, a um regime jurídico de interesse público que implique sua relativa imodificabilidade e sua utilização sustentada, tendo em vista a preservação e a proteção da integridade de amostras de toda a diversidade de ecossistemas, a proteção ao processo evolutivo das espécies, a preservação e a proteção dos recursos naturais. 103 À primeira vista, o tema à luz da Constituição Federal não demonstra outras preocupações doutrinárias, haja vista que o constituinte impõe ao Administrador 103 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 233. Público a criação de espaços territoriais que deverão receber proteção especial em face da existência de características ambientais que justifiquem tal proteção. No entanto, a falta de definição de quais seriam esses espaços e quais seriam suas formas especiais de proteção pelo constituinte implicaram nas mais variadas formas de proteção. Esses fatos atendiam plenamente a vontade constitucional, uma vez que o Art. 225, § 1º, III da Constituição Federal determinou a criação de áreas de proteção de quaisquer espaços dotados de atributos ambientais essenciais à manutenção de um ambiente sadio e equilibrado, não importando a sua espécie ou terminologia empregada, sendo fundamental a atribuição de proteção especial a esses espaços. Doutro norte, o legislador infraconstitucional entendeu necessária a regulamentação, criando tipos e formas especiais de proteção. Isso ocorreu com a edição da Lei n.º 7.804, de 18 de julho de 1989, que inseriu os “espaços especialmente protegidos” como instrumento da “Política Nacional do Meio Ambiente” e, posteriormente, sendo identificados como “unidades de conservação”; primeiramente pelo Decreto n.º 99.274, de 6 de junho de 1990 e por último, pela Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000, a qual ratificou as “unidades de conservação” como as áreas territoriais que merecem proteção especial. Art. 2o Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - unidade de conservação: espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção;104 No entanto, de antemão afirma-se que a norma infraconstitucional não possui o condão de limitar a norma constitucional, pois o Art. 225, § 1º, III é autoaplicável e de eficácia plena. Assim, ela não necessita de regulamentação para criação de unidades de proteção, muito menos restringindo as áreas de proteção às denominadas “unidades de conservação”, conforme o próprio artigo citado é necessária lei apenas para suprimir ou alterar estas áreas protegidas. 104 BRASIL, Lei n.° 9.985, de 18 jul. 2000. Regulamenta o art. 225, § 1 o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9985.htm>. Acesso em: 25 jan. 2010. A Constituição inova profundamente na proteção dos espaços territoriais, por exemplo, unidades de conservação, áreas de preservação permanente- APPS e reservas legais florestais. Poderão essas áreas ser criadas por lei, decreto, portaria ou resolução. A tutela constitucional não está limitada a nomes ou regimes jurídicos de cada espaço territorial, pois qualquer espaço entra na órbita do art. 225, §1º, III, desde que se reconheça que ele deve ser especialmente protegido. 105 Ocorre que, após a publicação dos regramentos citados, o tema, aparentemente pacífico, demonstra a existência de alto grau de conflituosidade, haja vista que a Lei n.º 9.985/2000, ao relacionar as unidades de conservação, silenciou-se quanto às áreas de preservação permanente” e às de área de “reserva legal”, admitindo que somente as áreas relacionadas na lei supracitada integram o tipo previsto no inciso III do § 1º do Art. 225. Constata-se, assim, que a Lei n.º 9.985/2005 restringiu a aplicação do Art. 225 da Constituição Federal; situação inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro, visto o princípio da Supremacia da Constituição e o referido artigo constitucional possuir eficácia plena. Assim, havendo áreas dotadas de atributos que justificam a sua proteção, serão elas protegidas como “espaços territoriais especialmente protegidos”, pouco importando se enquadram ou não na regulamentação infraconstitucional. Acrescenta-se que cada tipo de proteção ou conservação possui seus objetivos que, por muitas vezes, são conflitantes, justificando, desta forma, a necessidade da criação de diversos tipos de espaços protegidos ou de unidades de conservação. Somamse a isso as peculiaridades de cada país e região, que por si só justificam diversos tipos de proteção ou grupos de unidades de conservação distintas, com o intuito de satisfazer os objetivos de cada país quanto à conservação. 106 Assim sendo, visualiza-se que a Lei n.º 9.985/2000 possui muito mais o condão de organizar estas áreas de proteção de que propriamente delimitá-las. Nesse sentido, Édis Milaré apresenta perfeita conclusão sobre o assunto: [...] parece-nos possível e didático sustentar que no conceito de espaços especialmente protegidos, em sentido estrito (strictu sensu), tal qual enunciado na Constituição Federal, se subsumem apenas as Unidades de Conservação típicas, isto é, previstas expressamente na 105 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental Brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros. p. 148. 106 MILANO, Miguel Serediuk. Unidades de Conservação: técnica, lei e ética para conservação da biodiversidade. Direito Ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 9. Apud MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 166. Lei 9.985/2000, e, por igual, aquelas áreas que, embora não expressamente arrolada, apresentam características que se amoldam ao conceito enunciado no art. 2º, I, da referida Lei 9.985/2000, que seriam as chamadas de Unidades de Conservação atípicas. Por outro lado, constituiriam espaços territoriais especialmente protegidos, em sentido amplo (lato sensu), as demais áreas protegidas, como por exemplo, as Áreas de Preservação Permanente e as Reservas Florestais Legais (disciplinadas pela Lei 4.771/1965 – Código Florestal), e as Áreas de Proteção Especial (previstas na Lei 6.766/1979 – Parcelamento do Solo Urbano), que tenham fundamentos e finalidades próprias e distintas das Unidades de Conservação. 107 Assim, no que se refere aos “espaços territoriais especialmente protegidos”, temse a sua divisão em lato e stricto sensu. O primeiro termo compreende as “áreas de preservação permanente”, de áreas de “reserva legal” e todas as demais distintas das Unidades de Conservação; enquanto a segunda acepção refere-se às Unidades de Conservação Típicas e Atípicas. Portanto, a área de “reserva legal” é espécie das áreas especialmente protegidas, constitucionalizadas no inciso III, do § 1º do art. 225, as quais foram definidas inicialmente pelo “Código Florestal”. Depois de demonstrado que as áreas de “reserva legal” possuem o liame constitucional de proteção disposto no Art. 225, §1º, III, da Constituição Federal, é importante verificar as consequências decorrentes de tal inserção. Observa-se que o constituinte dispôs ainda que, após a instituição dessas áreas, somente ocorrerá supressão ou alteração ambiental mediante edição de lei autorizatória. Assim, pretendeu o legislador que qualquer ameaça de lesão ao ambiente passará pelo crivo da participação popular indireta. Destaca-se que tal exigência é de fundamental importância, tendo em vista que a possibilidade de qualquer alteração nessas áreas protegidas não justificaria a sua existência. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em análise sobre o tema, no julgamento da ADI n.º 3.540,108 que discutiu a inconstitucionalidade do Art. 4º da Medida Provisória n.º 2.166-67 de 24 de agosto de 2001, demonstrou grande retrocesso 107 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 166. 108 BRASIL, Supremo Tribunal Federal: Tribunal Pleno. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 3540-1/DF. Requerente: Procurador Geral da República. Requerido: Presidente da República. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento: em 01 set. 2005. Publicado em: 3 fev. 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=387260>. Acesso em: 5 abr. 2011. à proteção ambiental. Foi referido que o legislador constitucional, quando exigiu lei para a realização de alteração ou supressão, a exigiu de forma genérica, afirmando que seria totalmente inviável a edição de lei específica para cada alteração dessas áreas protegidas. Esse fato tornaria o legislativo num executor de políticas públicas, violando a tripartição das funções do Estado brasileiro. Cumpre, então, ressaltar que o desígnio do legislador constituinte não foi exigir lei específica para cada hipótese de supressão de vegetação em áreas de preservação permanente. Exigiu-se, na verdade, uma lei autorizativa genérica, disciplinando a forma pela qual tal supressão pode ser feita sem prejuízos para o meio ambiente. E tal lei – genérica e abstrata como todas devem ser – já existe, pelo menos em relação às APPs, consubstanciando-se justamente no Código Florestal.109 Ressalta-se que a retrodecisão, ao dispor especificamente sobre as alterações e as supressões em áreas de preservação permanente, em nada diferencia das áreas de “reserva legal”, aplicando assim a mesma interpretação, tendo em vista que tratou da análise do Art. 225, § 1º, III da Constituição Federal. Considera-se positivo o julgado; não em face da exigência apenas de lei genérica para a realização de supressão ou alteração dos espaços protegidos, mas em decorrência que tal análise implicou indiretamente no reconhecimento das áreas de preservação permanente como espécies dos espaços especialmente protegidos. Isso, consequentemente, implica na identificação das áreas de “reserva legal” como tais espaços, haja vista que ambas as terminologias não se enquadram nas Unidades de Conservação criadas pela Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000, e estão previstas no “Código Florestal”. A preocupação com essas áreas a serem especialmente protegidas é tamanha; tanto que há determinação do constituinte em vedar qualquer utilização que comprometa a integridade das características que justificam a proteção conferida. Essa imposição coaduna-se com o dever do Estado e de toda sociedade em preservar o meio ambiente para as futuras gerações. Portanto, a área de “reserva legal” constitui em espaço a ser especialmente protegido por toda a coletividade. Ela somente poderá ter sua área alterada ou suprimida 109 Idem. por lei, e a utilização é proibida em qualquer situação que coloque em risco as características ambientais que ensejaram a proteção. 4. “RESERVA LEGAL” A primeira disciplina legal referindo-se a um instituto de proteção florestal semelhante ao que se denomina hoje de “reserva legal” foi o Decreto n.º 23.793 de 23 de janeiro de 1934, conhecido como o primeiro “Código Florestal”, instituído em pleno governo provisório, sob a chefia de Getúlio Vargas. Salienta-se que tal governo de provisório não tinha nada, pois perdurou por 15 anos ininterruptos; no entanto, faz-se referência como “provisório” pelo fato de, quando Vargas assumiu a Presidência, depois do golpe que derrubou o então Presidente da República Júlio Prestes, a finalidade era a criação de um governo transitório até a realização de novas eleições. Esse fato não ocorreu e, consequentemente, Getúlio Vargas assumiu poderes quase ilimitados que culminaram num Estado autoritário e no esfacelamento da Constituição de 1891, sob a qual fora instituído o primeiro “Código Florestal”. Como mencionado, a denominação “reserva legal” não fora instituída com o “Código Florestal” de 1934. Essa titulação só seria atribuída em 1989, mas de antemão acrescenta-se que seria melhor a utilização da denominação “reserva legal florestal” ou, ainda, “reserva florestal legal”, 110 não confundindo assim com outros institutos. „Reserva legal‟ é a expressão utilizada pela legislação para caracterizar esse regime jurídico florestal. Acredito que se torna mais compreensível agregar o termo “Florestal”, utilizando-se „reserva legal florestal‟. „Reserva legal‟ é insuficiente, pois a „Reserva Biológica‟ também se rege pela legislação, sendo também uma Reserva Legal.111 Destaca-se, inicialmente, que o Decreto n.º 23.793/34 identificou as florestas como sendo bens de interesse comum a todos os habitantes, fato que justificaria uma proteção especial. Tal regramento surge como medida repressiva a combater a crescente degradação florestal desse período, haja vista a necessidade de uma ação governamental capaz de frear o ímpeto devastador que se expandia pelo território nacional. A legislação fora disposta de maneira bastante objetiva, impondo aos proprietários a proibição de derrubar [cortar] mais de 3/4 (três quartos) da vegetação existente na propriedade. Foram excepcionadas da obrigação as pequenas propriedades localizadas em áreas próximas a florestas ou situadas em locais isolados, ou ainda, aquelas propriedades situadas em zonas urbanas. Merece ainda consideração a excepcionalidade trazida às propriedades situadas no perímetro urbano dos Municípios que, naquela época, não suportavam nenhum ônus de proteção ambiental, e que ainda estavam amparadas pela proteção absoluta da propriedade. Doutro norte, apesar dos grandes avanços trazidos pela norma florestal, observou-se que ela fora insuficiente, tendo servido apenas como uma medida paliativa, necessitando assim, uma norma mais rígida e eficaz, pois fora constatado o grave problema florestal que assolava o país, tomado pelo descaso das autoridades públicas e dos proprietários rurais. Nesse aspecto, interessante retratar a Exposição de Motivos n.º 29/65, que ensejou a aprovação do novo “Código Florestal”, a Lei n.º 4.771, de 15 de setembro de 1965, a qual justificou sua edição como: 110 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 749. 111 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental Brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros. p. 797. [...] mais uma tentativa visando a encontrar-se uma solução adequada para o problema florestal brasileiro, cujo progressivo agravamento está a exigir a adoção de medidas capazes de evitar a devastação das nossas reservas florestais, que ameaçam transformar vastas áreas do Território Nacional em verdadeiros desertos.112 Diante da constatação da gravidade que assumia a devastação das florestas e das demais vegetações existentes no Brasil, observa-se que a Lei n.º 4.771/65, já no seu Art. 1º, pretendeu ir além do diploma anterior, conferindo proteção legal não somente às florestas, mas a todos os tipos de vegetação. No entanto, apesar do esforço legislativo, a proteção das demais formas de vegetação careceu de meios efetivos de proteção, tendo em vista que o texto original do “Código Florestal” de 1965 fez referência tão-somente à manutenção da cobertura arbórea das áreas de florestas. Florestas, como já esclarecemos nos comentários do art. 1º, se constituem predominantemente de vegetação lenhosa de alto porte, formando uma biocenose, e que cobre uma área de terra mais ou menos extensa; vegetação nativa é aquela formada por uma comunidade de várias espécies florestais, cuja origem e desenvolvimento devem-se exclusivamente à atuação das forças naturais; e florestas de utilização limitada são aquelas que só podem ser utilizadas mediante prévia autorização da autoridade competente e através de planos de manejo florestal sustentável (Artigos 6º, 10, 19 e 44). 113 Cumpre salientar que a proteção ambiental, disciplinada pela Lei n.º 4.771/65, pode ser resumida em duas frentes de combate: a primeira refere-se à proteção das encostas dos morros, rios, lagos, que se daria por meio da criação do instituto das “áreas de preservação permanente”; e a segunda, a qual é o objeto deste estudo, faz referência à área de proteção florestal, que se mostrava com o intuito de restringir a exploração das florestas, lembrando que ainda não se trata da denominada área de “reserva legal”. A redação original da Lei n.º 4.771/65 dispunha, em seu Art. 16, que as florestas de domínio privado, ressalvadas aquelas sujeitas ao regime de utilização limitada e as de preservação permanente, localizadas nas regiões Leste Meridional, Sul e na parte sul do 112 BRASIL, Exposição de Motivos n.° 29/65, do Ministro da Agricultura Hugo Leme, que encaminhou o então Anteprojeto da atual Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Publicado no Diário Oficial da União do dia 4 jun. 1965. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2841440/dou-secao-1-04-06-1965-pg21>. Acesso em: 8 abr. 2011. 113 MAGALHÃES, Juraci Perez. Comentários ao Código Florestal: doutrina e jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 162. Centro-Oeste, somente poderiam ser derrubadas no caso de o proprietário manter, no mínimo 20%, da cobertura arbórea.114 Resta esclarecer que, em 1965, o Brasil era dividido geograficamente em 7 (sete) regiões, a saber: i) sul; ii) centro-oeste; iii) leste meridional; iv) norte; v) leste setentrional; vi) nordeste ocidental; e vii) nordeste oriental; para este estudo, importante tão-somente destacar que a região “Leste Meridional”, disposta na Lei n.º 4.771/65, em sua redação original, referia-se aos estados da região sudeste, excetuando o estado de São Paulo, que integrava a região sul.115 Destaca-se ainda que, no caso de desmatamento de novas áreas para instalação de novas propriedades, ou para a utilização de áreas ainda inexploradas, seria permitida a derrubada apenas de 30% (trinta por cento) da área da propriedade.116 A legislação original dispunha, ainda, de disciplina especial aplicável às florestas de araucária situadas na região sul, determinando a proibição quanto ao desflorestamento com tendência à eliminação permanente das florestas, permitindo-se apenas a exploração racional. Com a promulgação da Constituição Federal, novos valores, interesses e direitos foram elevados a nível constitucional, entre eles, e de suma importância, a proteção ambiental, que consequentemente contribuiu para a edição de novos diplomas e revisão de outros, com o fim de normatizar e compatibilizar regras existentes com esse novo dispositivo constitucional. A importância do ambiente frente à Constituição Federal é demonstrada em várias partes do texto. No que se refere à atribuição de competências, o constituinte dispôs no Art. 24, VI, que a competência para legislar sobre as florestas é concorrente, cabendo à União, aos Estados e ao Distrito Federal tratarem do assunto; o primeiro estabelecerá as normas gerais, enquanto aos demais a competência de legislar será suplementar. No entanto, quando se trata da competência de proteger o meio ambiente, esta recai a todos os entes federativos, de forma comum. É o que disciplina o Art. 23, VI, do Texto Maior. 114 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 20 set. 2009. 115 Mapa geográfico do Brasil (1965). Disponível em: <http://www.geografiaparatodos.com.br/ index.php?pag=sl26>. Acesso em: 7 set. 2010. 116 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 20 set. 2009. Nesse contexto, o “Código Florestal” sofrera sua primeira importante alteração, por meio da Lei n.º 7.803, de 18 de julho de 1989. Para este estudo, destaca-se a adoção, pela primeira vez, da denominação “reserva legal” para representar a proteção florestal a que cada propriedade rural estará sujeita. Determinando também a averbação da área de “reserva legal” junto à inscrição de matrícula do imóvel, essa lei proibiu a alteração desta área protegida na hipótese de transmissão ou desmembramento, além da inserção da proteção das áreas de cerrado a título de “reserva legal”, conforme §§ 2º e 3º do Art. 16 do referido Código: § 2º - A reserva legal, assim entendida a área de, no mínimo, 20% (vinte por cento) de cada propriedade, onde não é permitido o corte raso, deverá ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada, a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento da área. § 3º - Aplica-se às áreas de cerrado a reserva legal de 20% (vinte por cento) para todos os efeitos legais.117 No entanto, a maior e mais importante alteração que o “Código Florestal” fora submetido decorreu da Medida Provisória n.º 1.511, de 25 de julho de 1996, e suas reedições. Até sua última reedição, a Medida Provisória n.º 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, que por força do Art. 2º da Emenda Constitucional n.º 32, de 11 de setembro de 2001, determinou que “as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”, sendo que isso, até o presente momento, não ocorreu. A citada Medida Provisória e suas reedições alteraram profundamente o instituto da “reserva legal”, sendo que a inaugural [n.º 1511/96] apenas aperfeiçoou a redação dada pela Lei n.º 7.803/89 ao Art. 44 do “Código Florestal”, cujo texto fora reeditado 30 vezes. Art. 44.(...) § 1o A reserva legal, assim entendida a área de, no mínimo, cinquenta por cento de cada propriedade, onde não é permitido o corte raso, será averbada à margem da inscrição da matrícula do imóvel no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos 117 BRASIL, Lei n.° 7.803, de 18 jul. 1989. Altera a redação da Lei n.° 4.771 de 15 set. 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7803.htm>. Acesso em: 11 maio 2010. casos de transmissão a qualquer título ou de desmembramento da área.118 Posterior a ela, fora editada a Medida Provisória n.º 1.736-31, de 14 de dezembro de 1998, cuja contribuição, negativa por sinal, foi a inserção do § 4º ao Art. 16, permitindo que as “áreas de preservação permanente” fossem computadas nas de “reserva legal”, além de diminuir o índice da reserva nas áreas de cerrado da região norte e centro-oeste para 20% (vinte por cento). Não obstante foi a Medida Provisória n.º 1.956-50, de 26 de maio de 2000, que causou uma enorme celeuma à abordagem do instituto, tendo em vista as diversas alterações provocadas. Primeiramente, realocou o conceito de área de “reserva legal”, do § 1º do Art. 44, para o Art. 2º, III; no entanto, fora no conteúdo a alteração mais sentida, atribuindo positivamente ao conceito elementos técnicos biológicos, destacando expressamente a sua finalidade ambiental, in verbis: Art. 2º [...] III - Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas.119 Diante do conceito inserido, a modificação apresentou também novos índices a serem observados para instituição ou manutenção da reserva, com variações conforme a localização e o tipo de vegetação. Contudo, a lei retrocedeu em muito, inclusive com duvidosa pretensão ou em face de interesses escusos, quando alterou sutilmente a redação dos incisos do Art. 16 do “Código Florestal”, em que inseriu a expressão “na propriedade”, cuja modificação ensejou em discussões judiciais; foi afirmado que os índices previstos de “reserva legal” incidiriam apenas sobre as “áreas de florestas e outras formas de vegetação nativa” [Art. 16, caput], e não sobre a área total da propriedade. O entendimento para tal problemática é tomado rotineiramente pelo 118 BRASIL, Medida Provisória n.° 1956-49, de 27 abr. 2000. Dá nova redação aos artigos 3º, 16 e 44 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas/1956-49.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. 119 BRASIL, Medida Provisória n.° 1956-50, de 26 mai. 2000. Altera os artigos 1o, 4o, 14, 16 e 44, e acresce dispositivos à Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965, que institui o Código Florestal, bem como altera o art. 10 da Lei no 9.393, de 19 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas/1956-50.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, conforme demonstram as ementas relacionadas a seguir: EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - AVERBAÇÃO DE “RESERVA LEGAL” - ART. 16 DO CÓDIGO FLORESTAL AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO INVOCADO - NÃO DEMONSTRAÇÃO DA INEXISTÊNCIA DE FLORESTAS E MATAS NATIVAS NA PROPRIEDADE RURAL DOS IMPETRANTES - SEGURANÇA DENEGADA. - A averbação da “RESERVA LEGAL” a que alude o art. 16, §8º do Código Florestal, com a redação que lhe foi dada pela MP 2.166-67/2001, pressupõe a existência de florestas, vegetação nativa e campos gerais existentes nas propriedades rurais, não havendo que se falar na extensão de tal obrigação às áreas rurais desprovidas de florestas. - Em sede de mandado de segurança, o direito líquido e certo deve ser provado por meio de prova préconstituída, já que o iter procedimental do mandamus não admite dilação probatória. - Revela-se impossível a concessão da segurança para garantir o registro de propriedade rural sem a averbação da “reserva legal” quando ausentes provas de que a área rural não alberga matas e vegetação nativa. (grifo nosso) 120 Acrescenta-se, ainda, a decisão proferida no ano de 2010: EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL DIREITO AMBIENTAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - EXISTÊNCIA DE DECISÃO JUDICIAL, AUTORIZANDO O REGISTRO DOS IMÓVEIS DOS RÉUS SEM A INSTITUIÇÃO DE “RESERVA LEGAL” - OBRIGAÇÃO RESTRITA AOS IMÓVEIS RURAIS ONDE EXISTE ÁREA DE FLORESTA OU VEGETAÇÃO NATIVA - ARTIGO 16 DO CÓDIGO FLORESTAL - PEDIDOS DE INDENIZAÇÃO E RECOMPOSIÇÃO FLORESTAL - NÃO CABIMENTO - RECURSO DESPROVIDO. - Se já existe decisão judicial, autorizando o registro dos imóveis rurais dos réus sem exigência de averbação de “reserva legal”, por inexistência de área florestal ou mata nativa nos mesmos, a improcedência da ação civil pública é medida que se impõe. Ainda que assim não fosse, da melhor interpretação do artigo 16, do Código Florestal, extrai-se a conclusão de que a averbação de “reserva legal” só é exigível quando se cuide de situação que envolva efetiva supressão ou alteração da forma de exploração de área de floresta ou de vegetação nativa, o que não se verifica no caso dos autos.121 (grifo nosso) 120 MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça do Estado. Apelação cível n.° 1.0694.06.034302-7/001(1), 3ª Câmara Cível. Apelante: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Apelado: Maria de Lourdes Claro Barbosa e outros. Relator Des. Dídimo Inocêncio de Paula. Julgamento em: 13 set. 2007. Publicado em: 27 set. 2009. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 5 abr. 2011. 121 MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça do Estado. Apelação cível n.° 1.0694.08.046421-7/001, 3ª Câmara Cível. Apelante: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Apelado: Wilson Reis Figueredo. Relator: Des. Moreira Diniz. Julgamento em: 28 jan. 2010. Publicado em 9 fev. 2010. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 5 abr. 2011. Não suficiente a posição do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, há também a doutrina corrente favorável a esse entendimento. Nesse sentido, cita-se Arruda Alvim,122 o qual observa que os índices de “reserva legal” devem incidir apenas sobre as áreas de florestas existentes na propriedade no momento da instituição do “Código Florestal”, e não sobre a área total da propriedade. Fundamenta sua posição por via de uma interpretação literal do Art. 16; visualiza-se que o referido artigo dispõe sobre a manutenção das florestas ou demais formas de vegetação, pois estabelece “[...] que sejam mantidas a título de reserva legal [...]”. Desse modo, afirma-se que a pretensão legislativa visou à manutenção das reservas florestais e, não à criação e à restauração destas, concluindo sobre a exigência de haver área de floresta ou demais formas de vegetação para ocorrer a obrigatoriedade de manutenção; assim, aquelas propriedades desprovidas da cobertura vegetal antes da inserção legislativa não podem ser obrigadas à criação da reserva. Por fim, sustenta ainda o autor citado que, no caso de área já desmatada e cultivada antes da vigência do “Código Florestal” de 1965, configura hipótese de ato jurídico perfeito e direito adquirido, não podendo haver aplicação retroativa do código, afrontando, inclusive, a função social da propriedade, pois viola as finalidades econômicas e sociais, podendo configurar hipótese de expropriação. Todavia, o posicionamento exposto acima não coaduna com a maioria da doutrina e da jurisprudência, sendo que inclusive no Tribunal de Justiça de Minas Gerais há decisões no sentido de que o percentual de “reserva legal” incide sobre a área total da propriedade, assim como no Superior Tribunal de Justiça, onde a matéria encontra-se pacificada. EMENTA: ADMINISTRATIVO. MEIO AMBIENTE. ÁREA DE “RESERVA LEGAL” EM PROPRIEDADES RURAIS: DEMARCAÇÃO, AVERBAÇÃO E RESTAURAÇÃO. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. OBRIGAÇÃO EX LEGE E PROPTER REM, IMEDIATAMENTE EXIGÍVEL DO PROPRIETÁRIO ATUAL. 1. Em nosso sistema normativo (Código Florestal - Lei 4.771/65, art. 16 e parágrafos; Lei 8.171/91, art. 99), a obrigação de demarcar, 122 ALVIM, Arruda. Reserva florestal legal: evolução legislativa – princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito – função social da propriedade. Revista Forense, v. 397, n. 104. p. 306-315, mai./jun.. Rio de Janeiro: Forense, 2008. averbar e restaurar a área de “reserva legal” nas propriedades rurais constitui (a) limitação administrativa ao uso da propriedade privada destinada a tutelar o meio ambiente, que deve ser defendido e preservado “para as presentes e futuras gerações” (CF, art. 225). Por ter como fonte a própria lei e por incidir sobre as propriedades em si, (b) configura dever jurídico (obrigação ex lege) que se transfere automaticamente com a transferência do domínio (obrigação propter rem), podendo, em consequência, ser imediatamente exigível do proprietário atual, independentemente de qualquer indagação a respeito de boa-fé do adquirente ou de outro nexo causal que não o que se estabelece pela titularidade do domínio. [...] 3. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido.123 Importante ainda ressaltar o trecho do voto proferido pelo relator, ao analisar se a área de “reserva legal” incide ou não sobre a área total da propriedade: [...] 6. Correto, também, o entendimento do acórdão recorrido no sentido de que o percentual legal de reserva florestal tem por base a totalidade da área, e não a parcela da área onde ainda exista vegetação, como defende o recurso. Conforme decorre do art. 16 do Código Florestal, a “reserva legal” é de “vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País” (inciso III). A tese do recurso, de que esse percentual diz respeito apenas à parte da área em que ainda há vegetação nativa (área florestada), leva a resultado absurdo e incompatível com a própria norma de proteção ambiental: o de que o tamanho da reserva seria inversamente proporcional ao da devastação (quanto maior esta, menor aquela), a significar que as áreas inteiramente devastadas não estariam sujeitas a qualquer imposição de restauração, já que sobre elas não haveria obrigação de promover reserva alguma. Assim, a área a ser considerada para efeito de apuração da “reserva legal”, a que se referem os incisos do art. 16 da Lei 4.771/65, não é a área “florestada”, como quer a recorrente, mas sim a área “florestável”. Só essa interpretação é a que pode conferir um sentido prático à determinação constante do art. 99 da Lei 8.171/91, que impõe ao proprietário rural a paulatina recomposição da reserva florestal legal. 7. Não se pode considerar, aqui, a hipótese de aplicação retroativa das normas de proteção ambiental, com violação ao art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil. Não se pode confundir aplicação retroativa com aplicação imediata. A legislação superveniente ao Código Florestal, inclusive a que o modificou, certamente não pode incidir sobre o passado. Mas, em se tratando de norma de conformação da propriedade e de limitação ao seu uso, sua aplicação é 123 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 1ª Turma. Recurso Especial n.° 1179316/SP. Recorrente: Usina Santo Antônio. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Teori Albino Zavascki. Julgamento em: 15 jun. 2010. Publicado em: 29 jun. 2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=1179316&&b=ACOR&p=true&t=&l=10 &i=1>. Acesso em: 29 jan. 2011. imediata, sendo desde logo exigíveis as prestações dela decorrentes, seja quanto aos deveres de abstenção, seja quanto aos de prestações positivas, relacionadas com o dever de demarcação, averbação e recomposição das áreas de “reserva legal”.124 Não há que se falar em direito adquirido e ato jurídico perfeito no que tange matéria ambiental, tendo em vista o Art. 225 da Constituição Federal, ao determinar que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” e que assiste a todos o dever de “preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, pois configura um direito intergeracional, um macrodireito de natureza supraindividual. Do mesmo modo, não há que se falar em aplicação retroativa da lei a fato consumado; configura, sim, a aplicação de lei nova, tendo em vista que a Lei n.º 8.171, de 17 de janeiro de 1991, em seu Art. 99 determinou que, a partir de 1992, o proprietário estaria obrigado a recompor a reserva, por via de plantio, “a cada ano, de pelo menos um trinta avos da área total para complementar a referida Reserva Florestal Legal (RFL)”. Quanto ao Art. 99 da Lei n.º 8.171/91, importante frisar que ele fora revogado pela Medida Provisória n.º 1.736-31, de 14 de dezembro de 1998, cuja revogação se repetiu até a reedição da Medida Provisória n.º 1.956-49, de 27 de abril de 2000, sendo que, a partir desta, nas reedições sucessivas até a última, na Medida Provisória n.º 2.166-67/01 não constou mais a revogação do Art. 99, o que caracteriza a sua validade e vigência. Contudo, pode-se afirmar que as alterações provocadas no “Código Florestal” pelas sucessivas reedições de medidas provisórias serviram de aperfeiçoamento e amadurecimento do instituto até o “congelamento” na Medida Provisória n.º 2.16667/01. O texto dessa Medida ratificou os novos índices de proteção florestal, a previsão expressa de seu conceito, a previsão de formas de compensação, de utilização do solo mediante manejo florestal sustentável e da obrigatoriedade de recomposição das áreas devastadas, bem como suas formas, além da afirmação da obrigatoriedade da averbação da reserva à margem da matrícula do imóvel. 124 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 1ª Turma. Recurso Especial n.° 1179316/SP. Recorrente: Usina Santo Antônio S/A. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Teori Albino Zavascki. Julgamento em: 15 jun. 2010. Publicado em: 29 jun. 2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=1179316&&b=ACOR&p=true&t=&l=10 &i=1>. Acesso em: 29 jan. 2011. Como salientado, diante das transformações provocadas, o “Código Florestal” passou definir “reserva legal” no seu Art. 1º, § 2º, III: Área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas [...]125 Extrai-se do conceito apresentado que a “reserva legal” consiste numa obrigação imposta aos proprietários e posseiros de propriedade rural em destacar parte da área do imóvel, com o intuito de proteger aquela respectiva biodiversidade, servindo de abrigo e proteção da fauna e da flora, permitindo tão-somente o seu uso sustentável. Paulo de Bessa Antunes esclarece que o uso sustentável dos recursos naturais pode ser assim descrito: a) Aquele que assegura a reprodução continuada dos atributos ecológicos da área explorada, tanto em seus aspectos de flora como de fauna. É sustentável o uso que não subtraia das gerações futuras o desfrute da flora e da fauna, em níveis compatíveis com a utilização presente; b) Recursos naturais são os elementos da flora e da fauna utilizáveis economicamente como fatores essenciais para o ciclo produtivo de riquezas e sem os quais a atividade econômica não pode ser desenvolvida. 126 Nesse aspecto, cumpre destacar o objetivo da inserção do instituto da “reserva legal”, de acordo com Paulo Roberto Pereira de Souza, cujo teor permite fazer uma relação direta com os mandamentos constitucionais, em especial o Art. 225: As áreas de reserva legal foram instituídas pelo Código Florestal com uma função específica de manter um equilíbrio ecológico, mantendo regulado os regimes de chuvas, do clima, da absorção de gases, de partículas poluentes e, sobretudo, garantir as demandas das gerações futuras, especialmente no que se refere a princípios ativos de plantas medicinais que poderão representar a cura de doenças que nem existem atualmente. O legislador também buscou garantir a preservação das espécies, posto que as reservas se transformariam em 125 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. 126 ANTUNES, Paulo Bessa de. Poder Judiciário e “reserva legal”: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito Ambiental, v. 6, n. 21, p. 103-131, jan./mar. 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 117. verdadeiros bancos genético. Teriam ainda a função de suprir demanda de árvores para o fornecimento de madeira e demais necessidades. 127 Destarte, frisa-se que não pode haver confusão entre “área de preservação permanente” e “reserva legal”, pois consistem em institutos distintos; a primeira possui como principal finalidade a proteção dos recursos hídricos e das matas ciliares, e se refere a uma proteção integral, que impede qualquer modificação e utilização dessas áreas; e a segunda busca conservar e reabilitar todos os elementos naturais que cercam o bioma em que a propriedade estiver localizada, permitindo o uso dos recursos naturais de forma sustentável. No entanto, para melhor definir o instituto da “reserva legal”, faz-se necessária a combinação do Art. 1º, § 2º, III com o Art. 16, ambos do “Código Florestal”. Assim, o instituto citado consiste em área diferente daquela de preservação permanente, necessária à conservação e à recuperação dos recursos naturais, a qual também não se confunde com áreas sujeitas a regime de utilização limitada, e também com outras áreas definidas em leis especiais, devendo a área de “reserva legal” existir, independentemente da existência das demais. A análise do caput do Art. 16 remete à ideia de que a conservação da área de “reserva legal” consiste em uma exceção ao direito de uso ilimitado da propriedade, aliás, já superado, tendo em vista que a redação do referido artigo dispõe inicialmente: “[...] são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo”. Observa-se um retrocesso cometido pelo legislador, pois o meio ambiente é regra, consiste em direito assegurado na Constituição Federal a todas as pessoas. Não é possível assegurar que o proprietário, respeitando os índices de “reserva legal”, possa usar o imóvel de forma indiscriminada e devastadora no restante de sua propriedade; há outros limites condicionantes que deverão ser atendidos. No que se refere aos índices de conservação ambiental a título de “reserva legal”, o legislador adotou como critério: a localização da propriedade e o tipo de vegetação para a diferenciação dos níveis de conservação, permitindo, assim, a identificação de quatro “tipos” desse espaço protegido. 127 SOUZA, Paulo Roberto Pereira de. A Regularidade ambiental do imóvel rural. Advocacia Ambiental: segurança jurídica para empreender. Rio de Janeiro: Lumen&Juris, 2009. p. 136. Estipula o Art. 16 do “Código Florestal” que deverão ser respeitados, a título de “reserva legal”, o mínimo de: I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; II - trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na propriedade e quinze por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos do § 7o deste artigo; III - vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País; e IV - vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País.128 O primeiro ponto a ser destacado nessa nova legislação diz respeito ao critério utilizado para a divisão dos tipos de proteção a título de “reserva legal”. Deixa-se de lado o critério puramente espacial e ultrapassado, para abordar uma divisão muito mais complexa, tendo como principal elemento o tipo de vegetação existente em determinado local. Diante da renovada proteção florestal, aqui tomada no seu sentido mais amplo, abrangendo todas as formas de vegetação, observa-se uma atenção especial às áreas da Amazônia Legal. Conforme o Art. 1º, § 2º, VI do “Código Florestal”, essa região corresponde aos “Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13o S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44o W, do Estado do Maranhão”.129 Nessas áreas, o legislador estabeleceu uma rigorosa proteção, determinando a obrigatoriedade de manter-se conservado, a título de “reserva legal”, 80% (oitenta por cento) da propriedade que estiver em área de floresta e 35% (trinta e cinco por cento) da propriedade que estiver localizada em área de cerrado amazônico. Isso decorre da constatação do acelerado processo de degradação ambiental na região amazônica e, também, devido à grande importância ecológica que essa região possui para o Brasil e para todo o planeta. 128 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. 129 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 de set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 9 set. 2010. No entanto, apesar de reconhecida a importância da proteção dessas áreas, observa-se a existência de um grande conflito entre proprietários e o Estado; de um lado, a proteção ambiental e, do outro, a produção agrícola e a expansão da pecuária. Além do sentimento individualista dos proprietários, contribui também para o acirramento da disputa o fato de que, em muitos casos, a exploração dessas áreas decorreu em face de incentivos estatais. O Estado criou, ao longo das décadas, diversos programas para o povoamento e a exploração da Amazônia, e agora, de forma contrária, busca proteger e reflorestar a área, inclusive responsabilizando os proprietários pelo desmatamento, situação que gera uma enorme resistência e inconformismo por parte dos proprietários rurais. J. P. Metzger 130 defende a inclusão de aspectos científicos para a definição do percentual ideal de manutenção da propriedade a título de “reserva legal” para que esta cumpra com o seu papel de preservação da biodiversidade. Em um ensaio realizado por meio de simulações em computador, chegou-se à conclusão de que seria necessária a preservação de pelo menos 59,28% (cinquenta e nove vírgula vinte e oito por cento) da cobertura vegetal de cada propriedade rural, a fim de garantir a “conectividade biológica”, que refere à possibilidade de as espécies se locomoverem entre as áreas protegidas. Nessa esteira, ao longo dos anos nota-se que o legislador vem adotando uma postura cada vez mais protetora em relação ao ambiente, principalmente no que diz respeito à região norte. O Decreto n.º 23.793/34 permitia a derrubada de até 3/4 (três quartos) da vegetação, enquanto que a redação original do “Código Florestal” de 1965 admitia o “corte raso” desde que fosse mantido pelo menos 50% (cinquenta por cento) de “cobertura arbórea” em cada propriedade. Com a Medida Provisória n.º 2.166-67/01, a proteção elevou-se para 80% (oitenta por cento) nas propriedades situadas em regiões de florestas da região norte, passando a permitir tão-somente o uso sustentável dessas áreas, proibindo o “corte raso”, única situação que, conforme ensino de Metzger, atenderia a necessidade biológica de preservação. 130 METZGER, J. P. Bases biológicas para a “reserva legal”. Rio de Janeiro: Ciência Hoje, v. 31, n. 183, jun. 2002. p. 48-49. Apud ALVARENGA, Luciano José. “reserva legal” e conservação dos domínios ecológicos-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. In: Revista de Direito Ambiental, v. 13, n. 51, jul./set. 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 171. Importante destacar que, apesar de o Código de 1965 estabelecer um aumento da área a ser protegida em relação ao Código de 1934, percebe-se, neste caso, que o legislador adotou postura bastante subjetiva e relapsa ao exigir apenas que se mantivessem a “cobertura arbórea” das áreas supostamente protegidas; essa redação, certamente, contribuiu para o desrespeito à norma ambiental. Acrescenta-se, ainda, a falta de uma penalidade no caso de descumprimento da obrigação legal. Essa situação se modificou profundamente com a edição da Medida Provisória que alterou o “Código Florestal” e estabeleceu proibição à supressão da vegetação da área de “reserva legal”, podendo apenas ser utilizada sob o regime de “manejo florestal sustentável”. Conforme a legislação existente, a área destinada à “reserva legal”, como há pouco mencionado, não pode ser suprimida, não podendo nela haver o corte raso, o qual consiste em “um tipo de corte em que é feita a derrubada de todas as árvores, de parte ou de todo um povoamento florestal, deixando o terreno momentaneamente livre de cobertura arbórea.”131 Permite-se apenas o uso da área da forma que seja assegurada a sua conservação, a sua sustentabilidade, condicionando-o à adoção de normas técnicas, sob o regime de “manejo florestal sustentável”. A utilização da área de “reserva legal”, sob a forma de “manejo florestal sustentável”, está disciplinada pelo Decreto n.º 5.975, de 30 de novembro de 2006, cujo conteúdo estabelece a obrigatoriedade da realização de um “Plano de Manejo Florestal Sustentável”, a ser aprovado pela autoridade competente, estabelecido pelo Sistema Nacional de Meio Ambiente [SISNAMA].132 A Lei n.º 11.284, de 2 de março de 2006, define “manejo florestal sustentável” em seu Art. 3º, VI, da seguinte forma: Manejo florestal sustentável: administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitandose os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços de natureza florestal;133 131 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 642. 132 BRASIL, Decreto n.° 5.975, de 30 nov. 2006. Regulamenta os artigos 12, parte final, 15, 16, 19, 20 e 21 da Lei n.º 4.771, de 15 de setembro de 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5975.htm>. Acesso em: 10 set. 2010. 133 BRASIL, Lei n.° 11.284, de 2 mar. 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm>. Acesso em: 10 set. 2010. Acrescenta-se que a Lei n.º 4.771/65, alterada pela Medida Provisória n.º 2.16667/01, concede tratamento especial à pequena propriedade ou à posse rural familiar, autorizando a utilização de plantas ornamentais e industriais para o cumprimento da área a ser conservada, além da possibilidade de compensar a área de “reserva legal” com a “área de preservação permanente”. O Art. 1º, § 2º, I, do “Código Florestal” define: I - pequena propriedade rural ou posse rural familiar: aquela explorada mediante o trabalho pessoal do proprietário ou posseiro e de sua família, admitida a ajuda eventual de terceiro e cuja renda bruta seja proveniente, no mínimo, em oitenta por cento, de atividade agroflorestal ou do extrativismo, cuja área não supere: a) cento e cinquenta hectares se localizada nos Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e nas regiões situadas ao norte do paralelo 13o S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44o W, do Estado do Maranhão ou no Pantanal mato-grossense ou sul-mato-grossense; b) cinquenta hectares, se localizada no polígono das secas ou a leste do Meridiano de 44º W, do Estado do Maranhão; e c) trinta hectares, se localizada em qualquer outra região do País;134 O tratamento privilegiado dado à pequena propriedade rural recebeu críticas doutrinárias. A propósito: A medida adotada pela norma, em minha opinião, somente poderia ter sido admitida após a elaboração de um censo agrícola que fosse capaz de definir a quantidade de pequenas propriedades rurais, em cada uma das regiões do País, sob pena de que a “reserva legal”, em áreas nas quais predomina a pequena propriedade rural, não se transforme em letra morte. É extreme de qualquer dúvida que a incorporação de espécies exóticas e ornamentais ou industriais na “reserva legal” é a negação conceitual da própria razão de ser da “reserva legal”.135 Quanto à localização da área de “reserva legal” na propriedade, estipula o Art. 16, § 4º da norma florestal, que ela deverá ser aprovada pelo órgão ambiental competente, que a definirá de acordo com a observância: i) do plano de bacia hidrográfica; ii) plano diretor municipal; iii) zoneamento ecológico-econômico; iv) 134 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 9 set. 2010. 135 ANTUNES, Paulo de Bessa. Poder Judiciário e “reserva legal”: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito Ambiental, v. 6, n. 21, jan./mar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 121. outras categorias de zoneamento; e v) a proximidade com outra área de conservação ou proteção. Quanto a esses requisitos, essencial destacar a referência ao “plano diretor municipal”, onde se visualiza uma impropriedade legislativa, haja vista que “município” implica tanto o perímetro urbano e o rural, e diz respeito a todo o território; já o plano diretor é regulamento que disciplina tão-somente o perímetro urbano, a cidade propriamente dita. Acrescenta-se que, com a nova legislação, passou-se exigir do proprietário a realização do procedimento de licenciamento ambiental para a sua instituição; diante das exigências, verifica-se que o proprietário não possui mais a liberdade de escolher o local da reserva. Tal fato se justifica em face de não ser constituída a reserva em área de pouco valor ambiental, em que a reserva deve englobar aquelas áreas de maior relevância à proteção ambiental. Recorda-se que os institutos da “reserva legal” e da “área de preservação permanente” não se confundem, consistindo em duas limitações ao direito de propriedade, que deverão ser obedecidas individualmente. No entanto, excepcionalmente, haja vista não tornar a propriedade inviável economicamente, é permitido o cômputo das áreas de preservação permanente para o alcance dos índices de “reserva legal” desde que tal medida não implique na conversão de novas áreas para o uso alternativo do solo. A compensação será permitida quando as duas áreas de proteção, juntas, totalizarem mais de 80% (oitenta por cento) da propriedade situada na Amazônia Legal, 50% (cinquenta por cento) nas demais regiões e 25% (vinte e cinco por cento) no caso de pequena propriedade, conforme disciplina o §6º do Art. 16 do “Código Florestal”. Não suficiente à hipótese de compensação exposta acima, o texto florestal, no Art. 16, § 5º, traz a possibilidade de o Estado, por meio de sua função executiva, reduzir a área de “reserva legal” situada na Amazônia Legal de 80% (oitenta por cento) para 50% (cinquenta por cento), e também, a possibilidade de aumentar os demais índices de reserva em até 50% (cinquenta por cento) – desde que ocorra indicação do Zoneamento Ecológico Econômico [ZEE] e do Zoneamento Agrícola, e que sejam ouvidos o Conselho Nacional do Meio Ambiente [CONAMA], o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura. O ZEE é um instrumento para planejar e ordenar o território brasileiro, harmonizando as relações econômicas, sociais e ambientais que nele acontecem. Demanda um efetivo esforço de compartilhamento institucional, voltado para a integração das ações e políticas públicas territoriais, bem como articulação com a sociedade civil, congregando seus interesses em torno de um pacto pela gestão do território.136 Paulo Afonso Leme Machado137 faz considerações referentes ao zoneamento, estabelecendo como positiva a possibilidade de alteração no sentido de flexibilizar a exigência inicialmente proposta. No entanto, ressalva, de maneira preocupante, o fato de que com tal instituto seja possível estabelecer um tratamento diferenciado, “que pode ferir a generalidade da limitação ao direito de propriedade, garantidora da gratuidade da própria limitação.” Por fim, independentemente dos movimentos contrários à legislação da “reserva legal”, a norma é válida e vigente em todo o território nacional, devendo ser respeitada por todos, em especial pelo Estado que, infelizmente, nos últimos anos, tem adotado medidas complacentes com a violação da citada proteção; comprova-se isso, por exemplo, pelas sucessivas dilações do prazo para a fiscalização punitiva da averbação da área de “reserva legal”. Nota-se que o Decreto n.º 6.514, de 22 de junho de 2008, estipulava que a regularização deveria ocorrer em até 180 (cento e oitenta) dias da publicação da lei, ou seja, 22 de dezembro de 2008; no entanto, fora editado o Decreto n.º 6.686, de 10 de dezembro de 2010, passando a regularização para o dia 31 de dezembro de 2009; não suficiente a esta, fora editado o Decreto n.º 7.029, de 10 de dezembro de 2009, prorrogando a exigência para 11 de junho de 2011. Não obstante às prorrogações, pesa-se a isso o total descrédito com o Estado, haja vista que já demonstrou ser totalmente cediço às pressões da classe ruralista, sem ter qualquer garantia que em 11 de junho de 2011 não haverá nova prorrogação e a negligência do Estado em exigir a averbação da área de “reserva legal”, quando visualizada a sua inexistência na transmissão de domínio das propriedades rurais junto aos cartórios de imóveis. 4.1. CARACTERÍSTICAS 136 BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/ sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=28&idMenu=8570>. Acesso em: 10 set. 2010. 137 LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito ambiental brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.806-807. Apesar dos intensos contornos jurídicos que o “Código Florestal” faz sobre a área de “reserva legal”, é possível estabelecer suas principais características, as quais são responsáveis por atribuir uma identidade inconfundível ao instituto. Paulo Affonso Leme Machado138 estabelece as seguintes: i) obrigatoriedade de averbação; ii) inalterabilidade de destinação; iii) restrições legais de exploração; iv) gratuidade; v) delimitação da reserva; e vi) isenção tributária. 4.1.1. Obrigatoriedade da Averbação Como já salientado, o “Código Florestal”, no § 8º do Art. 16, exige que a área de “reserva legal” seja “averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no Registro de Imóveis competente”, obrigação esta que visa identificar a existência e a localização da reserva na propriedade. Objetiva, também, impedir que sejam realizadas alterações posteriores, haja vista ser proibida a alteração de sua destinação no caso de transmissão, desmembramento ou retificação da área. Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em “área de preservação permanente”, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de “reserva legal”, no mínimo: [...] § 8o A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código.139 Ressalta-se, inicialmente, que não é a averbação que atribui obrigatoriedade da constituição de reserva nas propriedades rurais, pois a exigência decorre da própria lei e a averbação possui apenas a finalidade de dar publicidade e garantir o cumprimento e a manutenção da proteção dessas áreas, consistindo, assim, uma obrigação a mais para o 138 LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito ambiental brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.800-801. 139 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 9 set. 2010. proprietário. Nesse sentido, “malgrado a “reserva legal” seja eficaz, independentemente de averbação no álbum imobiliário, ela surge para especializar e dar publicidade ao espaço afetado especialmente para sua instituição”.140 A averbação da área de “reserva legal” é tema bastante polêmico, provocando inúmeras divergências e conflitos. Atenta-se à interpretação concedida ao caput do Art. 16 que, antes da alteração provocada pela edição da Medida Provisória n.º 2.167-67/01, fazia referência expressa tão-somente ao termo “florestas”, não mencionando qualquer outra forma vegetação, acrescentando-se ainda, as discussões sobre o fato de a averbação ter ou não o condão de obstruir a transferência de domínio das propriedades inadimplentes com a reserva. A respeito das controvérsias levantadas, o tema obteve grande repercussão a partir dos Provimentos de números 23/97, 30/98 e 50, de 7 de novembro de 2000, editados pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais. Eles exigiram que notários e tabeliães do referido Estado federado verificassem a averbação das áreas de “reserva legal” junto à matricula dos respectivos imóveis para efetivar as transferências de domínio dos imóveis rurais, fato que gerou enorme revolta por parte dos proprietários rurais do Estado. O Provimento n.º 23, de 1997, disciplinou, em seu Art. 1º, o seguinte: As escrituras públicas e quaisquer documentos que digam respeito à transmissão de propriedade rural, ou desmembramento, somente poderão ser registradas, ou averbadas, após a efetiva averbação da área de “reserva legal” à margem da inscrição da matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente.141 O Provimento de n.º 30 não alterou a obrigatoriedade disposta na orientação anterior. No entanto, o de n.º 50 retrocedeu quanto à proteção florestal, pois limitou a traduzir a norma esculpida no Art. 16, § 8º do “Código Florestal”. Não suficiente o descontentamento dos proprietários rurais, os notários e registradores também demonstraram seu inconformismo com a impetração de Mandado 140 DELLA GIUSTINA, Bianca Sant‟anna. Mecanismos para desoneração de passivos ambientais em imóveis rurais e seus reflexos no registro de imóveis. In: Revista de Direito Ambiental, v. 14, n. 54, abr./jun. 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 100. 141 SANTIAGO, Alex Fernandes. A reserva florestal e o dever do oficial de registro de imóveis de exigir a averbação. Disponível em: <http://www.mp.ms.gov.br/portal/cao/padrao/espart.php?site=mambi>. Acesso em: 15 set. 2010. de Segurança contra emissão do Provimento n.º 50. Eles sustentaram que o caput do Art. 16 obriga a realização da averbação tão-somente daquelas propriedades portadoras de áreas de florestas, não englobando as demais formas de vegetação, bem como o não condicionamento dos atos notariais à averbação da reserva. O Mandado de Segurança chegou ao colegiado pleno do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que concedeu a segurança sob o fundamento de que a obrigatoriedade dos notários e registradores em exigir a averbação no caso de qualquer alienação de propriedade rural consiste numa interpretação extensiva do caput do Art. 16 do “Código Florestal”. Isso aconteceu pelo fato de o artigo não mencionar o momento em que o proprietário deve realizar a averbação e por não condicionar os atos notariais ao cumprimento da exigência ambiental, além de violar o direito de propriedade, conforme ementa transcrita abaixo: EMENTA: “RESERVA LEGAL” - INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 16 DO CÓDIGO FLORESTAL - CONDICIONAMENTO DE ATOS NOTARIAIS À EXIGÊNCIA PRÉVIA DE AVERBAÇÃO DA RESERVA - FALTA DE AMPARO LEGAL DIREITO LÍQUIDO E CERTO DE PROPRIEDADE - GARANTIA CONSTITUCIONAL SEGURANÇA CONCEDIDA. A interpretação sistemática do artigo 16 do Código Florestal nos conduz ao entendimento de que a “reserva legal” não deve atingir toda e qualquer propriedade rural, mas apenas aquelas que contêm área de florestas. Logo, tem-se que o condicionamento dos atos notariais necessários ao pleno exercício do direito de propriedade previsto no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, à prévia averbação da “reserva legal”, somente está autorizado quando existir floresta no imóvel, o que não é o caso dos autos, pelo que se impõe a concessão da segurança requerida.142 A decisão foi um retrocesso enorme para a efetivação prática do instrumento da “reserva legal” nas propriedades rurais. Além disso, careceu a decisão de uma interpretação ampla do sistema, coadunando-se com os objetivos constitucionais da proteção ao meio ambiente e da função social da propriedade. Nota-se que a decisão sobredita limitou-se a uma interpretação literal do caput do Art. 16 do “Código Florestal” [redação original], que menciona tão-somente “as 142 MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça do Estado. Mandado de Segurança n.° 1.0000.00.279477-4/000, Comarca de Belo Horizonte. Impetrante: Serjus Assoc. Serv. Justiça do Estado de Minas Gerais. Impetrado: Corregedoria de Justiça do Estado de Minas Gerais. Relator: Des. Orlando Carvalho. Relator para o Acórdão o Des. Antônio Hélio Silva. Julgamento em: 25 jun. 2003. Publicado em: 12 ago. 2003. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 15 set. 2010. florestas de domínio privado [...]”, excluindo as propriedades detentoras de qualquer outra espécie de vegetação da obrigação de realizar a averbação; interpretação equivocada, posto que desprezou todo o sistema de proteção ambiental em que está inserida tal norma, em especial a Constituição Federal. Relevante para a questão mencionar trecho do voto do relator do Acórdão, em face de estar amparada exclusivamente na clássica e ultrapassada visão da propriedade como direito absoluto e ilimitado: Com efeito, o condicionamento dos atos notariais à prévia averbação da “reserva legal” extrapola o disposto no art. 16 do Código Florestal Lei 4.771/95 - além de restringir e ferir o direito constitucional de propriedade do art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal. O § 2º do art. 16 do Código Florestal não impõe o momento da averbação da “reserva legal” - portanto não há imposição de que a averbação deve ser prévia - e muito menos condiciona a prática dos atos notariais a tal averbação. [...] „Entender que o legislador deu à expressão sentido mais amplo, abrangendo áreas de cultivo, já sem nenhuma cobertura florística original (...) revela-se ofensivo ao direito de propriedade constitucionalmente garantido, não encontrando suporte na norma legal (...) Assevero que a melhor hermenêutica aconselha que os parágrafos de um artigo de lei sejam interpretados em consonância com o seu “caput” (...).‟143 A decisão da Corte Mineira não deveria prosperar, haja vista que a Constituição Federal, em face da disposição do Art. 225, ensejou novos rumos para a proteção ambiental, identificando-a como um direito fundamental do ser humano e impondo que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos, cabendo a todos o dever de protegê-lo para “as presentes e futuras gerações”. Do mesmo modo o Texto, ao disciplinar a função social da propriedade rural, estabelece a obrigatoriedade da “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”, não sendo possível admitir o respaldo constitucional da proteção à propriedade para aquelas consideradas agressoras ao meio ambiente. Portanto, não há como limitar a proteção tão-somente das florestas, pois só é possível atingir a determinação constitucional disposta nos Arts. 186 e 225 com uma proteção ampla das vegetações existentes no País, independentemente da espécie e localização. Não obstante, mesmo antes da alteração provocada pela Medida Provisória n.º 2.167-67/01, 143 Idem. o “Código Florestal” já definia “reserva legal”, no § 2º do próprio Art. 16, como “área de, no mínimo, 20% (vinte por cento) de cada propriedade, onde não é permitido o corte raso [...]”. Como já salientado, a edição da sobredita Medida Provisória alterou de forma considerável a disciplina da “reserva legal”, alterações que deveriam por fim a qualquer discussão sobre este tema, uma vez que ficou definida, no Art. 1º, § 2º, III do “Código Florestal”, a área de “reserva legal” como a área situada em propriedade rural ou posse rural, não fazendo qualquer distinção sobre o tipo de vegetação existente. A lei acrescenta, ainda, que a proteção desse instituto é “necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção da fauna e flora nativas”.144 O citado instituto buscou uma proteção ampla e integral dos recursos naturais, dispondo sobre a conservação da biodiversidade, ou seja, para a manutenção das diversas espécies vivas, enfatizando, ainda mais, ao estabelecer como seu objetivo a proteção da fauna e da flora. Isso leva a concluir que não é possível limitar a obrigação da averbação às propriedades rurais com cobertura apenas florestal. Não suficiente à definição da “reserva legal”, a referida Medida Provisória também modificou a redação do caput do Art. 16 e de seu § 2º, III, acrescentando expressamente a exigência de reserva para “[...] outras formas de vegetação [...]”. Essas alterações, apesar de transparentes, não surtiram o efeito desejado, principalmente no Judiciário, pois continuaram a existir decisões entendendo que a obrigatoriedade da averbação alcança tão-somente as propriedades com áreas de florestas. A Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, seguindo posição adotada pelo Tribunal Mineiro, na edição do Aviso 030/GACOR/2003, de 28 de agosto de 2003, suspendeu os efeitos dos Provimentos anteriormente editados, os quais viriam a ser revogados definitivamente. Dessa forma, com as revogações dos Provimentos, a análise da questão pelo Superior Tribunal de Justiça fora prejudicada pela falta absoluta de objeto. Situação que viria ocorrer em face de Mandado de Segurança impetrado pelo Ministério Público da comarca de Andrelândia (MG) contra a Portaria n.º 01/2003, emitida pelo Juiz daquela 144 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm . Acesso em 10 mar. 2011. comarca, que permitiu a efetivação de transferências de propriedades rurais sem a regularização da área de “reserva legal”. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por intermédio da 7ª Câmara Cível, denegou a segurança, sob os mesmos fundamentos da decisão proferida anteriormente pela Corte supracitada.145 Tal conflito fora objeto de recurso, o qual foi julgado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 24 de agosto de 2005, sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha que, por unanimidade dos membros, concedeu a segurança no sentido de decretar a invalidade da Portaria baixada pelo Juiz de Direito da Comarca de Andrelândia, com fundamento no Art. 225, § 1º da Constituição Federal. No entanto, infelizmente a decisão não teve o condão de obrigar a prévia averbação da área de “reserva legal” no caso da transferência de registros de imóveis rurais, pois o objeto do mandado era apenas a Portaria 01/2003, mas é indubitável a importante manifestação a respeito da matéria; por isso, transcreve-se abaixo a ementa: EMENTA ADMINISTRATIVA E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO. AVERBAÇÃO DE RESERVA FLORESTAL. EXIGÊNCIA. CÓDIGO FLORESTAL. INTERPRETAÇÃO. 1. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito que a Constituição assegura a todos (art. 225 da CF), tendo em consideração as gerações presentes e futuras. Nesse sentido, desobrigar os proprietários rurais da averbação da reserva florestal prevista no art. 16 do Código Florestal é o mesmo que esvaziar essa lei de seu conteúdo. 2. Desborda do mencionado regramento constitucional portaria administrativa que dispensa novos adquirentes de propriedades rurais da respectiva averbação de reserva florestal na matrícula do imóvel. 3. Recurso ordinário provido.146 Importante ainda, ressaltar as considerações realizadas pelo relator no presente mandamus: Essa legislação, ao determinar a separação de parte das propriedades rurais para constituição da reserva florestal legal, resultou de uma feliz 145 MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça do Estado. Mandado de Segurança n.° 1.0000.00.343454-5/000, Comarca de Andrelândia. Impetrante: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Impetrado: JD Comarca de Andrelândia (MG). Relator: Des. Antônio Carlos Cruvinel. Julgamento em: 30 set. 2003. Publicado em: 30 dez. 2003. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 19 set. 2010. 146 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 2ª Turma. Recurso Especial em Mandado de Segurança n.° 18.301/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Juiz de Direito da Comarca de Andrelândia (MG). Relator: Min. João Otávio de Miranda. Julgamento em: 24 mai. 2005. Publicado em: 03 out. 2005. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200400753800&dt publicacao=03/10/2005>. Acesso em: 6 abr. 2011. e necessária consciência ecológica que vem tomando corpo na sociedade em razão dos efeitos dos desastres naturais ocorridos ao longo do tempo, resultado da degradação do meio ambiente efetuada sem limites pelo homem. Tais consequências nefastas, paulatinamente, leva à conscientização de que os recursos naturais devem ser utilizados com equilíbrio e preservados em intenção da boa qualidade de vida das gerações vindouras. [...] Nesse sentido, desobrigar os proprietários da averbação é o mesmo que esvaziar a lei de seu conteúdo. O mesmo se dá quanto ao adquirente, por qualquer título, no ato do registro da propriedade. Não há nenhum sentido em desobrigá-lo das respectivas averbações, porquanto a “reserva legal” é regra restritiva do direito de propriedade, tratando-se de situação jurídica estabelecida desde 1965. [...]) Assim, entendo que não agiu o magistrado com acerto ao baixar uma portaria, com base em interpretação da Lei n. 4.177/65, que desconsiderou o bem jurídico por ela protegido, como se averbação na lei referida tratasse-se de ato notorial condicionado, e não obrigação legal. Assim posto, dou provimento ao recurso ordinário apenas para decretar a nulidade da Portaria n. 01/2003. 147 (grifo nosso) O Superior Tribunal de Justiça vem decidindo reiteradamente nesse mesmo norte, exigindo dos tabeliães e notários a verificação da existência da “reserva legal” como elemento necessário à realização das transferências de domínio de propriedade, sendo que, nesse sentido, citam-se os Recursos Especiais de números 927.979-MG, 22.391-MG, 821.083-MG e o 831.212-MG; destacando-se este último, tal como aparece na ementa, em razão da importância do assunto: Direito ambiental. Pedido de retificação de área de imóvel, formulado por proprietário rural. Oposição do MP, sob o fundamento de que seria necessário, antes, promover a averbação da área de reserva florestal disciplinada pela Lei 4.771/65. Dispensa, pelo Tribunal. Recurso especial interposto pelo MP. Provimento. - É possível extrair, do art. 16, §8º, do Código Florestal, que a averbação da reserva florestal é condição para a prática de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei 4.771/65. Recurso especial provido.148 (grifo nosso) 147 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 2ª Turma. Recurso Especial em Mandado de Segurança n.° 18.301/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Juiz de Direito da Comarca de Andrelândia (MG). Relator: Min. João Otávio de Miranda. Julgamento em: 24 mai. 2005. Publicado em: 03 out. 2005. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200400753800&dt publicacao=03/10/2005>. Acesso em: 6 abr. 2011 148 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 3ª Turma. Recurso Especial n.° 831.212/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Wander dos Reis Andrade e Cônjuge. Relator: Min. Nancy Andrighi. Julgamento em: 1 set. 2009. Publicado em: 22 set. 2009. Disponível em: Por outro lado, lamentável que tais decisões têm surtido efeito tão-somente em casos concretos, sendo necessária a propositura de ações pelo Ministério Público para que os tabeliães e notários exijam, de maneira prévia, a averbação da área de “reserva legal” para a efetivação de qualquer registro de transferência de domínio das propriedades rurais. Caso adotassem posição contrária, isso certamente contribuiria de maneira incisiva à proteção ambiental, atendendo assim às disposições constitucionais e infraconstitucionais. A posição adotada pelos tabeliães e notários de não exigir a prévia averbação para a realização das transferências de domínio carece de amparo legal, pois o registro de imóveis no cartório competente é um procedimento administrativo vinculado estritamente ao princípio da legalidade, o qual confere legitimidade e veracidade aos atos que passam pelo seu crivo. Assim, a área de “reserva legal”, por consistir numa obrigação imposta por lei, de ordem pública, constituindo um instrumento de efetivação ao direito fundamental ao ambiente sadio, bem como sua equiparação àquelas obrigações de natureza propter rem, deveria necessariamente ser exigida. O procedimento para o registro ou a averbação de um título no Cartório de Imóveis necessariamente cumpre determinados atos, sendo que após o protocolo, há a fase denominada de “qualificação do título”. Nessa etapa ocorre a sua compatibilização com o registro anterior e a verificação das normas que a circundam, todavia existe diferentes níveis de qualificação que, conforme o documento a ser registrado, passará por uma análise maior ou menor de exigências.149 Assim, importante para este estudo tratar da “qualificação plena”, a qual é exigida para os títulos que constituem um direito real, tendo em conta que nesta ocorre a verificação se as partes são capazes e legítimas, se há o respeito à legalidade e às condições do negócio, se existem débitos fiscais e, se elas possuem restrições ao imóvel ou alguma indisponibilidade.150 <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200600621927&dt_publicacao=22/09/2009>. Acesso em: 19 set. 2010. 149 DOS SANTOS, Francisco José Rezende. Disponível em: <www.anoregms.org.br/index.php? p=detalhenoticia&id=2215>. Acesso em: 12 set. 2010. 150 DOS SANTOS, Francisco José Rezende. Disponível em: <www.anoregms.org.br/index.php? p=detalhe_noticia&id=2215>. Acesso em: 12 set. 2010. Idem, ibidem. Acesso em: 12 set. 2010. Inegável que a propriedade rural representa direito real e que a sua transmissão a qualquer título gera um direito constitutivo, criando direitos e obrigações àquele que a adquire ou a recebe, independentemente do negócio ter sido oneroso ou gratuito, evidenciando certamente estar sujeita a uma “qualificação plena”. Desse modo, acredita-se não assistir razão de os notários e os tabeliães não exigirem previamente a averbação da área de “reserva legal” quando da transmissão de título de propriedade rural, pois a reserva é uma imposição legal, devendo ser requisito a ser analisado na “qualificação prévia”. Argumentam os notários e os tabeliães que a averbação da área de “reserva legal” possui mero efeito de atribuir publicidade ao ato e que a obrigatoriedade da averbação não implica no condicionamento de outros atos, como as transferências de propriedades rurais, não exigindo uma “qualificação plena”.151 De fato, o ato de averbação não constitui nenhum direito, confere publicidade e declara sua existência; entretanto, não se está a discutir a natureza da averbação junto ao registro de imóveis, mas o registro da transferência de domínio a qualquer titulo da propriedade rural que, quando realizada, deve-se verificar integralmente para garantir o exato cumprimento da lei, devendo ser utilizado o registro como instrumento fiscalizador. Nesse mesmo sentido, o agente notarial, em face de exercer função pública e verificando a ilegalidade, tem o dever de tomar providências necessárias ao saneamento ou à responsabilização pelo ato. Inconcebível admitir que a constatação de uma ilegalidade por um agente público não implique em nenhuma ação sob a alegação de versar sobre mero efeito declaratório. Acrescenta-se ainda a esse tema que, apesar da legislação não fazer nenhuma referência quanto à obrigatoriedade de o proprietário realizar a demarcação da área da reserva, a obrigação é implícita, visto que, para ocorrer a averbação junto à matrícula do imóvel, é necessário precisar sua localização. Além disso, o fato de haver a proibição de se realizar qualquer alteração na reserva justifica-se inerentemente à demarcação da área. Portanto, a demarcação e a averbação da área de “reserva legal” junto à matricula de registro do imóvel é obrigatória e deve, necessariamente, ser observada a sua regularidade no caso de transferência de domínio de propriedade rural, sob a pena 151 Idem, ibidem. Acesso em: 12 set. 2010. de tornar o regramento infraconstitucional sem efetividade alguma. Isso certamente implicaria numa violação da norma constitucional, não assistindo, deste modo, razão a qualquer interpretação que limite a proteção do meio ambiente. Nesse ponto, acrescenta-se a conclusão da Ministra Nancy Andrighi sobre o tema: E a melhor forma de tornar efetiva esta obrigação, como bem notado pelo STJ no já citado julgamento do RMS 18.301/MG, é a de vincular qualquer modificação na matrícula do imóvel à averbação da reserva florestal. Interpretar a norma do art. 16 da Lei 4.771/65 de outra maneira implicaria em retirar do art. 212 da CF/88 e de seus incisos parte de seu potencial de proteção ambiental. 152 Corrobora também a este fim o fato de o “Código Florestal” determinar, no § 9º do Art. 16, que a averbação para as pequenas propriedades e para as posses rurais familiares devem ser gratuitas, impondo, inclusive ao Estado, o dever de prestar o apoio técnico necessário à implementação da reserva. No caso das posses rurais, não há a obrigatoriedade de o posseiro realizar a averbação, visto que tal ônus cabe ao proprietário; mas o órgão ambiental competente deverá realizar com o posseiro um Termo de Ajustamento de Conduta em que estará discriminada a localização e as características da reserva, bem como a proibição de supressão da área, sendo que tal termo terá força de um título executivo, como bem disciplina o § 11 do Art. 16. 4.1.2. Inalterabilidade da Destinação O constituinte, como já retratado, estabeleceu no Art. 225 a obrigatoriedade de o poder público criar espaços territoriais que deverão ser especialmente protegidos. A alteração e a supressão desses espaços somente serão permitidas por via da edição de lei e, de acordo com o Supremo Tribunal Federal,153 não é necessária a edição de lei 152 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 3ª Turma. Recurso Especial n.° 831.212/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Wander dos Reis Andrade e Cônjuge. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Julgamento em: 1 set. 2009. Publicado em: 22 set. 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200600621927&dt_publicacao=22/09/2009>. Acesso em: 19 set. 2010. 153 BRASIL, Supremo Tribunal Federal: Tribunal Pleno. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 3540-1/DF. Requerente: Procurador Geral da República. Requerido: Presidente da República. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento: em 1 set. 2005. Publicado em: 3 fev. 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=387260>. Acesso em: 5 abr. 2011. específica para cada alteração ou supressão, sendo suficiente que a edição que atenta para a matéria do regime jurídico daquele instituto de proteção ou conservação verse sobre as possibilidades de alteração. É sob o fundamento do Art. 225, § 1º, III, que o instituto da “reserva legal” fora recepcionado pela Constituição Federal, como mais um instrumento criado para assegurar a efetividade do direito de todos ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Quanto à vedação da alteração, já em 1989, por via da edição da Lei n.º 7.803, de 18 de julho de 1989, fora acrescido ao Art.16 do “Código Florestal” o § 2º, que impôs a proibição de alteração da destinação da área de “reserva legal” nas hipóteses de transmissão ou desmembramento da propriedade. A Medida Provisória n.º 2.166-67, de 2001, atribuiu nova redação ao § 2º do Art. 16, disciplinando que a reserva não pode ser suprimida, permitindo a sua utilização sob o “regime de manejo florestal sustentável”. Manteve, ainda, a proibição quanto à alteração do destino nos casos de transmissão e desmembramento; no entanto, agora no § 8º do Art. 16, estendeu-se a proibição de alteração nos casos de retificação da área. Visto os contornos legais da inalterabilidade da área de “reserva legal”, é possível afirmar que o legislador pretendeu dar a ela um caráter de relativa inalterabilidade e permanência; no entanto, essa regra não é absoluta, haja vista que o próprio texto da Constituição Federal admite sua alteração, desde que ela seja autorizada por lei. Todavia, merece destacar que a legislação infraconstitucional reforçou o caráter de inalterabilidade disposto no Texto Maior, evitando que, no caso de transferência de proprietário, independentemente da decorrência da compra e venda, de usucapião, da acessão ou de qualquer outra forma de transmissão da propriedade rural, possa ocorrer a alteração da reserva, permitindo, tão-somente, o uso por via do “regime de manejo sustentável”. Não suficiente ao impedimento à alteração da destinação da área de “reserva legal” no caso de transferência a qualquer título, o novo detentor da propriedade rural também herdará todas as responsabilidades ambientais que recaem sobre imóvel, seja a fim de mantê-las de acordo com a legislação, seja a fim de regularizá-las; assim, se o imóvel rural não tiver a “reserva legal”, ele deverá obrigatoriamente instituí-la. Isso decorre em face das limitações ambientais possuírem natureza equivalente a de propter rem e o fato do meio ambiente ser um direito metaindividual, não podendo recair sobre ele os efeitos do direito adquirido. Além do mais, a responsabilidade sobre o dano ambiental é objetiva, o que será melhor detalhado em tópico isolado. 4.1.3. Restrições Legais de Exploração É transparente que há restrições legais de exploração das áreas de “reserva legal”, pois caso não houvesse, não haveria necessidade e justificativa para a existência de tal instituto. No entanto, as áreas destinadas a esse tipo de reserva não possuem uma restrição tão rígida quanto aquela imposta às áreas de preservação permanente, onde é proibido qualquer tipo de uso e supressão, salvo hipóteses de utilidade pública e necessidade social. No caso das áreas destinadas à “reserva legal”, o “Código Florestal”, primeiramente com a legislação dada pela Lei n.º 7.803/89, estabelecia apenas o impedimento ao corte raso. Com as modificações provocadas pela Medida Provisória n.º 2.166-67, estabeleceu no § 2º do Art. 16 que a vegetação ali existente não pode ser suprimida, “podendo apenas ser utilizada sob o regime de manejo florestal sustentável”. A Lei n.º 11.284, de 2 de março de 2006, define o “regime de manejo florestal sustentável” em seu Art. 3º, VI como: A administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços de natureza florestal; 154 Observa-se que os espaços territoriais das propriedades rurais destinadas à “reserva legal” podem ser utilizados, desde que ocorra a compatibilidade entre o uso e a preservação ambiental, situação que deverá ser precedida de licença ambiental do órgão competente, por meio do “Plano de Manejo Florestal Sustentável”. Esse documento técnico conterá todas as informações sobre os procedimentos e as diretrizes a serem 154 BRASIL, Lei n.° 11.284, de 2 mar. 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro – SFB. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm>. Acesso 5 abr. 2011. adotadas na administração da reserva, bem como suas atividades e a quantidade de exploração a serem realizados durante o período de doze meses.155 4.1.4. Gratuidade No que se refere ao atributo da gratuidade, é fundamental a identificação da natureza jurídica do instituto por ora analisado. Nesse sentido, como já fora analisado anteriormente, é pacífica a posição de que a área de “reserva legal” consiste em uma limitação administrativa ao exercício do direito de uso do proprietário rural, pois esse instituto se caracteriza por ser uma imposição legal, geral, unilateral e de ordem pública, não possibilitando, ao proprietário rural, qualquer indenização, devendo ele instituir a reserva sob sua inteira responsabilidade. 4.1.5. Delimitação e Demarcação O “Código Florestal” não exige expressamente que o proprietário realize a delimitação e a demarcação da reserva. No entanto, em face da obrigatoriedade da averbação da reserva junto ao cartório de imóveis, subsume-se a necessidade da identificação da área a ser protegida. Não suficiente a isso, é de responsabilidade do proprietário a manutenção e a preservação desse espaço; assim, é razoável que ocorra essa identificação, até como forma de atribuir maior segurança ao proprietário contra medidas coercitivas dos órgãos ambientais. Para Luís Paulo Sirvinskas, [...] a área de “reserva legal” deverá ser medida, demarcada e delimitada. Tal obrigação é de competência do proprietário. Caso este não realiza a medição, a demarcação ou a delimitação, poderá ser obrigado a fazê-lo por meio de ação civil pública.156 155 BRASIL, Decreto n.° 5.975, de 30 nov. 2006. Regulamenta os artigos 12, parte final, 15, 16, 19, 20 e 21 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5975.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. 156 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 408. 4.1.6. Isenção Tributária Se por um lado, a instituição da área de “reserva legal” não implica em nenhuma indenização ao proprietário por parte do Estado, por outro, a área correspondente à reserva na propriedade não estará sujeita à tributação. A Lei n.º 8.847, de 28 de janeiro de 1994, versa sobre o Imposto Territorial Rural, sendo que no seu Art. 11, I, estabelece que as “áreas de preservação permanente” e de “reserva legal” são isentas do imposto. Seguindo a mesma trilha, a Lei n.º 9.393, de 19 de dezembro de 1996, estabelece que a área tributável para o cálculo do Imposto Territorial Rural é a área total do imóvel menos as áreas de preservação permanente e as de “reserva legal”.157 Não obstante a isso, desde 1991 já existia diploma legal isentando as áreas de reserva da obrigatoriedade de recolhimento do Imposto Territorial Rural. A Lei n.º 8.171, de 17 de janeiro de 1991, que versa sobre a política agrícola do Brasil, disciplina em seu Art. 104 o seguinte: São isentas de tributação e do pagamento do Imposto Territorial Rural as áreas dos imóveis rurais consideradas de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei n.º 4.771, de 1965, com a nova redação dada pela Lei n.º 7.803, de 1989. 158 A respeito desse tema, importante mencionar a questão que vem sendo enfrentada pelo Judiciário: a Fazenda Nacional, após a edição do Decreto n.º 4.382, de 19 de setembro de 2002, tem exigido, para a concessão da isenção citada acima, que os proprietários rurais realizem a averbação da reserva junto ao cartório de imóveis, em face de o Decreto disciplinar como “reserva legal” tão-somente aquelas propriedades regularizadas junto aos cartórios de imóveis. Art. 12. São áreas de “reserva legal” aquelas averbadas à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, 157 BRASIL, Lei n.° 9.393, de 19 dez. 1996. Dispõe sobre o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR, sobre pagamento da dívida representada por Títulos da Dívida Agrária e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9393.htm>. Acesso em: 12 out. 2010. 158 BRASIL, Lei n.° 8.171, de 17 jan. 1991. Dispõe sobre a política agrícola. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8171.htm>. Acesso em: 12 out. 2010. nas quais é vedada a supressão da cobertura vegetal, admitindo-se apenas sua utilização sob regime de manejo florestal sustentável (Lei nº 4.771, de 1965, art. 16, com a redação dada pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001).159 Apesar de a interpretação da Fazenda Nacional contribuir positivamente à preservação ambiental e ao cumprimento da obrigatoriedade de averbação, não é possível admitir esse condicionamento no sistema jurídico vigente, sob a pena de violação ao princípio da legalidade, pois a isenção fora conferida por lei sem nenhum condicionamento. Isso não permitiu que uma norma hierárquica inferior extrapolasse o exposto numa norma superior; do mesmo modo, não é permitida a interpretação extensiva quanto à isenção tributária, conforme o Art. 111 do “Código Tributário Nacional”. Assim sendo, verifica-se que o Art. 12 citado acima não se coaduna com o conceito de “reserva legal” exposto pelo “Código Florestal”, e também como já ressaltado neste trabalho, não é a averbação que atribui existência à área protegida em questão, em que ela atribui apenas a publicidade à reserva. Nesse sentido, já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL CIVIL? TRIBUTÁRIO? ITR? BASE DE CÁLCULO? EXCLUSÃO DA “ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE” E “RESERVA LEGAL”? ISENÇÃO? PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA? LEI N. 9.393/96. 1. A Lei n. 9.393/96, que dispõe sobre o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR, preceitua que a área de “reserva legal” deve ser excluída do cômputo da área tributável do imóvel para fins de apuração do ITR devido (art. 10, § 1º, II, a). 2. Por sua vez, a Lei n. 11.428/2006 reafirma o benefício e reitera a exclusão da área de “reserva legal” de incidência da exação (art. 10, II, “a” e IV, “b”). 3. A relação jurídica tributária pauta-se pelo princípio da legalidade estrita, razão pela qual impõe-se ao julgador ater-se aos critérios estabelecidos em lei, não lhe sendo permitido qualquer interpretação extensiva para determinar a incidência ou afastamento de lei tributária isentiva. Recurso especial improvido.160 4.2. NATUREZA JURÍDICA 159 BRASIL, Decreto n.° 4.382, de 19 set. 2001. Regulamenta a tributação, fiscalização, arrecadação e administração do Imposto sobre a Propriedade Territorial - ITR. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4382.htm>. Acesso em: 6 abr. 2011. 160 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 2ª Turma. Recurso Especial n.° 998.727/TO. Recorrente: Fazenda Nacional. Recorrido: Cleudy Pereira Dias e outros. Relator: Min. Humberto Dias. Julgamento em: 6 abr. 2010. Publicado em: 16 abr. 2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ ita.asp?registro=200702498572&dt_publicacao=16/04/2010>. Acesso em: 6 abr. 2011. Perfilados os contornos jurídicos que moldam o instituto da “reserva legal” desde a legislação de 1934 até as alterações provocadas pela Medida Provisória 2.16667, de 24 de agosto de 2001, trava-se agora nova discussão, que por si só cotejaria uma dissertação. A conflituosidade doutrinária apresenta-se em grau elevado, longe da conquista de um consenso, referindo-se à natureza jurídica do instituto. Nesse diapasão, sintetizar os traços da “reserva legal” que transpassam o “Código Florestal” se mostra fundamental para esta celeuma, buscando ora no direito administrativo, ora no direito civil, as soluções para exposição a seguir. Inconfundível que o demandado instituto fora obra do legislador pátrio, cujo conteúdo impõe uma obrigação àqueles que se enquadram no tipo normativo: ser proprietário de imóvel rural, do qual se possa extrair, que consiste numa obrigação de cunho imperativo e unilateral, tendo em vista constituir preceitos de ordem pública que o Estado impõe ao particular, não permitindo a este qualquer negociação. A “reserva legal” também se caracteriza como instrumento de cunho geral, pois se refere a imóveis indeterminados quando da elaboração da norma, porém, identificáveis quando da sua aplicação. Não obstante, são gratuitas; o Estado não indenizará o proprietário pela constituição e a manutenção dessas áreas. Além de ser uma obrigação que integra a coisa, independentemente de quem seja seu proprietário, ela deverá ser constituída ou mantida. Delineados esses elementos da “reserva legal”, bem como suas características gerais, apontadas no tópico anterior, é possível averiguar a natureza jurídica do instituto, sendo de bom tom, antes disso, conceituar o que seria essa natureza jurídica. Para Maria Helena Diniz é a “afinidade que um instituto tem em diversos pontos, com uma grande categoria jurídica, podendo nela ser incluído o título de classificação”;161 determinar a natureza jurídica de um instituto consiste em identificar a sua essência para classificá-lo dentro do universo de figuras existentes no Direito. Seria como uma forma de localizar tal instituto topograficamente; é como se um instituto quisesse saber a qual gênero pertence, é a espécie procurando o gênero, é a subespécie procurando a espécie. Nesse cenário, a doutrina vislumbra três hipóteses para a definição da natureza jurídica do instituto em debate: como limitação administrativa; como servidão administrativa ou como obrigação civil de natureza propter rem. Registra-se que os 161 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral do Direito Civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 30. conceitos de limitação administrativa e servidão administrativa já foram explanados no tópico “Intervenção ao direito de propriedade”; adiciona assim, nesse tópico, apenas os contornos jurídicos da obrigação propter rem. As obrigações propter rem consistem em uma situação anômala, tendo em vista que a obrigação repousa entre o direito pessoal e o direito real, e incide sobre aquele que detém o domínio ou a posse de uma propriedade, direito real por natureza. “A obrigação propter rem passa a existir quando o titular do direito real é obrigado, devido à sua condição, a satisfazer certa prestação”;162 assim, a obrigação sempre é proveniente de um direito real, sendo que, segundo magistério de Antunes Varela, “há uma obrigação real sempre que o dever de prestar vincule quem for titular de um direito sobre determinada coisa, sendo a prestação imposta precisamente por causa dessa titularidade da coisa”.163 Por fim, resta acrescentar que a principal característica das obrigações propter rem é a transmissibilidade, a sucessão ou a transferência do domínio ou da posse da propriedade; importa, na assunção pelo novo detentor da coisa, a obrigação real nele contida, libertando o seu antecessor do gravame. Retornando ao ponto, a primeira opção e também a menos provável é a que sustenta a “reserva legal” como uma servidão administrativa; corroboram para essa posição os argumentos de que a reserva se caracteriza como um direito real, sendo o bem que suporta o gravame e não o proprietário, situação que se justifica em face do § 8º do Art. 16 do “Código Florestal”, quando proíbe a alteração da destinação da reserva em caso de transmissão da propriedade. Quanto a esse ponto, esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello que as servidões em face do ônus real impõem ao imóvel um abandono forçado uma renúncia parcial do direito de propriedade, sendo que nas limitações administrativas, “o uso da propriedade ou liberdade é condicionado pela Administração para que se mantenha dentro da esfera correspondente ao desenho legal do direito”. 164 Diante da colocação do autor, resta mais plausível a opção da “reserva legal” como um modo de limitação administrativa, pois o espaço protegido em questão restringe o direito de propriedade rural como uma forma de moldá-lo ao atendimento da função social da propriedade, não subtraindo os direitos do proprietário inerentes à 162 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. v. 2. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 11. 163 VARELA, Antunes. Direito das obrigações. v. 1, n. 13. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 45. 164 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 833. propriedade. Ele não deve ser entendido como um ônus ao proprietário; afinal, a proteção do meio ambiente é um dever e um direito de todos. Não suficiente a isso, os demais atributos também pesam contra a inserção dessa categoria de espaço protegido como servidão, em especial o fato de que esta, para ser instaurada, socorre-se a ato específico da Administração, atingindo propriedades determinadas, caracterizando-se geralmente como onerosas. O Estado, assim, deve indenizar o proprietário quando da sua instituição, enquanto a “reserva legal” é oriunda de ato geral e gratuito. A propósito: Se a propriedade é atingida por ato específico, imposto pela Administração, embora calcada em lei, a hipótese é de servidão, porque as limitações administrativas à propriedade são sempre genéricas. Se a propriedade é afetada por uma disposição genérica e abstrata, pode ou não ser caso de servidão. Será limitação, e não servidão, se impuser apenas um dever de abstenção: um non facere. Será servidão se impuser um pati: obrigação de suportar.165 Por segundo, Paulo de Bessa Antunes,166 com fortes argumentos, sustenta que a “reserva legal” constitui numa obrigação propter rem, decorrente de um direito real; como já salientado, uma obrigação que adere a coisa, sendo que seu ônus recai ao titular do imóvel enquanto este detiver essa condição. Assim, transferindo o domínio para outra pessoa, transfere-se automaticamente o dever de suportar a reserva para o novo titular do direito real. Consoante a esse entendimento, o autor afirma: A „reserva legal‟ é uma obrigação que recai diretamente sobre o proprietário do imóvel, independentemente de sua pessoa ou da forma pela qual tenha adquirido a propriedade, desta forma ela está umbilicalmente ligada à própria coisa permanecendo aderida ao bem. O proprietário, para se desonerar da obrigação necessita, apenas, renunciar ao direito real que possui, mediante qualquer uma das formas legais aptas para transferir a propriedade.167 165 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 836. 166 ANTUNES, Paulo de Bessa. Poder Judiciário e “reserva legal”: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito Ambiental, v. 6, n. 21, jan./mar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 121. 167 Idem, ibidem. O ensinamento exposto acima não pode ser combatido, em face de suas nuances materializarem perfeitamente o instituto da “reserva legal”. No entanto, tais afirmações também não excluem a identificação do espaço protegido como espécie de limitação administrativa; nota-se, por exemplo, uma restrição urbanística referente à proibição da construção de edifícios com mais de 4 (quatro) andares. A restrição existe independentemente da pessoa que é titular do imóvel e, se houver transferência, subsiste também a restrição. Desse modo, a limitação administrativa também pode aderir à coisa e não à pessoa, pois, assim como as servidões e o usufruto, “as obrigações propter rem podem decorrer da comunhão ou copropriedade, do direito de vizinhança, do usufruto, da servidão e da posse”.168 Coadunando com esse entendimento seria necessário admitir, por exemplo, que a servidão e os direitos de vizinhança seriam espécies da obrigação propter rem, pois a identificação da natureza jurídica de um elemento nada mais é do que a identificação de pontos comuns, organizando-os em classes todos aqueles que se assemelham, situação que não procede. Percebe-se que as servidões constituem numa obrigação real, mas se caracterizam primeiramente por serem uma espécie de intervenção ao direito de propriedade. Da mesma forma que as limitações administrativas, o fato de constituírem numa obrigação propter rem não afasta a sua natureza como servidão, sendo que do mesmo modo devem ser entendidos os casos de limitações administrativas que carregam uma obrigação real. Salienta-se que, “para o surgimento de uma obrigação propter rem, há necessidade, portanto, de dois direitos reais em conflito, quer esse conflito resulte da vizinhança ou do que se pode chamar de superposição de direitos reais”.169 É indispensável uma dualidade de direitos reais para sua configuração, cuja visualização no caso da “reserva legal” só seria possível se a preservação ambiental fosse considerada como um direito real pertencente a toda coletividade, o que poderia inclusive afirmar que a pessoa sujeita a uma obrigação dessa natureza seria, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo da relação. A corrente doutrinária em análise sustenta que, em face da transmissibilidade da obrigação, cujo fato decorre do seu entendimento como obrigação propter rem e da 168 CHAVES, Antônio. Lições de direito civil: direito das obrigações. São Paulo: José Bushatsky / Edusp, 1973. p. 223. Apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2001. p. 55. 169 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2001. p. 57. responsabilidade objetiva e solidária, o dever de constituir, reconstituir e preservar a área de “reserva legal” é transferido ao novo proprietário.170 A obrigação propter rem caracteriza-se pela desoneração do proprietário quanto ao ônus quando ele se livrar do direito real que possui. Desse modo, assumindo tal posição implica em admitir a total desoneração daquele detentor do direito real que degradou o ambiente, recaindo o ônus tão-somente para o seu sucessor; posicionamento esse que vai contra a Constituição Federal, os princípios ambientais e a responsabilidade objetiva e solidária citada, tendo em vista que, de forma alguma, aquele que lesou o ambiente pode se livrar de sua responsabilidade, simplesmente por não ser mais o sujeito daquele direito real. Nota-se que a Constituição Federal estabelece que as ações lesivas ao ambiente implicam na responsabilidade penal e administrativa aos seus agentes, além da obrigatoriedade de reparar os danos, conforme expresso no § 3º do Art. 225. Não obstante aos princípios do direito ambiental já consagrados, como o do poluidorpagador e o da reparação, fragilizam o entendimento da área de “reserva legal” como uma obrigação propter rem, visto que os princípios em comento representam sinteticamente que aquele que poluir ou degradar o ambiente deve “pagar” por seus atos. Assim, diante do dever constitucional de se responsabilizar o autor de ato lesivo ao nas esferas administrativa, civil e criminal, é difícil enquadrá-lo como uma obrigação real, pois, versando a obrigação sobre matéria ambiental, não há que se falar em transferência de responsabilidade em face de o autor da degradação não ser mais portador do direito real. Essa situação também é diversa da responsabilidade objetiva e solidária que abraça o dano ambiental, como bem disciplina o § 1º do Art. 14 da Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981, transcrito abaixo: Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: [...] § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, 170 MIRANDA, Lara Caroline, MELO, Vanêssa Rodrigues, FIGUEIRA DE MELO, Luiz Carlos. Ponderações sobre a natureza jurídica das áreas de preservação permanente e de “reserva legal”. Fórum de direito urbano e ambiental, v. 9, n. 51. Belo Horizonte: Fórum, mai./jun. 2010. p. 85. afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. 171 Apesar de não haver pretensão em adentrar no mérito da discussão referente à responsabilidade ambiental, aponta-se que “a responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o ambiente tem o dever jurídico de repará-lo. Presente, pois, o binômio dano/reparação”;172 logo, não há discussão de culpa, tão-somente a análise do dano e o nexo causal, e esta não decorre em face da “reserva legal” constituir em uma obrigação de natureza propter rem, mas por força da Constituição Federal que impôs que todos as pessoas possuem o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e que a sua recuperação é dever daquele que o degradou, independentemente de qualquer responsabilização civil, administrativa ou criminal [Art. 225, caput e § 3º]; não se pode, de tal modo, haver exclusão de responsabilidade sob o simples fato de transferência do direito real, ponto marcante das obrigações propter rem. Já a responsabilidade solidária existente no direito ambiental é oriunda, primeiramente, em razão da natureza do bem que está em debate: “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, “bem de uso comum de todos”; um macrobem, cuja natureza transpassa a discussão de quem tem o dever de reparar. Percebe-se ainda a existência do princípio da solidariedade representando o dever de cooperação entre as gerações e, não suficiente a isso, acrescenta-se que a Lei n.º 6.938/81 identifica que poluidor é aquele que direta ou indiretamente seja responsável por atividade lesiva ao meio ambiente [Art. 3º, IV], situação que pode ser perfeitamente enquadrada quando o novo proprietário adquire uma propriedade desconstituída de área de “reserva legal”. Nessa ordem, aqueles que defendem o espaço protegido em debate como uma obrigação propter rem, caracterizam-na como de natureza civil; deve-se, assim, ser investigada sob os alicerces da legislação civil, socorrendo em suas omissões junto ao direito das obrigações.173 Observa-se que respeitada indagação remete à sobreposição do direito civil sobre os demais ramos, interpretando os diversos elementos jurídicos 171 BRASIL, Lei n.° 6.938, de 31 ago. 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>. Acesso em: 21 jan. 2011. 172 LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito ambiental brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 361. 173 ANTUNES, Paulo de Bessa. Poder Judiciário e “reserva legal”: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito Ambiental, v. 6, n. 21, jan./mar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 121. sob o prisma do direito civil, característica marcante do estado liberal individualista e privatístico do século XIX. No entanto, estar-se-á certo que a ordem agora vigorante é outra: a de um constitucionalismo calcado na dignidade da pessoa humana e na justiça social, submetendo-se aos princípios da soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, conforme esculpidos no Art. 170 da Constituição Federal. Logo, não é possível a afirmação de que as regras do direito florestal se submetem às normas do direito civil, pois se estará versando sobre um macrobem, um interesse difuso, cuja proteção é dada pelo Texto Maior. Portanto, apesar de ser inquestionável que a responsabilidade sobre a área de “reserva legal” se transfere ao sucessor da propriedade, não é possível afirmar que a natureza jurídica dela seja de uma obrigação propter rem, tendo em vista que, conforme afirmado, versando sobre dano ambiental, aquele que praticou a conduta lesiva possui o dever de repará-la, independentemente de transferir a propriedade para outro. Não suficiente a isso, não é possível tratar o bem ambiental como mera obrigação de natureza civil, e também pelo fato de não haver elementos suficientes que individualizem a “reserva legal” como espécie de obrigações propter rem. No entanto, não há impedimento que a área de proteção em questão não detenha características que a assemelham às obrigações de cunho real. Nesse cenário, encontra-se, na última possibilidade, a identificação da “reserva legal” como uma espécie de limitação administrativa, pesa a favor desse entendimento o enquadramento do referido espaço protegido nos delineamentos gerais das limitações administrativas, fator essencial para a identificação de sua natureza jurídica. Entende-se que a “reserva legal”, assim como as limitações administrativas são de cunho geral, genérico, imperativo e gratuito, não suficiente a isso e de tal sorte, mais relevante, se apresentam como forma de moldar o uso da propriedade a fim de atender ao interesse social, coadunando-se com o preceito constitucional da função social da propriedade. Celso Antônio Bandeira de Mello, ao distinguir as servidões das limitações, estabelece ponto fundamental, o qual também pode ser utilizado para diferenciá-la de uma obrigação de natureza real, em especial propter rem. Visualiza-se: b) nas servidões administrativas há um ônus real – ao contrário das limitações –, de tal modo que o bem gravado fica em um estado de especial sujeição à utilidade pública, proporcionando um desfrute direto, parcial, do próprio bem (singularmente fruível pela 174 Administração ou pela coletividade em geral). A “reserva legal” não pode ser entendida como um ônus real, o que a caracterizaria como uma servidão ou uma obrigação de natureza real, tendo em vista que ônus, na singela concepção da palavra, significa um peso, uma carga e a proteção ambiental, sua preservação e recuperação não podem ser entendidos nessa acepção, pois constituem elementos essenciais à preservação da espécie humana. Do mesmo modo, a manutenção do citado espaço protegido não implica numa aniquilação do direito do direito de propriedade; apenas há “sujeição à utilidade pública”, ou melhor: à coletividade o uso é parcial, já que na área protegida é permitido o uso sustentável dos recursos naturais e, de forma alguma, pode ser equiparado a um ônus. “A reserva legal sendo uma limitação administrativa, não retira da propriedade, como um todo, a possibilidade de seu uso econômico”.175 Com efeito, Hely Lopes Meirelles assinala que “limitações administrativas são, p. ex., o recuo de alguns metros das construções em terrenos urbanos e a proibição de desmatamento de parte da área florestada em cada propriedade rural”. 176 Destarte as indagações realizadas, a natureza jurídica que mais se cristaliza com a “reserva legal” é a de limitação administrativa, tendo em vista que constitui numa forma de intervenção do Estado na propriedade a fim de moldá-la ao instituto da função social da propriedade, o qual não pode ser visto como um ônus, e sim como uma funcionalização da propriedade. Não se pode afirmar que, pelo simples fato de a obrigação acompanhar o detentor do direito real, trata-se de uma obrigação propter rem, sendo mais prudente apenas afirmar que tal característica se equipara à obrigação de cunho civil. 4.3. FORMAS DE RECOMPOSIÇÃO 174 MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 834. 175 MAGALHÃES, Vladimir Garcia. “reserva legal”. Revista de Direitos Difusos, v. 6, n. 32. p. 117156, jul./ago. 2005. São Paulo: Aprodab, 2005, 126-127. 176 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 620. Não suficiente a obrigatoriedade de identificar, demarcar, averbar e manter a área de “reserva legal”, cada proprietário rural ou possuidor rural também possui o dever de, no caso dela ser insuficiente ou estar devastada, promover a devida restauração da área. Pretendeu o legislador estabelecer uma maior efetividade à concretização do instituto, facilitando a fiscalização e, de certa forma, adotando uma padronização das formas de se restabelecer a vegetação daquela área a ser protegida; evitou-se, assim que cada proprietário ou possuidor rural adotasse alternativas diferentes de promover a adequação das reservas ao que está previsto na lei. O “Código Florestal” instituiu três formas para restabelecer ou adequar a reserva aos parâmetros legais: i) recomposição; ii) regeneração; iii) compensação; as quais o proprietário ou possuidor rural poderá se valer de forma isolada ou conjunta. No entanto, a fim de melhor compreensão didática sobre o assunto, valer-se-á do termo “recomposição” para identificar o gênero dos procedimentos possíveis à adequação da “reserva legal” aos limites legais. Desse modo, ter-se-ão como espécies: i) recomposição mediante plantio; ii) regeneração; iii) compensação; e iv) servidão florestal. 4.3.1. Recomposição mediante o plantio A Lei n.º 4.771, de 1965, como já salientado, disciplina a “Recomposição” como a primeira medida que poderá ser adotada a fim de regularização da reserva, prevista no Art. 44, I, estabelecendo que o detentor do imóvel rural com área de “reserva legal” insuficiente ou devastada promoverá o plantio de espécies nativas na proporção de 1/10 (um décimo) da área a ser complementada a cada três anos, de acordo com as disposições técnicas do órgão estadual responsável. Insta salientar que o presente instituto fora inserido no ordenamento por via da Medida Provisória n.º 2.166-67, de 2001; logo, o prazo de 30 (trinta) anos para recomposição iniciou-se em 2001, sendo que não é possível admitir que, depois de transcorridos quase 10 (dez) anos da lei, o proprietário ou possuidor de reserva devastada ou insuficiente procure o órgão ambiental competente para iniciar a recomposição. Antes mesmo disso, a Lei n.º 8.171, de 17 de janeiro de 1991, que disciplina a Política Agrícola, já estabelecia, nos mesmos moldes, que os proprietários rurais de reservas devastadas ou inexistentes tinham a obrigatoriedade de recomposição dessas áreas a título de “reserva legal”, determinando que ocorresse recomposição de, pelo menos, 1/30 (um trinta avos) por ano da área devastada [ação que deve ou deveria ter início em 1992]. Art. 99. A partir do ano seguinte ao de promulgação desta lei, obrigase o proprietário rural, quando for o caso, a recompor em sua propriedade a Reserva Florestal Legal, prevista na Lei n.º 4.771, de 1965, com a nova redação dada pela Lei n.º 7.803, de 1989, mediante o plantio, em cada ano, de pelo menos um trinta avos da área total para complementar a referida Reserva Florestal Legal (RFL).177 Paulo de Bessa Antunes é um crítico ao estabelecimento de prazo para a recuperação do espaço a ser protegido. Com efeito: O estabelecimento de “prazos” para o reflorestamento da reserva legal, como se esta não fosse uma condição de existência da própria propriedade florestal, tem o condão de violar diretamente ao art. 225 da CF, pois adia o desfrute do direito ao meio ambiente 178 ecologicamente equilibrado. Nota-se que o autor citado afirma que a reserva é a essência da propriedade rural, sem a qual esta não existiria, entendimento que remete à ideia de propriedadefunção defendida por Duguit, doutrina que, apesar de louvável, não prevalece atualmente, conforme já anotado no tópico referente à função social da propriedade. Ainda quanto à recomposição, insta salientar que a medida de forma alguma permite a supressão da reserva sob a justificativa de posterior recomposição da área em trinta anos, acrescentando:“O novo art. 44, ao admitir a recomposição, só o fez para 177 BRASIL, Lei n.° 8.171, de 17 jan. 1991. Dispõe sobre a Política Agrícola. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8171.htm>. Acesso em: 16 set. 2010. 178 ANTUNES, Paulo de Bessa. Poder Judiciário e “reserva legal”: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito Ambiental, v. 6, n. 21, jan./mar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 121. situações passadas, situações consumadas antes da superveniência da norma de recomposição”. 179 Resta acrescentar que o “Código Florestal” prevê o apoio do órgão técnico ambiental à pequena propriedade rural, para a posse familiar e para a realização da recomposição e, admite ainda, a fim de permitir a restauração do ecossistema original, que se realize o plantio de espécies exóticas como pioneiras. No entanto, essa atividade deve ocorrer de forma temporária, haja vista que o intuito é o restabelecimento da vegetação da forma como ela era antes de ser devastada. O plantio de plantas exóticas [não originárias daquele bioma] ocorrerá conforme normas técnicas expedidas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente [CONAMA] e tem a finalidade de permitir o ressurgimento gradual da vegetação nativa, como também, não restringir, de forma total e imediata, o aproveitamento econômico da área. Isso possibilita ao proprietário ou posseiro rural a obtenção de vantagem econômica com a futura “substituição” das espécies exóticas pelas nativas daquele bioma. Nesse mesmo norte, constata-se que as legislações estaduais também contribuem para a aplicação dessa medida restauradora da reserva, não se limitando à reprodução da lei federal, mas também apresentando consideráveis contribuições, principalmente por melhor detalhar considerações técnicas sobre o tema. A título exemplificativo, citam-se as legislações dos Estados de Minas Gerais e São Paulo. O Estado de Minas Gerais disciplinou a recomposição da área de “reserva legal” por via do Art. 17, I, da Lei n.º 14.309, de 19 de junho de 2002 e regulamentada pelo Art. 19, I e §§ 1º, 2º e 3º do Decreto n.º 43.710, de 8 de janeiro de 2004. Apesar disso, utilizou a denominação “plantio em parcelas anuais ou implantação e manejo de sistemas agroflorestais”,180 merecendo destaque o fato de atribuir apenas 36 (trinta e seis) meses para o proprietário ou posseiro rural recompor a reserva, podendo ser prorrogável por igual período. Já a legislação paulista prevê a recomposição da “reserva legal” por via da Lei n.º 12.927, de 23 de abril de 2008, sendo regulamentada pelo Decreto n.º 53.939, de 6 de janeiro de 2009, merecendo destaque a previsão diferenciada de prazo para recomposição quando ao tipo de espécie utilizada. Caso sejam utilizadas espécies 179 SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 7. ed. Malheiros: São Paulo, 2009. p. 188. MINAS GERAIS, Lei n.° 14.309, de 19 jun. 2002. Disponível em: <www.almg.gov.br>. Acesso em: 16 out. 2010. 180 nativas, o Decreto, no seu Art. 6º, IV, alíneas “a” e “b”, prevê o prazo de 30 (trinta) anos para recomposição e, no caso da utilização de espécies exóticas o prazo cai para 8 (oito) anos. Acrescenta-se, ainda, que o referido Decreto paulista regulamenta detalhadamente a utilização de espécies exóticas na recomposição da reserva. Nota-se: Artigo 7º - O plantio de espécies arbóreas exóticas intercaladas com espécies arbóreas nativas ou de Sistemas Agro-florestais (SAF) para a recuperação de Reservas Legais, previsto no inciso III do artigo 6º deste decreto, fica condicionado à observação dos seguintes princípios e diretrizes: I - densidade de plantio de espécies arbóreas: entre 600 (seiscentos) e 1.700 (mil e setecentos) indivíduos por hectare; II - percentual máximo de espécies arbóreas exóticas: metade das espécies; III - número máximo de indivíduos de espécies arbóreas exóticas: metade dos indivíduos ou a ocupação de metade da área; IV - número mínimo de espécies arbóreas nativas: 50 (cinquenta) espécies arbóreas de ocorrência regional, sendo pelo menos 10 (dez) zoocóricas, devendo estas últimas representar 50% (cinquenta por cento) dos indivíduos; V - manutenção de cobertura permanente do solo; VI - permissão de manejo com uso restrito de insumos agroquímicos; VII - não-utilização de espécie-problema ou espécie-competidora; VIII - controle de gramíneas que exerçam competição com as árvores e dificultem a regeneração natural de espécies nativas. § 1º - O proprietário ou o titular responsável pela exploração do imóvel, que optar por recompor a “reserva legal” por meio de plantio de espécies arbóreas nativas de ocorrência regional intercaladas com espécies arbóreas exóticas, terá direito à sua exploração. § 2º - Não poderá haver o replantio de espécies arbóreas exóticas na “reserva legal” uma vez findo o ciclo de produção do plantio inicial, exceto no caso de pequenas propriedades.181 4.3.2. Regeneração Natural A regeneração natural é o segundo procedimento previsto pelo “Código Florestal”, a fim de possibilitar o restabelecimento da vegetação natural correspondente a área de “reserva legal”. Ele está previsto no Art. 44, II, e diz respeito ao processo de recuperação natural dos atributos ambientais daquela área, sem ocorrer nenhuma interferência humana, salvo a atividade de isolamento da respectiva área, quando necessário. 181 SÃO PAULO, Lei n.° 12.927, de 23 abr. 2008. http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao decreto%20n.53.939,%20de%2006.01.2009.htm>. Acesso em: 16 out. 2010. Disponível em: /decreto/2009/ Tal medida somente poderá ser utilizada mediante a autorização do órgão ambiental estadual competente após comprovação, por laudo técnico, de que o solo apresenta resquícios de vegetação suficientes à regeneração, e o próprio ecossistema atuará a fim de restaurar as condições naturais primitivas. Édis Milaré 182 esclarece que esse procedimento deverá ocorrer, “de forma preferencial, nas áreas que as alterações naturais e antrópicas não eliminaram a totalidade dos meios de regeneração bióticos”, acrescentando, ainda, que em tal fenômeno: “a capacidade de um ecossistema se recuperar das alterações provocadas por distúrbios naturais ou antrópicos pode ser definida como „resiliência‟”. 4.3.3. Compensação A terceira hipótese alternativa prevista pela Lei n.º 4.771/65, a fim de restabelecer a reserva aos limites exigidos pela lei, refere-se à compensação florestal. Nela, o proprietário ou posseiro rural oferecerá outra área, de igual extensão e equivalente importância ecológica, para que se institua como “reserva legal” daquela desproveniente de área a ser protegida. Como a própria terminologia identifica, trata-se de uma solução alternativa em que a lei permite ao proprietário instituir a área de “reserva legal” em outra propriedade, valendo-se dela para compensar o débito ambiental de outro imóvel rural, desde que ela preencha os requisitos previstos no próprio inciso III do Art. 44 do “Código Florestal”: i) possuir mesma importância ecológica; ii) as áreas devem possuir a mesma extensão; iii) as áreas a serem compensadas devem pertencer ao mesmo ecossistema (assim, por exemplo, não é possível compensar uma área de vegetação típica de floresta amazônica com outra área com atributos de cerrado); e iv) por fim, devem estar localizadas na mesma microbacia hidrográfica. No entanto, admite a lei florestal que na hipótese de não ser possível realizar a compensação com área localizada na mesma microbacia, será permitida a compensação com área localizada em mesma bacia hidrográfica e no mesmo estado. Assim sendo, o órgão estadual competente deve adotar o critério de maior proximidade possível entre a 182 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.758. área com o deficit ambiental e aquela compensadora, bem como estipula o §4º do Art. 44. Nota-se que tão-somente de forma excepcional pode ocorrer a compensação com área situada fora da mesma microbacia, não podendo haver confusão entre microbacia e bacia hidrográfica. Nesse norte, importante acrescentar a inovação legislativa trazida pelo Estado de Minas Gerais por via da Lei n.º 14.710/04 que permitiu a aquisição, inclusive através de condomínio, de área situada na mesma bacia hidrográfica e a sua consequente instituição em Reserva Particular do Patrimônio Natural – RPPN como forma de compensação, antes mesmo de esgotar as possibilidades de se encontrar áreas na mesma microbacia. Diante de evidente afronta, a Lei n.º 4.771/65 e os incisos V e VI do Art. 17 da Lei n.º 14.710/04 foram objetos de Ação Direta da Inconstitucionalidade sob a alegação de terem extrapolado a competência concorrente prevista no Art. 24, caput e inciso VI da Constituição Federal, haja vista que a lei federal não permite de forma direta a compensação com área situada fora da mesma microbacia, salvo quando não for possível. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais pronunciou-se a favor da inconstitucionalidade, conforme ementa transcrita abaixo: EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Artigo 17, incisos V, VI e VII e parágrafo 6º da Lei Estadual nº 14.710/2004. Política florestal e de proteção à biodiversidade no Estado. Artigo 19, incisos V e VII, e parágrafo 6º, do Decreto Estadual nº 43.710/04. Regulamento. “reserva legal”. Inconstitucionalidade manifesta. Extrapolação de competência suplementar. Disciplina contrária à legislação federal de regência. Ofensa ao artigo 10, inciso V, e parágrafo 1º, I, da Constituição Estadual. Representação acolhida. Vício declarado. - A recomposição da “reserva legal” em imóveis rurais a ser implementada mediante compensação, consoante a legislação federal de regência, somente é possível se se der por outra área equivalente em importância ecológica e extensão, desde que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma microbacia.183 183 MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça do Estado. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.0000.07.456706-6/000. Comarca de Belo Horizonte. Requerente: Procurador Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais. Requerido: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Relator: Des. Roney Oliveira. Julgamento em: 27 ago. 2008. Publicado em: 7 nov. 2008. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 6 abr. 2011. Para a realização da compensação, além da aquisição de área para ser compensada, o “Código Florestal” prevê, no §5º do Art. 44, que ela poderá ocorrer de duas outras maneiras: i) por via de arrendamento de área sob o regime de servidão florestal ou de outra área de reserva; ou ii) por via da aquisição de “Cotas de Reserva Florestal”. 4.3.3.1. Servidão Florestal A servidão florestal constitui forma alternativa de compensação da área de “reserva legal”, instituída no “Código Florestal” por via da Medida Provisória n.º 1.95650/00, tendo em vista o acréscimo do Art.44-A ao ordenamento. O instituto versa sob a possibilidade de um proprietário rural, de acordo com sua vontade, instituir área de proteção florestal com vista à destinação daquela ao cumprimento da obrigatoriedade de área de “reserva legal” de terceiro. Art. 44-A. O proprietário rural poderá instituir servidão florestal, mediante a qual voluntariamente renuncia, em caráter permanente ou temporário, a direitos de supressão ou exploração da vegetação nativa, localizada fora da reserva legal e da área com vegetação de preservação permanente.184 Para a funcionalidade do instituto, o proprietário serviente renuncia o exercício de alguns direitos sobre o imóvel como, especificamente, a possibilidade de supressão da vegetação ali existente, bem como o direito de explorá-la, sendo que as restrições assumidas poderão ser por prazo determinado ou indeterminado, dependendo da forma avençada entre as partes envolvidas. No entanto, caso seja por prazo determinado, este necessariamente deverá ser observado, inclusive nos casos de alteração da destinação da área, além da averbação junto à matrícula do imóvel ser obrigatória independentemente se a avença for por prazo determinado ou não, assim como a anuência do órgão ambiental competente também é essencial. Isso é disciplinado no §2º do Art. 44-A do Código Florestal, in verbis: 184 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 6 abr. 2011. § 2o A servidão florestal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, após anuência do órgão ambiental estadual competente, sendo vedada, durante o prazo de sua vigência, a alteração da destinação da área, nos casos de transmissão a qualquer título, de desmembramento ou de retificação dos limites da propriedade.185 No que tange à natureza jurídica do instituto, José Afonso da Silva descreve que ela apenas possui “aparência de servidão”, não a configurando como aquele instituto do direito civil ou do direito administrativo, pois “não há uma relação prédio serviente/prédio dominante [servidão privada], nem mesmo vínculo entre uma coisa serviente [imóvel particular] e um bem de domínio público [servidão pública].186 Como salientado, na servidão florestal, o proprietário do imóvel rural coberto por áreas de vegetação acima dos níveis que lhe é exigido, concorda em impor limites ao seu direito de propriedade em face de interesses ambientais. Ele permite que outro proprietário rural, com deficit ambiental na sua propriedade, em especial na área de “reserva legal”, utilize-as como forma de cumprir com as exigências próprias do seu imóvel, aceitando, inclusive, uma contraprestação financeira decorrente da avença. Interessante destacar que é necessário ainda para a realização da servidão florestal que os imóveis, servientes e dominantes estejam localizados na mesma microbacia hidrográfica, bem como possuam as mesmas características ambientais. A instituição da servidão ambiental mostra-se bastante vantajosa, tanto economicamente, em face do custo de instituição ser menor, pois não há necessidade de aquisição do imóvel para efetivar a proteção ambiental, como também sociológica, haja vista ser instituto decorrente da livre manifestação de vontade do proprietário, que resulta numa maior efetividade, como bem ressalta Paulo Roberto Pereira de Souza: A modalidade de servidão de conservação tem se revelado extremamente eficiente para a proteção de terras particulares, em razão dos altos custos para a aquisição das mesmas, além do envolvimento do proprietário que a instituiu, de organizações da sociedade civil, que assumem a fiscalização e supervisão da área protegida, fazendo com que a coletividade também assuma sua responsabilidade. Tradicionalmente esta função vem sendo 185 Idem, ibidem. Acesso em: 6 abr. 2011. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 190. 186 desempenhada pelo poder público, através da criação de parques, reservas e outras áreas protegidas, a um custo excessivamente alto. 187 Por fim, resta acrescentar que a servidão florestal não pode ser aplicada em substituição às áreas de preservação permanente, as quais não podem ser compensadas. Elas somente podendo ser suprimidas com a autorização do Poder Executivo e em face de razões de utilidade pública ou interesse social. 4.3.3.2. Cotas de Reserva Florestal O “Código Florestal”, em face das alterações provocadas pela Medida Provisória n.º 1.956-50/00, disciplina também como forma alternativa ao atendimento da área de “reserva legal” a possibilidade de se adquirir “cotas de reserva florestal”, conforme Art. 44-B, as quais constituem em títulos representativos de vegetação. Essas cotas são oriundas de servidão florestal, das reservas particulares do patrimônio natural ou das áreas de reservas legais que excedam os limites exigidos pela lei, permitindo, assim, a negociabilidade desses espaços protegidos, facilitando e incentivando a efetividade dessa norma ambiental. Nota-se que a instituição das cotas decorre de livre manifestação da vontade do titular de domínio de propriedade imóvel rural que possua excedente de áreas protegidas, devendo, para isso, averbá-las junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente. A comprovação da renúncia temporária ou permanente do exercício dos direitos ambientais inerentes àquela proteção florestal permite, a partir disso, a emissão das respectivas cotas para que sejam negociadas com terceiros. Por fim, ressalta-se que o parágrafo único do Art. 44-B do “Código Florestal” dispõe que a utilização das “Cotas de Reserva Florestal” deverá ser regulamentada e, atendendo tal determinação, tramitava na Câmara Federal o Projeto de Lei n.º 5.876, de 12 de setembro de 2005, o qual fora arquivado em 31 de janeiro de 2011, dificultando assim a sua aplicação. No entanto, cabe também aos Estados Federados a sua regulamentação, podendo eles suprimir a falta da norma geral a fim de dar efetividade à disposição prevista no “Código Florestal”. 187 SOUZA, Paulo Roberto Pereira de. Servidão Ambiental. Revista Jurídica Cesumar, ano I, n. 1, 2001, 127-149. 5. A EXIGIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA ÁREA DE “RESERVA LEGAL” NA TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL EM URBANA Visto à exploração dos elementos históricos, sociais e jurídicos que envolvem a propriedade, sua definição e diferenças entre propriedade rural e urbana, a exposição da nova roupagem assumida pelo instituto [função social], decorrente da percepção e evolução que a propriedade não se limita ao atendimento das satisfações individuais, devendo também estar voltada a um fim social, instituto esse que recebera tratamento especial pelo constituinte de 1988, especialmente quanto à propriedade rural, sujeitando-a ao atendimento de critérios econômicos, sociais e ambientais, autorizando inclusive o Estado a tomar medidas interventivas na propriedade a fim de direcioná-las ao cumprimento de sua funcionalização, em especial por via das limitações administrativas; bem como a ênfase atribuída pela Constituição Federal à proteção ambiental, a identificação do ambiente sadio como direito fundamental da pessoa humana, em vista de assegurar a todos “um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações”, o que consagra o “princípio da solidariedade intergeracional”,188 onde neste sentido, as presentes gerações devem adotar ações e medidas para que as próximas gerações também possam usufruir das condições ambientais saudáveis ao exercício de uma vida digna, verificar-se-á, a partir de agora, sob esse contexto relatado, a importância da “reserva legal” como instrumento de efetivação do direito fundamental a um ambiente ecologicamente equilibrado para “as presentes e futuras gerações”, pois conforme salientado, o instituto em questão é espécie de “espaço especialmente protegido”, destinado à conservação e à reabilitação de toda a biodiversidade e dos processos ecológicos, sendo que sua supressão, conforme a 188 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 819. Constituição Federal, somente será permitida por via da edição de lei, devendo assim, ser mantida quando da transformação da propriedade rural em urbana. Neste sentido, conforme já apontado, a imposição legal da limitação administrativa que toda propriedade rural deva ter área de “reserva legal” vem sendo frequentemente desrespeitada, seja por irresponsabilidade ambiental dos proprietários rurais, como pela complacência do Estado, que por sua vez não assume métodos eficazes de fiscalização e ignora muitas vezes essa obrigação ambiental, motivado por interesses escusos, em especial da classe ruralista, que exerce enorme pressão contra a manutenção do instituto. Não suficiente a complacência do Estado e o desrespeito dos proprietários rurais à norma posta, observa-se que as áreas de “reserva legal” têm seu conteúdo e efetividade diminuídos em face do êxodo rural, acontecimento inevitável que vêm ocorrendo no Brasil, principalmente a partir dos anos 1980. Fenômeno que contribui intensamente para o crescimento das cidades, as quais passam a ocupar áreas que anteriormente eram destinadas a fins rurais, resultando no desaparecimento das áreas de “reserva legal”. É sob esse prisma que assiste razão à realização do presente trabalho: se a propriedade rural, ao ter sua destinação alterada para a urbana, poderá ser dispensada da obrigatoriedade de instituição e manutenção do espaço protegido em questão, em face da sustentação que ela incide tão-somente às propriedades rurais e enquanto elas permanecerem com essa natureza. 5.1. APLICAÇÃO DO “CÓDIGO FLORESTAL” Quanto à incidência do “Código Florestal” nas propriedades rurais, não assiste dúvidas, inclusive naquelas propriedades rurais localizadas no perímetro urbano das cidades, pois conforme analisado em tópico específico, fora demonstrado que é pacífica a posição do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que, para a identificação da propriedade rural, é relevante tão-somente o critério da destinação; logo, pouco importa a localização da propriedade. No entanto, para a definição da propriedade urbana, é necessário, além da destinação para fins urbanos, o preenchimento de pelo menos três das melhorias previstas pelo Art. 32 do “Código Tributário Nacional”. Assim, aquela propriedade destinada a fins rurais, mesmo que localizada no perímetro urbano, será considerada rural, consequentemente sujeita às obrigações impostas pelo “Código Florestal”. Nesse mesmo norte, fora constatado também que as áreas de expansão urbana são aquelas destinadas ao crescimento das cidades, e elas deverão vir determinadas pelos Planos Diretores. Todavia, a identificação dessas áreas pouco contribui para este estudo, pois as delimitações dessas áreas visam apenas possibilitar o planejamento das cidades, não possuindo o condão de alterar a destinação de qualquer propriedade. Notase que a propriedade será urbana ou rural conforme sua destinação, pouco importando se ela esteja localizada dentro de área delimitada como de expansão urbana; consequentemente, a propriedade rural estará sujeita à aplicação do “Código Florestal”, obrigada, assim, à manutenção da “área de “reserva legal” nos limites previstos em lei. No entanto, quanto à prevalência da aplicação do “Código Florestal” àquelas propriedades rurais que com o devido parcelamento passam a ter destinação urbana, em especial a obrigação ou não da manutenção da reserva em foco, o tema apresenta-se de maneira bastante controvertida. O principal ponto a ser enfrentado refere-se à aplicação das normas conforme o tempo em que elas foram editadas, e ainda, conforme a especialidade e hierarquia, para verificar se há normas contrapostas; ocorrendo conflitos, verificar-se-á qual prevalece em face desse tema, bem como o conflito de competência entre os entes federados. Desse modo, o comando normativo inicial e posto hierarquicamente superior aos demais é a Constituição Federal, sendo ela a responsável por conferir validade às demais normas. Nessa órbita, verifica-se que o Texto, no capítulo “Da Política Urbana”, limita-se no seu Art. 182 em determinar que o desenvolvimento urbano é de responsabilidade do Município, o qual deverá organizá-lo a fim de garantir o bem-estar dos seus habitantes. O instrumento básico a ser utilizado para essa realização é o Plano Diretor, cuja função primordial é estabelecer as diretrizes a serem observadas pelas propriedades urbanas a fim de que cumpram com sua função social. Todavia, relevante ressaltar que o Plano Diretor, apesar de indicação constitucional, não é o único instrumento responsável ao direcionamento da propriedade urbana ao cumprimento da função social, situação que, se assim fosse, importaria em afirmar que os Municípios com menos de vinte mil habitantes que não elaboraram o Plano Diretor estariam dispensados da exigência constitucional.189 [...] a legislação do plano diretor, de nível municipal, permite tão-somente aos interesses públicos, de natureza urbanística. [...] Destarte, outros aspectos da função social da propriedade imobiliária urbana ainda poderão ser buscados em normas de direito, de outros níveis ou de outra natureza, diversa das normas urbanísticas de nível municipal.190 O planejamento municipal é um processo permanente que se dará por via da execução de: i) plano de governo; ii) planos regionais, setoriais e especiais; iii) plano diretor; iv) plano plurianual; v) lei de diretrizes orçamentárias e; vi) lei orçamentária anual.191 Ainda no campo constitucional, verifica-se que as disposições referentes às propriedades rurais situadas no capítulo “Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária” pouco acrescentam ao debate proposto, salvo aquelas destinadas ao cumprimento da função social da propriedade rural, onde se verifica a necessidade de preservação do ambiente, as quais já foram comentadas em tópico anterior. Por fim, no Texto Constitucional verificam-se importantes as considerações no capítulo “Do Meio Ambiente” que, conforme já enfrentado neste trabalho, apresenta o direito fundamental da pessoa humana “ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, sendo que a sua defesa cabe a todos. Não obstante, o legislador constituinte acrescentou medidas a serem seguidas pelo Poder Público, a fim de garantir a efetividade desse direito fundamental; dentre elas, encontrar-se-á a obrigatoriedade de instituição de espaços “[...] a serem especialmente protegidos, sendo sua alteração e a supressão permitidas somente através de lei [...]”, conforme previsto no Art. 225, §1º, III da Constituição Federal. Nota-se que, conforme analisado neste estudo, é indiscutível que as áreas de “reserva legal” constituem um desses espaços qualificados pela proteção especial conferida no Texto, não podendo assim ser suprimidas ou alteradas, salvo por via da edição de lei. 189 MOREIRA, Danielle de Andrade Moreira. O conteúdo ambiental dos planos diretores e o Código Florestal. p. 76. In: Revista de Direito Ambiental, ano 13, n. 49, jan./mar. 2008. 73-100. São Paulo: Revista dos Tribunais. 190 RABELLO DE CASTRO, Sonia. Algumas formas diferentes de se pensar e de reconstruir o direito de propriedade e os direitos da propriedade e os direitos de posse nos países novos. Direito Urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 91. 191 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 131. Sob o plano infraconstitucional, a primeira norma a ser destacada é o “Código Florestal”, instituído pela Lei n.º 4.771/65, cuja tutela se refere às florestas e às demais formas de vegetação. Todavia, apesar de haver uma proteção florestal desde a instituição da lei citada, o espaço protegido denominado “reserva legal”, nos moldes de como é conhecido, fora instituído tão-somente em 1989, após atenção especial da Constituição ao cumprimento da função social da propriedade e à preservação ambiental, tendo a Lei n.º 7.803/89 o definido no seu Art. 16 como: § 2º - A “reserva legal”, assim entendida a área de, no mínimo, 20% (vinte por cento) de cada propriedade, onde não é permitido o corte raso, deverá ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada, a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento da área.192 Tendo em vista que a Lei n.º 7.803 entrou em vigor no dia 18 de julho de 1989, a partir desta data tem-se, portanto, a obrigatoriedade para cada propriedade instituir área de “reserva legal”, bem como a averbação dela junto à matrícula do imóvel no cartório competente. Ressalta-se, todavia, que ainda não havia obrigatoriedade de recomposição, sendo necessárias apenas a identificação, a demarcação e a averbação. Não obstante à obrigatoriedade de instituição desse espaço nas propriedades rurais, o legislador, ao alterar o “Código Florestal”, concedeu a essa área protegida o caráter da imutabilidade, pois proibiu a alteração de sua destinação nos casos de transmissão a qualquer título e desmembramento. No que se refere à impossibilidade de alteração de sua destinação no caso de transmissão da propriedade, não assistem outras dúvidas, em face do tema já ter sido, inclusive, objeto de apreciação pelos Tribunais Superiores. Estes inclusive confirmaram a responsabilidade do novo proprietário sob as áreas de “reserva legal”, mesmo que já tivesse adquirido a propriedade rural desprovida da reserva, devendo, assim, instituí-las e recompô-las obrigatoriamente. ADMINISTRATIVO. MEIO AMBIENTE. ÁREA DE “RESERVA LEGAL” EM PROPRIEDADES RURAIS: DEMARCAÇÃO, AVERBAÇÃO E RESTAURAÇÃO. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. OBRIGAÇÃO EX LEGE E PROPTER REM, IMEDIATAMENTE EXIGÍVEL DO PROPRIETÁRIO ATUAL. 192 BRASIL, Lei n.° 7.803, de 18 jul. 1989. Altera a redação da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, e revoga as Leis 6.535, de 15 de junho de 1978, e 7.511, de 7 de julho de 1986. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7803.htm>. Acesso em: 6 abr. 2011. 1. Em nosso sistema normativo (Código Florestal - Lei 4.771/65, art. 16 e parágrafos; Lei 8.171/91, art. 99), a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de “reserva legal” nas propriedades rurais constitui (a) limitação administrativa ao uso da propriedade privada destinada a tutelar o meio ambiente, que deve ser defendido e preservado “para as presentes e futuras gerações” (CF, art. 225). Por ter como fonte a própria lei e por incidir sobre as propriedades em si, (b) configura dever jurídico (obrigação ex lege) que se transfere automaticamente com a transferência do domínio (obrigação propter rem), podendo, em consequência, ser imediatamente exigível do proprietário atual, independentemente de qualquer indagação a respeito de boa-fé do adquirente ou de outro nexo causal que não o que se estabelece pela titularidade do domínio. 2. O percentual de “reserva legal” de que trata o art. 16 da Lei 4.771/65 (Código Florestal) é calculado levando em consideração a totalidade da área rural. 3. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido. 193 Por outro lado, ao versar sobre a impossibilidade de alteração da destinação da reserva nos casos de desmembramento, a celeuma toma proporções maiores, ainda pouco enfrentadas pela doutrina. Para tal debate, necessário definir o instituto do desmembramento se ele se refere a toda e qualquer divisão da gleba de terra ou sobre algum tipo específico, que resultaria, pelo menos na teoria, na permissão para a alteração, em situações específicas, do espaço protegido em análise. 5.1.1. Parcelamento do solo urbano A Lei n.º 6.766, de 19 de dezembro de 1979, disciplina em especial o parcelamento do solo urbano, dispondo que ele poderá ocorrer por via do loteamento ou por via do desmembramento, conforme o Art. 2º, §§ 1º e 2º: Art. 2º - O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes. § 1º - Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes. § 2º - considera-se desmembramento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário 193 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 1ª Turma. Recurso Especial n.° 1179316/SP. Recorrente: Usina Santo Antônio S/A. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Teori Albino Zavascki. Julgado em: 15 jun. 2010. Publicado em: 29 jun. 2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200902357386&dt_publicacao=29/06/2010>. Acesso em: 19 mar. 2011. existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes.194 “Parcelamento do solo urbano, é o processo urbanístico, cuja finalidade é proceder à divisão da gleba, para fins de ocupação, compreendendo o loteamento e o desmembramento”.195 Nota-se que há diferença entre loteamento e desmembramento, sendo, entre eles, a utilização ou não do sistema viário existente que circunda a área do imóvel. Se for necessária a abertura de novas vias de circulação e novos logradouros públicos, estar-se-á diante de loteamento; caso contrário, vislumbrar-se-á a hipótese de desmembramento. O loteamento e o desmembramento constituem modalidades do parcelamento do solo, mas apresentam características diversas: o loteamento é meio de urbanização e só se efetiva por procedimento voluntário e formal do proprietário da gleba, que planeja a sua divisão e a submete à aprovação da Prefeitura, para subsequente inscrição no Registro Imobiliário, transferência gratuita das áreas das vias públicas e espaços livres ao Município e a alienação dos lotes aos interessados; o desmembramento é apenas repartição da gleba, sem atos de urbanização, e tanto pode ocorrer pela vontade do proprietário (venda, doação etc.) como por imposição judicial (arrematação, partilha etc.), em ambos os casos sem qualquer transferência de área ao domínio público.196 (grifos do autor) Assim, realizadas as diferenças entre os institutos, destacando inclusive que a diferenciação legal já existia quando do surgimento da área de “reserva legal”, bem como sua proibição de alteração de destinação, previstas pela Lei n.º 7.809/89, a qual fez previsão tão-somente ao instituto do desmembramento, resta concluir que o “Código Florestal” não proíbe a alteração da destinação da área de “reserva legal” no caso da propriedade rural for objeto de loteamento. No entanto, a afirmação realizada no parágrafo anterior não implica em dizer que a área de “reserva legal” poderá ser desconstituída ou extinta no caso de realização de loteamento em imóvel rural, haja vista que a própria Lei n.º 6.766/79, em seu Art. 3º, 194 BRASIL, Lei n.° 6.766, de 19 dez. 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do solo e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6766.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011. 195 SILVA, Edson Jacinto da. Parcelamento e desmembramento do solo urbano: Doutrina, Jurisprudência e Legislação. 2. ed. Leme: Editora de Direito, 2001. p. 45. 196 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 465. parágrafo único, estabelece que “não será permitido o parcelamento do solo: [...]V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção”.197 (destacou-se) Da análise etimológica da palavra ecologia, obtém-se que ela origina-se “do grego ecos + logos, designando a ciência que estuda as relações dos seres vivos com o meio ambiente”.198 Desse modo, visto que Ecologia refere-se à relação entre os seres vivos e o meio ambiente, e o espaço protegido em debate visa “à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção da fauna e da flora”,199 não há como afastar esse espaço protegido da abrangência de “área de preservação ecológica”. Acrescenta-se a isso o fato de a Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000, que versa sobre as unidades de conservação, não prever a “área de preservação ecológica” como uma de suas espécies. Resta concluir que a Lei n.º 6.766/79, quando lhe faz menção, procura identificá-la como gênero, na sua acepção mais ampla, compreendendo todos os espaços protegidos, dentre eles a área de “reserva legal”. Corroborando o entendimento de manutenção das áreas de “reserva legal” quando da sua alteração de destinação no caso da criação de loteamentos, verifica-se que o Art. 17 do “Código Florestal” faculta a possibilidade de ela ser complementada pelos adquirentes dos lotes, via condomínio, quando a área destinada ao espaço protegido em questão, até então rural, não atingisse os índices de preservação previstos no Art. 16 do Código. Art. 17. Nos loteamentos de propriedades rurais, a área destinada a completar o limite percentual fixado na letra a do artigo antecedente, poderá ser agrupada numa só porção em condomínio entre os adquirentes.200 Nota-se que, se há permissão para que seja utilizado o instituto do condomínio pelos adquirentes dos lotes a fim de completar a exigência dos índices de “reserva legal” 197 BRASIL, Lei n.° 6.766, de 19 dez. 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do solo e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6766.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011. 198 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico/atualizadores: Nagib Slaibi e Gláucia Carvalho. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 505. 199 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm . Acesso em: 16 abr. 2011. 200 BRASIL, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm>. Acesso em: 6 abr. 2011. exigidos, não assiste outro entendimento, senão pela manutenção obrigatória da área de “reserva legal” quando do seu loteamento. Se a lei admite a hipótese de um meio alternativo à observância da exigência prevista, é evidente que o legislador defende a manutenção do instituto, mesmo quando inserido na órbita urbana. 5.1.2. Competência Legislativa Não suficiente a restrição imposta pelo Art. 3º, V da Lei n.º 6.766/79, que proíbe o parcelamento das áreas de “reserva legal” e a obrigatoriedade implícita de manutenção da reserva prevista no Art. 17 do “Código Florestal”, a supressão destas também é vedada em face de elas constituírem “espaços especialmente protegidos”, os quais a Constituição Federal somente autoriza a sua supressão por via de lei. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (grifo nosso) 201 Desse modo, assiste relevância averiguar qual o ente competente para a edição da lei acima mencionada. A Constituição Federal determina que a competência para legislar sobre direito urbanístico e sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”, conforme disciplinado no Art. 24, incisos I e VI, respectivamente, fora atribuída à União, aos Estados Federados e ao Distrito Federal, de forma concorrente. No que tange às florestas, à caça, à pesca, à fauna e à preservação ambiental, não é necessário nenhuma definição adicional, pois tais áreas são de fácil compreensão pela simples acepção da palavra; no entanto, referente à disciplina direito urbanístico, é 201 BRASIL, Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 6 abr. 2011. importante ressaltar algumas considerações sobre seu campo de atuação. Inicialmente, cumpre destacar o conceito de urbanismo, que “é o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade”,202 do qual pode se extrair que a tal instituto incumbe tanto a disciplina das áreas urbanas como rurais, pois em face da interligação indissociável entre espaços, para qualquer alteração que venha ocorrer em qualquer um deles, suas consequências serão observadas pelo outro, merecendo maior atenção aquelas que interferirem diretamente no bem-estar das pessoas. Como exemplo há as questões ambientais, situação que por si só justificariam a tutela do direito a fim de evitar e regular estas consequências danosas. Essa circunstância se dará por via do direito urbanístico, “ramo do Direito Público destinado ao estudo e formulação dos princípios e normas que devem reger os espaços habitáveis, no seu conjunto cidadecampo”.203 No entanto, a interferência do direito urbanístico nas áreas rurais não ocorre de maneira integral. Sua atuação limita-se aos núcleos populacionais e à análise das implicações ambientais que possam afetar as condições de vida urbanas; logo, as áreas destinadas à exploração rural não lhe interessam.204 Assim, tendo em vista que a aplicação da área de “reserva legal” aos loteamentos urbanos envolve matérias de direito urbanístico, florestas, conservação da natureza e proteção ambiental, considera-se necessário, a princípio, que a edição da lei que permita a supressão da área de “reserva legal” seja realizada pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, em face da atribuição constitucional. Não obstante à competência concorrente sobre a matéria em debate ser da União, dos Estados Federados e do Distrito Federal, ressalta-se que a estes dois últimos, no caso de existência de norma editada pela União, cabem tão-somente suplementá-la. Considerando, assim, que o instituto da área de “reserva legal” fora criado a nível nacional pela União, e não tendo o “Código Florestal” admitido qualquer hipótese de supressão, não caberia aos Estados e ao Distrito Federal editarem norma autorizando a extinção ou a redução do instituto, haja vista que versariam sobre normas gerais. Essa 202 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 433. 203 Idem, p. 435-436. 204 Idem. p. 436. competência é permitida tão-somente na falta dela pela União, conforme §§ 1º, 2º e 3º do Art. 24 da Constituição Federal. Doutro norte, apesar de a Constituição não versar sobre a competência de o Município legislar sobre florestas e direito urbanístico, ela o autorizou a legislar sobre assuntos de interesse local e a realizar o adequado ordenamento do solo. Por isso é importante também ressaltar as especificidades que o proíbem, em especial por via da lei do Plano Diretor, a permitir que as propriedades rurais sejam transformadas em urbanas sem a necessidade da manutenção da área de “reserva legal”. O Texto conferiu a competência legislativa do Município no Art. 30, sendo que, referente ao estudo em questão, relevante apenas os incisos I, II e VIII que versam, respectivamente, a propósito da sua possibilidade de “legislar sobre assuntos de interesse local”, acerca da possibilidade de “suplementar a legislação federal e estadual no que couber” e sobre a promoção adequada do ordenamento do solo, “que é a disciplina da cidade e suas atividades, através da regulamentação edilícia, que rege desde a delimitação da urbe, o seu traçado, o uso e a ocupação do solo, o zoneamento, o loteamento, o controle das construções, até a estética urbana”.205 Quanto à possibilidade de o Município legislar sobre questões de interesse local, indispensável, em primeiro plano, trazer as considerações realizadas por Helly Lopes Meirelles,206 que esclarece: “o que define e caracteriza o 'interesse local', inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União”. Assim, no que tange ao ordenamento urbano, é evidente que a competência do Município predomina sobre a dos Estados Federados e da União, cabendo ao Município a edição de normas sobre o parcelamento e o uso do solo, zoneamento urbano, sobre construções edilícias e paisagísticas da urbe. No entanto, no que diz a respeito às normas ambientais, as quais se inserem as áreas de “reserva legal”, o interesse tutelado identifica-se como um bem difuso, cuja titularidade pertence a todas as pessoas e, ocorrendo a existência de qualquer dano, certamente afetará um número indeterminado de pessoas, extrapolando os contornos do Município; prudente, então, afirmar que tal tutela transpassa os interesses dos Munícipes. 205 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2000 . p. 450. 206 Idem, p. 104. No fiel da balança entre questões urbanas e as ecológicas, estas não podem ser vistas como menos importantes, havendo necessidade de serem compatibilizadas as normas para evitar a superposição de esferas e o conflito de atribuições.207 Não obstante ao difícil enquadramento de interesse local na discussão sobre a extinção das áreas de “reserva legal”, a competência do Município em ordenar o uso do solo de seu território também enfrenta algumas considerações. Para isso é necessário verificar os regramentos infraconstitucionais que disciplinam a propriedade urbana quanto ao tema em questão, pois a Constituição Federal também estabelece ao Município a competência de suplementar as leis nacionais e estaduais, conforme o Art. 30, II. Assim, a competência suplementar do Município não o permite confrontação, e sim, complementação no caso de omissões e nas peculiaridades locais, pois se sujeita às limitações normativas urbanísticas e ambientais, nacionais e estaduais. Logo, havendo disposição desse caráter, determinando que as propriedades rurais instituam e mantenham área de “reserva legal” e proibindo a sua alteração de destinação nos casos de transmissão e desmembramento, respeitando as reservas ecológicas quando da realização dos loteamentos, não pode o Município eximir os proprietários dessa responsabilidade sob o fundamento que é de sua competência a ordenação do solo urbano e a respectiva delimitação da zona urbana. Insta salientar que não se pretende aqui desconfigurar a importância e a função do Plano Diretor e as atribuições do ente municipal. Objetiva-se tão-somente esclarecer os limites aos quais eles estão sujeitos, sejam os conferidos pela Constituição Federal e/ou pelo “Estatuto da Cidade”. Como já salientado, a disposição normativa que regulamenta os Artigos 182 e 183 da Constituição, a Lei n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, o denominado “Estatuto da Cidade”, no seu Art. 1º, registra que sua finalidade é a regulação da propriedade urbana, sendo que o uso desta deve necessariamente ser direcionado à segurança e ao bem-estar das pessoas, bem como à sua preocupação com o equilíbrio ambiental. No mais, ressalta que o Plano Diretor a ser elaborado pelos Municípios, como bem explicitado anteriormente, constitui apenas um dos instrumentos do planejamento 207 SÉGUIN, Elida. Código Florestal e a Questão Urbana. Revista Brasileira de Direito Ambiental, ano 2, v. 8. São Paulo: Fiuza, out./dez. 103-119, 2006. p. 105. municipal, que por sua vez é também um dos instrumentos a serem utilizados à execução da Política Urbana, conforme estabelecido no Art. 4º do “Estatuto da Cidade”. Referente à preocupação com o equilíbrio ambiental, destaca-se: Implantação de uma política urbana hoje não pode ignorar a questão ambiental, sobretudo nas cidades de grande porte, onde adquirem maior dimensão os problemas relativos ao meio ambiente, como por exemplo: poluição do ar, da água, sonora visual; lixo; ausência de áreas verdes. 208 Não suficiente a isso, apesar de a Constituição Federal, em seu Art. 182, conferir ao Poder Público Municipal a função de executar a “política de desenvolvimento urbano”, estabelece também que ele deverá seguir as diretrizes gerais fixadas pela lei, as quais foram disciplinadas no “Estatuto da Cidade”. Assim, tendo em vista a observância obrigatória das diretrizes fixadas no “Estatuto da Cidade”, é indispensável, para o debate, o destaque a ser conferido a algumas diretrizes previstas no Art. 2º, as quais deverão ser observadas pelo executor das políticas urbanas, em especial na elaboração do Plano Diretor: Art. 2º [...] IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; [...] VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: [...] g) a poluição e a degradação ambiental; VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência; VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; [...] 208 MEDAUER, Odete. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Estatuto da Cidade: Lei n.° 10.527, de 10/07/2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 16. XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;209 Nota-se que é cristalino, diante das disposições acima transcritas, direcionadas à propriedade urbana e consequentemente às cidades, que o legislador estendeu preocupação especial à preservação ambiental. Por conseguinte, as ações públicas a serem postas por via do Plano Diretor devem necessariamente observar as diretrizes previstas no Art. 2º do “Estatuto da Cidade”, pois consubstanciam meios fundamentais indispensáveis para garantir o bem-estar dos habitantes das cidades. Desse modo, não há como admitir a elaboração de Plano Diretor que, ao disciplinar as delimitações urbanas e o parcelamento do solo, permita a extinção das áreas de “reserva legal”. Isso porque, conforme as diretrizes apontadas acima, elas deverão ser realizadas “de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos do meio ambiente”, bem como por meio da ordenação do uso do solo sem danificar o ambiente. Ora, não é possível extinguir as áreas de “reserva legal” sem trazer “efeitos negativos ao meio ambiente” e muito menos sem degradação ambiental. Nesse sentido, conclui Helly Lopes Meirelles sobre o objeto de atuação do Poder Municipal: Sua ação urbanística é plena na área urbana e restrita na área rural, pois que o ordenamento desta, para suas funções agrícolas, pecuárias e extrativas, compete à União, só sendo lícito ao Município intervir na zona rural para coibir empreendimentos ou condutas prejudiciais à coletividade urbana, ou para preservar ambientes naturais de interesse público local. 210 Após as considerações realizadas, pode-se afirmar que, com a edição da Lei n.º 7.809/89, obtém-se as seguintes conclusões: i) as propriedades rurais transformadas em urbanas em face da elaboração de Planos Diretores que delimitaram sua respectiva área urbana antes de 18 de julho de 1989, não possuem obrigatoriedade de instituição da área de “reserva legal”; ii) as propriedades rurais transformadas em propriedades urbanas por 209 BRASIL, Lei n.° 10.257, de 10 jul. 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 20 mar. 2011. 210 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 447. força de Planos Diretores instituídos após 18 de julho de 1989, apresentam-se com deficit ambiental, haja vista que já havia legislação impondo a obrigatoriedade da reserva. Seguindo esse trilhar, observa-se também a edição da Lei n.º 8.171, de 17 de janeiro de 1991, cujo conteúdo versa sobre a Política Agrícola. Essa norma impôs, aos proprietários rurais, a obrigatoriedade de recompor as áreas destinadas à “reserva legal” a partir do ano seguinte ao da promulgação da lei. Assim, desde 1º de janeiro de 1992, a recomposição desse espaço protegido é obrigatória, sendo que a lei concedeu o prazo de 30 (trinta) anos para essa realização. Art. 99. A partir do ano seguinte ao de promulgação desta lei, obrigase o proprietário rural, quando for o caso, a recompor em sua propriedade a Reserva Florestal Legal, prevista na Lei n.º 4.771, de 1965, com a nova redação dada pela Lei n.º 7.803, de 1989, mediante o plantio, em cada ano, de pelo menos um trinta avos da área total para complementar a referida Reserva Florestal Legal (RFL).211 Posterior a essa lei, o “Código Florestal” passou por modificações em face das sucessivas reedições da Medida Provisória inicialmente de n.º 1.511/96, sendo que a principal alteração decorreu da Medida Provisória n.º 1.956-50, de 26 de maio de 2000, a qual, mesmo alterando o instituto em vários pontos, não retirou a sua obrigatoriedade e a sua essência. Merece destaque a inserção do §4º ao Art. 16, que versou sobre a localização da área de “reserva legal”, exigindo para, sua instituição, a aprovação do “órgão ambiental estadual competente, ou mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal [...], devendo ser considerados, no processo de aprovação [...]”,212 entre outros requisitos e instrumentos, o Plano Diretor das Cidades. Desse modo, constata-se que a existência da área de “reserva legal” subsiste ao Plano Diretor, o qual deve respeitar a reserva e somente poderá interferir na escolha de sua localização. Vistas as considerações levantadas, conclui-se que o instituto da área de “reserva legal” deverá ser mantido caso já exista ou, deverá ser constituído nas propriedades desprovidas de tal espaço quando as propriedades rurais forem transformadas em lotes urbanos, independentemente se há ou não norma municipal delimitando aquela área como urbana ou de expansão urbana. O Município não possui competência para eximir 211 BRASIL, Lei n.° 8.171, de 17 jan. 1991. Dispõe sobre a Política Agrícola. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis/L8171.htm . Acesso em: 10 abr. 2011. 212 BRASIL, Lei n.° 4.771 de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771.htm . Acesso em 15 abr. 2011. o até então proprietário rural, e o seu sucessor, dessa obrigação; além do fato de a área de “reserva legal” constituir importante meio à preservação ambiental, sendo indispensável, entre outras funções, ao abrigo de espécies da fauna e da flora, justificando, assim, a proteção constitucional que lhe fora atribuída. Desse modo, não podendo o Município permitir a extinção de áreas de “reserva legal”, bem como eximir àqueles de a constituírem quando da realização de loteamentos urbanos, cabe a ele o dever de exigir o cumprimento das disposições ambientais existentes, inclusive as presentes no “Código Florestal”, como a exigência de instituição e recomposição da área de “reserva legal”; tem-se em vista a competência comum que lhe é atribuída pela Constituição: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;213 5.1.3. A imutabilidade da “reserva legal” e a Averbação Ainda referente à imutabilidade da área de “reserva legal”, visto que ela decorre por força de lei, tanto expressa no “Código Florestal”, que proíbe a alteração de sua destinação nos casos de transmissão e desmembramento, como prevista na Constituição, quando proíbe a supressão dos espaços especialmente protegidos, acrescenta-se que não é há exigência de averbação que implica na imutabilidade da área de “reserva legal”, pois a averbação, como salientado em tópico anterior, possui natureza declarativa e não constitutiva; assim, o fato de ter ou não ocorrido a averbação em nada retira a obrigatoriedade de instituição ou manutenção da “reserva legal”. Entretanto, visto que a obrigação de averbar a área de “reserva legal” existe desde a edição da Lei n.º 7.809/89, logo, aquele que não constituiu a reserva e não a averbou a partir dessa data, está irregular duplamente, sujeito à instituição forçada pelos meios legais e à obrigatoriedade de averbá-la junto à matricula do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis competente. 213 BRASIL, Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui %C3%A7ao.htm>. Acesso em: 6 abr. 2011. Não é possível admitir que tão-somente com o ato registral passa-se a ter obrigatoriedade da instituição da reserva. Do mesmo modo que a falta de averbação implicaria na inexistência da obrigação da reserva, a averbação possui apenas o condão de atribuir publicidade ao ato, permitindo e facilitando sua fiscalização, como bem conclui Bianca Sant‟anna Della Giustina: “a exigência de averbação da área destinada à “reserva legal” está fundada no atendimento aos princípios da publicidade e especialidade registral”. 214 5.1.4. A imutabilidade da “reserva legal e a obrigação propter rem Da mesma forma, a obrigação de imutabilidade também não ocorre em face da alegação da reserva em questão possuir natureza propter rem, em face do entendimento de que ela constitua ônus real, mas sim por constituir numa obrigação imposta por lei em face de o Estado ter o dever de impulsionar as ações dos particulares ao atendimento da função social da propriedade, sendo uma forma de intervenção do Estado na propriedade. Neste norte, como já salientado, a natureza jurídica que mais se coaduna com o instituto é a de limitação administrativa, possuindo a área de “reserva legal” apenas semelhanças e características àquelas de natureza propter rem. 5.2. REGULARIZAÇÃO DO DEFICIT AMBIENTAL Constatada a obrigatoriedade de instituição e/ou manutenção das áreas de “reserva legal” nas propriedades rurais quando tiverem ou pretenderem alterar a destinação para imóveis urbanos, é imprescindível verificar quais são as medidas preventivas e repressivas a serem adotadas quando constatada a inexistência do espaço protegido em debate. No caso da propriedade rural que ainda não foi sujeita ao parcelamento e que apresenta débito com a obrigação florestal, quando houver a pretensão de alterar sua destinação para urbana, realizando o devido loteamento, é necessária a sua prévia regularização, que poderá ocorrer por via da adoção pelo proprietário das seguintes 214 DELLA GIUSTINA, Bianca Sant‟anna. Mecanismos para desoneração de passivos ambientais em imóveis rurais e seus reflexos no registro de imóveis. In: Revista de Direito Ambiental, ano 14, n. 54, abr./jun. 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.101. (86-126) medidas previstas no “Código Florestal”: i) o destacamento de área da propriedade a ser loteada correspondente ao tamanho exigido, conforme os índices previstos no Art. 16; e ii) a compensação florestal, em que o proprietário ou posseiro rural oferecerá outra área, de igual extensão e de equivalente importância ecológica, para que se institua como área de “reserva legal” daquela desproveniente de área a ser protegida (sendo que essa medida poderá ser adotada por via da aquisição de área ou arrendamento sob o regime de servidão florestal, ou ainda, por intermédio da aquisição de “Cotas de Reserva Florestal”). Para o cumprimento prévio, a fiscalização da obediência aos ditames legais previstos ao tema é indispensável à função a ser exercida pelos Cartórios de Registro de Imóveis; cartórios que, conforme analisado no tópico da averbação da área de “reserva legal”, são responsáveis por qualquer alteração junto à matrícula do imóvel, além de verificar a existência da reserva, devendo permitir a alteração da destinação ou o parcelamento em lotes somente após a devida averbação da correspondente área de “reserva legal”. No entanto, mesmo com entendimento do Superior Tribunal de Justiça, os Cartórios não vêm exigindo a reserva para a realização de qualquer alteração na matrícula do imóvel, permitindo, assim, o loteamento sem a instituição ou manutenção da área de “reserva legal”; isso prejudica injustificadamente o cumprimento da norma. Do mesmo modo, independentemente da ineficácia da função fiscalizadora que os Cartórios de Registro de Imóveis deveriam exercer, constitui dever de o Município promover o adequado parcelamento do solo urbano, observando previamente as áreas de “reserva legal” no sentido de mantê-las com sua destinação; isso, caso existam ou exigir a adoção das medidas alternativas acima apontadas previstas no “Código Florestal” para sua instituição, visto que ele não possui competência para alterar a destinação dessas áreas, mas possui o dever de preservá-las. Por outro lado, sendo a instituição da área de “reserva legal” obrigação a ser suportada pelo proprietário rural a partir da edição da Lei n.º 7.809/89, a posterior transformação da propriedade rural em urbana não afasta a obrigatoriedade da instituição da reserva. A falta de instituição, manutenção ou compensação da reserva configura a existência de um passivo ambiental referente à propriedade rural transformada, devendo ser suportada pelos novos adquirentes, os quais deverão adotar as medidas acima apontadas previstas pelo “Código Florestal” a fim de regularizar o passivo existente. Nesse norte, o fato de a propriedade rural ter sido transformada em urbana depois de 1989 e já estar consolidada como área urbana, dotada de todos os melhoramentos urbanos, também não retira seu passivo ambiental, tendo em vista que as disposições constitutivas das obrigações ambientais são de ordem pública e imprescritíveis. Seu fundamento é a previsão constitucional de que todos possuem direito a um ambiente sadio e equilibrado, o qual deverá ser preservado “para as presentes e futuras gerações”, além do fato da limitação administrativa da área de “reserva legal” assemelhar-se àquelas de obrigação propter rem, aderindo à coisa, independentemente da alteração de sua destinação. Como os lotes advindos de um loteamento urbano pela sua própria localização podem não possuir uma área com dimensão satisfatória para comportar vegetação em limite percentual suficiente para abrigar um ecossistema, a melhor saída é a de agrupar o total de reserva que cada lote deveria abrigar, em uma só porção dentro da área loteada, em condomínio entre todos os proprietários. Tal medida se aproxima do disposto no art. 17 do “Código Florestal”, que permite aquele agrupamento para os loteamentos e propriedades rurais.215 Conforme já salientado e solidificado neste trabalho, o novo adquirente de propriedade rural destituída de área de “reserva legal” possui o dever de recompô-la, independentemente da existência de nexo causal ou culpa, pois a obrigação decorre da Lei n.º 8.171, de 17 de janeiro de 1991. Assim, sendo a instituição e a averbação da área de “reserva legal” obrigatória desde 1989, e a obrigação de sua recomposição existir desde 18 de janeiro de 1992, não assiste razão em desobrigar os proprietários de antigas áreas rurais de sua responsabilidade ambiental, sob o amparo de que elas não possuem mais aquela natureza. Nota-se que não há qualquer previsão legal excepcionando essa obrigação, em face da propriedade rural ter sido transformada em urbana; logo, não se pode admitir que o descumprimento de preceito legal seja admitido em face de simples ato praticado pelo próprio infrator. 215 AFONSO, Fernando Alberti. Exigibilidade de reserve florestal em áreas urbanas, rurais e de expansão urbana. p. 8. Revista Eletrônica Intertem@s, v. 1, n. 1, 2000. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/ revista/index.php/Juridica/article/viewFile/5/5>. Acesso em: 20 mar. 2011. Nesse sentido, destaca-se o trecho do voto do Ministro Teori Albino Zavascki216, do Recurso Especial n.º 1.179.316, proveniente de São Paulo: Decorre, pois, desse sistema normativo, que a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de “reserva legal” nas propriedades rurais constitui (a) limitação administrativa ao uso da propriedade privada destinada a tutelar o meio ambiente, que deve ser defendido e preservado “para as presentes e futuras gerações” (CF, art. 225); por ter como fonte a própria lei e por incidir sobre as propriedades (= a coisa) em si, (b) configura dever jurídico (obrigação ex lege) que se transfere automaticamente com a transferência do domínio (obrigação propter rem), podendo, em consequência, ser imediatamente exigível do proprietário atual, independentemente de qualquer indagação a respeito de boa-fé do adquirente ou de outro nexo causal que não o que se estabelece pela titularidade do domínio. Assiste razão tal posicionamento, conforme já salientado, inclusive por decorrência lógica do Art. 17 do “Código Florestal”, que determina a possibilidade de os adquirentes se reunirem em condomínio a fim de complementar os índices exigidos a título de área de “reserva legal”. Evidente que, se a própria norma estabelece forma alternativa para cumprimento da reserva, implica em dizer que ela permanece exigida, independentemente de qualquer alteração de sua destinação. Assim, apesar de a instituição da área de “reserva legal”, no local em que deveria ter ocorrido, se mostrar bastante improvável, visto o crescimento das cidades e a ocupação dos espaços para fins urbanos, na maioria dos casos irreversíveis por sinal, os proprietários adquirentes de imóveis pendentes de regularização ambiental possuem o dever de repará-las em face da existência de passivo ambiental à época de sua transformação de rural para urbano; isso se deve ao fato de o próprio “Código Florestal” prever hipóteses alternativas para a instituição da reserva no caso de não ser possível instituí-la junto ao imóvel, devendo o Poder Público exigir, dos adquirentes, o adimplemento de suas obrigações ambientais, em especial por via da instituição dos condomínios. 5.3. ÁREAS VERDES E A “RESERVA LEGAL” 216 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: 1ª Turma. Recurso Especial n.° 1179316/SP. Recorrente: Usina Santo Antônio S/A. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Teori Albino Zavascki. Julgado em: 15 jun. 2010. Publicado em: 29 jun. 2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200902357386&dt_publicacao=29/06/2010>. Acesso em: 19 mar. 2011. Por fim, resta abordar a correlação existente entre as áreas verdes a as áreas de “reserva legal”. Como já salientado, o crescimento das cidades e o respectivo avanço destas sobre áreas anteriormente utilizadas para fins rurais têm contribuído para o desaparecimento das áreas de “reserva legal”. Essa ação vem sendo permitida pelas legislações municipais, as quais se limitam, na maioria das vezes, quando do surgimento de novos loteamentos, a exigir a criação de áreas verdes. A definição desse instituto é apresentada na Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente n.º 369, de 29 de março de 2006: Art. 8º [...] § 1º - Considera-se área verde de domínio público, para efeito desta Resolução, o espaço de domínio público que desempenhe função ecológica, paisagística e recreativa, propiciando a melhoria da qualidade estética, funcional e ambiental da cidade, sendo dotado de vegetação e espaços livres de impermeabilização.217 Inicialmente, cabe suscitar sobre a diferenciação do instituto das áreas verdes daquelas destinadas às áreas de “reserva legal”, sendo fundamental apontar três distinções: i) quanto ao objeto que incidem: as áreas verdes incidem sobre a propriedade urbana, enquanto as áreas de “reserva legal” incidem sobre a propriedade rural; ii) quanto a sua finalidade: as áreas verdes “tem o objetivo de ordenar a ocupação espacial, visando a contribuir para o equilíbrio do meio em que mais intensamente vive e trabalha o homem”,218 e estão diretamente relacionadas ao lazer, à saúde, à ornamentação urbana, ao equilíbrio ambiental da população urbana, enquanto as áreas de “reserva legal” possuem uma finalidade muita mais ampla, preocupada com a biodiversidade, necessária à restauração dos processos ecológicos, servindo de abrigo às espécies de fauna e da flora, conforme disciplina o Art. 1º, §2º, III do “Código Florestal”; iii) quanto à titularidade: as áreas verdes constituem espaço de domínio público, enquanto as áreas de “reserva legal” são de domínio privado. Nota-se que, mesmo sem um estudo apurado, não é possível confundir os dois institutos, pois se apresentam de maneira totalmente diferente; um não substitui o outro 217 BRASIL, Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente n.° 369, de 29 mar. 2006. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res06/res36906.xml>. Acesso em: 13 mar. 2011. 218 MILARÉ: Édis. Direito do ambiente: a gestão em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 255. no que diz respeito às suas finalidades, não podendo, do mesmo modo, haver qualquer prioridade de um em relação ao outro. Ambos possuem sua importância, devendo ser criados, mantidos e protegidos. O “Estatuto da Cidade”, quando fixa como uma de suas diretrizes a “integralidade e complementaridade entre atividades urbanas e rurais” [Art. 2º, VII], mostra que o Poder Público deve promover a interação entre elas com o intuito do “desenvolvimento das funções sociais da cidade”. No entanto, isso deve ocorrer sem se desconsiderar as particularidades de cada uma, realizando apenas as complementações necessárias. Não assiste razão a extinção da área de “reserva legal” sob o fundamento da criação das áreas verdes, pois isso não é integração, e sim, aproveitamento. Sob esse aspecto, também não é possível a substituição de um espaço protegido por outro, tendo em vista que a manutenção da proteção das áreas de “reserva legal” não impede o atendimento da função social da cidade, e a preservação ambiental constitui elemento a ser observado tanto pela propriedade urbana como pela rural. No mesmo norte, há quem sustente a transformação das áreas de “reserva legal” em áreas verdes nos mesmos limites e restrições, sob o amparo da incompatibilidade do instituto florestal com as cidades e em face de que a exigência de manutenção dos dois institutos de proteção junto à mesma propriedade resultaria numa excessiva restrição ao uso da propriedade, sujeitando, ao Poder Público, o pagamento de indenização.219 Apesar de louvável o entendimento apontado acima em face da preocupação com o fim das áreas de “reserva legal” diante do crescimento das cidades, nota-se que este não deve prosperar. Primeiro em razão da falta de amparo legal; segundo porque os dois institutos representam proteções diversas: um não sustenta a falta do outro. O primeiro, como já salientado, está relacionado “não apenas à ornamentação urbana, mas como uma necessidade higiênica, de recreação e mesmo de defesa e recuperação do meio ambiente em face da degradação de agentes poluidores.”220 Observa-se que há uma relação direta com o ser humano, ao seu estado psicológico, possibilitando um estado de tranquilidade, enquanto o segundo visa especialmente à proteção da biodiversidade da região onde esteja localizada a propriedade rural. 219 SOUTO, Luis Eduardo Couto de Oliveira. A perpetuidade da “reserva legal” em vista da expansão urbana dos municípios. Disponível em: <http://mpscjoinville.files.wordpress.com/2009/12/luis-eduardosouto-a-perpetuidade-da-reserva-legal-em-zona-urbana-e-seu-aproveitamento-como-area-verde.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2011. 220 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 193. A Política dos Espaços verde revela-se, pois, na proteção da Natureza, a sentido da urbanização, conexa com a proteção florestal ou parte dela, com o objetivo de ordenar a coroa florestal em torno das grandes aglomerações, manter os espaços verdes existentes nos centros das cidades, criar áreas verdes abertas ao público, preservar áreas verdes entre as habitações – tudo visando a contribuir para o equilíbrio do meio em que mais intensamente vive e trabalha o Homem.221 (grifos do autor) No que se refere à incompatibilidade do instituto de proteção regido pelo “Código Florestal” com as exigências das cidades, realmente assiste uma verdade. No entanto, ela é relativa, pois a sua existência nas áreas urbanas em nada prejudica o desenvolvimento das cidades; apenas contribui ao bem-estar das pessoas, sendo que a manutenção desse espaço protegido é observada em muitas cidades, “como ocorre em centros urbanos pioneiros da região Oeste do Estado de São Paulo e Norte do Estado do Paraná, onde se pode observar uma integração da mata nativa com o perímetro urbano”222 . Isso permite concluir que as áreas de “reserva legal” podem até substituir, cumprir a função a ser exercida pelas áreas verdes, mas o contrário não é possível. Quanto à possibilidade de o Município ter que indenizar o proprietário diante da exigência de manutenção das duas áreas de proteção, isso realmente poderá ocorrer caso se demonstre uma excessiva restrição que impossibilite o proprietário de se aproveitar economicamente de sua propriedade. Se essa hipótese ocorrer, ela não poderá servir de fundamento ao desrespeito da norma florestal, mas sim como motivo para a realização da desapropriação, a qual Antônio Herman V. Benjamin223 denomina de indireta, conforme se verifica pelo exposto abaixo: Logo de início, tenha ou não a restrição ambiental origem no Código Florestal, podemos afirmar que, em tese, há desapropriação indireta sempre que a Administração Pública, levando-se em consideração a totalidade do bem, ao interferir com o direito de propriedade: a) aniquilar o direito de exclusão (dando ao espaço privado fins de uso comum do povo, como ocorre com a visitação pública nos Parques estatais); b) eliminar, por inteiro, o direito de alienação; c) inviabilizar, integralmente, o uso econômico, ou seja, provocar a total 221 Idem, ibidem. AFONSO, Fernando Alberti. Exigibilidade de reserve florestal em áreas urbanas, rurais e de expansão urbana. p. 8. Revista Eletrônica Intertem@s. v. 1, n. 1, 2000. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/Juridica/article/viewFile/5/5>. Acesso em: 20 mar. 2011. 223 BENJAMIN, Antônio Herman V. Desapropriação, reserva florestal legal e áreas de preservação permanente. In: Temas de Direito Ambiental e Urbanístico, v 2, n. 3. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 72-73. 222 interdição da atividade econômica do proprietário, na completa extensão daquilo que é seu. Contudo, nota-se que a área de “reserva legal” permite a sua utilização por via “manejo florestal sustentável”. Tal proteção não deve ser entendida como uma restrição ao seu direito de propriedade, mas como um condicionamento para se atender a função da propriedade, além do fato de o proprietário também ser beneficiário direto dessa proteção, pois, conforme o Art. 225 da Constituição, todos têm direito ao ambiente sadio e equilibrado, e a área de “reserva legal” é meio de efetivação desse direito; não sendo assim, considera-se uma privação ao seu direito de propriedade. Portanto, o espaço protegido, área de “reserva legal”, instituído e regulamentado pelo “Código Florestal”, e diante dos fundamentos acima expostos, ele deverá ser mantido independentemente de sua localização, sejam em áreas urbanas ou rurais. Ele deve, inclusive, manter suas características quando da transformação da propriedade rural em urbana, pois constitui numa imposição legal de caráter nacional, criada pela União, no exercício de sua competência legislativa geral sobre florestas. Não cabe aos Municípios autorizar sua supressão sob o fundamento de que a matéria versa sobre interesse local e por lhe competir realizar o adequado ordenamento do solo urbano, haja vista que as áreas de “reserva legal” também constituem mecanismo de efetividade ao direito fundamental ao ambiente sadio, característica que extrapola o interesse local. CONSIDERAÇÕES FINAIS Realizadas as considerações sobre propriedade e direito de propriedade; a diferenciação entre propriedade urbana e a rural em razão do critério da destinação; e o acréscimo de um novo elemento ao núcleo do direito de propriedade, que a funcionaliza ao cumprimento de um fim social, denominada de função social da propriedade, dividida em função social da propriedade urbana e função social da propriedade rural, as quais justificam a intervenção do Estado junto à propriedade privada, como é o caso da instituição da área de “reserva legal”, bem como a relação desta com a proteção ambiental, pois constitui instrumento de efetivação do direito fundamental ao ambiente sadio; resta agora concluir porque a área de “reserva legal” deverá ser mantida quando da transformação da propriedade rural em urbana e desde quando há essa obrigatoriedade. A primeira conclusão a ser suscitada refere-se ao fato da área de “reserva legal”, limitação administrativa de proteção ambiental instituída pelo “Código Florestal”, ser um “espaço especialmente protegido”, conforme o Art. 225, § 3º da Constituição Federal. Essa situação lhe atribui a garantia de somente ser possível sua supressão ou alteração mediante a edição de lei, sendo irrelevante o fato de o “Código Florestal” proibir a sua alteração somente nos casos de desmembramento e silenciar-se quanto ao parcelamento por via do loteamento, pois é necessária a edição de lei autorizando a supressão ou alteração. Nessa esteira, resulta uma segunda conclusão: a de que a edição da lei, a fim de permitir qualquer alteração ou supressão nas áreas de “reserva legal”, somente poderá ser editada pela União, haja vista que o espaço protegido em debate fora criado por lei nacional e a Constituição, ao versar sobre a competência legislativa dos entes federados, conferiu à União, aos Estados Federados e ao Distrito Federal a prerrogativa de legislar concorrentemente sobre direito urbanístico e sobre florestas [Art., 24, I e VI, da CF]. Isso significa que, havendo norma geral, como é o caso, não cabe aos Estados Federados e ao Distrito Federal disciplinar tal matéria, salvo de maneira suplementar; hipótese que não se enquadraria o presente caso, pois permitir a supressão ou alteração de espaço criado, pela norma geral, de forma alguma configuraria hipótese de suplementação. Não suficiente a isso, a supressão ou alteração da área de “reserva legal” também não se enquadra nas hipóteses de competência dos Municípios de legislarem sobre matérias de interesse local e sobre o ordenamento do solo urbano [Art. 30, I e VIII da CF]. Tendo em vista que o espaço protegido constitui bem de natureza difusa, cuja ocorrência de dano vai atingir um universo de pessoas que extrapolará os limites territoriais do Município, não há como admitir que ele possa permitir qualquer supressão ou alteração sob o fundamento de interesse local. No mesmo norte, também é inadmissível a permissão de supressão ou alteração sob o amparo da realização da ordenação do solo local, pois a lei municipal que a fizer deverá ater-se às orientações gerais traçadas pela União ou na sua falta pelos Estados Federados. Assim, como nesse caso há duas leis de caráter nacional, a atuação municipal ficará limitada a elas: a primeira é a Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada “Estatuto da Cidade”, a qual estabelece, em seu Art. 2º, que na elaboração do Plano Diretor deverá ser evitado e corrigido “as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente”, e que deverá ser evitada a degradação ambiental no caso de ordenação do uso do solo, além da responsabilidade de proteger, conservar e recuperar o ambiente; a segunda disposição normativa é a Lei n.º 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo, a qual deixa suficientemente claro que “não será permitido o parcelamento [...] em áreas de preservação ecológica” [Art. 3º, parágrafo único, V], situação que se enquadra a área de “reserva legal”. Acrescenta-se ainda que a supressão da área de “reserva legal” quando da transformação da propriedade rural em urbana também não é admissível, em face de constituir uma limitação administrativa de característica equivalente as de natureza propter rem. Isso significa que a obrigação estabelecida pelo “Código Florestal” adere ao imóvel, devendo ser instituída ou mantida, independentemente de quem seja seu titular ou de quem tenha devastado a área, determinando, inclusive, o “Código Florestal”, a fim de facilitar a fiscalização e declarar a existência do espaço protegido que ele devesse ser averbado junto à matrícula do imóvel. Visto que a área de “reserva legal” deverá ser instituída e mantida mesmo após a transformação da propriedade rural em urbana, verificou-se que há a diferenciação quanto à sua aplicação decorrente do fator temporal. Assim, tendo sido o espaço protegido inserido no ordenamento por via da Lei n.º 7.803, de 18 de julho de 1989, a qual entrou em vigor na data de sua publicação [20 de julho de 1989], conclui-se que as propriedades rurais transformadas em urbanas até a data da publicação da lei sobredita não estão obrigadas à instituição e à manutenção da área de “reserva legal”. No entanto, aquelas propriedades rurais que tiveram sua destinação alterada para urbana após a data de publicação citada possuem a obrigatoriedade de instituição e manutenção do espaço protegido em debate, mesmo que essa alteração tenha sido realizada por força de Plano Diretor ou qualquer outra lei de abrangência municipal ou estadual; independentemente, ainda, do prazo que já perfilam da natureza urbana, pois não há direito adquirido para o presente caso. Assim, aquelas propriedades rurais que tiveram sua destinação alterada para urbana após 20 de julho de 1989, e que não instituíram a área de “reserva legal” naquele momento, encontram-se com deficit ambiental, devendo liquidá-lo obrigatoriamente, por via da instituição da área de “reserva legal”. Contudo, se não for possível sua instituição no mesmo local, caberá ao atual proprietário a adoção das medidas compensatórias alternativas previstas no “Código Florestal”, cabendo inclusive ao ente municipal a sua fiscalização. Portanto, o espaço de preservação ambiental: área de “reserva legal” que incide sobre as propriedades rurais deverá ser mantido quando da transformação da propriedade rural em urbana, em face de ser o entendimento que melhor se coaduna com os preceitos constitucionais de preservação ambiental e de acordo com as normas de competências conferidas pelo Texto, devendo todos os entes federativos, bem como associações, membros do Ministério Público e a população em geral tomar providências quando da inobservância dos preceitos do “Código Florestal”. 6. REFERÊNCIAS AFONSO, Fernando Alberti. Exigibilidade de reserve florestal em áreas urbanas, rurais e de expansão urbana. p. 8. Revista Eletrônica Intertem@s, v. 1, n. 1, p. 1-17, 2000. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/Juridica/article/viewFile/5/5>. Acesso em: 20 mar. 2011. ALONSO Jr., Hamilton. Direito fundamental ao meio ambiente e ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, cap. I, 2006. ALVIM, Arruda. 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Dá nova redação aos artigos 3º, 16 e 44 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas/1956-49.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. _______, Medida Provisória n.° 1956-50, de 26 mai. 2000. Altera os artigos 1o, 4o, 14, 16 e 44, e acresce dispositivos à Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965, que institui o Código Florestal, bem como altera o art. 10 da Lei no 9.393, de 19 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas/195650.htm>. Acesso em: 5 abr. 2011. _______, Lei n.° 3.076, de 1º jan. 1916. Dispõe sobre o Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071.htm>. Acesso em: 28 dez. 2010. _______, Lei n.° 4.504, de 30 nov. 1964. Dispões sobre o Estatuto da Terra e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>. Acesso em: 4 abr. 2011. _______, Lei n.° 4.771, de 15 set. 1965. Institui o novo Código Florestal. 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