CORPO, SAUDE E DOENÇA FILOSOFIA GREGA II NA Prof.Dr.HC João Bosco Botelho Na Grécia, entre os séculos V e IV, existiu complexa interdependência entre os conceitos produzidos pelos filósofos não médicos e pelos médicos. Algumas vezes, estavam em acordo; em outras, em completa discordância. O autor desconhecido do livro Da Natureza Antiga, discorda do dogmatismo a priori da filosofia de que todas as doenças são formadas pelo excesso de calor, frio, secura ou humanidade. No Corpus Hipocraticum (cap.XIII), o autor argumenta sobre o mesmo assunto: 1. Que no caso de um doente afetado por uma alimentação cozida, não é possível dizer o que foi eliminado da direita, se o calor, se o frio, se a humanidade ou a secura; 2. Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de tomar água quente ou vinho quente ou leite quente e a água o vinho e o leite tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor. Apesar da compreensão entre médicos e filósofos que a saúde era o produto do equilíbrio de várias forças no organismo, existiu outra corrente de pensamento, provavelmente liderada por Políbio, genro de Hipócrates, que sob a influência da idéia dos quatro elementos da Empédocles – fogo, ar, água e a terra – e da noção do equilíbrio justo de Anaximandro, produziu a teoria dos quatro humores fundamentais – sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso negro – para explicar a causa das doenças. A teoria dos quatro humores, atribuída a Políbio, está no livro Da Natureza Antiga: O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra; que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsável pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo quando estas coisas estão na devida proporção em relação uma ás outras, no que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturada com as outras. Essa teoria norteou os rumos da Medicina e transpassou o tempo e dominou o diagnóstico e terapêutica por quase vinte séculos. CORPO, SAUDE E FILOSOFIA GREGA DOENÇA NA Prof.Dr.HC João Bosco Botelho A Medicina apareceu com clareza na estrutura do pensamento grego, no final do século V e nos séculos IV e III, de forma tão bem sedimentada que influenciou marcadamente os caminhos tomados pela Medicina ocidental nos vinte séculos seguintes. O mais notável desenvolvimento da Medicina grega ocorreu após as guerras médicas (490-479). A partir dessa época, o médico aparece como intermediário na formação social e na edificação do pensamento coletivo, superando as suas funções específicas na busca da saúde. Empédocles, médico e filósofo do século 5, utilizou a clepsidra para ilustrar a sua teoria da respiração, segundo a qual o corpo transpira através dos poros espalhados por toda a superfície da pele. A relação da Medicina com a filosofia grega está inserida nas concepções jônicas da natureza. A influência jônica foi tão grande que toda a literatura médica desta época que chegou até nós, foi registrada em prosa jônica, apesar de ter sido escrita em Cós, ilha de população e língua dórica. Este fato só pode ser explicado pelo avanço da cultura e da ciência jônica naquele tempo. A importância social do médico como agente na busca da saúde já era reconhecido desde Homero: O médico vale por muitos homens. Porém, a consolidação desta posição foi alcançada a partir da busca da relação do corpo com a natureza, referida de diferentes modos por Platão (Prot. 313 D,Gorg. 450 A, 517 E, Rep.298 A e Timeu 78B), onde o médico é fixado em posição social definida. Os vínculos da Medicina com a natureza, que os gregos tão bem assimilaram, atingia o social. Essa afirmação pode ser comprovada em Sólon, que descreveu a conexão das doenças com o todo social. Baseado nesse pressuposto, Sólon fundamentou parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiram na qualidade da saúde coletiva. Os elos entre o binômio saúde-doença com a natureza estão nitidamente presentes na introdução do livro Dos Ventos, Águas e Religiões, de autor desconhecido, do século V a.C.:Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presente as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto a sua essência especifica e quanto as sua mudanças. O ponto fundamental da Medicina grega, dos séculos 5 e 4, foi marcado pela união entre a filosofia jônica e o conceito de saúde e de doença. Começou, nessa época, florescer a Escola de Cós, que congregou médicos e filósofos, sob a influência de Hipócrates, em quem Platão, no início do século IV, reconheceu a personificação da Medicina. Hipócrates foi realmente respeitado como símbolo de uma Medicina corretamente aplicada, como está claro nas conhecidas passagens de Platão (Prot.313 B-C e Fedro 270 C) e de Aristóteles (Pol. VII, 1326). O aparecimento da literatura médica foi importante no desenvolvimento e aceitação da importância da Medicina nas relações sociais. A interpretação do papel social do médico também registrada por Platão (Leis, 857 D e 720 C–D), onde aborda a diferença da Medicina praticada nos escravos e nos homens livres. Platão faz a descrição de modo satírica de como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas e sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres. O interesse pelo saber das matérias médicas, presentes no homem culto grego, pode ser compreendido na figura do jovem Eutidemo, que Xenofonte descreveu como grande entendido da Medicina sem ser médico, e do historiador Tulcídides, que relatou com incrível minúcia o quadro médico social da peste que assolou Atenas entre os anos 430 e 427 a.C. Aristóteles vai longe e chega a distinguir na sua obra Política I, II, 1282, o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções especificas. Dessa forma, pelo menos entre os cidadãos da polis, as práticas médicas foram inseridas no cotidiano público.