A_NAU_DOS_INSENSATOS

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A NAU DOS INSENSATOS
Por Márcio Sotelo Felippe
O vídeo correu pelas redes sociais. Os manifestantes passam em frente à casa modesta
que ostenta uma faixa de apoio à luta dos professores. Naquele momento estão esparsos,
de modo que o vídeo capta a reação, um a um, dos bem nutridos vestindo camisas
amarelas da CBF diante da faixa. Xingam, gritam, esbravejam e pouco falta para
um pogrom para destruir a casa.
Contra que ou contra quem? Em uma sociedade absurdamente desigual, eles mostram o
seu ódio, não contra os de cima, não, por exemplo, contra os especuladores da dívida
pública que se apropriam de boa parte da renda nacional parasitariamente. O alvo do ódio,
dos esgares de ressentimento, do choro e ranger de dentes é quem está embaixo na
escala social ou econômica. Uma faixa de apoio à categoria dos educadores, essencial a
qualquer sociedade, que até as pedras das ruas sabem que são maltratados e mal pagos,
desencadeia uma pueril associação de ideias que expressa a pobreza do imaginário dessa
gente: a esquerda é inimiga e a esquerda está no poder porque os debaixo votam na
esquerda. Eles são superiores a essa gente que mora em casas simples, com uma
fachada escrito em cima que é um lar, e devem suportar a presidenta que os inferiores
elegem.
São os mesmos que nas redes sociais deixam frases como “tem que começar a
exterminar essa raça”; “a solução é começar a matar”; “eu quero a cabeça dele. Pago em
dólar”; “dá nojo olhar para esse safado. Morre camundongo da caatinga”; “porco sujo que
deve ser largado no mato para ser comido vivo pelas onças”; “culpa foi não ter matado a
Dilma”; “ a culpa é dos militares. Deveriam ter acabado com toda essa raça de bandidos
na ditadura militar”.[i]
Por que esse gente está tão furiosa? O fenômeno é mundial e aqui tem especificidades e
cores próprias.
Thomas Pikety, autor de O Capital no século XXI, apontou em entrevista recente a perda
patrimonial da classe média como foco de tensões sociais que pode explicar o crescimento
da direita e do egoísmo social. Na década de 70, diz ele, esse grupo possuía até 30% do
patrimônio total. Hoje está mais próximo de 25%, ao mesmo tempo em que aumenta a
concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos. É o que, diz Pikety, pode levar a
classe média para a extrema-direita: “quando não conseguimos resolver os problemas
sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro: trabalhadores,
imigrantes, gregos preguiçosos, etc.”.
A análise de André Singer em Os sentidos do lulismo também nos fornece pistas, na
mesma direção, para explicar esse cenário. O lulismo favoreceu, em uma ponta, o extrato
mais baixo da escala social, o subproletariado, aumentando o seu poder de consumo; em
outra ponta, permitiu ou consentiu com a acumulação pelo grande capital. Isto está de
algum modo em harmonia com o que diz Pikety. Vemos que no lulismo a classe média não
foi convidada para a festa. Ameaçada de perder seus privilégios sociais, extorquida pelos
planos de saúde, mordida pelo leão dos tributos que leva mais de 1/3 de seus ganhos –
considerando a taxação de sua renda e taxação pelo que consome – pagando escolas
com preços abusivos para seus filhos, ela reage instintiva e brutalmente.
Então, não percebe que está sangrando porque não há investimento do Estado e não há
investimento do Estado porque 45% do orçamento da União é apropriado pelos de cima
por meio do mecanismo da dívida pública.
E nesse momento entrega-se aos instintos mais selvagens e corre para o fascismo. É o
que vemos no vídeo: o seu “inimigo” social não é o tubarão que se apropria de recursos
gerados por toda a sociedade, mas aquele que mora na casa humilde e coloca na fachada
uma faixa de apoio aos mal pagos professores; o “inimigo” é o miserável que é miserável
porque é incompetente, não tem mérito e recebe dinheiro do Estado; o inimigo é o haitiano
que vem roubar empregos dos brasileiros.
A nau dos insensatos é uma alegoria renascentista que representa a existência humana
como um barco que conduz tolos que não sabem de onde vem, para onde vão e não
conseguem dar um mínimo de racionalidade a suas vidas. O quadro de Bosch que tem
esse nome mostra em primeiro plano duas figuras apalermadas tentando abocanhar um
alimento sem perceber que ele vai ser subtraído por ladrões. A alegoria é perfeita para
essa estulta classe média que não sabe por onde e por quem está sendo lesada.
A alegoria expressa alguns séculos antes a ideia iluminista de que o mal social decorre da
desrazão, do não pensar. No opúsculoO que é o Esclarecimento, (Aufklärung) Kant dizia
que o Iluminismo era a saída do homem da menoridade que consiste em não fazer uso do
próprio entendimento e deixar-se tutelar. Se lembrarmos que o nazismo galvanizou parte
da sociedade alemã afirmando que havia uma conspiração internacional entre as altas
finanças controladas pelos judeus e o bolchevismo para dominar o mundo temos a exata
dimensão do sentido da afirmação de Kant e do quão longe estamos, mais de dois séculos
depois, do ideal iluminista de uma sociedade que se organiza e se conduz por juízos
racionais.
Ausência de juízos racionais e fascismo estão sempre associados. Um não vive sem o
outro. Não à toa um general franquista, às vésperas da guerra civil espanhola, tentou
impedir, em uma cerimônia pública, que o filósofo Unamuno falasse bradando “abaixo a
inteligência, viva a morte”.
Abaixo a inteligência, viva a morte é o que move fautores de políticas regressivas,
autoritárias, de respostas instintivas, desprovidas de mínima racionalidade. Quando uma
parte da sociedade se move para a direita, as consequências sociais são amplas. Não se
limitam a aspectos econômicos. Elas se espraiam pelo direito, pela cultura, pelos
costumes, pelo clima geral de intolerância que vai tomando a sociedade como uma onda.
A insana proposta de redução da maioridade penal é uma boa amostra disto.
Quando bem nutridos manifestantes ensaiam um pogrom contra uma casa humilde vemos
que o caldo de cultura do fascismo está pronto e que arriscamos singrar mares
embarcados na nau dos insensatos.
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela
Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral
do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares
participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.
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