O ESTADO CONTEMPORÂNEO: ANÁLISES E

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O ESTADO CONTEMPORÂNEO: ANÁLISES E QUESTIONAMENTOS
Adriel Santos Santana
Introdução
A origem dos conflitos entre indivíduos pode ser extraída, em sua maior
parte, do problema da escassez de bens externos disponíveis para uso e
consumo, afinal somente nessa situação surgirá à necessidade de se
estabelecer normas que facilitem a vida em sociedade. Por conseguinte, onde
há abundancia de bens a disposição das pessoas não haverá razões
fomentadoras de disputas entre elas, ao menos em regra.1
O ser humano, ao longo da sua evolução social, optou, nas mais variadas
civilizações espalhadas pelo mundo, pela adoção do instituto da propriedade
privada, em graus relativos, como forma de resolver os conflitos pessoais sobre
os bens escassos. A regra que define a quem pertence cada bem é o da
apropriação original. Segundo ela, o indivíduo torna-se proprietário somente
quando mistura o seu trabalho ao bem natural, conferindo-lhe valor e utilidade2.
Este mesmo indivíduo também escolheu conseguir aqueles demais bens que
lhe fossem necessários ou desejáveis por meio de um processo de troca mútua
e voluntária com outros proprietários sobre os seus bens, dando origem assim
ao que hoje se conhece como mercado.
A antítese do sistema de trocas livres de bens é o uso por parte dos
indivíduos de meios violentos para adquirir bens e conseguir serviços dos
outros. Ao contrário do anterior, nesse sistema de apropriação não há a
multiplicação dos recursos disponíveis nem o incentivo a sua produção, dado
que algumas pessoas, se assemelhando às parasitas, vivem à custa dos
demais, aqueles que produzem.
1
Hoppe. Hans-Hermann, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
2009), Pág. 9.
2
Locke. John, Segundo Tratado sobre o Governo Civil (Rio de Janeiro: Vozes, 1994), Pág. 97-98.
Essas duas formas de se adquirir bens foram melhor explicadas pelo
sociólogo alemão Franz Oppenheimer em sua obra The State:
Existem duas formas fundamentalmente opostas através das
quais o homem, em necessidade, é impelido a obter os meios
necessários para a satisfação dos seus desejos. São elas o
trabalho e o furto, o próprio trabalho e a apropriação forçosa do
trabalho dos outros. Eu proponho chamar ao trabalho próprio e à
equivalente troca do trabalho próprio pelo trabalho dos outros, de
"meio econômico" para a satisfação das necessidades enquanto
a apropriação unilateral do trabalho dos outros será chamada de
"meio político". O Estado é a organização dos meios políticos.3
[Tradução nossa]
Por essa ótica, toda organização estatal é precedida pelo mercado, posto
que a única forma do primeiro se sustentar é pela via da exploração das
riquezas alheias, e estas só surgem por meio da produção e troca livre entre os
homens. O Estado assim nada produz; ele somente retira. A maneira pela qual
essa expropriação decorre é pela imposição de uma ordem legal que legitime
seus atos, mais popularizado como o sistema tributário.
Estado e Sociedade
O Estado, independente do tempo, do local ou da forma como é
organizado, é caracterizado essencialmente por dois elementos: o monopólio
sobre os serviços jurisdicionais dentro de um território delimitado e o poder de
instituir preços unilateralmente (e.g. tributos) com o objetivo de cobrir os custos
dos seus serviços monopolísticos. O filósofo alemão Hans-Hermann Hoppe4,
tendo por base essas características comuns aos Estados, afirma que “é fácil
entender por que existe um desejo de se controlar um Estado. Pois quem quer
que detenha o monopólio da arbitragem final dentro de um dado território pode
fazer as leis. E aquele que pode legislar pode também tributar”.
O poder de tributar implica, essencialmente, que uma das partes
contratantes, no caso o Estado, tem o poder de determinar o valor e a
qualidade do serviço oferecido sem que a outra parte possa recusar as
3
Rothbard. Murray N. Man, Economy, and State with Power and Market (Alabama: Ludwig von Mises Institute, 2004),
Pág. 880.
4
Hoppe. Hans-Hermann, Reflexões sobre a Origem e a Estabilidade do Estado (Discurso proferido no 3º Encontro
Anual da Property and Freedom Society, 2008).
condições que lhe foram impostas caso discorde delas. Desta forma, evidenciase que não são critérios econômicos que determinam o preço dos serviços,
como funciona no mercado, mas sim critérios políticos, o que, culmina no gasto
indiscriminado dos recursos econômicos.
O poder de jurisdição, que consiste em ter a última decisão em caso de
conflito entre particulares, cabe também ao Estado. A cobrança por este
serviço também será determinada de maneira coercitiva por meio dos tributos,
independente se os indivíduos usam ou não o serviço de jurisdição prestado
pelo Estado.5
Outra característica primordial dos Estados é o controle sobre uma
organização militar a qual possui duas funções básicas: manter a paz no
território sobre controle estatal, fazendo valer o ordenamento jurídico do
mesmo, permitindo assim que os cidadãos produzam e consequentemente
gerem tributos, e assegurar a existência do próprio Estado que ela representa,
seja contra inimigos externos como internos.
Frisa-se que não se tenta negar aqui a importância fundamental dos
serviços prestados pelo Estado, em especial o do fornecimento de uma ordem
legal, como já foi exposto anteriormente. O que se faz de suma necessidade
questionar é se a única forma possível da sociedade obter esses serviços é por
meio da existência do Estado. Em síntese, se põem em xeque nesse trabalho a
validade do discurso que afirma ser o ente estatal um “mal necessário”.
De acordo com o economista Murray Rothbard:
A maioria das pessoas, incluindo a maioria dos teóricos políticos,
acredita que uma vez que se admita a importância, ou até a
necessidade vital, de alguma atividade particular do Estado [...]
está se admitindo ipso facto a necessidade do próprio Estado. O
Estado de fato realiza muitas funções importantes e necessárias:
da provisão da lei ao fornecimento da polícia e bombeiros, da
construção e manutenção das ruas à entrega de
correspondências. Mas isto de forma alguma demonstra que
5
Austríaco, A Contradição do Liberalismo Clássico, ou a Falácia do Estado Mínimo. Disponível em:
http://austriaco.blogspot.com/2005/12/contradio-do-liberalismo-clssico-ou.html. Acesso em: 2 de novembro 2011.
apenas o Estado pode realizar estas funções, ou que ele de fato
as realize toleravelmente bem.6
O problema essencial sobre o ato de tributar reside na constatação
evidente de que ele se assemelha ao roubo e extorsão, com o detalhe de ser
considerado legal quando cometido pelo Estado e ilegal quando cometido por
particulares. Nem mesmo a impressão de que os tributos podem ser
considerados prestações monetárias naturais e espontâneas por bens e
serviços estatais se sustenta visto que os indivíduos não possuem o direito de
parar de pagar caso não utilize ou não esteja contente com os serviços e bens
que lhes são entregues pelo Estado. Em síntese, o objetivo dos tributos é
permitir que um grupo de indivíduos, aqueles ligados ao Estado, enriqueça a
custa do restante da população.
Enquanto o Estado manter o monopólio sobre alguns serviços, como os
de segurança e justiça, estará se sustentando, pela nomenclatura fornecida por
Oppenheimer, a hegemonia dos meios políticos de adquirir riqueza em
detrimento dos meios econômicos. Portanto, essa situação é questionável não
apenas economicamente como moralmente, posto a presença da nãovoluntariedade daqueles que são, em tese, os beneficiados do sistema jurídico
em voga.
Constituição e Representação
A democracia pode ser definida, segundo o economista político Joseph
Schumpeter7, como “o arranjo institucional para se chegar a certas decisões
políticas que realizam o bem comum, cabendo ao próprio povo decidir, através
da eleição de indivíduos que se reúnem para cumprir-lhe a vontade”.
Os intelectuais defensores do Estado argumentam que as críticas quanto
a legitimidade do Estado podem até serem válidas em um sistema estatal onde
os cidadãos não sejam parte do processo de formação da estrutura que o
compõe. Contudo, afirmam eles, em um Estado democrático, os indivíduos que
residem no território deste, concordam com a existência e continuidade do ente
6
7
Rothbard. Murray N., A Ética da Liberdade (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), Pág. 231.
Schumpeter. Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,1961), Pág. 306.
estatal, concordância está que estaria inclusive exposta nas próprias
constituições nacionais e nas eleições periódicas.
O preâmbulo da Constituição Federal do Brasil de 1988, conhecida como
a “Constituição Cidadã”, afirma:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição
da República Federativa do Brasil.8 [Grifos nossos]
Os congressistas responsáveis pela elaboração da constituição em vigor
no Brasil se alcunharam, como está claro no preâmbulo, como representantes
do povo brasileiro. A representação, por sua vez, nada mais é do que a
transferência por parte de um indivíduo para que outro faça valer sua vontade
em determinadas situações, incluindo realizar contratos em nome deste. Tendo
isso em vista, é inquestionável que a atual Constituição do Brasil é um
“contrato” (ou assim ao menos pretende se assemelhar).
A base de todo contrato é o consentimento, livre e voluntário, por parte
daqueles que o constituem. A Constituição Federal, sendo a pedra angular da
estrutura estatal, é formada, como assinalou o jurista Lysander Spooner9, “pelo
consentimento do povo, este qual é convocado a contribuir, seja através de
taxação ou serviços pessoais, para apoiar o governo”.
Contudo, essa ideia do consentimento como condição de existência do
contrato e, por conseguinte, da própria Constituição gera problemas das mais
variadas ordens, inclusive as de natureza moral e jurídica.
Um dos problemas é se o consentimento deve ser geral e unânime. Se for
respondido que sim, então a qualquer momento, qualquer indivíduo pode, se
assim o quiser, deixar de reconhecer a legitimidade do Estado, em âmbito
8
9
Preâmbulo da Constituição Federal do Brasil de 1988. Vade Mecum (São Paulo: Rideel, 9ª Ed. 2008).
Spooner. Lysander, No Treason (Oakland: AKPress, 1973), Pág. 12.
nacional, estadual e/ou municipal, como representante dos seus interesses, se
recusando consequentemente a financiá-los por meio de tributos.
Se for respondido que não é necessário o consentimento de todos os
indivíduos, que basta somente o consentimento da maioria das pessoas, pode
se questionar qual a legitimidade que uma maioria possui para impor a uma
minoria, incluindo aí a menor delas o indivíduo, a arcar com as obrigações de
um contrato com o qual ela não concorda nem possui interesse em cumprir.
Essa resposta trás ainda o ato falho de ignorar que a Constituição não afirma
que a maioria do povo a estabeleceu, mas “o povo” como um todo, o que inclui
tanto a minoria como a maioria. Aliás, de acordo com Lysander Spooner10,
“dizer que as maiorias, como tais, possuem direito de dominar minorias, é igual
a defender que as minorias não possuem, e nem deveriam possuir direitos,
com exceção daqueles que as maiorias concordassem em concedê-las”.
No Estado democrático não é possível utilizar o ato de votar como prova
de consentimento do indivíduo para com a existência dessa entidade, dado que
o Estado, para a vasta maioria dos cidadãos, já estava presente muito antes
deles consentirem com a sua autoridade. Não se pode ignorar nessa análise
também países, como o Brasil, onde o voto é obrigatório, sendo a participação
dos eleitores em potencial um dever, não uma escolha.
Segundo Lysander Spooner:
Pelo contrário, deve ser considerado que, sem seu
consentimento ter sido solicitado, um homem se encontra
cercado por um governo ao qual ele não consegue resistir; um
governo que lhe força a pagar dinheiro, prestar serviços e
abdicar do exercício de diversos de seus direitos [...], sob a
ameaça de punições pesadas. Ele vê, também, que outros
homens praticam essa tirania sobre ele através do uso das
urnas. Ele ainda vê que, se ele acabar por usar a urna, ele tem
alguma chance de se aliviar dessa tirania dos demais, ao sujeitalos à sua própria. Em suma, ele se encontra situado de tal forma
que, sem seu consentimento, se ele usar a urna ele poderá se
tornar um mestre; se ele não usá-la, ele se tornará um escravo.
E ele não possui outra alternativa senão essas duas. Em
autodefesa, ele escolhe a primeira. [...] Sem dúvida os mais
miseráveis dos homens, sob o governo mais opressor do mundo,
10
Spooner. No Treason, Pág. 09.
caso permitidos usarem a urna, o fariam, caso pudessem ver
qualquer chance de através disso melhorarem sua condição.
Mas ainda não seria uma inferência legítima a de que o próprio
governo, aquele que o destroça, foi um o qual eles
voluntariamente algum dia conjuraram, ou mesmo consentiram.11
Se fosse admitido que a população brasileira em 1988 como um todo
tenha consentido com a Constituição, caberiam porventura mais algumas
indagações sobre a legitimidade desse ato. Um desses questionamentos está
ligado à validade do “contrato social”, consubstanciado na Constituição, para
além daqueles que de fato consentiram com o mesmo. No ano em que a
presente Constituição Federal foi promulgada a população do Brasil girava em
torno de 150 milhões de pessoas. Atualmente esse número é de mais de 200
milhões. Ou seja, quase ¼ da população brasileira atual não era se quer
nascida quando a Constituição foi promulgada (ou em outros termos, “quando o
contrato foi assinado”), mesmo assim eles são obrigados a obedecê-la sem
reservas.
Importante notar também que no sistema democrático as pessoas não
votam em medidas isoladas e específicas, a exceção dos referendos e
plebiscitos, mas elegem “representantes” para os cargos da administração
pública, cabendo então a estes expressarem suas vontades por um período
determinado.
Entretanto, como indagou Spooner, essa nomenclatura é errônea e infeliz:
Eles [os oficiais eleitos do governo] não são nossos
empregados, nossos agentes, nossos procuradores e nem
nossos representantes [...] [pois] nós não assumimos
responsabilidade pelos seus atos. Se um homem é meu
empregado, agente ou procurador, eu necessariamente assumo
a responsabilidade por seus atos realizados dentro dos limites
da autoridade que eu conferi a ele. Se eu depositei nele, como
meu agente, ou a autoridade absoluta, ou qualquer autoridade
que seja, sobre as pessoas ou propriedades de outros homens
que não eu mesmo, eu com isso necessariamente me torno
responsável perante estas outras pessoas por quaisquer danos
que ele possa causar a elas, desde que ele aja dentro dos
limites da autoridade que eu concedi a ele. Porém nenhum
indivíduo que possa ter sofrido danos sobre sua pessoa ou
11
Rothbard. Murray N., A Ética da Liberdade (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), Pág. 236-237.
propriedade, através dos atos do Congresso, pode ir aos
eleitores individuais e afirmar que eles sejam responsáveis pelos
atos de seus supostos agentes ou representantes. Este fato
demonstra que estes pretensos representantes do povo, de todo
mundo, são na realidade os representantes de ninguém.12
Portanto o Estado é simplesmente uma organização que adquire sua
receita através de coerção física e que alcança um monopólio compulsório da
força e do poder de tomada de decisões finais em uma determinada extensão
territorial. Ele não é legítimo, nem seus integrantes, eleitos democraticamente,
representam os indivíduos sobre o qual sua autoridade é exercida, não
importando se a sua Constituição nacional afirme o oposto.
Democracia e Legislação
No modelo de Estado democrático, aqueles responsáveis por legislar são
eleitos pelos seus concidadãos. Na teoria, esses eleitores tendem a selecionar
os políticos para os quais irão os seus votos de acordo com os que mais
possuírem afinidade com os seus próprios interesses, ou que ao menos
afirmem durante o período eleitoral que pretendem defendê-los13.
Se por um lado a ideia da representatividade, que supostamente existe
entre os eleitores e os eleitos, possui falhas graves (como foi mostrado no
tópico anterior), por outro não se pode alegar que o funcionamento ideal dessa
representação seja desejável. Em outros termos, a consubstanciação nos
governantes dos interesses dos eleitores e também daqueles que os financiam
produz efeitos bastante perniciosos na sociedade.
Quando são eleitos, os políticos, ao menos os que possuem uma maior
conexão com a sua base eleitoral, buscam tomar medidas durante o seu
mandato que beneficie o máximo possível seus eleitores. A primeira vista não
parece haver nada de condenável nesse ato, tanto que os cidadãos comuns
como alguns cientistas políticos acreditam que seja justamente esse o dever
deles. Dessa forma, os políticos ligados, por exemplo, aos grupos
homossexuais buscarão tomar medidas legais em benefício deste grupo. Assim
12
13
Rothbard. Murray N., A Ética da Liberdade (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), Pág. 235.
A hipótese do voto racional é bastante questionável, mas não cabe nesse trabalho discuti-la a exaustão. Porém,
destaca-se aqui que já existem estudos que apontam que a decisão no momento do voto é mais fundamentada por
razões “irracionais” do que por uma análise racional das opções eleitorais disponíveis. Para uma compreensão em
maior profundidade desse tema recomendamos a leitura do livro The Myth of the Rational Voter, de Bryan Caplan.
também o será com os dos negros, dos trabalhadores, dos empresários, dos
agropecuaristas, dos religiosos, dos banqueiros, dos trabalhadores rurais e de
qualquer outro grupo social com capital político.
Como já foi mostrado aqui, o homem possui somente duas formas de
adquirir bens: por meio do trabalho, que conduz a troca livre, e da pilhagem do
trabalho dos outros. No entanto, no caso do Estado, a renda é adquirida
somente por meio da força, ou seja, da compulsão exercida pela via dos
tributos. No caso do Brasil, por exemplo, são 63 tributos divididos entre os
âmbitos federal, estadual e municipal14.
Tendo esse ponto em foco, e lembrando que o objetivo de uma ordem
jurídica é de justamente coibir os atos que atentem contra a vida, a liberdade e
a propriedade, percebe-se que a lei no sistema democrático é desvirtuada para
cumprir funções proativas, fazendo com que o Estado se torne um instrumento
de intervenção na sociedade, agindo dessa maneira em favor de grupos de
interesse, os quais atuam por meio dos seus políticos.
No Estado monárquico, a lei era gerida por um grupo uniforme de
indivíduos, a nobreza, o qual a convertia, sempre que possível, em seu favor.
Já no Estado democrático, todos os grupos sociais tornam-se aptos a fazer
parte da elaboração das leis, estas quais serão válidas para todos, tentando-as
utilizar para satisfazer seus próprios interesses. O Estado, que só existe por
causa da “espoliação legal”15 (tributos), se transforma assim numa democracia
em uma arma por parte dos representantes dos grupos eleitos para adquirir
benesses em seu favor à custa de toda a sociedade.
A legislação na democracia é atualmente um meio eficaz e, mais
importante de tudo, legal pelo qual os indivíduos podem retirar parte dos
rendimentos e frutos do trabalho de uns para eles próprios. Esse é o conceito
de “espoliação legal” cunhado pelo jurista francês Bastiat:
Como identificar a espoliação legal? Muito simples. Basta
verificar se a lei tira de algumas pessoas aquilo que lhes
pertence e dá a outras o que não lhes pertence; [...] [Basta
14
15
Feder. Alexandre Ostrowiecki e Renato, Carregando o Elefante (Rio de Janeiro: Hemus, 2008, 5º Ed.), Pág. 20-21.
Bastiat. Frédéric, A Lei (Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991), Pág. 15-17.
verificar] se a lei beneficia um cidadão em detrimento dos
demais, fazendo o que aquele cidadão não faria sem cometer
crime.16
Todas as medidas legais que são tomadas pelo Estado visando beneficiar
este ou aquele grupo de pessoas é uma distorção evidente da função básica
do que a lei deve representar, além de pôr a própria legitimidade do sistema
jurídico sobre suspeição. Se percebe ainda que um ciclo vicioso é fomentado
por meio de uma legislação espoliadora, dado que aqueles que são espoliados
em favor de outros buscarão meios legais de também espoliarem legalmente17.
Conforme Bastiat:
Enquanto se admitiu que a lei possa ser desviada de seu
propósito, que ela pode violar os direitos de propriedade em vez
de garanti-los, então qualquer pessoa quererá participar fazendo
leis, seja para proteger-se a si próprio contra a espoliação, seja
para espoliar os outros.18
As legislações são convertidas, dessa forma, no principal instrumento
pelo qual os governantes tornam legal o processo de espoliação da sociedade,
em geral as justificando ora com argumentos solidários (quando em favor dos
pobres), ora com argumentos econômicos (quando em favor dos produtores
nacionais), ora com argumentos “justicialistas” (quando em favor de grupos
historicamente discriminados). Não surpreende, portanto, que o Estado tenha
se tornado o meio pelo qual se tenta enriquecer todas as pessoas, à custa
umas das outras19.
Sociedade e Justiça
Durante a história da humanidade, foram muitos os filósofos e teóricos
políticos que ousaram descrever qual seria, na opinião deles, a sociedade
perfeita, apontando os meios pela qual ela poderia ser construída e como a
mesma funcionaria. As utopias, sejam as de direita ou de esquerda, quando
levadas a realidade, em regra, fracassaram. Seus defensores, por sua vez,
16
Bastiat. A Lei, Pág. 24.
17
Soto. Jesus Huerta de, Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial (Lisboa: O Espírito das Leis, 2006),
Pág. 226.
18
Bastiat. A Lei, Pág. 21.
19
Bastiat. Frédéric, A Lei (Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991), Pág. 24.
criaram as mais variadas justificativas para explicar os erros da prática, visto
que, em sua concepção, nada de errado haveria na teoria.
O jurista e economista Friedrich A. Hayek, buscando compreender os
erros dos sistemas utópicos, estudou com especial atenção a maneira pela
qual as sociedades se organizavam ao longo do tempo e como suas principais
instituições vieram a surgir e se legitimarem. Em sua teoria, as sociedades
humanas são caracterizadas por eventos regulares, estes quais geram
inconscientemente uma ordem social. Essa ordem não foi projetada nem
organizada
pelo
desejo
ou
intenção
dos
indivíduos,
apenam
foram
desenvolvidas livremente, por meio da cooperação, a fim de satisfazer as
inúmeras necessidades humanas. Hayek denominou esse processo de ordem
espontânea. Em contraponto a ordem espontânea, Hayek assinalou a
existência de ordens que surgem por meio da vontade humana deliberada,
sendo, portanto, ordens artificiais. Ele caracterizou as primeiras pela sua
espontaneidade e complexidade e as segundas pelo seu latente dirigismo e
simplicidade. A tentativa de intervir nas ordens espontâneas usando para tanto
expedientes típicos das ordens artificiais, como é o caso das utopias, foi
denominada por Hayek como construtivismo racionalista.20
Hayek criticou duramente a confiança no construtivismo racionalista, isto
é, na crença errônea dos indivíduos na sua capacidade de comandar a
sociedade e organizá-la da forma que acreditam ser a ideal. O construtivismo
racionalista se faz presente notadamente na política, visto que, na concepção
moderna de Estado pró-ativo, se busca corrigir supostas distorções sociais e
econômicas, satisfazendo assim as aspirações, os desejos e as vontades ora
de grupos específicos ora do “bem comum”.21
Nos sistemas democráticos, políticos “construtivistas”, representando os
grupos de pressão, estabeleceram inúmeros argumentos para promover
intervenções estatais na sociedade e no mercado. Esse processo decorreu
especialmente da alteração do conceito de “lei”. Como argumentou Hayek, a
função da lei deixou de ser estipular regras válidas a todos os cidadãos e
20
21
Hayek, Friedrich A.. Direito, Legislação e Liberdade, Vol. 1. (São Paulo: Visão, 1985), Pág. 36-38.
Iorio. Jorge Ubiratan, Economia e Liberdade: A Escola Austríaca e a Economia Brasileira (Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997, 2º Ed.).
aplicáveis aos conflitos sociais, transformando-se em normas que visam
organizar e estruturar a sociedade para a consecução de fins prédeterminados,
mais
conhecidas
na
contemporaneidade
como
normas
programáticas22.
O economista espanhol Jesus Huerta de Soto, assinalando os
argumentos fornecidos por Hayek, afirma que:
A prostituição do conceito de lei [...] é inexoravelmente
acompanhada em paralelo por uma prostituição do conceito e da
aplicação da justiça. A justiça, no seu sentido tradicional,
consiste na aplicação, de forma igual a todos, das normas
abstratas de conduta de tipo material que constituem o direito
[...]. Não é, portanto, por acaso que a justiça se representa de
olhos vendados, uma vez que a justiça deve ser antes de tudo
cega, no sentido de que não deve deixar-se influenciar no
momento de aplicar o direito “nem pelas dádivas do rico nem
pelas lágrimas do pobre” (Levítico, cap. 19, versículo 15).23
Um dos conceitos mais comuns nos dias atuais é o de justiça social, uma
concepção jurídica básica do Estado de bem-estar social. Esse modelo de
estado assume como sua responsabilidade fundamental o zelo pelo bem-estar
dos seus cidadãos, provendo o máximo de benefícios possíveis a eles, seja por
meio de serviços públicos “gratuitos” ou pelo auxílio financeiro aos mais
“necessitados”.24
O argumento da justiça social consiste na avaliação discricionária
realizada por órgãos políticos e jurídicos, com base nos objetivos considerados
por eles justos, para amparar e decidir sempre que possível a favor dos mais
“desfavorecidos” ou “injustiçados”. Portanto, nesse padrão de justiça, não é a
conduta humana em sociedade que está sobre julgamento, mas o resultado
considerado mais desejado por políticos e juristas, tendo por fundamento uma
ideia específica de justiça, a distributiva.25
22
Canotilho. José Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (Coimbra: Livraria Almedina, 1998, 2º Ed.).
23
Soto. Jesus Huerta de, Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial (Lisboa: O Espírito das Leis, 2006),
Pág. 224-225.
24
Friedman. Milton, Capitalismo e Liberdade (São Paulo: Nova Cultural, 1985), Capítulo XI.
25
Soto. Jesus Huerta de, Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial (Lisboa: O Espírito das Leis, 2006),
Pág. 225.
A ideia de justiça social tornou-se um parâmetro forte das decisões
judiciais, como aponta uma pesquisa realizada em 2010 pela Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) com juízes de todo o país. Segundo o resultado
obtido por essa pesquisa, dos 3.258 magistrados que a responderam, 85,5%
afirmaram ter como parâmetros para suas sentenças somente a legislação,
78,5% afirmaram orientar suas decisões com base na lei e nas questões
sociais, e 36,5% decidem por critérios legais, sociais e econômicos.26
Contudo, nem só aos políticos e juristas cabe a responsabilização pelas
mudanças profundas sofridas pelas democracias. Muitas das ideias balizadoras
das ações governamentais, estas quais serviram como uma bússola orientando
a visão dos juristas e dos seus postulados normativos para a sociedade, são
produtos do trabalho de economistas defensores do intervencionismo.
Resumidamente, as ideias distorcidas de economistas influentes teriam
corrompido o entendimento da realidade por parte dos juristas, o que gerou no
âmbito estatal medidas legais visando reorganizar, planejar e intervir na
sociedade e na economia a fim de se criar uma sociedade mais “justa”.
De acordo com Jesus Huerta de Soto:
Do ponto de vista da justiça tradicional, não existe nada mais
injusto do que o conceito de justiça social, uma vez que este se
baseia numa visão, impressão ou avaliação dos “resultados” dos
processos sociais independentemente de qual tenha sido o
comportamento individual de cada indivíduo relativamente às
normas do direito tradicional.27
O economista Ludwig Von Mises realizou um extenso trabalho sobre
teoria econômica demonstrando como a incompreensão dos fenômenos de
mercado, inclusive durante a tão criticada Revolução Industrial28, gerou
intervenções absurdas e das mais variadas ordens nas relações de trabalho 29.
Essas intervenções na sociedade iniciaram ali uma guinada, quanto às
concepções sobre as funções estatais, para o controle cada vez maior do
Estado sobre os indivíduos.
26
Instituto Iluminet Br@sil. Disponível em: http://www.leonildo.com/juiz.htm . Acesso em: 2 de novembro 2011.
27
Soto. Jesus Huerta de, Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial (Lisboa: O Espírito das Leis, 2006),
Pág. 225.
28
Mises. Ludwig von, Ação Humana (Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 3º Ed, 1990), Pág. 859-867.
29
Mises. Ludwig von, Intervencionismo (Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1999), Pág. 33-35.
Os novos paradigmas jurídicos, apoiados em especial sobre a ideologia
socialista, deram aos legisladores a possibilidade de intervir na sociedade e no
mercado sempre que estes considerassem necessário. Não há porque se
surpreender, tendo essa questão em foco, que a quantidade de direitos
recebidos pelos cidadãos nas últimas décadas seja enorme e que esteja ainda
em contínua expansão.
A confusão fatal sobre o que seria um direito é o principal responsável por
esse fenômeno. Se se pretende ponderar criticamente se um direito específico
é realmente verdadeiro, ou seja, um direito que todos os indivíduos usufruem
pelo fato de serem humanos, então é necessário afirmar que todas as pessoas
são capazes de gozar desse direito da mesma maneira e ao mesmo tempo.
Contudo, o atual conceito de direito envolve o uso da coerção sobre um
indivíduo ou um grupo para satisfazer o desejo de outro indivíduo ou outro
grupo. Esse entendimento pode ser utilizado para se tratar de qualquer serviço
ou bem que, segundo a presente ordem legal, seja um “direito”, como é o caso
no Brasil, da saúde30, da educação e da cultura31, da justiça32, da moradia, do
lazer e da segurança33.
As alterações doutrinárias no âmbito da justiça e das legislações
governamentais esvaziaram da democracia os princípios liberais que lhe
serviram de fundamento em sua gênese. Consequentemente, essas mudanças
vieram acompanhadas do aumento da confiança dos cidadãos em medidas
governamentais que prometessem resultados rápidos para satisfazer as
vontades dos grupos de pressão, sendo basicamente este um efeito social que
se pode visualizar com clareza nos dias de hoje.34
O “Império da Lei”
Um dos principais legados da Revolução Francesa (1789-1799) foi o
processo de padronização e sistematização do Direito, este qual até aquele
30
31
32
33
34
Art. 196 da Constituição Federal do Brasil de 1988. Vade Mecum (São Paulo: Rideel, 9ª Ed. 2008).
Art. 23, V da Constituição Federal do Brasil de 1988.
Art. 5º, XXXV da Constituição Federal do Brasil de 1988.
Art. 6º da Constituição Federal do Brasil de 1988.
A construção e a crítica a esse “novo direito” foi bem realizada por Friedrich A. Hayek em sua obra magna Direito,
Legislação e Liberdade.
período era marcado pela sua enorme complexidade, particularização e
incoerências. Nesse sentido, os ideais iluministas, em particular os liberais,
buscaram conferir o escopo jurídico necessário para a formação de uma ordem
legal que fosse válida para todos os cidadãos.
Amparados na ideia de Rousseau de que a lei é a expressão da vontade
geral, os juristas compreendiam que, a partir daquele momento, o Direito
Positivo era um sistema completo e hermeticamente fechado, sendo
resguardado aos juízes em seus tribunais simplesmente extrair dele as
soluções cabíveis ao caso concreto. Por essa lógica, todas as respostas para
os conflitos em sociedade já estavam presentes na própria lei, sendo preciso
somente aplicá-las. Esses juristas ficaram conhecidos, historicamente, como
representantes da Escola da Exegese35.
O sistema legal vigente no país, como é de conhecimento público, é
estabelecido pelo Poder Legislativo por meio dos seus legisladores durante o
período do seu mandato. Cabe então ao Poder Judiciário o dever de tornar
concreta e eficaz toda a legislação oriunda do Congresso e, em certos casos,
do Executivo. É fato notório também que o conteúdo da legislação pode mudar
significativamente a depender de quem legisla e que a maneira pela qual ela é
interpretada será bastante distinta tendo por base qual juiz ou tribunal a
interpreta.
Mesmo compreendendo que as leis geradas e aplicadas pelo Estado
possuem um conteúdo e uma carga de interesses específicos e muitas vezes
escusos, os cidadãos, de forma geral, consideram a lei como um conjunto de
normas claras e que são submetidas a uma aplicação imparcial por parte dos
juízes e tribunais. Por isso mesmo, concluem eles, todos têm o dever de
obedecê-las.
A crítica dos liberais de orientação clássica, como Bastiat, Hayek e Mises,
ao atual sistema judicial parte da premissa de que é possível existir leis estatais
que sejam baseadas em princípios abstratos e gerais, os quais preservem a
liberdade, a vida e a propriedade, valores básicos da filosofia liberal. Até
35
Reale. Miguel, Filosofia do Direito (São Paulo: Saraiva, 2002, 20º Ed.), Pág. 414-417.
mesmo no atual ordenamento jurídico, ainda é possível notar a força na crença
de que a lei é objetiva e que o juiz é obrigado a aplicá-la livre de suas crenças
morais e políticas. Essa crença é popularmente conhecida como “o império da
lei”, está qual veio a substituir com louvor a concepção política absolutista da
“inspiração divina dos reis” que justificava assim todas as medidas legais
tomadas por estes.
De acordo com John Hasnas:
[Quanto] ao “império da lei”, no que se refere a uma sociedade
na qual todos são governados por regras neutras que são
objetivamente aplicadas por juízes, ele não existe. [...] O império
da lei sugere uma ausência de arbitrariedade, uma ausência dos
piores abusos da tirania. [...] Pois, se os cidadãos realmente
acreditam que estão sendo governados por regras justas e
imparciais e que a única alternativa é a sujeição a domínios
pessoais, elas muito mais provavelmente apoiarão o estado
36
enquanto ele progressivamente restringe suas liberdades.
[Tradução nossa]
Contudo, no mundo jurídico, não é possível conceber uma lei clara e livre
de interpretações antagônicas, dado especialmente ao fato de que as leis
estatais são formadas por um conjunto de princípios e normas contraditórias e
conflitantes. Isso implica em afirmar que, no sistema jurídico atual, é totalmente
cabível construir uma posição consistente para embasar qualquer conclusão
legal. Por isso mesmo as ideias pré-concebidas daqueles responsáveis por
tomar as decisões judiciais tem maior importância no resultado dos casos do
que a lei em si. Essa é a resposta a falácia do raciocínio legal, que consiste em
supor que sob uma norma há somente uma resposta válida para o caso
concreto.37
É impossível alcançar uma decisão objetiva baseando-se somente na lei,
porque ela está continuamente exposta à interpretação. Por conseguinte se
conclui logicamente que a forma que se interpreta as regras das leis é sempre
determinada pelas ideias dos responsáveis por julgar. Não obstante essas
questões, os intelectuais, com maior ênfase os liberais a moda clássica, supõe
ser possível conceber uma lei que possa ser geral, ampla e abstrata, evitando
36
37
Hasnas. John, The Myth of The Rule of Law (Madison: Wisconsin Law Review 199, 1995).
Hasnas. John, The Myth of The Rule of Law, 1995.
assim os riscos da arbitrariedade dos juízes. Isso não pode ser projetado
porque não há nenhum tipo de linguagem que não esteja suscetível de
interpretação.
De fato, não há motivos para criticar a indeterminação das normas legais,
ao menos enquanto elas forem um monopólio estatal. As leis devem
permanecer vagas porque isso gera uma flexibilidade maior em sua
interpretação, a qual é essencial para que elas possam ser aplicáveis a todos
os cidadãos. Porém, a ideia que se transmite a sociedade é de que as leis
compõem um conjunto harmônico e objetivo, uma latente contradição.
Explica John Hasnas:
O império da lei é um mito, e como todos os mitos, ele é
desenhado para servir a uma função emotiva, não cognitiva. O
propósito de um mito não é persuadir a razão, mas incitar as
emoções a apoiar uma ideia. E esse é precisamente o caso do
mito do império da lei; seu propósito é incitar as emoções do
público em suporte da estrutura política de poder da sociedade.
As pessoas desejam mais apoiar o exercício da autoridade sobre
si mesmas quando elas acreditam que ela seja uma
característica objetiva, neutra, do mundo natural. Aquelas
pessoas que acreditam que vivem sob "um governo de leis e não
de homens" tendem a ver o sistema legal de seus países como
objetivo e imparcial. Elas tendem a ver as regras sob as quais
devem viver não como expressões da vontade humana, mas
como incorporações de princípios de justiça. Uma vez que elas
acreditem que estão sendo comandadas por uma lei impessoal e
não por outros seres humanos, elas vêem que a própria
obediência à autoridade política é simplesmente uma aceitação
de espírito público dos requerimentos da vida social em vez de
uma mera aquiescência ao poder superior. Mas o mito do
império da lei faz mais do que simplesmente tornar as pessoas
submissas à autoridade do estado; ele também as torna
cúmplices do exercício de poder do estado. O mito do governo
impessoal é simplesmente o meio mais efetivo de controle social
disponível para o estado.38 [Tradução nossa]
A busca pelo controle sobre a lei é a marca do nosso tempo. Enquanto
todos forem governados pela mesma lei, enquanto um único conjunto de
valores for aplicado a todos, essa batalha pelo poder permanecerá. Em
resumo, enquanto a lei continuar sendo um monopólio estatal, as pessoas
38
Hasnas. John, The Myth of The Rule of Law (Madison: Wisconsin Law Review 199, 1995).
procurarão impor as suas próprias ideias de justiça a todo o restante da
sociedade.
A Relação Custo/Benefício do Sistema Público
Os problemas comuns ao sistema público são, ao contrário do que muitos
acreditam, intrínsecos a sua própria estrutura. Esse fato pode ser extraído de
uma análise cuidadosa ancorada sobre a aplicação das leis econômicas que,
assim como na iniciativa privada, também regem esse sistema.
Uma das características de áreas do setor público é a sua “gratuidade”,
ou seja, seu financiamento exclusivo por meio dos repasses do governo. A
falha inerente nesse processo reside na ausência de um sistema de preços
para tornar racionais as decisões gerenciais, apontando assim quais são os
serviços e produtos subutilizados ou improdutivos, e consequentemente
facilitando a alocação dos custos de maneira eficaz. Portanto, a gratuidade de
um serviço ou um bem, além de beneficiar alguns poucos repassando a toda a
sociedade os seus custos, faz com que os recursos sejam direcionados de
forma errônea, não sendo possível assim ao administrador público diferenciar
quais departamentos são mais necessitados de recursos.39
Se fosse possível ao setor público impor preços condizentes com os do
mercado aos seus serviços e bens, alocando assim com eficiência seus
recursos, ele teria ainda que lidar com o grave problema de que o mesmo pode
obter
recursos
extras
quando
lhe
for
conveniente
pela
via
da
tributação. Enquanto as empresas privadas somente podem adquirir seus
fundos por meio de investidores e consumidores, o setor público pode adquirir
o tanto de recursos que considerar necessário, por isso mesmo ele não possui
a obrigação de ofertar serviços e bens de qualidade aos seus consumidores,
porque tendo prejuízo ou lucro, ele sempre terá acesso a novos fundos.
Conforme Murray Rothbard:
39
IMB. Instituto Ludwig von Mises Brasil. Por que o Governo Não é Capaz de Ofertar Serviços Eficientemente.
Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=396 Acesso em: 25 de outubro 2011.
Essa justificativa é fornecida pelo teste de lucro e prejuízo: a
indicação de que os mais urgentes desejos dos consumidores
estão sendo atendidos. Se uma empresa ou produto estão
gerando altos lucros para seus proprietários, e esses lucros
tendem a continuar, mais dinheiro estará disponível no futuro;
caso esteja ocorrendo o oposto, e a empresa esteja incorrendo
em prejuízos, o dinheiro fluirá para fora daquele
empreendimento. O teste de lucros e prejuízos serve como guia
crítico para direcionar o fluxo de recursos produtivos. Tal guia
não existe para o governo, que não possui uma maneira racional
de decidir o quanto de dinheiro ele deve gastar, seja no total ou
em algum setor em específico. Quanto mais dinheiro ele gastar,
mais serviços ele pode ofertar.40
No Brasil, por exemplo, um estudo realizado pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV) mostrou que o setor público brasileiro ficou com 66,8% da
riqueza produzida no país entre 1991 e 2006, restando ao setor privado
somente um terço desse valor (33,2%). Também foi evidenciado que a carga
tributária brasileira cresceu de 24,4% para 37,5% nesse mesmo período sobre
o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), que foi de 44,7%.41
O setor público conta ainda com o problema do monopólio, que pode ser
definido como a situação onde há ofertantes únicos de um determinado bem ou
serviço, sendo que não é possível legalmente a entrada de novos ofertantes no
mercado. Quando o Estado detém o monopólio de um bem ou serviço (como é
o caso do sistema de justiça e segurança), ele fica livre para encarecer os
custos e diminuir a qualidade dos serviços e bens prestados. Esse fato decorre
de que em um monopólio estatal, ao contrário da situação de livre
concorrência, não há outra possibilidade aos consumidores do que recorrer aos
seus serviços e bens.
O Brasil é um excelente exemplo desse problema. O Poder Legislativo
nacional é o mais oneroso do mundo42, sendo que os congressistas só
trabalham oficialmente 3 dias na semana (de terça a quinta-feira). Mesmo
assim, de acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT),
desde 1988, ano da promulgação da Constituição Federal, mais 4,2 milhões de
40
IMB. Instituto Ludwig von Mises Brasil. Por que o Governo Não é Capaz de Ofertar Serviços Eficientemente.
Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=396 Acesso em: 25 de outubro 2011.
41
Feder. Alexandre Ostrowiecki e Renato, Carregando o Elefante (São Paulo: Hemus, 2008, 5º Ed.), Pág. 20.
42
Feder. Carregando o Elefante, Pág. 46.
normas e leis entraram em vigor nas esferas federais, estaduais e municipais.
Desse total, entre o período de 1988 a 2006, 18.000 normas foram voltadas
exclusivamente para a área tributária43. A própria Constituição já recebeu 67
emendas nos últimos 23 anos44.
O Poder Judiciário brasileiro, que dispõe de 40% a mais de funcionários
por vara do que a média mundial, além de custar quatro vezes mais do que
países em condições parecidas socioeconomicamente, não é capaz de
acompanhar a quantidade de trabalho necessária para suprir a demanda
existente45. Atualmente são mais de 70 milhões de processos em tramitação na
Justiça, sendo estimado que cerca de 45 milhões deles esteja aguardando
julgamento46.
O setor da segurança pública também é marcado pela corrupção e
incompetência, a qual produz completa desconfiança sobre os cidadãos, que
evitam até mesmo fazer boletins de ocorrência de alguns crimes dos quais
foram vítimas. Dados da Polícia Federal apontam que enquanto há atualmente
meio milhão de policiais na ativa tanto na polícia civil como na militar, são mais
de dois milhões o número de pessoas que trabalham como seguranças
privados, ou seja, quatro vezes mais que os “seguranças estatais”47. Importante
frisar que os policiais civis e militares seguem turnos de apenas 12 a 24 horas
seguidas, estando livres para descanso por 36 a 72 horas48, sendo que muitos
deles aproveitam esse tempo de folga para trabalharem como seguranças
particulares, ato este proibido por lei, para complementar seus rendimentos.
O sistema presidiário no Brasil sofre dos mesmos males comuns a todos
os ramos do setor público: é dispendioso e ineficiente. Hoje em dia existem
mais de 400.000 presos no Brasil, contudo a capacidade oficial do nosso
sistema é de somente 250.000 vagas. Exatamente por isso, o Estado gasta em
média mais de 18 mil reais por ano com cada preso49. Informação importante:
43
44
45
46
47
48
49
Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Consultado em: 2 de novembro 2011.
Emendas Constitucionais. Vade Mecum (São Paulo: Rideel, 2011, 12ª Ed.).
Feder. Alexandre Ostrowiecki e Renato, Carregando o Elefante (São Paulo: Hemus, 2008, 5º Ed.), Pág. 65.
Feder. Carregando o Elefante, Pág. 48.
Feder. Carregando o Elefante, Pág. 62.
Feder. Carregando o Elefante, Pág. 63.
Feder. Carregando o Elefante, Pág. 67.
há mais de meio milhão de mandados de prisões expedidos em todo o país
que ainda não foram cumpridos50.
As respostas para sustentar o mantimento dos serviços de segurança e
justiça sobre o controle do Estado são muitas, sendo que algumas delas já
foram apresentadas anteriormente neste trabalho e foram devidamente contraargumentadas. Há, porém, outra resposta, dessa vez formulada por
economistas, à manutenção desse monopólio: o argumento dos bens públicos.
Segundo Hoppe:
Diz-se que certos bens ou serviços [...] têm a característica
especial que seu gozo não pode ser restrito àquelas pessoas
que de fato financiaram a sua produção. Antes, as pessoas que
não participaram em seu financiamento também podem obter
benefícios dela também. Tais bens são chamados bens públicos
ou serviços (em oposição aos bens e serviços privados, que
exclusivamente beneficiam aquelas pessoas que de fato
pagaram por eles). Devido a esta característica especial dos
bens públicos, segundo argumentam, os mercados não podem
produzi-los, não ao menos em quantidade ou qualidade
suficiente, e então a ação estatal compensatória é necessária.51
Contudo, a teoria dos bens públicos ignora vários pontos importantes dos
mais simples postulados econômicos. Em primeiro lugar, a própria história
mostra que os bens públicos providos atualmente pelo Estado já foram
fornecidos por empreendedores privados no passado e ainda hoje os são
oferecidos privadamente em alguns países. Em segundo lugar, o fato de um
bem ou serviço permitir que outras pessoas possam usufruir deles sem terem
os financiados não implica em afirmar que estes bens não são escassos, posto
que para que eles possam existir são necessários que alguém os produza,
assim logicamente eles possuem um custo correspondente. Em terceiro lugar,
essa teoria não explica os motivos que levariam os governantes que estiverem
no controle da máquina pública a produzir serviços e bens que beneficiem a
50
51
Feder. Carregando o Elefante, Pág. 68.
Hoppe. Hans-Hermann, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
2009), Pág. 190.
todos, não agindo assim em seus próprios interesses como o fariam se
estivessem na iniciativa privada.52
A teoria dos bens públicos é bastante municiada pelo argumento
econômico das externalidades. Em economia, externalidades são todas as
ações cometidas por um indivíduo que afeta outro, mas que não são
percebidas ou avaliadas pelo executor do ato. Elas produziriam assim
consequências, positivas ou negativas, que por sua vez deveriam, segundo os
economistas, ser corrigidas ou fomentadas pelo Estado. O problema dessa
conclusão é que não fica claro novamente porque seria o Estado mais eficiente
do que o livre mercado em resolver essas situações nem porque teria este o
interesse de agir nesse sentido, recaindo assim nos pontos assinalados no
parágrafo anterior.
Conclusão
A iniciativa privada é a base das relações humanas mais fundamentais na
sociedade. A procura pela satisfação dos interesses pessoais resultou nas
maiores conquistas da humanidade e permitiu que a espécie caminhasse cada
vez mais em direção ao progresso. Por isso mesmo o livre mercado tem sido o
único sistema econômico até os presentes dias que mais gerou riquezas e
produziu oportunidades de melhora das condições de vida dos indivíduos.
Infelizmente, o poder da iniciativa privada é constantemente repelido pelo
Estado, suas leis e monopólios, bloqueando assim a criatividade e dinamismo
dos empreendedores em busca de oferecer, ainda que movidos pelo autointeresse, melhores bens e serviços para atender aos desejos e necessidades
dos consumidores.
Preceitua o economista belga, do século XIX, Gustave de Molinari:
Se existe uma verdade bem estabelecida em política econômica,
esta é: que em todos os casos, porque todas as coisas que
servem para prover as necessidades tangíveis ou intangíveis do
consumidor, é no melhor interesse do consumidor que o trabalho
e o comércio permaneçam livres, porque a liberdade de trabalho
e comércio têm como resultado permanente e necessário a
redução máxima do preço. (...) Agora, ao perseguir estes
52
Hoppe. Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo, Pág. 191-193.
princípios, chegamos à esta rigorosa conclusão: que a produção
da seguridade [e da justiça] deve, no interesse dos
consumidores deste bem intangível, permanecer sujeita à lei da
livre competição. Do que segue: que nenhum governo deveria
ter o direito de evitar um outro governo de entrar em competição
com ele, ou de requerer que os consumidores da seguridade
venham exclusivamente a ele por este bem.53
Posto isto, podemos aqui concluir que enquanto esses serviços
permanecerem sobre o monopólio estatal, que enquanto não for permitido que
as pessoas adotem as regras de comportamento que se encaixem melhor a
suas necessidades, a atual situação calamitosa dos atuais serviços prestados
pelo Estado persistirá.
53
Hoppe. Hans-Hermann, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
2009), Pág. 190.
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