2666 CARTA DO LEITOR: DA TRANSITIVIDADE À CONSTRUÇÃO

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CARTA DO LEITOR: DA TRANSITIVIDADE À
CONSTRUÇÃO DE OPINIÃO
Magna Simone Albuquerque de Lima – UFCG
0 Introdução
O paradigma funcionalista dos estudos lingüísticos tem como objetivo estabelecer as relações
entre o sistema interno da língua e o uso da linguagem em situações de interação (CUNHA,
OLIVEIRA & MARTELLOTA, 2003). Tendo como sustentáculo essa linha teórica, a Lingüística
Sistêmico-Funcional (doravante LSF) encara a língua como sendo um sistema semiótico, produtor de
significados a partir da motivação social dos fatos da língua.
É patente na lingüística atual a tendência de analisar a língua considerando o aspecto funcional
da organização dos sistemas lingüísticos. Esse modo de conceber a língua finca-se no estudo de suas
estruturas a partir dos gêneros textuais, afastando, então, o trabalho descontextualizado e desvinculado
das práticas sociais. Desse quadro teórico afloram várias contribuições para um estudo apropriado e
qualificado dos fatos lingüísticos, focalizando o uso real da língua nas mais diversas situações sociais
(cf. CRHISTIANO, SILVA & HORA, 2004)
Tendo em vista a consolidação do paradigma funcionalista de análise dos elementos lingüísticos
e assumindo ser a língua, como também a sua gramática, uma fonte inesgotável de significados,
desenvolvemos este artigo, que se configura como uma parte de nossa dissertação de mestrado, com o
intento de analisar linguisticamente um dos recursos gramaticais responsáveis pela construção das
experiências de mundo vivenciadas pelos sujeitos envolvidos e concretizadas pela linguagem: a
transitividade.
Assim, tendo como suporte teórico os estudos sobre a transitividade a partir da LSF, este artigo
tem como objetivo analisar os papéis (processos, participantes e circunstâncias) do sistema da
transitividade no gênero carta do leitor a fim de averiguar, a partir das funções dos processos e dos
participantes, a contribuição do sistema da transitividade para a construção da opinião neste gênero.
Para tanto, organizamos este artigo, dividindo-o em cinco partes. Na primeira, apresentamos
esta introdução; na segunda, explicitamos os fundamentos teóricos adotados; na terceira parte,
analisamos os dados; na quarta, tecemos as considerações finais e, na quinta, listamos as referências
bibliográficas citadas ao longo do texto.
1. Fundamentos Teóricos
Os estudos funcionalistas da linguagem têm como objetivo analisar os fatos da língua a partir do
seu funcionamento nas mais diversas situações reais de interação (cf. Silva, 2008). O foco deste
paradigma é na relação entre as funções sociais dos fenômenos lingüísticos e o seu sistema interno,
centrando sua atenção na explicação das regularidades verificadas no uso interativo da língua
(CUNHA, 2008). Nesta linha teórica, encontra-se a perspectiva da Lingüística Sistêmico-Funcional
(LSF) que entende ser a língua um sistema semiótico complexo, de natureza multifuncional,
acentuando a interface entre a linguagem e a sociedade.
A LSF, como área de estudos da língua e preocupando-se em descrever a linguagem em
funcionamento, pretende investigar a interioridade do sistema lingüístico sob o foco das funções
sociais firmadas de acordo com os usos interacionais da língua (cf. CUNHA & SOUZA, 2007). A
teoria em evidência nesse estudo, a LSF, enfatiza a multifuncionalidade lingüística como sendo uma
propriedade não apenas extrínseca da língua, mas incorporada à sua organização estrutural (cf.
HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004) e registra três funções da linguagem: a ideacional, a
interpessoal e a textual encontrada nos textos (cf. HALLIDAY, 1985).
A função ideacional diz respeito à representação da experiência humana diante de ações, estado
e eventos sociais. A função interpessoal refere-se ao significado dos fatos lingüísticos que expressam
as relações sociais e pessoais, (re)formando identidades sociais dos sujeitos participantes das
interações sociais. A função textual trata dos aspectos gramaticais, semânticos que devem ser
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analisados no texto focalizando o fator funcional, vez que as escolhas lingüísticas revelam as
intenções, as ideologias dos indivíduos inseridos em determinados contextos sociais de interação (cf.
CUNHA & SOUZA, 2007).
Entendendo a língua sob seu aspecto multifuncional, a LSF parte sempre da análise de textos
que são vistos como produtos autênticos de interação social inseridos em dois contextos: o situacional
e o cultural-estrutura social (cf. EGGINS, 1994). Neste, há a soma de todos os significados possíveis
de construir sentido em uma determinada cultura, mobilizando o caráter sócio-histórico da linguagem.
No contexto de cultura, os participantes da interação verbal usam a linguagem em contextos
específicos chamados de contextos de situação. Aqui estão os elementos extralingüísticos dos textos
que caracterizam os diferentes gêneros.
O campo teórico da LSF entende ser a oração a unidade básica para análise léxico-gramatical,
sendo ela uma realização simultânea das metafunções da língua (ideacional, interpessoal e textual). As
seqüências lingüísticas de uma oração carregam em si os significados que por elas são codificados
recebendo influência do contexto de situação e da estrutura social, relacionando, em conseqüência, a
linguagem, a situação e a cultura. Por esse prisma, essa tríade é responsável pela organização e
expressão da experiência humana. Em termos gramaticais e seguindo os moldes da LSF, a
transitividade é encarada como uma categoria gramatical relacionada à representação das idéias
(função ideacional), da experiência humana expressas no discurso.
Por meio do sistema da transitividade é possível identificar as ações, as atividades humanas e a
realidade social retratada. Esse sistema é composto por três elementos: processos, participantes e
circunstâncias. Cada um desses elementos modela uma parte da realidade, uma construção particular
de significados.
Os processos codificam ações, eventos, relações, expressam idéias, constroem o dizer e o
existir. Podem ser de seis tipos:1) materiais que são os processos do acontecer, do fazer; 2) mentais,
expressam as crenças , os valores que estão presentes no texto; 3) relacionais, que identificam
(identificativo), classificam (atributivo), associando uma entidade a outra; 4) verbais, expressam o
dizer; 5) existenciais, representam algo que existe ou acontece; 6) comportamentais, apresentam os
comportamentos humanos (cf. . HALLIDAY, 1985; HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004;
EGGINS, 1994; CUNHA & SOUZA, 2007).
Os participantes são os elementos envolvidos com os processos, variando de acordo com as
funções que exercem nas orações. Esse componente pode ser meta, beneficiário, extensão quando se
tratar de um processo material; experienciador e fenômeno no processo mental; no relacional, os
participantes podem ser portador e atributo (atributivo) e característica e valor (identificativo); no
processo verbal existem dois dizente e verbiagem; participante existente, no processo existencial e
comportante, no comportamental (cf. HALLIDAY, 1985; HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004;
EGGINS, 1994; CUNHA & SOUZA, 2007).
As circunstâncias são dizeres adicionais relacionados aos processos e podem ser de extensão, de
causa, de modo, de localização, de papel. A análise desses três elementos do sistema da transitividade
permite o estudo da construção de conteúdos, das experiências humanas em determinada esfera
comunicativa, revelando maneiras de significação elaboradas através da linguagem e se configura em
um meio de averiguar a expressão da ação, da experiência, da idéia humana revelado em todo texto,
produto de uma interação verbal.
2. Análise
Após delinearmos a nossa sustentação teórica, partiremos agora para a análise das cartas de
leitor selecionadas, no intuito de averiguar o papel dos três componentes do sistema de transitividade,
processos, participantes e circunstâncias, na construção de opinião deste gênero. Através da análise
dos papéis da transitividade, é possível interpretar a construção de um conjunto de significados
específicos dentro de um texto, que deixa transparecer a experiência de mundo do autor da carta. Pela
metafunção ideacional (experiencial) da linguagem se constroem os significados da experiência
particular de um indivíduo marcados pelas escolhas lingüísticas que os representam. Essas escolhas
são moldadas pela intenção comunicativa do interactante envolvido em uma dada situação interacional
e motivadas pelo contexto de situação, refletindo a metafuncionalidade da linguagem (ideacional,
interpessoal e textual).
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Dentro do quadro experiencial, há três componentes: 1) o processo em si; 2) os participantes
envolvidos no processo e 3) as circunstâncias (cf. HALLIDAY, 1985). Esses três elementos juntos
permitem a visualização do que está sendo representado do mundo. Partindo desses pontos,
propusemo-nos a analisar os papéis da transitividade em um gênero textual da esfera discursiva do
jornalismo, a carta do leitor, com o intuito de interpretar o papel do sistema de transitividade na
formação de opinião do autor. Esse é um gênero textual que se destina a emitir opiniões de leitores
acerca de determinado tema. Diante disso, ganha sentido uma análise mais açodada da transitividade
neste gênero, uma vez que esse recurso gramatical se torna uma ferramenta eficaz para o estudo da
construção e expressão da opinião dos participantes da situação. Para tanto, selecionamos três das
cinco cartas de leitor veiculadas na revista VEJA (edição 2075, 27 de Agosto de 2008), que tratam de
um dos assuntos mais comentados da edição anterior da mesma revista (edição 2074): a reportagem de
capa O inssino no Brasiu è ótimo. É oportuno salientar que a escolha por estas cartas se constituiu, na
verdade, em conseqüência de um trabalho de leitura desenvolvido em sala de aula de uma escola
pública da cidade cujo assunto abordado foi Educação no Brasil. Nesta oportunidade e dando
continuidade ao trabalho pedagógico, foi contemplada a gramática em sala de aula (ensino
fundamental), atrelando seu estudo ao de gêneros textuais. Disto decorreu a configuração de nosso
corpus, que não é constituído de dados, mas de fatos lingüísticos analisados a luz dos pressupostos
teóricos explicitados.
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CARTA 1
A reportagem de capa retrata a limitação da capacidade do
brasileiro de amanhã. Porque educação não é carteira, não é giz
nem sopa de fubá. É informação dada com responsabilidade e
conhecimento de causa."
Síssi Filassi
Uberaba, MG
(Revista Veja, ed. 2075, ano 41, n.34, 27 ago. 2008, p. 34)
A reportagem de capa retrata a limitação da capacidade do brasileiro de amanhã.
O exemplo 1 revela, inicialmente, a posição tomada pelo autor em relação à reportagem de capa
da revista. Através do processo material retrata, transmite-se a idéia central discutida na reportagem
da edição anterior – a má qualidade de ensino no Brasil. O participante meta a limitação da
capacidade do brasileiro juntamente com a circunstância de amanhã encerram a opinião do indivíduo
envolvido nesta situação de que o resultado do quadro educacional exposto pela reportagem é a má
formação acadêmica dos brasileiros no futuro.
(2)
Porque educação não é carteira, não é giz nem sopa de fubá.
(3)
É informação dada com responsabilidade e conhecimento de causa."
Em (2) e (3), há a presença do processo relacional identificativo ser que serve para definir a
função da educação de maneira geral. As seqüências oracionais em (2) compostas pelos participantes
valores carteira, giz nem sopa de fubá agrupam-se para percorrer o caminho da desclassificação da
característica educação atingindo a sua categorização a partir da negação dos valores, enquadrando-se
na idéia de que x não é y, não é z. x é w. O fato de desfazer gradativamente a categorização inicial da
característica termina por construir um horizonte de expectativas no leitor que busca a definição deste
elemento (reconhecido como tema da oração) na oração final do texto. Necessário se faz acentuar que
a negação dos valores na oração (2) descaracteriza a concepção que se tem sobre a educação no Brasil,
como sendo uma educação voltada para o assistencialismo social (entrega de merenda escolar, de
fardamento, de material). Essa forma de definir e categorizar as entidades envolvidas por meio da
relação estabelecida pelo processo SER é de grande importância porque expressa visões particulares
de mundo, sendo um recurso precioso na solidificação do ponto de vista exposto. Esse posicionamento
individual do escritor expressa a sua experiência de mundo muito particular que deixa transparecer a
ideologia massificada e acatada pelo mundo social de que educação se restringe ao fornecimento de
carteira, giz e merenda. Na verdade, a educação, de acordo com o ponto de vista do sujeito, é mais do
que elementos físicos, recursos metodológicos, mas transmissão de conhecimento por parte daquele
que tem capacidade para tal, esta habilidade lhe conferida pela sociedade. Na oração (3), há o
complemento da idéia inicial apresentada na oração anterior delimitando o papel da educação através
(1)
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do participante valor informação dada com responsabilidade e conhecimento de causa. O uso
reiterado do processo SER parece ser um subsídio argumentativo valioso (cf SOUZA, 2006) para
convencer o interlocutor de que a opinião apresentada tem fundamento por definir “estaticamente” o
papel da educação e por atribuir à característica educação uma essencialidade atemporal (BORBA,
1990).
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CARTA 2
Enfim uma maravilhosa e lúcida reportagem sobre a real situação
do ensino brasileiro ("Você sabe o que estão ensinando a ele?", 20
de agosto). Finalmente VEJA conseguiu retirar do cenário o
grande vilão da história – o aluno – e deixar o rei completamente
nu: a instituição escola, os pais e os professores. O processo
ensino-aprendizagem e a formação do pensamento crítico
construtivo e criativo dos alunos são de responsabilidade e
competência da escola; o papel do professor é de facilitador do
aprendizado, mesmo porque ele dispõe de inimagináveis recursos
para isso. O papel dos pais não se restringe à escolha de uma
"boa" escola – de renome. Os pais têm de estar de olho na
qualidade do ensino.
Maria Lucia Simões
Consultora organizacional e psicanalista
Brasília, DF
(Revista Veja, ed. 2075, ano 41, n.34, 27 ago. 2008, p. 34)
(1) Enfim uma maravilhosa e lúcida reportagem sobre a real situação do ensino brasileiro
("Você sabe o que estão ensinando a ele?", 20 de agosto).
(2) Finalmente VEJA conseguiu retirar do cenário o grande vilão da história – o aluno – e
deixar o rei completamente nu: a instituição escola, os pais e os professores.
Em (1), há a apresentação do tópico da carta a reportagem sobre a real situação do ensino
brasileiro, revelando, através dos adjetivos maravilhosa e lúcida, a opinião do autor a respeito do
texto lido intitulado Você sabe o que estão ensinando a ele?
A oração (2) traz o processo material conseguir que aponta para as duas ações (retirar e deixar)
realizadas pelo ator Veja, um SN individualizado. Essas duas ações configuram os pontos-chave
levantados pelo autor para justificar sua opinião favorável à reportagem já qualificada como
maravilhosa e lúcida. O processo material conseguir associado ao participante ator Veja e à
circunstância Finalmente representam uma quebra de visão de mundo sobre a educação que dita serem
os alunos os responsáveis pela má qualidade do ensino no Brasil. A tomada de posição por parte do
autor põe em relevo os participantes extensões a instituição escolar, os pais e os professores e destaca
o seu papel de culpa no fracasso do desempenho educacional brasileiro, descartando o participante
extensão aluno do indício de culpabilidade por esta situação social.
(3) O processo ensino-aprendizagem e a formação do pensamento crítico construtivo e criativo
dos alunos são de responsabilidade e competência da escola; o papel do professor é de
facilitador do aprendizado, mesmo porque ele dispõe de inimagináveis recursos para isso.
No exemplo (3), há a definição exata da função da escola, representado pelo valor o processo
ensino-aprendizagem e a formação do pensamento crítico construtivo e criativo dos alunos e do
professor com o valor facilitador do aprendizado. O processo relacional identificativo ser juntamente
com os predicados imprimem a idéia de essencialidade aos sujeitos das orações, atribuindo-lhes traços
essenciais que identificam a sua função dentro do quadro experiencial (BORBA, 1991). O relacional
ser usado no tempo presente confere à oração o caráter de atemporalidade aos traços específicos
expressos pelos predicados, o que parece fixar um fato real, impondo ao leitor um modo particular de
ver o mundo.
(4) O papel dos pais não se restringe à escolha de uma "boa" escola – de renome.
(5) Os pais têm de estar de olho na qualidade do ensino.
O autor conclui a carta, ilustrado nos exemplos acima, enfatizando o papel restrito dos pais com
relação à educação dos filhos, representado pelos participantes meta escolha de uma boa escola e
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extensão de renome. E complementa, ditando uma obrigação dos pais diante da educação dos filhos
com o verbo modal têm de estar. Em (5), há a imposição ao ator os pais de assumir uma tarefa, a de
ficar de olho na qualidade do ensino, expressando claramente a sua opinião sobre o papel dos pais na
educação dos filhos.
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CARTA 3
Considerei um verdadeiro presente a reportagem especial da
última edição de VEJA. Sou professor e curso o último semestre
de matemática. Promovi uma avaliação em algumas escolas para
coletar dados mais efetivos para meu projeto de pesquisa
científica. Fiquei assustado com o que encontrei: além da absurda
e inquestionável falta de conhecimento dos alunos, deparei com
professores despreparados, que mal sabem o que estão dizendo e
que dão graças aos céus ao encontrar uma sala onde impera a
desordem, pois assim podem cruzar os braços. Os jovens de hoje
não são menos capazes; os professores, sim, são muito menos. De
nada adianta ficar avaliando o desempenho dos alunos se quem
deve ser avaliado são os professores. Chega de incompetência e
mediocridade na educação.
Alexsander Palma de Almeida Fernandes
Professor
Tupã, SP
(Revista Veja, ed. 2075, ano 41, n.34, 27 ago. 2008, p. 34)
(1) Considerei um verdadeiro presente a reportagem especial da última edição de Veja.
O autor inicia a carta declarando o seu sentimento diante da reportagem através do processo
mental considerar. Este processo, juntamente com o participante fenômeno um verdadeiro presente a
reportagem, mostra a opinião positiva do experienciador e o envolvimento direto deste com o
enunciado.
(2) Sou professor e curso o último semestre de matemática.
(3) Promovi uma avaliação em algumas escolas para coletar dados mais efetivos para meu
projeto de pesquisa científica.
Nesta carta, interpretamos o exemplo (2) como sendo a apresentação pessoal do sujeito através
de SN definidos. Para isso, o autor utiliza o relacional identificativo ser, combinado com o participante
valor professor, fazendo uma autodefinição, à que se segue outra descrição na oração seguinte
relacionada à sua formação acadêmica. Analisando a oração (3), temos o material curso e o
participante meta o último semestre de matemática, usados para complementar sua qualificação. O que
temos nesse caso é uma autoreferência por meio de SN’s pronominais, o que marca a individualização
do autor e o seu envolvimento com o que enuncia e serve para mostrar uma voz de autoridade, ou seja,
uma voz de alguém que conhece o universo da educação de perto (o sujeito é professor e aluno
universitário), recurso argumentativo utilizado para conferir sustentabilidade a sua opinião apresentada
no desenrolar do texto.
Já em (3), os processos materiais promover e coletar aparecem como ações realizadas pelo autor
– os metas uma avaliação em algumas escolas e dados mais efetivos para meu projeto de pesquisa
científica-que o levaram a perceber a real situação do ensino no Brasil, além de revelar os possíveis
culpados por essa situação.
(4) Fiquei assustado com o que encontrei:
(5) além da absurda e inquestionável falta de conhecimento dos alunos, deparei com professores
despreparados, que mal sabem o que estão dizendo e que dão graças aos céus ao encontrar
uma sala onde impera a desordem, pois assim podem cruzar os braços.
O processo ficar indica mudança de estado em (4), comprovada pelo atributo assustado e que
serve para iniciar a apresentação da situação didática encontrada pelo autor e justificar o ponto de vista
defendido. A situação de ensino em algumas escolas brasileiras é apresentada em (5) a partir de uma
combinação de processos – material (deparar, encontrar, imperar, poder, cruzar), relacional (estar) e
mental (saber) e de participantes ator (SN pronominal) e experienciador (professores). Inicialmente, o
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autor já se compromete com o que diz ao usar um SN pronominal que indica a sua relação direta com
a situação descrita, comprovando que tem conhecimento dos fatos relatados. O processo material
deparar indica a proximidade do autor com o participante meta destacado professores despreparados.
A seqüência de orações marca a experiência vivida pelo autor, descrevendo a realidade escolar através
do processo mental saber, relativo ao participante experienciador, um SN pronominal, que, referente a
professores despreparados e ao fenômeno o que estão dizendo, o que parece confirmar o despreparo
dos profissionais da educação. Nesse mesmo sentido, as orações que se seguem mostram as ações dão
graças e podem cruzar feitas pelo mesmo participante anterior, apontando para a atitude negativa
desses profissionais diante do ensino.
(6) Os jovens de hoje não são menos capazes; os professores, sim, são muito menos.
Em seguida, e expressando o seu posicionamento perante o ensino e os professores, o auto,
neste exemplo, categoriza, através do relacional atributivo ser e da circunstância de hoje, o portador os
jovens com o atributo capazes, desconfigurando a visão de mundo comum de que os jovens não têm
capacidade suficiente para aprender. Em paralelo, atribui ao portador os professores essa
incapacidade, enfatizada pela circunstância sim, comprovando mais uma vez a sua anuência com
relação à reportagem da revista.
(7) De nada adianta ficar avaliando o desempenho dos alunos se quem deve ser avaliado são os
professores.
(8) Chega de incompetência e mediocridade na educação.
Finalizando a carta, em (7) o autor critica a situação habitual, representada pelo processo
relacional ficar e o gerúndio avaliando, de constante avaliação dos alunos, o atributo da oração;
traçando, em contrapartida, a sua opinião pela circunstância de nada adianta e ditando o que deveria
ser feito (avaliação dos professores). E ainda, na oração (8), o autor expressa a sua insatisfação com a
educação no Brasil com o processo material chegar indicando a necessidade de finitude da situação
descrita ao longo do texto e resumida na última oração com os participantes de incompetência e
mediocridade na educação.
Considerações Finais
Considerando os objetivos pretendidos neste artigo, pudemos verificar que o sistema de
transitividade se serve à construção de opinião no gênero carta do leitor através da combinação de
processos, participantes e circunstâncias. Através desse recurso lingüístico, é possível exprimir ações,
acontecimentos que justificam a tomada de posição do sujeito, por meio do processo material e de
participantes, geralmente referentes a um SN definido, consciente e individualizado, característica
marcante deste gênero por indicar diretamente a visão de mundo particular do sujeito comprometido
com a opinião expressa no texto. Ainda se destaca o uso reiterado de processos relacionais de
classificar e definir o sujeito e sua experiência de mundo, sendo um recurso argumentativo forte para
realizar o ponto de vista individual. São as categorizações e definições que moldam e fixam,
estaticamente, o mundo experienciado pelo autor e assim consegue-se transmitir diretamente ao leitor
a opinião formada. Pode-se notar também que as crenças e valores que caracterizam o sujeito são
linguisticamente marcadas neste texto por meio dos processos mentais, sinalizando uma forma de
interpretação específica da realidade, delimitando o universo experiencial do sujeito, participante
essencial da carta de leitor.
Diante dos resultados, é oportuno destacarmos a importância do estudo da transitividade em
textos opinativos como o gênero carta de leitor por permitir a análise das formas lingüísticas atrelada à
função social como meio de estudo da gramática, esta entendida como uma ferramenta produtora de
sentido e que deve ser analisada a partir do uso real da língua, sendo a relação dialética língua e
sociedade um traço intrínseco da linguagem humana, e portanto indispensável aos estudos dos
fenômenos lingüísticos.
Referências
BORBA, V. M. R. gêneros textuais e produção de universitários: o resumo acadêmico. Recife: UFPE.
Pós-Graduação em Letras, 1991 (Tese de doutoramento).
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CUNHA, Angélica Furtado. Funcionalismo. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo. (org.). Manual de
Lingüística. São Paulo: Contexto, 2008.
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EGGINS, Suzanne. An Introduction to Systemic functional Linguistics. London: Pinter, 1994.
HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold, 1985.
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SILVA, Leilane Ramos. Correntes lingüísticas: notas sobre o formalismo e o funcionalismo. In:
Revista INTERDISPLINAR. Disponível em: http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/interdisciplinar/.
Acesso em: 03/07/08.
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