VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Uma luz que vem do Norte ou uma Nora emancipada Tânia Filipe e Campos, Universidade de Évora O mundo do teatro torna-se especialmente apetecível para o universo feminino a partir do início do século XIX. Deixamos de ter um mundo onde os homens desempenhavam os papéis masculinos e femininos, para dar lugar às mulheres, que passam a fazer do palco uma forma de sustento, uma carreira e uma forma de emancipação económica e até familiar, já que passariam a poder governar uma casa e a educar os seus filhos sem depender dos maridos. Todavia, esta não é a realidade da Nora de Ibsen, aliás esse é o seu verdadeiro mal: a dependência económica. Ainda assim, a mulher actriz tinha ainda muito caminho para percorrer até ser vista como uma igual nas esferas sociais. A actriz, para além de frequentar um mundo nocturno, maioritariamente dominado por homens, poderia ainda ser vista com muita desconfiança precisamente devido à sua capacidade de enganar, de representar, de fingir. Algumas páginas da literatura foram dedicadas a estas mulheres actrizes, mas o seu dom para a representação seria, no entanto e na maior parte das vezes, suplantado pela sua sexualidade. Reporto-me, por exemplo, à figura de Nana de Zola. Dela se diz que é uma Vénus que tem pouco jeito para a representação. Nana não é actriz mas sim cocotte. Nana 1 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 corrompe Paris com as suas coxas, mosca cor de ouro (foi este o epíteto que Fauchery lhe atribuiu na sua crónica), evolada da porcaria, que envenena os homens mal pousa neles. Os maus olhos com que eram recebidas na sociedade não eram suficientemente impeditivos para que muitas mulheres pretendessem fazer do teatro um estilo de vida. Muitas actrizes acabariam depois por se envolver sentimentalmente com homens do mundo do teatro também: tal foi o caso de Maria Ansell que acabou por casar com James Barrie, o autor de Peter Pan, dois anos após ter entrado na sua peça Walker, London, em 1892. Siri von Essen divorciou-se em 1876 para casar com Strindberg, autor de várias peças em que ela acabaria por entrar como actriz principal. Todavia, nos finais do século XIX, as mulheres actrizes estavam já em maior número nos teatros do que os homens. Começa a haver uma mudança gradual perante as pessoas que trabalham no teatro. Em Inglaterra, as actrizes que representavam papéis com alguma densidade psicológica ou que vestiam a pele de personagens emancipadoras, como é o caso de Nora, começam a ser apelidadas de "intellectual" actresses. A alcunha surge através dos críticos da década de 1890 que assim se referiram às actrizes que apresentaram estas personagens Ibsenianas às audiências Inglesas. Ao escrever Casa de Boneca, Ibsen nunca pretendeu ser um agitador social ou promover agitações de índole feminista. Numa tradução muito livre, Ibsen teria dito, quando interpelado sobre a sua conotação aos movimentos feministas, qualquer coisa como «Eu 2 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 nem sequer sei de que é que tratam esses movimentos dos direitos feministas». Todavia, ao escrever Et dukkehjem (Casa de Boneca) em 1879, Ibsen também terá proferido que «a mulher não pode ser ela própria na sociedade de hoje, que é uma sociedade exclusivamente masculina, com leis ditadas por homens e com um sistema judicial que julga a mulher sob um ponto de vista masculino». E a verdade é que surge na Noruega a Norwegian Women’s Rights League cinco anos depois da primeira encenação do drama e, em 1898, durante o Festival desta mesma Liga, Ibsen é o convidado de honra e é homenageado pelo desempenho que o seu drama teve na consciência do público em relação à posição da mulher na Noruega. O que realmente incomoda na peça deste escritor norueguês é que são os pilares do casamento que são postos em causa. A figura feminina, ao contrário de outras, não precisa de se matar para ser redimida (como Júlia em Fröken Julie, de A. Strindberg), ou não é morta por uma doença súbita porque esse seria o único fim justo para uma heroína que semeia o pecado e a traição, como a Bovary de Flaubert, a Nana de Zola ou a Luísa de Eça. E tantas, tantas outras têm um destino trágico (mas merecido, na óptica dos escritores e leitores) nas páginas dos romances e textos dramáticos da literatura oitocentista. Nora, a personagem feminina de Ibsen, apenas reflecte um episódio da vida real. Nora volta as costas a um marido que a trata como a boneca que já em casa de seu pai havia sido – bate a porta para não mais voltar às suas funções de esposa e de mãe. A existência do personagem começa para lá da soleira da porta da sua própria casa, o que por si só encerra uma ironia enorme. 3 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 É importante salientar que o pecado de Nora não é a traição ou a prostituição. Nora simboliza a feminilidade na vertente da vaidade. Ela endivida-se porque não resiste ao consumismo. É através da dívida e da chantagem que exercem sobre ela, que mancha a honra do marido. Um marido que até se mostra complacente e lhe dá o perdão. Torvald Helmer estende a mão a Nora, mão que ela rejeita e não pode aceitar de volta. Pelo carácter do seu personagem feminino e pelo final surpreendente, Casa de Boneca teve um sucesso estrondoso em todas as salas europeias em que se estreou, inclusive em Portugal. Estreiou primeiro em Copenhaga, a 21 de Dezembro de 1879, ano em que foi escrita. Aí esgotou os lugares e foi um enorme sucesso. Betty Hennings vestiu o papel de Nora e Emil Poulsen o de Torvald. Betty Hennings dançando a tarantella no papel de Nora. A peça foi encenada por Holst e em apenas dois meses a peça pisou o palco dos teatros principais de toda a Escandinávia: dia 8 de Janeiro de 1880 no Dramaten de Estocolmo; a 4 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 20 de Janeiro no Christiania Theater em Oslo; dia 30 do mesmo mês no Den Nationale Scene em Bergen; a 25 de Fevereiro estreia no Teatro Nacional da Finlândia em Helsínquia. No continente europeu, a Alemanha foi o primeiro país a receber a peça em múltiplos teatros. Todavia, o final teve que ser alterado. Numa carta aberta ao jornal dinamarquês Nationaltidende, datada de 17 de Fevereiro de 1880, Ibsen assume que o melhor seria dar um fim alternativo à sua peça já que esta seria a intenção de muitos directores dos teatros alemães. O dramaturgo considerou este acto de extrema violência perante a criação artística e preferiu ele mesmo reescrever o final, ao invés de deixá-lo às mãos de tradutores ou «adaptadores». Nesta nova versão, Nora troca umas deixas com Helmer, cai no chão (vincando a sua menoridade e baixa condição perante o marido) e o pano cai 1 . Portugal, apesar da sua situação periférica em relação ao mundo onde as novidades intelectuais e culturais tinham lugar, é o primeiro país latino a apresentar Uma Casa de Boneca, em 1897 pela Companhia da actriz Lucília Simões em Coimbra. Tal como 1 “Immediately after the publication of «Nora» I received a communication from my translator and agent for the North-German theatres, Herr Wilhelm Lange in Berlin, saying he had reason to fear the publication of another translation or «adaptation» of the play with an altered ending, and that this would probably be preferred by a considerable number of North-German theatres. In order to prevent this eventuality I sent my translator and agent the draft of an alteration to be used in case of necessity. In this version Nora does not leave the house. Instead, Helmer forces her into the doorway of the sleeping children`s nursery, the parents exchange a few lines, Nora sinks to the floor and the curtain falls. I have myself described this alteration to my translator as a «barbaric act of violence» towards the play. Its use is absolutely contrary to my wishes, and I hope that it will not be used by many German theatres. As long as there is no literary agreement between Germany and the Scandinavian countries we Scandinavian authors have no rights whatsoever down here, as is the case with German authors in our countries. Thus our dramatic works are constantly being violated both by translators, heads of theatres, directors and actors at minor theatres. But if there is a threat of suchlike in my case, I prefer, having learned from previous experience, to commit such violence myself, rather than surrender my works to treatment and «adaptation» by less careful and less skilful hands than my own.” 5 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 aconteceu relativamente às actrizes inglesas que representaram as primeiras Noras, também Lucília Simões ganhou autoridade ao encarnar este personagem feminino. Na revista Vértice, Carlos Porto referiu o seguinte: “acabei por verificar os meus papéis e lá estava: 1897 – o ano da estreia de Casa de Boneca, em Coimbra, pela companhia de Lucília Simões. O espectáculo veio depois para Lisboa onde esteve três meses em cena, o que era notável naquela época, depois no Brasil, sempre com grande êxito. 2 Fotografia de Lucília Simões Vemos que após a primeira representação em Coimbra — e Coimbra de finais de 800 não seria propriamente uma urbe intelectual —, o espectáculo vem imediatamente para Lisboa, onde fica três meses em cena e parte de imediato para o Brasil. 2 Cf. Carlos Porto,Teatro em Portugal: reportório/reportórios, in: Vértice, nº 62 (II série) set-out 1994, Lisboa, p.19. 6 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Em 1899, Sousa Bastos escreve na Carteira do Artista que Lucília Simões anda sempre mal acompanhada, sem mestre que a guie na arte de representar e que os espectadores apenas a lisonjeiam sem lhe reconhecerem grande mérito 3 [novamente, a sexualidade sobrepõem-se ao engenho]. Porém, após a ida de Lucília Simões para o Brasil, o mesmo crítico reconhece na actriz grande talento, distinção e inteligência 4 . Refere ainda o êxito que fez com A Casa de Boneca e de como o Brasil a recebeu 5 . Se Lucília alcançou o estatuto profissional, artístico e social que pretendia, o mesmo não aconteceu com a personagem — Nora. Após a primeira publicação em livro do manuscrito da tradução utilizada pela companhia de Lucília Simões, surge na colecção Bibliotheca Dramatica Popular, com o nº 174, [o que nos leva a crer que é uma editora com relativa afluência de publicações], Casa de Boneca que, na capa, faz referência ao facto de este drama ter sido «Representado com grande sucesso em diversos theatros de Lisboa, Porto, Coimbra, etc». Trata-se de tradução livre de E. Nascimento Correia, que não nos revela o texto intermediário utilizado, e que no prefácio ao drama nos delicia com uma comparação entre as mulheres meridionais e escandinavas: 3 “Mal tendo tempo para decorar papéis diversíssimos, sem mestre da arte para a guiar, trabalhando quasi sempre mal acompanhada e muitas vezes para espectadores que a lisonjeiam sem lhe reconhecer mérito, milagre quasi seria não se estiolar logo á nascença. É realmente pena.» in Sousa Bastos, Carteira do Artista, Lisboa, Imprensa de Libanio da Silva, 1899, p.815 4 «Insinuante, cheia de distincção, intelligente, instruida, é uma primorosa actriz de alta comédia, género que quasi ninguém a eguala.» in Idem, Diccionario do Theatro Portuguez, Lisboa, Imprensa Libanio da Silva, 1908, p.283. 5 «Á volta appareceu no theatro do Gymnasio, fazendo com muito exito a Casa de Boneca. Seguiu depois para o Brazil, onde alcançou enorme agrado.» in Idem, ibidem. 7 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 “Já digo: é possível que na Noruega, um paiz essencialmente frio, as mulheres sejam como Ibsen no-las descreve, porque também acho demais que um auctor, cujo nome a trombeta da fama atirou para todos os cantos do Universo, errasse logo na observação das duas mulheres que apresenta. É possível. Mas n’este caso, o que não me parece possível é que a maioria dos que exalçaram a peça, elevando-a ás mais altas culminancias da gloria conheçam sufficientemente o meio norueguez, para poderem asseverar o contrário do que aqui digo, que não é negar o talento indiscutível de Ibsen, mas que é proptestar contra a auréola de impeccavel de que o querem rodeiar, chamando-lhe derrubador e não sei quantas coisa mais.” 6 . Aos olhos de um meridional, Nora raciocina de mais e é a santidade do amor materno [que é derrubada], dando já de barato que seja rasoavel o apresentar aos olhos do mundo, esse outro exemplo da mulher ter o direito de abandonar o marido, porque elle não tem o seu modo de ver… que é falso, como tem de ser, tudo o que sahe do cérebro de uma desiquilibrada. 7 . Em Inglaterra, depois da representação de Janet Achurch de Nora, em 1889, 10 anos depois da estreia em Copenhaga, no pequeno teatro Novelty em Londres, com uma tradução de William Archer, Bernard Shaw escreveu que Nora cedeu espaço aos movimentos feministas e à compreensão desses mesmos movimentos. Ibsen tinha demonstrado um 6 Prefácio de E. Nascimento Correia, in Henrik Ibsen, Casa de Boneca, Ed. Livraria Popular de Francisco Franco, [sd], p.4. 7 Idem, ibidem. 8 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 trabalho engenhoso de imaginação e concepção, bem como um trabalho, ainda que de forma inconsciente, de propaganda de índole feminista. Shaw declarou Nora o elemento catalisador dos movimentos feministas e a Jane Achurch deu o generoso epíteto de “New Woman”, epíteto esse que começou a ser generalizado, após cinco anos passados, em 1894. A imagem da “New Woman”, ou Nova Mulher, que surge colada a esta peça específica, generaliza-se então à posição da mulher no teatro no século XIX. Depois de os censos de 1891 em Inglaterra revelarem que havia perto de 2 milhões e meio de mulheres solteiras numa população onde havia significativamente mais mulheres do que homens, os governantes ingleses advogaram a causa de que muitas mulheres deveriam emigrar para casar nas colónias inglesas com os homens disponíveis. Foi então, que o movimento “New Woman” se formou e interveio contra esta proposta. A nova mulher deveria continuar sozinha, independente e construir o seu próprio caminho no teatro ou noutro lado qualquer. A Nora emancipada corta as cordas da marioneta e caminha sozinha fora da casa de bonecas. Em The Leader, a 21 de Setembro de 1889, Jane Achurch é bastante mais realista do que Bernard Shaw. Para ela, a nova mulher não abandona o marido, nem os filhos. A nova mulher apenas desperta para a realidade do seu casamento e torna-se consciente. Nesse jornal, Achurch escreve: 9 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 «Para os homens esta peça pode ser considerada tudo, menos boa. Para abrirem os olhos para as consequências de ignorarem a natureza moral e intelectual do ser humano com quem decidiram viver é certamente muito boa. Em relação às mulheres, se me é permitido julgar a partir das cartas que recebi, esta peça também foi útil, mas não para facilitar o divórcio ou o abandono do lar. O que me parece é que esta peça as tornou menos ignorantes em relação ao casamento, mostrando-lhes que mergulhar num casamento num impulso de febril ou num achaque passional … é como prepará-las para um terrível despertar.» 8 . Após esta abordagem, concluímos que se por um lado, tal como aconteceu nos restantes países europeus, a personagem ibseniana veio trazer uma mais valia e constituiu uma prova de talento para as variadas actrizes que lhe vestiram a pele, como aconteceu inevitavelmente com Lucília Simões, a verdade é que, nos finais do século XIX e inícios do século XX, a personagem não deixou sobretudo de marcar o enorme vazio existente entre a cultura de partida e a cultura de chegada. Portugal não reconheceu nas suas mulheres uma mulher como Nora, capaz de abandonar o seu lar. A tradução que nos chega pelo texto intermediário francês de Moritz Prozor, sugere uma mulher insana e fria, muito distante das suas congéneres de sangue latino. 8 «For men the play can hardly be accused of being anything but good. To open their eyes to the consequences of ignoring the moral and intellectual nature of the human being with whom they have allied themselves is surely excellent. For the women, if I may judge from the letters I have received, it has also been useful, nor do I think that it will tend, as some say, to more easy divorce and reckless abandonment of home. What it ought to do is to make them much less reckless about marrying, by showing that a plunge into matrimony in the mere fever of a passionate attachment, … is to prepare for yourself a terrible awakening.» 10 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Bibliografia: Diccionario do Theatro Portuguez, Lisboa, Imprensa Libanio da Silva, 1908. IBSEN, Henrik Casa de Boneca,(trad. E. Nascimento), Ed. Liv. Popular Francisco Franco [s.d.]. HOARE, Eileen, A Doll House in Australia, Ibsen Society, 2003. PORTO, Carlos, “Teatro em Portugal: reportório/reportórios”, in: Vértice, nº 62 (II série) set-out 1994, Lisboa. Jornais: The Leader, 21st September, 1889 11