Deve-se Definir Transdisciplinaridade? José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres D iscussões em torno de aspectos 1 zer, que não é a de somar-se às proposições como complexidade, interdisciplina- apresentadas, nem tampouco a de contrapor- ridade, multidisciplinaridade e transdiscipli- se antagonicamente a elas. É no movimento naridade são de transcendente de "acolhimento na recusa" que se pode importância para esse nosso "atípico" campo científico da reconhecer o encontro dos horizontes de Saúde Coletiva - meio teorético, meio prag- Almeida Filho e de seus interlocutores. Não mático; meio quantitativo, meio qualitativo; está, com efeito, na simpatia que transparece meio biológico, meio social; meio universal, do m o d o meio brasileiro. Nesse sentido é sempre ex- conceituai examinada, nem exatamente nas tremamente bem-vinda qualquer tentativa de divergências levantadas, o núcleo arquitetô- tratamento crítico desses aspectos, especial- nico do texto, mas nas motivações e argu- mente quando realizado por um pesquisador mentos que o trazem daquela até estas. Por já notabilizado por sua inquietude intelectual isso mesmo, será neste trânsito genuinamen- e, por isso mesmo, por uma aguda capacida- te dialógico efetuado pelo autor que preten- de de fomentar reflexão e debate. do fixar meu comentário, buscando enfocar O presente trabalho de Naomar de como expõe a sistematização uma das teses que me parecem fulcrais na Almeida Filho não difere dos anteriores quanto argumentação de Almeida Filho: o a esta característica. Ao trazer para exame o práxico subjacente a qualquer projeto de trans- que chama de "esquema Jantsch-Vasconce- disciplinaridade caráter teórica. los-Bibeau", mais do que sistematizar e divul- Almeida Filho parte do incômodo frente gar um tema de interesse e uma consistente ao uso excessivamente liberal e impreciso da proposição a respeito, Almeida Filho não idéia de transdisciplinaridade, não obstante hesita em dar um passo adiante: mal nos reconhecer sua importância como elemento apresenta uma solução terminológica - no constitutivo de um ativo movimento no sen- sentido filosófico de atribuição de identida- tido da construção de (imprescindíveis) no- des epistêmicas - e já nos convida a tomar vos paradigmas no campo da Saúde Coletiva. outras direções, formulando o que se pode- Por isso mesmo advoga a necessidade de um ria chamar "esquema Jantsch-Vasconcelos- consenso terminológico em torno da idéia, Bibeau-Almeida Filho". elemento que potencializaria seu amadureci- Uma apreciação um pouco mais demo- mento conceituai e aplicabilidade. O esque- rada do texto mostra, contudo, a inadequação ma estudado parece ao autor uma alternativa da denominação acima. Ela denotaria uma consistente, justamente pelo caráter sistemá- falsa simetria de posição nos construtores do tico e unívoco que procura imprimir ao con- "novo esquema", escamoteando o mais subs- ceito de disciplina e seus aparentados trans- tantivo na contribuição que o autor quer tra- e pós- modernos. Baseado no pressuposto de que a identidade disciplinar encontra-se Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. ==1 fundamentalmente apoiada na axiomática que conforma o sistema teórico e tecnometodoló- gico de um saber, o esquema estudado de- objetivado, ao invés, por exemplo, da cons- fine a transdisciplinaridade como a integra- tituição de novas porém até mais rígidas fron- ção de diversas ciências relacionadas a um teiras dado campo de aplicação do conhecimento discursivas (re)construídas? entre as diversas organizações sob a força aglutinadora de uma nova axio- Fique mática, que não substitui ou subordina suas contra a proposição de livre trânsito dos axiomáticas de origem, mas as unifica em um sujeitos pelas diversas áreas disciplinares, no novo patamar de necessidades e possibilida- qual também enxergo mais benefícios que des. Essa integração inter-axiomática não hie- inconvenientes. Apenas me pergunto se esse claro, desde logo, que nada tenho rárquica e, de outro lado, não auto-referente transitar, além do fato de estar longe de ser distinguiria a transdisciplinaridade da inter- uma livre opção dos sujeitos do conhecimen- disciplinaridade, de um lado, e da metadisci- to, pode oferecer alguma garantia de dissolu- plinaridade, de outro. ção das fronteiras atravessadas. A dificuldade Ao acolher a proposição acima, entretanto, Almeida Filho recusa exatamente esse que as "epidemiologias" que têm tentado, ao longo da história, superar a pragmática pressuposto fundamental da proposição, qual tecnobiológica (Ayres, 1995) vêm encontran- seja, o caráter estrutural/formal da definição do para sair do campo da pura negatividade de disciplina, e lhe contrapõe o exemplificam caráterpráxico dos sujeitos em interação na ceticismo. Equipes atua- multiprofissionais de pesquisa têm servido, produção na maior parte das vezes, para legitimar a dessa definição, chamando, por isso, à lidade meu o plano privilegiado para permanência de rígidos domínios territoriais pensar/construir o ideal da transdisciplinari- das ciências estabelecidas sobre os tais "ob- dade. Aqui radica, em minha opinião, a força jetos indisciplinados", aplacando o incômodo de sua argumentação e também sua face mais convívio com a "parte indisciplinada" pela contraditória. concessão de espaços especulativoscomplementares, do conhecimento Estou de pleno acordo com o autor em de seu futuro controle sob os mesmos pa- e formalismo epis- drões de objetividade. Até lá, na hora de temológicos, voluntária ou involuntariamen- publicar o trabalho, cada um que "procure te, trazidos pelo esquema Jantsch-Vasconce- sua turma". sua recusa do apriorismo los-Bibeau - aliás, de longa data bebemos de fonte comum quanto a esta posição (Men- Desistir, então, da transdisciplinaridade, des-Gonçalves, 1990). Contudo, a solução que dando-a por utópica? Não, ao contrário! Jul- Almeida Filho desdobra aqui de sua con- go que a transdisciplinaridade é uma das mais cepção práxica da identidade das ciências potentes idéias reguladoras de que dispomos me parece deixar a descoberto alguns pro- hoje no sentido da transformação, da reno- blemas por ela mesma sugeridos. Na falta de vação do campo acadêmico da Saúde Cole- espaço para considerações mais detalhadas, tiva. Mas, tomá-la c o m o atitude ou proce- resumo-as em duas interrogações básicas: 1) dimento a ser definido, O que garantiria o efetivo "trânsito dos sujei- uma idéia "distópica", ainda quando se trate tos dos discursos" pelas diversas disciplinas, de uma que o autor contrapõe ao "trânsito dos dis- c o m o a exercitada por Almeida Filho. A cursos", como condição para a transdiscipli- dificuldade que procurei naridade? 2) De onde vem a crença, por outro duas perguntas acima parece-me residir na lado, de que a esse trânsito mente-corpo dos impossibilidade cientistas corresponderá uma relação efetiva- identitário, fixista, do ato de definirconceitualmente mente transdisciplinar com o mundo busca parece-me torná-la de definição de pragmática, representar conciliar o nas caráter emancipador, que se em prol racionalmente reveste da a argumentação o precisam para estar lugar onde construir postos por Naomar de Almeida Filho possam autor contribuir para minar o dogmatismo de nos- Quando sas rígidas estruturas disciplinares, mas defi- do transdisciplinaridade. determinamos de libertário os um sujeitos saber nir esse passo como transdisciplinaridade não já será encerrar cedo demais a promissora vo- as cação subversiva dessa idéia? Penso que a coisas como idéias e as idéias como coisas, discussão da transdisciplinaridade se coloca isto é, formalizando a práxis científica? mais fecundamente não estamos, imediatamente, tratando A mim quer parecer que a idéia de trans- num registro menos epistemológico que "epistemosófico", com a disciplinaridade é uma construção discursiva licença do neologismo. Sua definição concei- eminentemente filosófica e, como tal, não cabe tuai há de se tornar clara e distinta quando a ela "submeter" qualquer aspecto da práxis, já não precisarmos mais problematizá-la, mas nem ser submetida por ela, mas "guardar um somente utilizá-la. Por ora, parece mais inte- espaço" de liberdade em meio a essa práxis, ressante explorar sua força crítica, sua capa- de pôrque ema questão as exigências de interpretando e expondo ao debate intersubjetivo ocidade "mal-estar" conformou, abrinvalidade que têm orientado a produção de do possibilidades (não antecipáveis) para sua superação (Habermas, 1989). Nesse sentido, discursos de verdade em nosso campo, pres- é provável que os sujeitos "transitivos" pro- sionando-as no sentido de seu livre e público r re-exame. Referências bibliográficas A D O R N O , T. W . ( 1 9 8 9 ) - Dialética Negativa. Madri: Taurus. HABERMAS, J . ( 1 9 8 9 ) Comunicativo. Consciência Moral Rio de J a n e i r o : T e m p o e Agir Brasileiro. e MENDES-GONÇALVES, R. B . ( 1 9 9 2 ) - C o n t r i b u i ç ã o à C o n h e c i m e n t o Científico e m E p i d e m i o l o g i a : Ori- D i s c u s s ã o s o b r e as R e l a ç õ e s e n t r e T e o r i a , O b j e - g e n s e Significados d o C o n c e i t o de Risco. T e s e to e de D o u t o r a d o - F a c u l d a d e de Medicina da USP, Brasileiro São Paulo, 346-61, AYRES, J . R. C. M. ( 1 9 9 5 ) - A ç ã o Comunicativa mimeo. Método de em Epidemiologia. Epidemiologia Campinas. [1990], I Congresso Anais, pp.