II Congresso Português de Antropologia Práticas e Terrenos da Antropologia em Portugal Título da comunicação: Há uma Antropologia não implicada? Autor: Telmo H. Caria 1 14-17 Novembro de 1999 Há uma Antropologia não implicada? Pretendemos com esta comunicação corresponder directamente à temática que nos é proposta: saber o que é a Antropologia aplicada e a Antropologia implicada a partir duma experiência etnográfica de investigação realizada durante dois anos junto dos professores duma escola básica do 2º ciclo numa cidade do norte de Portugal. Convirá acrescentar que a reflexão que fazemos sobre esta experiência está articulada com a nossa formação de licenciatura em Sociologia que foi posteriormente complementada com formação em Antropologia na orientação do trabalho de doutoramento. A partir desta formação e experiência julgamos que as questões colocadas sobre a Antropologia aplicada e a Antropologia implicada podem em primeiro lugar ser contextualizadas no âmbito da reflexão epistemológica e metodológica que se tem realizado em Ciências Sociais em Portugal. Pensamos que as duas noções (aplicado e implicado) se podem assemelhar por terem uma relação privilegiada com a acção social e se podem distinguir por uma relação de complementaridade. Em ambas as noções a ciência social é pensada em ruptura com a ideia durkheimeana de que o conhecimento teórico/científico se oporia continuadamente ao senso comum e aos objectivos de acção dos actores sociais. Julgamos que as duas noções se distinguem porque apesar de toda a ciência social aplicada ser implicada o inverso já não é verdadeiro. Vejamos mais em pormenor a nossa posição perante a questão, a partir da nossa experiência profissional de investigador e de formador de professores. Em primeiro lugar como formador de professores sempre procurámos utilizar o conhecimento teórico para reflectir sobre os objectivos e estratégias de formação sociológica de professores. A ciência social torna-se aplicada na medida em que ajuda a pensar a acção de um modo mais generalista e menos circunstancial e local, sem, no entanto, ser capaz de 2 indicar como fazer. Assim, o propósito de levar mais longe a formação de professores em Sociologia, de esta formação poder ter um valor instrumental para a acção profissional destes, foi ajudado pelo uso social do conhecimento teórico para pensar a acção quotidiana. Neste âmbito pensamos que o essencial da formulação weberiana sobre o uso social da ciência social permanece actual: a ciência serve para ajudar a pensar o significado da acção e não a justeza dos objectivos ou valores que estão presentes na acção (aplica-se no pensamento sobre a acção e não directamente na acção). No nosso caso concreto, poderemos dizer que o nosso propósito, de a Sociologia ser utilizada profissionalmente pelos professores para pensarem a sua acção nas escolas, era um objectivo exterior ao conhecimento teórico, ainda que usasse este para diagnosticar o que se passava nas escolas ou o que se poderia passar na mente dos professores para poderem vir a realizar esta tarefa. A fim de se prestar a esta finalidade exterior ao campo da ciência, dissemos noutro trabalho, que o conhecimento científico é sujeito a uma reconstextualização profissional. Dar este uso à ciência social pressupõe que esta tem disponível suficiente conhecimento sobre o objecto em causa e que estão instituídos dois papéis sociais, o de cientista/técnico e o de decisor/político. Em rigor o conhecimento poderá não ser suficiente: porque o objecto em causa poderá ser superficialmente conhecido ou porque apesar do conhecimento disponível ser aprofundado ele não ser aplicável às finalidades da acção social dado conter explicita ou implicitamente valores e preocupações morais que estão em oposição aos propósitos do actor que pretendemos ajudar a pensar a acção. No nosso caso concreto, verificámos que o conhecimento teórico sobre a acção profissional dos professores era superficial e assentava em pressupostos ideológicos que o tornavam inadequado para entender porque é que determinadas categorias sociais de professores não iam mais longe no uso das ciências sociais para reflectirem sobre a sua acção profissional. Foi este facto que justificou a necessidade de construir um objecto teórico de investigação que permitisse aprofundar a compreensão que havia sobre o fenómeno. 3 Em conclusão, uma ciência social implicada, contrariamente a uma ciência social etnocêntrica, não se pensa completamente divorciada da questão dos valores e do poder de decidir sobre a acção, embora não dilua a ciência na ideologia da acção. Não dilui porque tem claro que a pergunta do decisor ou do prático sobre o como, não pode anular a pergunta do analista sobre o porquê e sobre o quê. Trata-se então de construir uma zona de interacção entre os dois papéis sociais situada no pensamento que ajuda e orienta a pensar a acção, pelo modo como se interpreta e diagnostica o sentido da realidade, tendo presente que podem existir diferenças de valores entre os técnicos e os decisores, que poderão tornar irrelevantes ou críticos os conhecimentos teóricos disponibilizado para a reflexão sobre a acção. Esta formulação, do que é a ciência social aplicada, muito comum na Sociologia em Portugal, assenta no pressuposto de que a ciência social não é neutra mas que pode no seu trabalho específico de análise e interpretação de regularidades sociais ser imparcial, isto é, não estar comprometida com os valores dos actores sociais que toma como objecto de trabalho. Penso que em Antropologia esta questão da imparcialidade não se coloca e é por isso que na definição que dei anteriormente afirmei que a noção de implicação não se esgota na noção de aplicação. Mais, penso, como deixo entender no título desta comunicação, que toda a Antropologia é implicada. A razão principal porque faço esta afirmação é devido ao facto de no trabalho de terreno de observação participante, usual em Antropologia, ser condição de sucesso do trabalho de investigação conseguir-se compreender a visão do mundo que os outros possuem. Assim, inevitavelmente a parcialidade na análise da realidade tem que estar presente, porque o antropólogo tem que estar comprometido com a cultura local, mostrando-se, mais do que em qualquer outra metodologia de investigação, que o conhecimento produzido depende dos instrumentos de observação utilizados, neste caso materializados na interação social no terreno. 4 Penso, ainda, que a relação de implicação na Antropologia manifesta-se em outros factos que tivemos oportunidade de identificar no nosso trabalho de terreno: (1) dá-se valor, de uma forma prática, pela aprendizagem que o investigador realiza no terreno, às actividades quotidianas dos grupo social em estudo, contribuindo para a revalorização de formas culturais minoritárias e periféricas ao sistema social dominante, podendo dar ou reforçar nos locais um sentido de dignidade cultural que pode estar pouco presente nas relações com o mundo ocidental, letrado ou académico, conforme os contextos de estudo; (2) interroga-se e faz os autóctones pensar sobre o seu quotidiano, de um ponto de vista que apesar de não poder ser estranho nos seus termos e linguagem, acaba por ser novo, contribuindo para uma maior conscencialização dos locais como entes culturais; (3) confronta-se e relativiza-se o pensamento e a acção comum da pessoa do investigador, levando-o a auto-reflectir sobre as suas certezas e hábitos quotidianos, pois, apesar dos contextos poderem ser semelhantes àqueles em que foi socializado, os locais têm formas de agir e pensar que apesar de não serem exóticas são diferentes das que o próprio teria naquele contexto; (4) intervém-se no local de modo a que presença do investigador não seja interpretada à imagem de outros estranhos, contribuindo para que os autóctones se interroguem sobre as relações sociais que mantêm com o exterior. Nestes quatro exemplos, está evidenciado que uma relação de implicação na ciência social, e particularmente na Antropologia, não se esgota na relação pessoal de relativa confiança e à-vontade do investigador com os locais, naquilo que chamámos noutro trabalho como de “informalização da relação social de investigação”. A implicação traduz-se na criação de um espaço de interculturalidade que questione e relative o poder da ciência e do cientista, permitindo aquilo que chamámos noutro trabalho como “culturalização da relação social de investigação”. Que, portanto, permita, na perspectiva de Madureira-Pinto, que subscrevemos, teorizar o próprio acto de investigação, partindo da ideia de que o conhecimento científico construído é sempre função da influência e da experiência que o investigador produziu e recolheu no terreno. 5 Partindo destes pressupostos e definições, que julgo próximos das mais recentes reflexões epistemológicas em Ciências Sociais, deixo-vos para debate a interrogação principal desta comunicação: como é que a Antropologia poderá não ser implicada ?! 6