EU E A DENGUE* Iara Rute Corrêa Duarte** Desde o início da epidemia de dengue em Foz do Iguaçu, há alguns anos, defrontei-me com a mesma tanto no âmbito profissional quanto pessoal. Desta forma a vivenciei como a sociedade a enfrenta ainda hoje, de um lado o esforço do técnico na busca e transmissão do conhecimento, a formulação de estratégias, a assistência direta aos caídos no combate e no outro como indivíduo na tentativa constante de colocar em ação as práticas de promoção à saúde preconizadas. Fui além, pois também sofri os sintomas fisicamente, experimentando então as fragilidades de todo o sistema que aparentemente se pensava estar devidamente capacitado mas não conseguia incorporar as rotinas do protocolo na performance de seus colaboradores. Adoecer de dengue trouxe-me ainda a compreensão das falhas de conduta dos usuários, para mim a sensação de não me importar mais em viver ou morrer só foi suplantada pela consciência de que era um profissional de saúde e que como tal não gostaria de ser lembrada como aquela que morreu em casa sem buscar socorro. Andar, mesmo que pequenos percursos, era por demais sofrido e levava à exaustão, o desejo era entregar-se à doença no fundo de uma cama e pedir que me deixassem assim, mesmo tendo facilidades de deslocamento como veículo próprio e não necessitando ser eu a condutora, situação que muitos que adoecem não desfrutam. Esperar pelo atendimento era um tempo muito mais longo do que o relógio marcava. O suor frio constante e a pele pegajosa mesmo ao sair do banho causavam muito mal estar e até mesmo sensação de repugnância. Não necessito falar da dor constante, que tentava contornar dormindo dia e noite mas em vão. Faço este relato porque é necessário o exercício de empatia para obtermos um atendimento com sucesso, preferiria não haver adoecido mas de tudo se tira aprendizado. Dito isto passo a relatar minha história, tentando colocar os fatos numa ordem cronológica sem necessidade de ser tão específica com datas e procurando pontuar onde acertamos e erramos. Atuava como médica no setor de epidemiologia municipal quando começaram os primeiros rumores da doença, vista então como algo ainda distante mas querendo adiantar-nos buscamos livros e orientações sobre o assunto. A regional de saúde passou a emitir alertas concomitantemente. Porém, sem que tivéssemos tempo de pensar em implementação de medidas ela chegou e rapidamente inundou os serviços. Estando os serviços de atenção básica despreparados, com um contingente de profissionais capacitados muito pequeno, até porque muitos não compareciam aos eventos, criou-se um serviço de referência na própria epidemiologia. Foram mais de mil atendimentos, dos quais cerca de 400 confirmados laboratorialmente. A queixa mais comum era o início súbito, lembro de *Texto redigido em 12/01/2016 para servir de tema de reflexão no VIVERSUS **Médica especialista em medicina de família e comunidade, profissional da SESA/ESPP-PR um paciente que disse ter saído bem para trabalhar e que repentinamente começou a sentir-se tão mal que não conseguia manter-se sentado, deitou no meio fio da calçada e o carregaram até o serviço. A dor retro-ocular que era muito citada na época como um sintoma importante não ficou evidenciada fortemente no início do quadro mas após vários dias era mais comum estar presente na sintomatologia. Nos primeiros dias de doença havia muitos com queixas que simulavam pródromos de problemas abdominais, principalmente aqueles com dor abdominal que nos confundiam e induziam ao risco de um falso negativo. O exantema não foi queixa tão freqüente mas quando presente associava-se a prurido difícil de ser debelado. O relato de qualquer sangramento assustava, mesmo sabendo-se que podemos ter pacientes doentes de dengue que sangram sem que seu quadro seja dengue hemorrágica e eles não eram tão raros. A queixa de algia era predominante, não sabendo o paciente definir se tratava-se de artralgia, em geral preferiam dizer que estavam sentindo “uma quebradeira geral”. Diagnósticos diferenciais foram feitos já no exame físico, como por exemplo amigdalite purulenta encaminhada como suspeita porque em tempos de dengue todo o paciente febril pode estar com dengue, em distorções como essa evidenciou-se problemas na prática clínica em geral que puderam ser abordadas aproveitando o ensejo da ocorrência. Atender de forma centralizada demonstrou-se ser inviável e um fluxo foi instituído, com competências por ponto de atenção estabelecidas. No entanto, persistia a heterogeneidade no nível de conhecimento e parecia haver por parte de alguns profissionais uma descrença na doença, como se fossem ficar expostos ao identificarem um doente como suspeito de dengue. Pacientes encaminhados como suspeitos eram devolvidos como descartados sem serem investigados, gerou-se mal estar na regulação dos casos. Da epidemiologia retornei à atenção básica por necessidades do serviço, assumindo a direção da epidêmio uma enfermeira que manteve os esforços na disseminação da informação, seja chamando palestrantes especialistas no tema ou através da farta distribuição de material informativo à população nas unidades de saúde e apostilas para cada profissional médico. Lembro que a enfermagem triava os pacientes mas evitava fazer a prova do laço, deixando este procedimento para ser feito durante a consulta médica, isto só mudou após mais de um ano. Atuando na APS o problema não era somente a demanda incrivelmente aumentada mas a estrutura precária para atendimento. A partir dos anos 1970 uma forte campanha sobre reidratação oral foi implantada com sucesso nos casos de diarréia e com isso abandonou-se a cultura da hidratação parenteral. Foi necessário e importante naquele momento para mostrar que há muitas ações precoces a serem tomadas que não sejam necessariamente fazer uma punção venosa. A hidratação *Texto redigido em 12/01/2016 para servir de tema de reflexão no VIVERSUS **Médica especialista em medicina de família e comunidade, profissional da SESA/ESPP-PR venosa voltou a ganhar importância nas capacitações sobre cólera mas não tivemos casos confirmados no Paraná e não chegou a resgatar a discussão de quando fazê-la. As evidências positivas da hidratação oral e venosa começaram a ser mais conhecidas em termos de dengue. Os estoques de soluções endovenosas das unidades foram revistos e aumentados. As chamadas salas de repouso passaram a ficar ocupadas diariamente mas não há sistema de plantão nas unidades de saúde, todas permaneciam sem médico no horário de almoço e se o paciente precisasse de hidratação nos finais de turno abria-se um processo de empurra, a unidade solicitando à UPA a aceitação do paciente e esta recusando porque no protocolo seria competência da básica, criando-se novamente discussões no âmbito da regulação. Quando falo em revisar para cima os estoques de soluções fisiológicas não estou falando em prever um frasco de 500 ml por paciente atendido mas no mínimo o dobro, visto que em termos de dengue a perda líquida para extracelular é grande e a reposição necessita ser generosa, podendo ultrapassar 1000 ml, dado o cálculo ser feito de acordo com o peso do paciente, na base de 60 a 80 ml/kg. Na prática observei que incomodados com as constantes cobranças por conduta incompatível com o protocolo os médicos, sem chegarem a combinar entre si, passaram a prescrever infusão de líquidos mais frequentemente e inclusive em casos nos quais o protocolo ainda não a recomendava. Quando os clínicos das unidades básicas assumiram como sua a tarefa de hidratar, os óbitos e complicações começaram a diminuir. Seria muito simplista se dissesse que esta foi a única medida de impacto nos resultados mas ela foi importante. Quando se hidrata um paciente é necessário estar atento às comorbidades, pois nefropatas e cardíacos têm risco de complicarem com insuficiência cardíaca com quantidades de hídricas que aos demais não causa danos. Os protocolos existem mas precisam ser aplicados levando em consideração as especificidades individuais do caso em atendimento. A epidemiologia destacou um contingente para atuação na UPA, o hospital municipal criou leitos específicos sob a responsabilidade de uma infectologista para atendimento dos casos hospitalisados, os casos de óbitos passaram a ser analisados nos moldes das análises feitas nos comitês de mortalidade à medida que aconteciam e medidas imediatas para corrigir as distorções eram tomadas. A situação estabilizou e nos meses mais frios os leitos para dengue passaram a ser utilizados para gripe. Esta estabilização no número de casos ocorreu não somente em virtude das medidas tomadas mas também porque com o tempo um percentual muito alto da população fora atingido e estava imune para aquele sorotipo. Recrudescências nos casos de dengue surgiram em anos posteriores à medida que mosquitos eram infectados com sorotipos diferentes. Uma medida altamente controvertida foi tomada pelo prefeito da cidade no ápice de um período de alta infestação. Apesar do parecer contrário de técnicos da regional de saúde a população foi conclamada pelo prefeito em seu *Texto redigido em 12/01/2016 para servir de tema de reflexão no VIVERSUS **Médica especialista em medicina de família e comunidade, profissional da SESA/ESPP-PR programa semanal de rádio a fazer três dias de nebulização em suas casas. Temia-se que essa medida aumentasse a resistência do mosquito ao produto, fato que já aparecia em estudos. Foi oferecido um frasco de aerossol por domicílio, quem necessitasse de quantidade maior deveria comprar com recursos próprios. Por três dias as famílias voltaram a sentar-se à frente de suas casas durante meia hora à noite, como no tempo de nossos avós. O nível de infestação predial caiu bruscamente, os mosquitos não estavam totalmente resistentes mas parece que não foi desenvolvido nenhum estudo do impacto desta medida em termos de resistência naquele município e este seria um tema interessante de ser proposto como TCC a alunos de pós em vigilância em saúde. O nível de adesão da comunidade às ações sempre foi um desafio, por necessitar serem constantes e pelas circunstâncias específicas de cada família, seja pelo número elevado de donas de casa trabalhando fora e em jornadas de trabalho longas, seja pelas muitas formas de criadouros existentes ou pela dificuldade em obter adequada destinação de dejetos num local em que estas práticas não estavam amplamente divulgadas e as ações do poder público nestes termos existiam mas na prática não eram facilmente exeqüíveis. Lembrando dos óbitos que assisti serem discutidos, eles foram uma fonte de aprendizado muito rica. Marcou mais o caso da adolescente que era filha única e a mãe a levara duas vezes no atendimento, com queixa de dorsalgia e dor abdominal, sendo tratada com antiinflamatório não hormonial, até chegar ao hospital em estado grave com hemorragia digestiva. Lembro do médico que perto de se aposentar teve um processo administrativo aberto contra ele para diligências sobre o óbito de uma senhora que o procurara com febre e dor abdominal, encaminhou-a e na referência não foi hidratada, sendo liberada com receita de antiespasmódico e antipirético. A paciente retornou no médico anterior e este insistiu em seu re-encaminhamento mas ela preferiu voltar para casa e faleceu na manhã seguinte, quando familiares a removiam para atendimento de urgência. Só foi diagnosticada porque na UPA uma técnica de enfermagem a direcionou para o plantão da epidêmio e lá foi coletado sangue para análise. O médico não foi responsabilizado no processo administrativo porque se a paciente já estivera num local de referência este seria a partir de então o seu local de retornos se piorasse. Ela não gostara do atendimento recebido e insistiu em ser atendida em local que não era o adequado para o seu nível de gravidade, deveria ter sido encaminhada via SAMU na unidade básica já ao chegar. Os casos atípicos são as pegadinhas em casos de óbito por dengue, talvez isto tenha levado os médicos a adotarem medidas de hidratação generosas indistintamente. Na conversa com os profissionais que atenderam pacientes que obitaram algo que chamava a atenção era a perplexidade dos mesmos frente ao severo agravamento, em virtude do *Texto redigido em 12/01/2016 para servir de tema de reflexão no VIVERSUS **Médica especialista em medicina de família e comunidade, profissional da SESA/ESPP-PR paciente estar lúcido e contatante o tempo todo e repentinamente o quadro deteriorava-se de forma intempestiva e irremediável. Falando em distorções de fluxo e eficácia de medidas implantadas, ao ser atendido e identificado como suspeito dengue o paciente recebia uma carteirinha com dados como PA, peso, hematócrito, prova do laço, a serem anotados nas diferentes datas indicadas para retornos. Geralmente só eram preenchidos os dados no primeiro registro porque os profissionais não assimilaram que era importante o registro em todos os comparecimentos. Além disto, não parecia ser enfatizada a necessidade do comparecimento nos retornos pois os pacientes acabavam retornando muito tardiamente. Naquela época era dito nas capacitações que o momento mais importante da avaliação era no momento em que termina o período febril porque é neste momento que costumam ficar evidentes os casos que evoluirão com complicações mas os retornos já eram previstos de ocorrerem a cada dois dias. Hoje esta afirmativa é questionada porque as medidas necessitam ser precoces e o atendimento tardio pode ocorrer em momento irreversível da doença. Hoje parece que estou diante de um dejavù ao acompanhar os fatos em minha atual macrorregião mas a realidade é outra, o nível de conhecimento da doença é muito maior e espero que nossos desafios embora grandes sejam superados mais rapidamente e com o mínimo de perdas de vidas. *Texto redigido em 12/01/2016 para servir de tema de reflexão no VIVERSUS **Médica especialista em medicina de família e comunidade, profissional da SESA/ESPP-PR