1 OS DILEMAS DA ECONOMIA DOS ESTADOS UNIDOS

Propaganda
OS DILEMAS DA ECONOMIA DOS ESTADOS UNIDOS
NO NOVO KONDRATIEV
Carlos Eduardo Martins*
Introdução
Alguns analistas da economia mundial tem defendido a tese de que o regime
capitalista mudou a natureza de sua valorização dos anos 70 para cá. Ao invés de
praticar um regime de acumulação onde a mais-valia origina-se em última instância da
exploração do trabalho produtivo, o capitalismo haveria criado formas de valorização
que se baseariam num movimento autônomo de acumulação das aplicações financeiras.
Ao invés do clássico movimento descoberto por Marx em O Capital, D-M-D’,
estariamos num contexto onde a valorização seria alcançada diretamente pela
transformação de D-D’. Os Estados Unidos, como região que concentra os principais
instrumentos financeiros do mundo, seriam o Estado-nação que alcançaria uma
hegemonia inconteste nessa conjuntura.
Sem negar a projeção que assumiu esse movimento de valorização dos ativos
financeiros, entre os anos 70 e parte dos 90, queremos assinalar que a centralidade que
assumiu nesse período da acumulação de capital refere-se ao ingresso da economia
mundial numa fase B do ciclo de Kondratiev. Uma vez esgotada essa fase, ingressa-se
num período A do Kondratiev, onde a acumulação de capitais mediada pelo
investimento produtivo assume um papel central no desenvolvimento capitalista. Por
outro lado, ao contrário do que alguns afirmam, a liderança dos Estados Unidos na
criação de instrumentos de acumulação financeira não fortaleceu a posição de potência
mundial desse país, antes a enfraqueceu.
Os Estados Unidos vêm enfrentando, desde os anos 70, problemas pelo fato de
que as taxas de produtividade crescem mais em outras partes da economia mundial,
notadamente, no Leste Asiático. Nos anos 80, a exposição dos Estados Unidos às
*
Professor do curso de Relações Internacionais e do Instituto Politécnico da Universidade Estácio de Sá
(UNESA), doutor em Sociologia/USP
1
políticas públicas neo-liberais e a confiança na força financeira do dólar como
instrumento de atração de capitais agravaram esses problemas, transformando-os em
déficits crônicos da balança comercial e da conta corrente. Como pretendemos
demonstrar, o discurso, oriundo em última instância do reaganismo, de um poder
financeiro inquebrantável dos Estados Unidos, capaz resolver indefinidamente os
problemas de balanço de pagamentos dos Estados Unidos, não corresponde à realidade.
O Novo Kondratiev Estadunidense
Os ciclos de Kondratiev têm sido analisado como de 50 a 60 anos de duração
média e divididos em duas fases. Uma fase A, de expansão, onde a associação de
revoluções tecnológicas com inovações organizacionais permite sustentar a taxa de
lucro em altos níveis por cerca de 25 a 30 anos. Nesses períodos, as crises que ocorrem
são de curta duração e não contrariam, no conjunto do intervalo, os índices elevados da
taxa de lucro. Durante a fase B, a taxa de lucro cai por período semelhante e os
intervalos de recuperação não permitem modificar substancialmente a tendência de
queda. As principais razões para essa queda são o esgotamento da trajetória de
inovações vinculadas ao paradigma tecnológico da fase A e o surgimento de um novo
paradigma tecnológico, sem que ele esteja acompanhado das modificações
organizacionais necessárias para geri-lo.
Em termos quantitativos, podemos localizar, entre 1939-67, o desenvolvimento
da fase A de um Kondratiev na economia estadunidense. Não possuímos dados sobre a
taxa de lucro1 para todo o período, por isso tomaremos como ilustrativo o intervalo de
1959-1967.
Entre 1959-67, a taxa de lucro nos Estados Unidos se situa em 10,4%. Durante
esse período o maior índice foi atingido em 1965, de 12,4%, e o menor em 1961, de
8,4%. Em 1967, se inicia uma queda que, em quatro anos, derruba a taxa de lucro em
47%, levando-a de 11% para 5,8%, em 19702. Essa queda dá lugar a fase B do
Kondratiev estadunidense iniciado durante a 2ª Guerra Mundial, que podemos localizar
no intervalo 1968-1991. Durante vinte e seis anos, a taxa de lucro não voltou mais a
ultrapassar o nível mais baixo da fase A, feito alcançado em 1996. Nessa fase B, a taxa
1
A taxa de lucro corresponde a percentagem de lucros em relação ao produto bruto das corporações nãofinanceiras. No que tange aos lucros, tomamos em consideração seu valor após os impostos e o ajuste às
variações de estoque e de consumo de capital fixo. No que se refere ao produto bruto, tomamos em
consideração o seu valor, uma vez descontados os lucros. Ver apêndice.
2
Elaboração nossa a partir dos dados fornecidos pelo Economic Report of The President (2000).
2
de lucro média atingiu 6,5%, representando um índice 37,5% inferior ao alcançado entre
1959-67, e a taxa de crescimento per capita caiu de 2,9% a.a, entre 1939-67, para 1,7%
(Economic Report of The President, 2000) e (Maddison, 1997).
A partir de 1992, podemos verificar uma trajetória inversa a de 1967-70, mas
similar quanto à intensidade de variação da taxa de lucro. Entre 1992-97, a taxa de lucro
ascende de 5,8% a 9,9%, aproximando-se dos níveis precedentes a sua queda. Trata-se
de uma elevação de 71% que configura por sua força e concentração temporal a entrada
na fase A de um novo Kondratiev (Economic Report of The President, 2000) e
(Economic Indicators, March 2000). O surgimento desse novo Kondratiev, não se faz
sem amplas mudanças de gestão de políticas públicas e empresarial. Ele se articula aos
superávits fiscais do setor público e ao desenvolvimento de trajetórias de investimento
ligadas à microeletrônica. Os superávits fiscais não são no atual contexto econômico um
fator de restrição da demanda. Pelo contrário, tem sido usados para diminuir o peso dos
juros no orçamento público e liberar recursos para o setor real da economia.
Entre 1992-99, o déficit público federal de 4,7% do PIB transformou-se num
superávit de 1,4%. Esses superávits fiscais foram alcançados através de uma revisão
profunda das políticas introduzidas pelo reaganismo. Os principais fatores que o
explicam são o aumento da arrecadação, os cortes de gastos militares, a redução das
taxas de juros e a desvalorização do dólar. Nesse período, as receitas fiscais do governo
federal se elevaram de 17,5% para 20% do PIB e os gastos militares reduziram-se de
4,8% a 3% destas. Tais fatores combinaram-se com reduções significativas nas taxas de
juros3 e no valor do dólar4, em relação as praticadas em nos anos 80, para reduzir de
18,3% a 12,6% o peso dos juros no orçamento público (Economic Report of The
President, 2000).
No período de 1992-99, as aplicações financeiras são substituidas pelas
aplicações produtivas como forma mais rentável de investimento, pois os juros
nominais sofrem uma significativa redução, variando suas médias anuais entre 3,5% e
5,8%. Uma expressão disso é a redução da dívida federal em poder do público de 48,2%
para 39,9% do PIB, invertendo o crescimento exponencial que esta havia obtido desde
1981, quando parte de 25,8% (Economic Report of The President, 2000).
3
Entre 1979-90 as taxas médias de juros nominais do governo federal alcançam 9,9% e, entre 1979-85,
14,7%. Nesse período, as taxas médias de lucro foram respectivamente de 5,8% e 5,9%.
4
Durante a década de 80, o dólar atinge o índice médio de 111,6 (1973=100) em relação as moedas do G10 (inclui Canadá, Alemanha, Japão, Bélgica, França, Reino Unido, Holanda, Suécia, Suíça, Itália e a
3
As carteiras de ações valorizam-se, principalmente daquelas ligadas à alta
tecnologia. O índice Dow Jones, apresenta a seguinte variação nominal: entre 19651970 cai, em decorrência da queda da taxa de lucro, de um índice de 910 para 753. A
partir de 1982, volta a se valorizar de forma consistente, acompanhando a alta do dólar
no período e a introdução de inovações tecnológicas ligadas ao paradigma
microeletrônico. Passa de um patamar 884 para 2.508, em 1989. A partir da recuperação
econômica de 1992, o Dow Jones se acelera. Ele salta de 3.284 para 5.742, em 1996, e
desde então para 10.464, em 1999, alcançando nesse último período uma valorização
nominal de 22,1%. Essa valorização é muito mais acentuada nas carteiras de ações
industriais que vinculam-se a empresas de alta tecnologia, como o NASDAQ, que nos
últimos dois anos valoriza-se em mais de 60% (Economic Report of The President,
2000).
Uma parcela significativa dessa alta no preço das ações se vincula à elevação
dos lucros empresariais. Entre 1989 e 1999, a participação dos lucros na rentabilidade
das corporações não-financeiras aumentou, saltando de 108% para 338% do que
corresponde a obtida através de juros. Nas firmas de alta tecnologia, as taxas de lucro
têm sido ainda maiores que as da média empresarial, empurrando para cima os
indicadores de bolsas.
Todavia, uma parcela não desprezível desse movimento de preços das ações se
vincula ao instrumento financeiro de valorização do dólar e apoia-se numa bolha
especulativa. Mas para entender-se a presença dessa bolha há que se perceber os limites
da fase A do novo Kondratiev que se desenvolve nos Estados Unidos. Trata-se de um
movimento especulativo cujo sentido e alcance na economia dos Estados Unidos
guardam diferenças significativas em relação ao realizado com títulos da dívida pública
nos anos 80.
Os Limites da Fase A do Novo Kondratiev Estadunidense
A nova era de prosperidade da economia dos Estados Unidos possui
especifidades para esse país, em relação aos anos dourados iniciados durante a 2ª Guerra
mundial e consolidados no pós-guerra. Desde a Fase B do Kondratiev anterior surge um
movimento de declínio da hegemonia econômica dos Estados Unidos. Esse movimento
manifesta-se claramente, a partir de meados dos anos 60, por uma taxa de crescimento
partir de 1999 a União Européia). Em 1995, ele atinge a cotação de 84,2 para depois valorizar novamente,
4
do PIB per capita inferior a da Europa Ocidental e Leste Asiático5, e a partir dos anos
70, pela crise do dólar e pela geração de significativos déficits na balança comercial e na
conta corrente.
Na base do declínio da hegemonia econômica dos Estados Unidos estão o
esgotamento das trajetórias tecnológicas fordistas, desenvolvidas entre as décadas de
1910-60, e a alta difusão dos conhecimentos científicos e tecnológicos para países do
núcleo orgânico da economia capitalista e segmentos restritos da semi-periferia,
proporcionados pela consolidação do período de dominação dos Estados Unidos sobre a
economia mundial e pela aceleração das inovações trazida pela revolução científicotécnica.
A geração de importantes déficits comerciais durante a década de 70 impôs a
flutuação para baixo do dólar e sua desvinculação do ouro, em 1971, e de qualquer
sistema estável de paridades cambiais, em 1973. Produziu-se uma enorme liquidez de
dólares provocada por sua desvalorização, pelos excedentes comerciais que
determinados países passam a deter com os Estados Unidos e pela generalização da fase
B do Kondratiev no núcleo orgânico da economia mundial, que conduz à exportações de
capitais em busca de aplicações rentáveis na semi-periferia e periferia. A ampliação dos
volumes de créditos numa taxa maior que a da desvalorização da moeda permitiu ao
sistema bancário dos Estados Unidos obter ganhos de senhoriagem durante um
determinado período (Beluzzo, 1999: 102). Entretanto, o declínio do dólar começou a
impulsionar a redução de seu papel de moeda para transações e reservas e a ameaçar a
brecha que havia para os ganhos de senhoriagem.
Os setores financeiros que representavam nos Estados Unidos, nos anos 80, o
conjunto dos interesses do capital, respondem a essa situação impulsionando políticas
públicas que apoiam-se em instrumentos financeiros de atração de capitais para reverter
a decadência econômica. Elevam-se as taxas de juros, o valor do dólar, as taxas de
desemprego, avança-se amplamente na liberação dos fluxos de capitais, e na liberação
dos fluxos de mercadorias para reduzir-se os custos trabalhistas e as taxas de inflação. O
fortalecimento do dólar e a capacidade de atração de capitais do resto do mundo por
e alcançar 98,8 em 1999 (Economic Report of The President, 2000).
5
Entre 1939-67, a taxa anual de crescimento do PIB per capita dos Estados Unidos (2,9%) supera
amplamente a da Alemanha Ocidental (2,4%), Reino Unido (1,8%) e Países Baixos (2,4%) e eqüivale a
da França (2,9%), que parte de um patamar bem mais baixo. Japão (3,8%) e Itália (3,3%) países, então
semi-periféricos, que superam no intervalo as taxas de crescimento dos Estados Unidos, só vão fazê-lo a
partir de 1963, no primeiro caso, e de 1962, no segundo (Elaboração nossa a partir dos dados fornecidos
por Madisson).
5
parte dos Estados Unidos, que gerou sérios problemas de liquidez nos países
endividados, foram entendidos por muitos analistas como uma retomada da hegemonia
estadunidense e de sua capacidade de organizar uma economia mundial em crise.
Entretanto, essa retomada
foi apenas aparente. O seu custo foi o de agravar os
desequilíbrios da economia dos Estados Unidos e os determinantes da sua trajetória de
descenso.
Entre 1983-89, recupera-se o crescimento econômico. Mas associa-se a ele um
enorme agravamento dos déficits comerciais e em conta corrente, que passam a ser
cobertos por ingressos na conta capital direcionados para a compra de títulos da dívida
pública dos Estados Unidos. O resultado foi o crescimento a exponencial da dívida
pública e do peso dos juros no orçamento público desse país. As crescentes
necessidades da conta corrente, provocadas inicialmente pelos déficits comerciais,
aumentaram significativamente o estoque de capitais estrangeiros nos Estados Unidos,
estreitando cada vez mais, durante o período republicano, os superávits que os Estados
Unidos obtinham na conta de serviços fatoriais (que inclui remessas de lucros e de
juros) do balanço de pagamentos. Esses excedentes deixam de neutralizar os déficits em
conta corrente em 1983 e, a partir dessa data caem de US$ 36 bilhões para US$ 14
bilhões em 1987, elevando-se ligeiramente com a redução dos juros, no início dos anos
90, para atingir US 24 bilhões em 1992. (Economic Report of The President, 2000).
6
Entre os resultados desse processo está a inviabilização dos termos da política
militar estadunidense do pós-guerra que os governos republicanos tentam retomar. A
enorme extensão geo-política das intervenções militares dos Estados Unidos teve seu
fundamento econômico nos excedentes proporcionados pelos superávits das balanças
comerciais e de serviços fatoriais do balanço de pagamentos norte-americano. Quando
os déficits comerciais começam a crescer nos anos 70 e a neutralizar os efeitos positivos
da balança de serviços fatoriais na conta corrente, o resultado é uma diminuição dos
gastos militares e uma revisão da política externa de grande potência dos Estados
Unidos. Os governos Reagan e Bush ao retomarem os gastos militares e as tradições de
política externa norte-americanas da guerra fria, vão fazê-lo sob uma base econômica
extremamente precária, o que levará à capitulação desses esforços no início dos anos
906.
A
substituição
dos
republicanos
pelos
democratas
vem
assinalar
a
impossibilidade dos Estados Unidos continuarem a praticar uma política pública
imperial liderada pelos segmentos financeiros de sua burguesia. Era necessário
reformular as políticas internas e externas. Se nos anos 80, o capital apoiou uma saída
financeira para crise, a destruição dos marcos de regulação fordistas e da competição
entre preços e salários que ela provocou, combinada com a disponibilidade crescente de
inovações tecnológicas, permitiram uma mudança de enfoque. A estabilização dos
salários e dos custos da hora de trabalho em níveis extremamente baixos7 e a imensa
destruição de capitais provocada pelos altos índices de falências colocaram a
necessidade de recuperar as taxas de investimento, de produtividade e de lucro. Para
isso era fundamental reduzir as taxas de juros e recuperar a capacidade de intervenção
do Estado, desvinculando-o segmentos improdutivos ou tecnologicamente obsoletos,
como o militar, para criar uma oferta de insumos associados às trajetórias tecnológicas
do paradigma microeletrônico. Entre esses insumos estão a educação e a saúde, para
gerar uma oferta estável de força de trabalho qualificada.
Em conseqüência desse giro na agenda política, as taxas de produtividade saltam
a partir de 1996, quando a taxa de lucro se aproxima de seus níveis históricos de
expansão, para situarem-se em torno de 3% a.a. A taxa de investimento se eleva, entre
6
Entre 1968-79, os gastos militares caem consistentemente de 8,7% para 4,6% do PIB. Na década de 80,
esses gastos se elevam até 6,2% do PIB, em 1986, caindo para 4,6% durante a crise de 1990-91(Economic
Report of The President, 2000).
7
Em 1992, a hora de trabalho, em dólares de 1982, equivalia a U$ 7,41, sendo inferior a de
1965(Economic Report of The President, 2000).
7
1992-98, de 15,9% a 18,8%, impulsionada pela recuperação fiscal do governo federal.
O crescimento econômico se acelera e alcança 3,6%, entre 1992-99, e 4,1%, entre 199599. Todavia, permanecem e se aprofundam os déficits comerciais e em conta corrente
como expressão e determinantes da perda de competitividade dos Estados Unidos
perante o Leste Asiático e a Europa Ocidental (Economic Report of The President,
2000).
Tais déficits, provavelmente, são parte da fase A desse novo Kondratiev e
tendem a limitar a médio e longo prazo as possibilidades de crescimento econômico dos
Estados Unidos. Em conseqüência suas taxas de lucro não devem alcançar níveis tão
altos quanto os do pós-guerra. Diferentemente, da fase B do Kondratiev anterior, nessa
nova etapa os ingressos de capital estrangeiro, necessários para cobrir os déficits da
conta corrente do balanço de pagamentos, dirigem-se prioritariamente a ativos
vinculados ao setor produtivo, como as carteiras de ações das empresas
tecnologicamente mais dinâmicas e não a ativos eminentemente financeiros, como os
títulos da dívida pública.
Os resultados desses ingressos têm sido um aprofundamento do processo de
desnacionalização da economia norte-americana e a inversão histórica dos resultados da
balança de serviços-fatoriais, que passa de superavitária para deficitária. Assim, desde
1998, que as saídas de capitais por conta de remessas de lucros e pagamentos de juros
ultrapassaram essas entradas, superando-as em US$ 12,2 bilhões. Tal tendência se
amplia em 1999, quando apenas nos três primeiros trimestres as saídas superam as
entradas em US$ 13,8 bilhões. Assim, a necessidade sistemática de ingressos de capitais
estrangeiros para equilibrar o balanço de pagamentos acaba gerando o aprofundamento
desses déficits (Economic Report of The President, 2000).
Em 1999, os déficits em conta corrente alcançaram US$ 338,9 bilhões, e no
último trimestre de 1999, alcançaram US$ 99,7 bilhões, Esse resultado anual assinala
uma taxa de expansão de 53% em relação a 1998 e de 31% a.a em relação a 1992. O
estoque desse déficit já alcança cerca 3,6% do PIB e a conservação dessa taxa de
ampliação é insustentável a médio prazo. Hoje, apesar do ritmo aparentemente
sustentado de crescimento da economia dos Estados Unidos, a expansão já dá sinais de
esgotamento8.
8
Como mencionamos, isso não nega nossa postulação da existência de uma fase A do Kondratiev em
curso nos Estados Unidos. O Kondratiev é um ciclo longo que comporta, em cada uma de suas fases,
ciclos menores de expansão e recessão.
8
Para conter o potencial disruptivo dos déficits em conta corrente existem duas
grandes alternativas de política:
a) Mobilizar instrumentos financeiros, como a taxa de juros, para reduzir o
crescimento econômico e diminuir as necessidades de financiamento externo da
economia estadunidense. Essa alternativa tem sido defendida pelos monetaristas e
grupos ligados ao FED, mas traz como resultado uma elevação do câmbio, o que reduz
os impactos positivos sobre a redução do déficit, e a elevação dos estoques de dívida
pública e do peso dos juros no orçamento do governo federal. Em conseqüência, reduzse o espaço para as trajetórias de desenvolvimento. Diminui a taxa de lucro, caem os
superávits fiscais e a possibilidade de usá-los para sustentar uma política
desenvolvimentista;
b) Desvalorizar o dólar, aceitando a redução da competitividade da economia
norte-americana na economia mundial. Essa aceitação permitiria desvincular a
economia norte-americana da especulação com o juros e com o câmbio e sustentar o
aumento das taxas de investimento e do crescimento econômico sem grandes
desequilíbrios, elevando as taxas de lucro para os níveis do pós-guerra.
Frente a essas possibilidades extremas, capital estadunidense, em seu conjunto,
prefere soluções intermediárias. Ele se distancia tanto dos segmentos mais rentistas
quanto dos mais dinâmicos tecnologicamente porque aceita o câmbio sobrevalorizado
para maximizar os ganhos da acumulação, mas quer limitar essa valorização a um ponto
que não inviabilize a recuperação da taxa de lucro e dos investimentos produtivos.
Quando os desequilíbrios se acumulam, ele se aproxima com cautela da primeira
alternativa, apoiando uma elevação moderada das taxas de juros para reduzir os custos
de produção da economia dos Estados Unidos e, assim, reduzir os déficits na conta
corrente. Entretanto, o resultado a médio prazo desse percurso é o aprofundamento dos
diferenciais de competitividade entre a economia dos Estados Unidos e a de outros
membros do núcleo orgânico e da semiperiferia da economia mundial. Isso levaria à
necessidade cada vez maior de elevar as taxas de juros como fator de contenção do
crescimento econômico, estreitando bastante as distâncias em relação à alternativa
monetarista.
A acumulação de efeitos negativos de médio e longo prazo desse percurso sobre
os assalariados, pequenas e médias empresas e segmentos tecnologicamente mais
dinâmicos do capital estadunidense tende, entretanto, a criar as condições para uma
posição política mais agressiva em direção à segunda alternativa. Uma postura mais
9
contundente nesse sentido enfrenta riscos políticos porque traz como meta imediata um
ajuste do nível de renda da população que, embora articulado a uma política virtuosa,
pode ser entendido por grande parte dela como uma redução de seus padrões de vida.
Só no contexto da aceleração da luta política e de classes nos Estados Unidos será
possível evidenciar os limites do percurso em direção ao rentismo e discutir a
distribuição dos custos do ajuste, sem perder apoio popular.
A Economia Estadunidense em 1999 e as Perspectivas do Crescimento
Embora, em 1999, os Estados Unidos tenham mantido um ritmo acelerado de
crescimento econômico, começam a surgir no cenário os sinais de uma provável
redução dessas taxas. O fundamento último desses sinais são os enormes desequilíbrios,
gerados pela expansão econômica acelerada, que se concentram nos déficits da conta
corrente. Para crescer sustentadamente em ritmo elevado, os Estados Unidos devem
aceitar uma reavaliação do valor de seus ativos através da desvalorização do dólar, pois
a decadência de sua hegemonia não permite que estabeleça uma expansão acelerada sem
provocar desajustes macroeconômicos importantes. Todavia, no momento, essa
alternativa não está colocada.
O crescimento do PIB, de 4,2%, obtido em 1999, configura o oitavo ano de
expansão econômica consecutiva e mantém a média acelerada dessas taxas dos últimos
5 anos. Todavia, a ele se articula ao enorme déficit em conta corrente que
mencionamos. Para obter as divisas, os Estados Unidos têm elevado o câmbio9 e atraído
para as bolsas de valores grande parte dos capitais externos de que necessita para
equilibrar o seu balanço de pagamentos. Em consequência, avoluma-se uma enorme
massa de recursos nas bolsas de valores, cujo crescimento não tem paralelos com a
expansão dos lucros, deprimindo essas taxas10. Esses efeitos depressivos se agravam
pelo fato de a alta do câmbio ser realizada mediante o aumento dos juros.
O movimento de elevação do dólar é então acompanhado, desde 1998, por uma
lenta e sistemática queda das taxas de lucro. Essa queda é apenas interrompida entre o
3º trimestre de 1998 e o 1º trimestre de 1999, quando o FED relaxa sua política
monetária. A retomada do aumento dos juros e da valorização do dólar impacta
9
Entre 1995 e 1999, o dólar se eleva de um índice de 84.8 a 98.7 tomando-se em consideração a cesta de
moeda do conjunto de países que comerciam com os Estados Unidos (Economic Report of The President,
2000).
10
negativamente os lucros e dão continuidade a redução dessas taxas em 1999. Assim, em
1997, a taxa de lucro havia alcançado 9,9 %. Em 1998, ela cai para 9,8% e em 1999
para 9,4%, sendo sua evolução nesse ano, a seguinte: no 1º trimestre alcança 9,7% e nos
2º, 3º e 4º trimestres 9,4%, 9,1% e 9,3%, respectivamente (Economic Indicators, March
2000)11. As altas sucessivas das taxas de juros em novembro, dezembro e março,
levando-as ao patamar de 6%a.a, devem acentuar esse movimento de descenso suave e
persistente da taxa de lucro. Essa queda nos lucros já se manifesta numa retração das
taxas de investimento. Os investimentos não-residenciais, embora continuem crescendo,
reduziram seu ritmo de expansão de 12,7%, em 1998, para 8,3%, em 1999 (Economic
Report of The President, 2000).
O FED justifica a elevação das taxas de juros como um instrumento de
prevenção de pressões inflacionárias. Entretanto, esse discurso oculta a razão real dos
desequilíbrios da economia norte-americana e os agrava. As taxas de inflação têm sido
perfeitamente compatíveis com o crescimento de longo prazo. Entre 1939 e 1944,
período em que os Estados Unidos cresceu a taxas recordes e consolidou sua posição de
potência mundial, a inflação média anual foi de 4,1%. Caso tomemos o período de
boom do pós-guerra como um todo, isto é 1939-68, a inflação média anual foi de 3,2%.
Portanto, não há nenhum sentido em supor desestabilizante a inflação de 2,2% de 1999.
Caso se excluam os itens referentes a energia, em função da variação dos preços de
petróleo, verifica-se que o índice de 1999 foi de 2%, inferior aos 2,3% de 1999
(Economic Report of the President, 2000).
Na base da contenção das pressões inflacionárias estão as altas taxas de
produtividade da economia norte-americana, desde 1996, e a forte redução dos custos
trabalhistas entre 1979-95. Nesse período, o preço da hora de trabalho nas indústrias
privadas caiu de US$ 8,4 a US$ 7,39, em dólares de 1982. A queda é maior ainda para o
salário semanal, em razão da redução da jornada de trabalho. Nesse caso, o salário
semanal cai de US$ 300 para US$ 255. Posteriormente, esses índices se elevam, mas
não o suficiente para compensar as perdas obtidas. Em 1999, a hora de trabalho alcança
US$ 7,86 e o salário semanal US$ 271. Em conseqüência, os trabalhadores têm nesse
ano uma remuneração por hora de trabalho inferior a de 1968 e um salário semanal
abaixo do de 1962(Economic Report of The President, 2000).
10
Entre 1992 e 1997, os lucros após os impostos das corporações não-financeiras, ajustados às variações
de estoque, cresceram 9,1% a.a. As necessidades de financiamento do comércio exterior, como vimos,
crescem em ritmo bem mais intenso (Economic Indicators, March 2000).
11
O crescimento econômico tem impulsionado a arrecadação do governo federal e
permitido a geração de expressivos superávits fiscais. Eles alcançaram, em 1998, US$
46,8 bilhões e saltaram, no terceiro trimestre de 1999, para US$ 133.8 bilhões em taxas
anuais sazonalmente ajustadas. Esses superávits tem sido a base de um giro na política
estadunidense para uma ofensiva das políticas publicas ativistas. Isso se consubstancia
nos States of Union que Clinton tem dirigido ao Congresso, que dão forte ênfase às
políticas de saúde, educação e previdência pública e a temas como meio-ambiente,
pesquisa científica, direitos civis, igualdade de condições de trabalho entre gênero,
planejamento familiar, criação de licenças para compra de armas e fiscalização do porte
de armas. Para os próximos 10 anos projetam-se superávits fiscais entre US$ 838
bilhões a US$ 1,8 trilhões e Clinton já fala em pagar a dívida pública dos Estados
Unidos e liquidar o peso dos juros no orçamento (Economic Report of The President,
2000).
Todavia, a força dessa agenda pode ficar comprometida pela redução do
crescimento que a alta sistemática de juros patrocinada pelo FED tem buscado provocar.
Os Sinais da Crise em 2000
Os primeiros meses de 2000 reforçam os sinais de uma provável contração do
crescimento econômico estadunidense a curto prazo ou médio prazo. O índice Dow
Jones, entre janeiro e 17 de abril, caiu 7,96% e o NASDAQ, no mesmo período, teve
uma queda de 13,3%. Tais movimentos são extremamente dramáticos para a economia
dos Estados Unidos, pois são os fluxos de capitais dirigidos às bolsas de valores que
vêm possibilitando o equilíbrio do balanço de pagamentos desse país.
Como vimos, na base da contração do crescimento do PIB está a lenta e
progressiva queda das taxas de lucro, desde 1998, que a faz aproximar-se dos índices de
1959-61 – de 8,6% a.a.–, anos de desaceleração dentro da fase A de um Kondratiev
norte-americano, quando o PIB per cápita cresceu 1,6%, bem abaixo da média desse
período. A queda das taxas de lucro está sendo determinada por dois motivos:
A) Pelo alto fluxo de recursos que dirigem-se às bolsas norte-americanas,
superando amplamente o crescimento dos lucros empresariais. Esses fluxos
acompanham as necessidades de financiamento da conta corrente norte-americana que,
como vimos crescem em 31% a.a, entre 1992-99. Parte da alta rentabilidade dos
11
Elaboração nossa a partir dos dados fornecidos pelo Economic Indicators, March 2000.
12
investidores da bolsa deve-se a intertemporalidade entre as novas entradas de capitais e
a realização dos ganhos nas carteiras de ações. Assim, a expressiva alta nas carteiras de
ações tem sido, em boa medida, sustentada pelo movimento crescente de ingressos de
capitais em ações, mas a falta de compatibilidade com o crescimento real dos lucros
inclina a taxa de lucro para baixo e coloca essas aplicações em condições de
vulnerabilidade crescente a ataques especulativos.
B) Pela elevação dos juros da economia norte-americana. Esse movimento dos
juros que visa conter o crescimento do PIB nos Estados Unidos e oferecer alternativas à
bolsa em aplicações de capital é indispensável na ausência de uma desvalorização do
dólar. Entretanto, como vimos, esse tipo de política pública cria um círculo vicioso que
reforça a médio e longo prazo os desequilíbrios estruturais da economia norteamericana.
O custo dessa desacelaração pode ser extremamente grave para a centroesquerda estadunidense, principalmente por tratar-se de um ano eleitoral. Alan
Greenspan já indicou outra provável alta dos juros em 16 de maio, tomando como
pretexto indicadores de inflação que refletiram a alta conjuntural dos preços de petróleo,
atualmente controlada12. O que esta em jogo é a consistência da agenda ativista dos
democratas e a sua capacidade de conviver com uma política monetária rígida.
12
Em fevereiro de 2000, os índices de inflação alcançaram 0.5%, sendo impulsionados pela elevação dos
preços de energia que subiram 4,6%. Em março, os índices chegaram a 0.7% ou a 0,4% descontados os
preços de energia. Tomando em consideração que os preços do barril de petróleo devem manter-se
relativamente estabilizados e em níveis inferiores aos de março, não há razão para ver nesse índice mensal
uma tendência (Economic Indicators, March 2000).
13
APÊNDICE
Taxas de Lucro após impostos das Corporações Não Financeiras nos Estados Unidos
(ajustadas às variações de estoque e ao consumo de capital fixo)
Período
Taxa de Lucro
1959
8,9%
1960
8,5%
1961
8,4%
1962
9,9%
1963
10,7%
1964
11,4%
14
1965
12,4%
1966
12,1%
1967
11,0%
1968
9,4%
1969
7,7%
1970
5,8%
1971
6,7%
1972
7,4%
1973
6,7%
1974
4,4%
1975
6,6%
1976
7,0%
1977
7,6%
1978
7,2%
1979
5,8%
1980
4,2%
1981
5,9%
1982
5,6%
1983
6,8%
1984
8,2%
1985
7,9%
1986
5,8%
1987
6,2%
1988
7,0%
1989
5,8%
1990
5,5%
1991
5,4%
1992
5,8%
1993
6,8%
1994
7,9%
1995
8,4%
1996
9,4%
15
1997
9,9%
1998
9,8%
1999
9,4%
Fonte: Economic Report of The President (2000) e Economic Indicators: March 2000
Período
Taxa de Lucro
1998(1)
10,0%
1998(2)
9,7%
1998(3)
9,9%
1998(4)
9,6%
1999(1)
9,7%
1999(2)
9,4%
1999(3)
9,1%
1999(4)
9,3%
Fonte: Economic Report of The President (2000) e Economic Indicators: March 2000
16
17
Download