1 Informações gerais sobre o transtorno bipolar Este capítulo responde às seguintes questões: nO que é transtorno bipolar? – Esta seção define o transtorno, introduz suas possíveis causas e apresenta as quatro categorias de diagnóstico associadas à doença. nComo o transtorno afeta a vida dos pacientes? – Esta seção aborda o impacto da mania, da hipomania, da depressão e dos episódios mistos na vida dos pacientes. n Qual a incidência do transtorno bipolar? – Esta seção apresenta as taxas de preva- lência para os Estados Unidos e a Europa. n Qual a chance de recuperação? – Esta seção discute a importância da adesão ao plano de tratamento para a redução dos sintomas do transtorno. Para os portadores do transtorno bipolar, assim como para suas famílias, a vida é uma imprevisível e debilitante série de altos e baixos emocionais. Anteriormente chamado de psicose maníaco-depressiva, o transtorno bipolar representa um quadro biológico caracterizado por rápidas flutuações de humor. Um episódio de mania envolve euforia, inconsequência, risco à segurança financeira e problemas de relacionamento. Quando o pêndulo pende para a depressão, há extrema apatia e desesperança. Hoje, mais de 2 milhões de adultos norte-americanos sofrem de transtorno bipolar. Os primeiros episódios normalmente ocorrem na adolescência ou no início da idade adulta, quando o estresse atinge seu pico. Para as mulheres, o transtorno pode ser desencadeado pelo nascimento de um filho ou pela menopausa. Apesar de não haver uma única causa documentada ou cura conhecida para essa doença, medicamentos e outras terapias podem ajudar a controlar os sintomas. Sem tratamento, o transtorno pode piorar, com episódios de mania mais frequentes e intensos, caracterizados por mais comportamentos psicóticos. O que é Transtorno Bipolar? “Mania” e “melancolia” – termos antigos para duas mudanças de humor distintas – caracterizam a doença hoje cha- Originalmente, mania era um termo inespecífico para a loucura; e melancolia, um tipo de “loucura” caracterizado pela introversão e pelo comportamento quieto. mania – estado caracterizado por humor elevado ou irritável, diminuição do sono, alta energia, comportamento impulsivo e altamente determinado depressão – estado de humor caracterizado por tristeza ou irritabilidade, baixa energia, pensamentos sobre morte e suicídio e falta de interesse por atividades anteriormente apreciadas 12 Suppes & Dennehy impulsividade – tomada de decisões com pouca reflexão sobre as consequências hipomania – estado de humor caracterizado por alta energia, excitação e sensação de euforia que não cumpre os critérios diagnósticos para um episódio completo de mania hipomania disfórica – estado de humor caracterizado por alta energia e sintomas de depressão que não cumpre os critérios diagnósticos totais para depressão psicótico – deficiência extrema na clareza dos pensamentos, na acuracidade da percepção, na resposta emocional, na efetividade da comunicação, na compreensão da realidade e na adequação do comportamento exames de imagem PET (tomografia por emissão de pósitrons) – tecnologia que utiliza moléculas com pósitrons como marcadores e um traçador de fluxo sanguíneo para desenvolver imagens da atividade cerebral em comparação com aquelas obtidas por meio de ressonância magnética eutimia – variação normal no humor, sem sinais de mania, hipomania ou depressão mada transtorno bipolar. Em termos históricos, os médicos do século XIX acreditavam que os episódios alternados de mania e de depressão eram doenças distintas e, no início do século XX, o transtorno bipolar foi diferenciado da esquizofrenia. Em 1952, a primeira edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais apresentou um conceito do transtorno.1 O transtorno bipolar consiste em um transtorno do humor cuja causa exata é desconhecida. Caracteriza-se por flutuações significativas entre mania e depressão, assim como por alterações nos padrões de sono, energia, atividade, atenção e impulsividade. Apesar de haver muitas variações entre os padrões de humor e sua gravidade, os pacientes normalmente passam por períodos de mania, hipomania ou hipomania disfórica e episódios de depressão maior. Eles também podem sofrer de sintomas psicóticos quando se encontram em um estado de mania ou depressão. Por meio de exames de imagem PET (tomografia por emissão de pósitrons), que detectam diferenças na ativi­ dade cerebral de pacientes em mania ou depressão em ­com­paração aos que se apresentam em estado de humor normal, os pesquisadores estão chegando a uma compreensão mais abrangente das causas do transtorno bipolar. Como resul­tado, acreditam hoje que haja uma desregulação, não muito diferente da que ocorre em uma crise epilética, nas células cerebrais que regulam as emoções, os ritmos circadianos e os comportamentos, causando assim os sintomas bipolares.2 Uma característica complexa do transtorno bipolar é que a experiência dos sintomas pelos pacientes pode variar bastante, sendo que alguns sofrem de depressão seguida de hipomania, e outros, de mania seguida de depressão. Certos pacientes passam logo de um episódio ao outro, praticamente sem um período de estabilidade do humor (eutimia) entre os altos e baixos extremos. Outros podem ficar de certa forma estáveis entre episódios discretos de mania ou depressão mais prolongados. A definição do padrão característico do indivíduo pode influenciar a escolha do tratamento. O gráfico apresentado na Figura 1.1 ilustra essas varia­ ções no caso de dois pacientes: Sue, uma secretária de 55 anos, e John, um trabalhador da construção civil desempregado. A maioria dos pacientes com transtorno bipolar apresenta os primeiros sintomas antes dos 25 anos, com idade média para o início dos sintomas em torno dos 20 anos.3 Contudo, o tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico correto é com frequência de 8 a 9 anos, porque os sintomas bipolares são difíceis de identificar e se desenvolvem de forma gradual, e não repentina.4, 5 Transtorno bipolar O primeiro episódio significativo normalmente é associado a picos de estresse, como início de um novo emprego, ingresso na faculdade, casamento ou nascimento de um filho. Com o passar do tempo, a duração dos períodos “normais” entre os episódios pode diminuir para alguns indiví­ duos, resultando em um curso mais grave e crônico, com mais episódios de mania e de depressão. Outros podem apresentar um episódio ao ano, e manter essa frequência. Estudos realizados no início do século XX (antes do tratamento medicamentoso) indicam que certos pacientes passavam períodos mais curtos entre os episódios conforme envelheciam. Por exemplo, no início da doença, o curso característico para um indivíduo poderia ser de 3 a 4 anos entre os episódios; no entanto, conforme envelheciam, estes poderiam ocorrer a cada 12 a 18 meses. Isso ainda ocorre para aqueles que têm uma gama de padrões de apresentação da doença. No entanto, outros desenvolvem sintomas crônicos contínuos, com poucos dias de função relativamente assintomática entre os episódios agudos. As evidências sugerem que aqueles que passam por mais episódios antes do início do tratamento podem desenvolver maior resistência, o que ressalta a importância de detecção e intervenção precoces.6 Uma área de pesquisa e debate gira em torno da crescente literatura que amplia os critérios de diagnóstico do transtorno bipolar de modo a incluir um amplo espectro de manifestações de humor que não se enquadram nos critérios do TB-I, do TB-II ou do TB-SOE. Alguns, por exemplo, veem a “bipolaridade” como uma doença dimensional contínua do TB-I por meio de entidades atualmente não categorizadas no DSM-IV-TR (p. ex., bipolar borderline, bipolar leve e tempe- Figura 1.1 Padrões de características individuais. 13 Os Capítulos 3 e 4 detalham as opções de tratamento adequadas para padrões de sintomas variados. 14 Suppes & Dennehy ramentos afetivos, como hipertímico, ciclotímico, distímico, irritável) e transtornos intermediários (p. ex., bipolar III).7-9 São necessárias mais pesquisas para determinar a ligação entre essa interface de sintomas e o “temperamento”, assim como as implicações subsequentes para o curso da doen­ça e seu tratamento. Como o transtorno afeta a vida dos pacientes? Os portadores do transtorno bipolar normalmente observam alterações na qualidade de vida e na habilidade funcional, mesmo quando em tratamento adequado e com sintomas em remissão.10-13 Impacto específico da mania ritmo circadiano – regulação diária dos ciclos sono-vigília e dos padrões que regem a passagem de uma atividade à seguinte grandiosidade – crenças ou afirmações exageradas sobre a própria importância ou a identidade; manifesta-se como ilusões de grande riqueza, poder ou fama, quando em proporções psicóticas Em geral, os pacientes em mania observam que dormem menos, ou nem mesmo dormem, em razão da alteração nos ritmos circadianos. Apesar disso, apresentam altos níveis de energia (podem sentir pouca ou nenhuma necessidade de dormir, fazer exercícios várias horas por dia e ter energia “ilimitada” para novos projetos). Contudo, essa energia pode não estar focada de maneira produtiva, e o paciente pode passar vários dias sem dormir. Na verdade, os pacientes do século XIX (antes do tratamento medicamentoso) chegavam a morrer durante os episódios de mania em virtude da falta de sono e da negligência em relação à alimentação e à hidratação. A mania clássica também está associada a grandiosidade­ e comportamentos que a família e os amigos reconhecem co­ mo não-típicos do indivíduo, como gastos exorbitantes, promiscuidade, abuso de álcool ou de drogas, bem como ou­tros comportamentos impulsivos e potencialmente arriscados. Os pacientes portadores do transtorno bipolar podem não reconhecer os sintomas e, conforme a mania se agrava, tampouco as consequências de seu comportamento arriscado, em virtude da confusão e da perda de contato com a realidade que ocorre quanto o transtorno não é tratado. A mania pode abalar profundamente a vida do indivíduo, com frequência levando à não-empregabilidade, à instabilidade financeira e ao abalo das relações familiares. Impacto específico da hipomania Os pacientes em estado de hipomania sentem-se “os donos do mundo”, capazes de qualquer coisa, sociáveis, criativos Transtorno bipolar Os impactos do transtorno bipolar e do abuso de substâncias Em geral, o impacto do transtorno bipolar pode ser mais grave quando associado a outros fatores, como abuso de álcool e de drogas.14, 15 Em relação à população geral, homens e mulheres com transtorno bipolar apresentam respectivamente 4 e 8 vezes mais chance de se tornarem alcoólatras.16 O abuso de substâncias pode ter efeito cumulativo sobre o cérebro, influenciando o curso e a resposta ao tratamento. Um estudo observou que uma história de abuso de substâncias complica ainda mais o curso do transtorno bipolar, com implicações significativas no tratamento, como índices mais baixos de remissão e baixa resposta ao lítio.18 Além disso, o uso de substâncias é associado à baixa adesão ao tratamento.19 Assim, os pacientes devem ser alertados quanto aos riscos do abuso de substâncias, um importante ponto clínico, dadas as pesquisas que observam uma prevalência de mais de 50% de abuso de substâncias (incluindo álcool) entre os pacientes com transtorno bipolar.17 e revigorados. Esses sintomas raramente são relatados, pois são tidos como positivos e benéficos. A hipomania progride de forma lenta para a mania em pacientes com transtorno bipolar I, sendo, por definição, uma mudança no funcionamento habitual observada por terceiros. Apesar de não tão grave quanto a mania, a hipomania torna o paciente mais propenso a tomar decisões por impulso, que podem ter consequências duradouras. A maioria dos pacientes em fase hipomaníaca apresenta humor instável, com frequência progredindo para mania ou depressão. 15 Mais de 50% dos portadores do transtorno bipolar apresentam prevalência de abuso ou dependência de álcool ou de outras substâncias.17 Muitos desses pacientes também podem sofrer de problemas alimentares e de controle dos impulsos.15 Muitos pacientes apresentam uma combinação de hipomania e depressão, também chamada de “hipomania mista”. Impacto específico da depressão A depressão com frequência afeta os padrões de sono e de alimentação, fazendo com que as pessoas: n Acordem mais cedo do que o normal ou se sentindo cansadas por não repousarem à noite n Durmam muito mais do que o normal n Tenham pouco ou nenhum apetite n Ganhem peso por comer demais n Não achem graça na comida ou não sintam prazer em comer Pacientes deprimidos costumam ter problemas de concentração e de memória, além de dificuldade na tomada de decisões. É possível que não consigam se concentrar em um programa de televisão ou em um livro, nem consigam decidir o que vestir ou se assinam novamente a mesma revista, considerando essas decisões sufocantes e exaustivas. Os pa- Pelo menos 75% dos suicídios entre os portadores do transtorno bipolar ocorrem quando os pacientes se apresentam em fase depressiva ou estado misto.20 O Capítulo 2 inclui uma seção de avaliação de risco suicida (p. 31 a 33). 16 Suppes & Dennehy cientes em depressão relatam autoestima muito baixa e normalmente divagam sobre seus defeitos, falhas ou fracassos. Também relatam sensação de desesperança: crença de que nada jamais vai melhorar; pessimismo exagerado. Segundo a perspectiva do paciente Não consigo acreditar como sou produtiva! Hoje, por exemplo, são 2h15min da manhã e ainda estou mandando ver. Acabei de comprar umas decorações de natal pela internet, comecei a limpar a casa e preparei o almoço das crianças para a semana toda. Depois, vou arrumar a papelada do escritório. Fiz até exercícios! Espero que essa energia extra dure bastante. Não sei o que fiz para merecer isso, mas estou ótima. Sinto-me muito competente, feliz e produtiva; esta fase melhorou muito em relação ao inverno “deprê” que passei. Impacto específico dos episódios mistos Para informação sobre avaliação de risco suicida, ver páginas 31 a 33 Muitos pacientes também atravessam um quadro misto, com sintomas depressivos e sintomas de hipomania ou de mania simultâneos, ou com intervalo pequeno entre eles. Eles podem se apresentar bastante irritáveis e com humor depressivo, além de se sentir com muita energia e tomar decisões impulsivas. Os pacientes também podem manifestar sintomas mistos sem se enquadrarem totalmente nos critérios para mania ou depressão. O transtorno bipolar também pode ser acompanhado por alto risco de lesão e suicídio quando os sintomas permanecem sem tratamento, quando os pacientes não usam os medicamentos conforme prescritos ou quando apresentam resposta limitada ao tratamento.21, 22 Qual a incidência do transtorno bipolar? O Capítulo 3 revisita em detalhes as bases biológicas do transtorno bipolar. As últimas estimativas da prevalência do transtorno bipolar nos Estados Unidos indicam que 1,5% da população sofre da doença.20 Contudo, em média 30% das pessoas com transtorno bipolar foram diagnosticadas mas não recebem tratamento, não foram diagnosticadas ou receberam diagnóstico equivocado – normalmente portadores de transtorno depressivo maior isolado. Na Europa, onde há uma definição mais ampla que não exige o mesmo critério para a duração dos sintomas de hipomania ou de depressão, as estimativas são mais altas – um total de 5% da população.23 Além disso, fatores genéticos e ambientais podem causar ou intensificar a alteração. Os possíveis fatores ambien- Transtorno bipolar 17 tais incluem abuso de substâncias, problemas médicos (p. ex., flutuações na função da tireoide), eventos estressantes e estilo de vida que impeça a regulação do ciclo sono-vigília. As pesquisas também demonstram que a genética talvez seja um fator de influência para o transtorno bipolar.24, 25 Qual a chance de recuperação? O transtorno bipolar é uma doença recorrente e sem cura. Uma vez diagnosticada, são necessárias consultas e tratamentos continuados para reduzir os sintomas. O tratamento normalmente envolve um ou mais medicamentos. Os pacientes podem melhorar o prognóstico se: n Cooperarem com o profissional de saúde e seu plano de tratamento n Usarem os medicamentos conforme indicados n Detectarem alterações nos sintomas logo no início por meio do monitoramento do humor e dos comportamentos relativos ao transtorno bipolar n Melhorarem a química cerebral alimentando-se de maneira saudável e fazendo exercícios Portadores do transtorno bipolar sem tratamento geralmente são instáveis, com estados de humor desconfortáveis e imprevisíveis, assim como com alterações nos níveis de energia, no sono e no comportamento. Mesmo quando tratados, pode ser necessário ajustar a medicação conforme apresentem episódios ou sintomas novos. Contudo, com tratamento medicamentoso eficaz, muitos pacientes manifestam redução ou remissão dos sintomas. Este livro é dedicado aos profissionais da área. Os médicos que atendem pacientes com transtorno bipolar encontrarão aqui informações para complementar seu trabalho, conforme segue: n O Capítulo 2 aborda as técnicas de avaliação e diagnóstico, assim como o modo de se diferenciar o transtorno bipolar de outros transtornos com sintomas semelhantes. n Já o Capítulo 3 analisa as origens biológicas do transtorno, assim como abordagens de tratamento farmacológicas e outras formas de tratamento de base biológica. n O Capítulo 4, por sua vez, apresenta as abordagens de tratamento psicossocial utilizadas em associação com a terapia medicamentosa. n O Apêndice A apresenta os critérios do DSM-IV-TR para o transtorno bipolar. A interrupção repentina dos medicamentos prescritos pode piorar o transtorno bipolar, reduzindo a resposta do paciente à medicação no futuro e/ou aumentando a frequência dos episódios. 18 Suppes & Dennehy n O Apêndice B inclui informações detalhadas sobre os instrumentos de avaliação listados no Capítulo 2. n O Apêndice C apresenta uma amostra de automonitorização, um método autoaplicável para documentação dos sintomas do transtorno bipolar. Conceitos-chave 1. O transtorno bipolar é um transtorno do humor aparentemente causado por uma desregulação da química cerebral, que pode ser acentuada pela genética e por fatores ambientais. 2. O transtorno bipolar é caracterizado por flutuações de humor que variam de um paciente para outro em relação à duração, à intensidade, à ordem de ocorrência e à duração do período assintomático entre os episódios. 3. Quando os sintomas não são tratados, a adesão aos medicamentos é baixa; ou quando há baixa resposta ao tratamento, os pacientes podem apresentar alto risco de lesão autoinfligida ou suicídio. 4. Os pacientes normalmente não reconhecem os sintomas de mania, em especial quando esta piora e eles se tornam mais confusos, perdendo o contato com a realidade. Já os pacientes com sintomas de hipomania podem não relatá-los por considerá-los positivos e benéficos. 5. Há forte associação entre o transtorno bipolar e o abuso ou a dependência de álcool/substâncias, o que possivelmente significa um curso da doença potencialmente mais grave, com menor resposta ao tratamento. 6. O transtorno bipolar é uma doença recorrente e incurável, que pode ser tratada com medicamentos, de modo que o paciente possa ter relacionamentos e um estilo de vida mais estáveis.