REFRAÇÃO O que é melhor na correção da presbiopia? Há muitas possibilidades para compensar a presbiopia. O desafio é saber qual traz ganho real para o seu paciente Harley E. A. Bicas Professor titular da Universidade de São Paulo e-mail: [email protected] A capacidade de aumentar o poder focal do sistema óptico ocular (acomodação) – propriedade necessária à visão nítida de objetos situados a distâncias próximas – perde-se com a idade, menos em função da diminuição de força de contração do músculo ciliar (aliás, ao contrário, até descrita como aumentada, na presbiopia), mais pela perda de flexibilidade do cristalino. Assim, fica de princípio afastada a sonhada possibilidade de que, com exercícios apropriados, se possa evitar a presbiopia ou, tão somente, retardá-la. E como, por outro lado, ainda não é conhecido o “elixir da longa vida” com o qual se previnam os processos do envelhecimento (oxidações bioquímicas, desnaturações de proteínas etc.), as perdas de elasticidade da cápsula do cristalino e de seu conteúdo são, naturalmente, inexoráveis. Resta, pois, apenas compensar os efeitos da presbiopia. Lentes intraoculares Certamente, uma possibilidade é a de substituição do cristalino por uma lente intraocular, eventualmente articulada, ou flexível, para produzir as necessárias respostas dióptricas (lente “acomodativa” ou “pseudoacomodativa”); ou então por outra, rígida e fixa, com a qual se consiga uma multiplicidade de focos. Tanto uma quanto a outra já existem, mas nos dois casos sem a precisão dos processos naturais da acomodação. Ou porque a articulação da lente intraocular seja ainda precária, ou porque a multifocalidade (de origem difrativa ou refrativa) dependa de aberrações ópticas dela, aliás, uma condição que se procura evitar com as correções ópticas comuns. Por essas lentes, formam-se, principalmente, dois focos simultâneos, correspondentes a posições de objetos longínquos e próximos (lentes bifocais, difrativas), ou múltiplos focos, também simultâneos (Figura 1), correspondentes a um intervalo de distâncias entre as quais possa estar o objeto a ser olhado (lentes multifocais, refrativas). Gera-se a escolha do que deve ser eletivamente visto por um processo psicossensorial de mudanças da atenção visual. De qualquer modo, os riscos de uma intervenção cirúrgica específica para a compensação da presbiopia (isto é, a de substituição de um cristalino ainda suficientemente transparente por um desses artefatos) não são ainda encorajadores desse procedimento. Que fica, então, eventualmente, limitado como opção às condições de substituição do cristalino possuidor de opacidade já avançada (cirurgias de catarata). Mesmo nesses casos, entretanto, ainda é comum a preferência pela implantação da lente intraocular monofocal tradicional, para se evitar ocorrências fotópticas (visão de halos, ofuscamento, menor nitidez das imagens), relatadas, costumeiramente, com as lentes multifocais. Cirurgias refrativas (corneais) Com o cristalino in situ (ainda transparente, mas já inelástico), ou com uma lente que o substitua (inarticulada e unifocal), a compensação da presbiopia deve, portanto, originar-se de outros recursos “externos”. A possível modelagem da superfície anterior da córnea (cirurgia refrativa, em sentido estrito), específica para a correção da presbiopia, não se mostra ainda disponível e tudo indica a dificuldade de se poder caminhar nesse sentido, principalmente porque a eventual multifocalidade então requerida (anéis difrativos, ou refrativos com diferentes curvaturas) seja de consecução bem mais difícil que a de uma lente intraocular. Por outro lado, as possíveis aberrações ópticas suscitadas por uma cirurgia refrativa convencional podem ser de tal magnitude a permitir o relato da multifocalidade. Mas o efeito é acidental, imprevisível e, em geral, indesejado. Em algumas instâncias, chega-se a propor a cirurgia corneal direcionada à visão para perto por um dos olhos (a chamada monovisão, assunto ao qual retornaremos), seja por implantação de uma lente própria (lente intracorneal, uni ou multifocal), seja pela implantação de diafragma multiperfurado (orifícios estenopeicos, para aumento da profundidade de foco), seja por simples modelagem da superfície anterior da córnea (miopização). Obviamente, a discussão remete-se a sobre se convêm procedimentos “invasivos”, quando outros, menos arriscados, mais simples e tidos como mais eficazes, possam ser usados. Lentes de contato Por exclusão, sobram como procedimentos clínicos os dos recursos ópticos das lentes convencionais ou de contato. As de contato seguem dois princípios básicos: o de se conservarem fixas relativamente à córnea, o que enseja a aplicação dos mecanismos das aberrações já comentados (ficando uma parte central, circular, para a fixação à distância e uma anular, circundante, para a visão de objetos próximos); ou de serem móveis, aproveitando o princípio que rege o uso das lentes multifocais (ou bifocais) convencionais. Lentes convencionais Realmente, a obtenção de um foco nítido fica restrita à possibilidade de que a imagem foveal (alinhada ao objeto de atenção visual pelo eixo visual) seja formada por uma lente, idealmente asférica e com mínimas aberrações (e.g., cromática, astigmática). Sabe-se que, assim mesmo, é impossível a obtenção de imagem puntiforme de um ponto objeto do espaço, pelo fenômeno da difração, intrínseco à própria natureza da luz. Desse modo, para um foco nítido a certa distância “x” (e, como assumido, sem o recurso da acomodação), é necessária uma lente “X”, enquanto outra distância “y” requer uma lente de poder dióptrico “Y” e assim sucessivamente. Para se ver bem “longe” ou “perto” (duas distâncias), são necessárias duas lentes apropriadas (impropriamente chamadas como “uma” bifocal). Para três distâncias específicas (“longe”, “perto” e “intermediária”), são necessárias três lentes diferentes e específicas (“uma” lente trifocal) etc. Isso foi (e ainda pode) ser satisfatório como compensação de dificuldades ópticas de presbíopes. Mas a multifocalidade, a circunstância que efetivamente compensaria a falta de ajustamento focal do olho para as múltiplas (quaisquer) distâncias egocêntricas ao objeto de atenção visual, só pode ser obtida por uma única lente se ela tiver múltiplos pontos focais, isto é: aberrações! É claro que as lentes multifocais convencionais mostram uma aberração óptica diferente da simples aberração esférica e da encontrada nas lentes intraoculares (Figura 1), tanto que são reconhecidas como se não apresentassem essas inconveniências. De fato, a lente multifocal convencional é fabricada de modo a possibilitar que os diferentes pontos de uma linha vertical que passe pelo seu centro óptico possuam curvaturas progressivamente maiores (raios de curvatura menores) e com comprimentos focais apropriados às distâncias dos objetos para os quais a formação das respectivas imagens sobre a retina (visão nítida) é requerida. Em outras palavras, na dependência do ponto da lente a ser atravessado pelo eixo visual, cuja inclinação é considerada relativamente ao eixo longitudinal (ântero-posterior) dela, há um poder dióptrico específico à visão nítida a uma respectiva distância ao objeto do olhar (Figura 2). Essa possibilidade de ajustamento focal pelo olhar através de diferentes “alturas” da lente supre o que se perde pela presbiopia. Como o método é simples, eficaz e não invasivo, pode ser considerado como bem satisfatório para os fins buscados. Pseudoacomodação Uma das técnicas mais simples para a produção de visão nítida a diferentes distâncias é a de aumento da profundidade de campo (no espaço) ou de foco (na retina, no caso do olho, ou no plano focal da câmara fotográfica) pela redução da entrada de luz por um diafragma com um, ou mais, opérculos (orifícios estenopeicos) (Figura 3). Assim, resolve a falta de um mecanismo de ajuste focal num sistema óptico (como o da acomodação, no caso do olho, ou o do ajustamento “zoom”, em máquinas fotográficas). A própria pupila, ao ter seu tamanho reduzido (miose, por agentes parassimpaticomiméticos, como a pilocarpina), pode ser aproveitada para a obtenção desse efeito e, aliás, isso explica a demonstração paradoxal de “acomodação”, até com razoável amplitude, em circunstâncias em que essa função inexiste. Mas a partir de diâmetros muito reduzidos (aproximadamente 1,6 mm) passam a prevalecer fenômenos difrativos, deteriorando a qualidade da imagem. Há, sobretudo, como fator limitante ao aproveitamento desse recurso, a redução de campo visual. De resto, restrições ao uso de fármacos sem que haja “doença” e pelos riscos de que possam provocar nocividades (por exemplo, descolamentos de coroide, ou retina, pela contínua tração do corpo ciliar), contraindicam essa aplicação. Curiosamente, esse princípio dá sustentação tanto aos efeitos do tosco diafragma opaco e multiperfurado vendido em feiras livres como solução para algumas ametropias e presbiopia, quanto aos de sofisticados recursos ópticos de última geração de lentes intraoculares ou de contato... Monovisão Monovisão Um comentário adicional deve ser feito sobre a “solução” alternativa para a presbiopia, conhecida como monovisão, e que propõe, simplesmente, deixar de corrigir uma anisometropia de 3D, ou produzi-la artificialmente, corrigindo opticamente um dos olhos “para longe” e prescrevendo ao outro a lente com a adição conveniente “para perto” (ametropia + 3D, por exemplo). Isto é, “miopizando” um dos olhos (para longe) de modo que ele tenha sua distância focal adequada “para perto”. Geralmente isso é feito para que o presbíope não use óculos e, pois, as correções ópticas oculares respectivas são feitas por lentes intraoculares e, ou de contato. A principal inconveniência dessa anisometropia artificialmente induzida é a de pauperização da visão binocular, pela dissociação das distâncias em que se dá a visão nítida de cada olho, com prejuízos da estereopsia fina e dos mecanismos de fusão, eventualmente causas de queixas. O que é melhor na correção da presbiopia? Finalmente, chega-se à questão que dá título a esta matéria e cuja proposição é um desafio, não apenas a conhecimentos oftalmológicos, mas a filosofias com que se entendem a medicina e a própria vida. O que é melhor? O próprio termo traz, implícita, a idéia de comparação, de relativização, o que suscita escalas diferentes, sejam elas de valores puramente técnicos, sejam de naturezas diversas. Numa cultura que parece cada vez mais personalista, “melhor” seria aquilo sobre o qual deve decidir o próprio interessado. “Pergunte-se-lhe o que ele quer e, desde que se possa satisfazê-lo, façamos.” Por exemplo, que mal haverá na monovisão, se o paciente suportá-la, preferindo-a à demonstração de que precisa de óculos? Essa solução, afinal, seria a melhor para essa pessoa... Mas tal “liberdade” de escolha fica, obviamente, sujeita à sua potencialidade, isto é, à quantidade de recursos (informações, dinheiro, condições de aproveitamento etc. etc.) de que se dispõe para a decisão. Por isso alguém vai ao médico, consultá-lo, o que, geralmente (!), significa: “O senhor dispõe de mais informações e conhecimentos sobre o assunto do que eu. Decida por mim!”. E aí entra o médico, com suas virtudes e pecados, suas cautelas e ousadias, suas vivências e necessidades, suas certezas e dúvidas. De qualquer modo, o “melhor” será sempre fruto de um julgamento que ocorre subjetivamente. Pode-se até fazer um levantamento de opiniões para “objetivar” a resposta, mas isso apenas referirá como está constituído aquele grupo escrutinado. Assim, “o que é melhor” apenas reflete a minha resposta. Que procurarei dá-la, com base em algumas regras (na tentativa de buscar a objetividade) e tautologias. “Primum non nocere”, torname cauteloso quanto aos possíveis danos e cético quanto às possíveis vantagens de intervenções “invasivas”, como a de substituir cristalinos transparentes, ou fazer cirurgias (refrativas, ou de expansões esclerais) para a correção da presbiopia. Sobre as conveniências sociais de esconder a necessidade do uso de correções ópticas, confesso-me tolerante, o que não me faz reprovar o uso da “monovisão”, embora entenda que a prescrição não esteja a serviço da natureza de ver bem e simultaneamente, com os dois olhos. Tolerável, mas, seguramente, não o melhor. Por essa mesma razão (ver bem), considero que artefatos que oferecem múltiplas alternativas para o cérebro selecionar uma dentre elas (lentes de focos bi ou multifocais simultâneos, isto é, aberrantes), ainda que opções elegíveis pelo interessado, não correspondem ao que comumente se espera de uma boa correção óptica. A perda de campo visual para aumento da profundidade de foco (e campo) é, igualmente, uma troca, não um ganho. Resta-me, pois, ficar com as lentes multifocais de focos individualizados, isto é, as convencionais ou as de contato, como as que perfazem a melhor solução óptica (repito, e com negrito, óptica) para a presbiopia. E, entre elas, as convencionais, por seu mais fácil manuseio, aceitação e resultado. Que as pessoas prefiram não usá-las, respeito. Mas, no meu íntimo, lamento que elas possam querer esconder a realidade e sentir vergonha de um processo natural, o do envelhecimento, sobre o qual deveriam, ao contrário, se orgulhar... Aliás, dizer que a presbiopia é coisa de velho é mera convenção... A presbiopia começa com o nascimento, não a partir da “meia-idade”, apenas uma circunstância em que ela se manifesta (e tão somente pela coincidência de que a acomodação passe a se reduzir a menos de 3D, condição que, para a maioria da população, é a da distância da leitura e da escrita) (Figura 4). Crianças e jovens com hipermetropias relativamente altas e embora ainda acomodando (como os presbíopes “velhos” acomodam, até idades bem mais provectas) já apresentam esses efeitos da perda progressiva do poder acomodativo, bem antes. Pois tal “presbiopia” precoce, não se trata com lentes “comuns” (convencionais ou de contato)? Crédito Imagens: reprodução