39º Encontro Anual da Anpocs GT07 - Conflitos ambientais, Estado e ideologia do desenvolvimento: mediação e luta por direitos Subjetivação política e assujeitamentos em tempos de seca urbana no sudeste brasileiro: cenas de dissenso no espaço público Frederico Vieira 1 Resumo: O artigo adota como ponto central a investigação dos sujeitos e de suas subjetividades estético-políticas reveladas pelo conflito de interesses entre sociedade, Estado e iniciativa privada no uso e gestão das águas. Centra-se na análise das cenas de dissenso presentes nesse campo, seja pela pluralidade e singularidades subjetivas que expressam, seja pelos assujeitamentos políticos e sociais promovidos na disputa pela água. O contexto analisado considera o recente período de seca no Brasil, especialmente no espaço urbano paulista, em que a inédita escassez ou a falta absoluta de água é responsável por uma reconfiguração das relações entre os sujeitos, e mesmo por profundas transformações sociais e territoriais. A análise elege como ponto de partida as imagerias e escrituras circundantes da cena de dissenso "Sereia da Cantareira", em que a linguagem online de um irônico protesto enuncia e narra, em texto, som e imagem, os tipos e modos de subjetivação gerados no bojo das tensões próprias ao contexto da estética e da política na situação da seca. Palavras-Chave: Sujeitos; Subjetivação; Cenas de Dissenso; Água; Seca no Brasil Na contemporaneidade, diante dos enormes avanços tecnológicos e do entranhamento desses em nossas vidas, paradoxalmente padecemos dos efeitos degenerativos que o projeto de modernidade impôs sobre nós e sobre o mundo que habitamos. A escassez ou falta d´água, por exemplo, é um sintoma cabal da distrofia tecnológica construída pelo insaciável sistema de produção capitalista. Na maior parte do tempo, explorando de forma excessiva as benesses finitas disponíveis na natureza, os sujeitos se movem nesse ambiente online-offline e se valem de uma infinidade de dispositivos para sustentarem um modo de vida predatório. Infelizmente, ao que tudo indica, caminhamos para um aprofundamento do colapso, já em curso, das formas de vida no planeta. Desde o Relatório de Brundtland, também conhecido como Nosso Futuro Comum1, produzido nos anos 80, até a mais recente noção de decrescimento sustentável, defendida por Latouche (2009), que advoga princípios como a frugalidade, a sobriedade, até mesmo certa austeridade no consumo material, a discussão sobre os limites do crescimento é colocada em cheque pela própria natureza, da qual, queiramos ou não, dependemos. 1“O Relatório, elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas, faz parte de uma série de iniciativas, anteriores à Agenda 21, as quais reafirmam uma visão crítica do modelo de desenvolvimento adotado pelos países industrializados e reproduzido pelas nações em desenvolvimento, e que ressaltam os riscos do uso excessivo dos recursos naturais sem considerar a capacidade de suporte dos ecossistemas.” Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_Brundtland, acessado em 1/11/20014, às 8h54. 2 Essa concepção do decrescimento não é de modo nenhum um antihumanismo ou um antiuniversalismo. Entre tratar os animais e as coisas como pessoas (o que o animismo faria) e tratar as pessoas como coisas à maneira da tecnoeconomia moderna, há espaço para o respeito das coisas, dos seres e das pessoas. Talvez devêssemos falar de um ahumanismo, como eu falo de a-crescimento. (LATOUCHE, 2009, p.147) As evidentes mudanças climáticas globais parecem não ser suficientes para gerar uma efetiva mudança de comportamento social nas mais diferentes esferas – iniciativa privada, poder público e sociedade civil – pela redução dos fatores degeneradores da vida. Ao contrário, o que se assiste? O avanço sistemático desses e uma inoperância, ou incompetência, dos governos e das organizações internacionais no sentido de estabelecer limites reais ou reduções drásticas para tais fatores, em todo o mundo.2 Sabe-se que a questão da escassez e da falta d´água, em particular, está diretamente ligada à imagem do futuro catastrófico, tendo como uma de suas principais causas as mudanças climáticas globais. No Brasil, a histórica notícia, amplamente divulgada nos sistemas de comunicação social em outubro de 2014, sobre o esgotamento da principal nascente do São Francisco, situada no município de São Romão, na Serra da Canastra, em Minas Gerais, é uma imagem significativa de nosso momento histórico. Um demonstrativo da gravidade do que estamos a enfrentar, já que nunca antes isso ocorrera àquele que era, há menos de um século, conhecido (e temido!) pela força de suas águas – o Velho Chico, marca pulsante do universo roseano. A imagem da fonte seca concretiza o fim de um tempo e inicia, por outro lado, outra inexorável temporalidade marcada pela sede, à revelia dos nossos desejos ou súplicas. Mas além do Rio, os efeitos perniciosos da degradação e das mudanças climáticas têm atualmente impactado áreas urbanas com intensidade como nunca antes observado. Usualmente vinculadas às áreas rurais, especialmente ao semi-árido nordestino, as 2 As sucessivas Conferências das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP) realizadas na última década têm apresentado, invariavelmente, resultados aquém do que seria necessário para frear as catástrofes climáticas que vêm se intensificando ano a ano. Segundo o Greenpeace a 19a COP, realizada em Varsóvia em novembro de 2013, encerrou seus trabalhos de forma frustrante, superando “as baixas expectativas das quase 200 nações presentes”. A COP-19 objetivava criar os fundamentos básicos para a construção de um novo acordo global pela redução das emissões de carbono entre outros aspectos a ela relacionados, a ser assinado em 2015, em Paris, e que irá substituir o Protocolo de Kyoto, e que vigorará a partir de 2020. Disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Fracasso-da-COP-19-superaprevisoes/, acessado em 1/11/2014, às 9h40. 3 imagens e textos circulantes na mídia sobre a seca e a sede agora são vistas por nós no cenário dos grandes centros urbanos. Outrora o agricultor de subsistência, o retirante, as viúvas da seca protagonizavam nos meios de comunicação massivos ou na web a circulação de retratos e relatos da sede, com suas aparições fantasmáticas em rostos sulcados, texturas cáusticas, cores de terras ressequidas. Hoje o espectro se ampliou e as metrópoles, já sedentas, apresentam um elenco diversificado de rostos que aparecem no cenário da seca. São múltiplos os fatores envolvidos na falta d´água enfrentada pelas grandes cidades do sudeste brasileiro. Os fatores naturais, tais como a escassez das chuvas, não respondem sozinhos pela falta d´água: a ela se deve somar a pressão exercida pelo aumento do consumo de água proporcional à crescente densidade populacional dos grandes centros; a impermeabilização do solo coberto por asfalto e construções que não consideram com a necessária seriedade os aspectos ambientais; o descarte/despejo indiscriminado de lixo e esgoto nos cursos d´água, poluindo-os, assoreando os leitos e impactando a manutenção de matas ciliares, das ictiofaunas e de biomas que conservam as condições básicas dos mananciais; o desperdício institucionalizado pelos sistemas de abastecimento das capitais que, devido à manutenção precária e à gestão pública irregular, respondem pelo descarte de aproximadamente metade do volume captado 3, multiplicando-se os vazamentos nas tubulações. Esses e outros fatores caracterizam o retrato desolador de uma cultura do excesso que devora a si mesma, despreocupada com o futuro imediato – e que dirá com o das próximas gerações. Mais que um manejo estratégico de políticas públicas relacionadas à gestão da água, entendemos que nosso modelo civilizatório precisa ser revisto, na perspectiva de um decrescimento que considera a água não como um simples recurso natural, do qual o homem pode dispor como bem entenda, sem medir os impactos que sua ação predatória produz no todo. O desenvolvimento humano está intimamente interligado aos ecossistemas e à manutenção das condições de vida no planeta. Tentativas de se normatizar o uso racional da água, mas ainda compreendendo-a como um recurso natural, foram envidadas por organismos internacionais, a exemplo da “Declaração dos Direitos Universais da Água” publicada pela Organização das Nações 3 http://guiadoestudante.abril.com.br/crise-hidrica/, acessado em 28/9/15, às 15h57. 4 Unidas, no ano de 1992. De seu texto destacam-se noções como valor econômico, patrimônio e herança de nossos predecessores que, embora sejam louváveis do ponto de vista jurisdicional, não promovem a necessária ruptura com o entendimento da água como um bem a ser instrumentalizado, explorado, manejado. Diferentemente da perspectiva tecnicista ocidental, a água em outras culturas4 traz consigo a ideia de um ente sagrado, uma forma de vida poderosa e de quem dependemos. Nada mais verdadeiro que isso, todavia parece-nos que o desenvolvimento tecnológico fez-nos sofrer de uma cegueira condicionante que substitui a causa pelo efeito e que faz girar, em volta do homem, todo o mais qualificado como não-humano. Nos últimos cinquenta anos assistiuse, no campo jurídico, por exemplo, a ascensão do Direito Ambiental a partir de pioneiro ativismo internacional, mas cuja tradição hermenêutica cria um campo de proteção do meio ambiente ainda fortemente condicionado à atuação humana. Para Barros (2008): [...] somente depois que fatos graves ocorreram, todos causados por intervenção humana na busca de um desenvolvimento industrial desmedido, e que vozes de peso soaram alertando para os perigos que esses ataques ao meio ambiente pudessem produzir efeitos para toda a humanidade, é que se começou a tomar consciência da necessidade de se criar organismos políticos e estruturas jurídicas para protegê-lo. (BARROS, 2008, p.21). Um último, mas não menos importante aspecto a ser considerado nesse contexto, são as tensões e conflitos decorrentes das disputas pelo controle e uso de mananciais. Há uma tendência de que a visão da água como um patrimônio público se dilua na “maré” dos direitos privados, na qual as preocupações do Estado, antes de atender às demandas de interesse público da sociedade, acabem por beneficiar corporações que comercializam a água. Em todo o mundo, legislações ambientais fracas ficam reféns de empresas transnacionais que ganharam acesso a sementes, minerais, madeiras e corpos d´água, promovendo um verdadeiro cerco à propriedade pública. Para Barlow (2015), a comercialização mundial da água revela uma privatização que desafia a doutrina do fundo público. A autora contesta o argumento favorável ao comércio de água ancorado no mainstream das políticas econômicas, as quais defendem uma precificação da água baseada no mercado, o que promoveria o incentivo para os usuários realocarem recursos 4 Sabe-se que muitos povos indígenas brasileiros, por exemplo cultuam corpos d´água, nos quais acreditam viverem seres como iara, mãe d´água e entidades espirituais ligadas à natureza. Também na África e na Ásia essa relação é encontrada na figura de potestades e deidades, como o são os Orixás e divindades do hinduísmo. 5 de atividades de baixo valor para atividades de alto valor: Na prática, no entanto, o comércio de água permite que os grandes agronegócios, empresas de água engarrafada e outros grandes usuários de água, comprem direitos à água para usá-los eles mesmos ou vendêlos no mercado aberto para investidores e estrangeiros. A água que um dia foi de propriedade pública e um fundo público agora está separada da terra e da sua bacia hidrográfica e é negociada entre compradores e vendedores – a um curto passo de distância de um mercado amplo e aberto da água como mercadoria. (BARLOW, 2015, P.79, grifo nosso) Borlow (2015) ainda acrescenta que publicações das Organizações das Nações Unidades como o “Relatório Mundial de Desenvolvimento da Água” estão profundamente influenciadas por interesses do setor privado. Segundo ela, houve interferência direta do setor industrial no desenho das partes do relatório sobre “negócios, comércio, finanças e envolvimento do setor privado”. (p.93) Em nível local, no sudeste brasileiro, a falta d´água que São Paulo vem enfrentando nos dois últimos anos também reflete esse mesmo jogo de interesses que, em grande medida, subsume o público nos meandros do privado. Um dos elementos indicativos dessa tensão é a falta de transparência das informações disponibilizadas pelos órgãos públicos paulistas responsáveis pela administração do Sistema Cantareira5, sobretudo nos dois últimos anos. A accountability social e política é atravessada pelas articulações eleitorais e pelo manejo estratégico da imagem pública dos candidatos; curva-se perante os interesses particulares. Como se sabe, empresas e corporações financiam campanhas políticas, as que garantem a eleição dos representantes que, na gestão da coisa pública, atuam de acordo com os desígnios da iniciativa privada. Conforme conclusões de estudo encomendado pela ONG Artigo 19 Brasil 6, há 5 “O Sistema Cantareira é o maior dos sistemas administrados pela Sabesp, destinado a captação e tratamento de água para a Grande São Paulo e um dos maiores do mundo, sendo utilizado para abastecer 8,8 milhões de clientes da Sabesp.O sistema é composto por seis barragens interligadas por um complexo sistema de túneis, canais, além de uma estação de bombeamento de alta tecnologia para ultrapassar a barreira física da Serra da Cantareira.[5] O sistema chama atenção ainda pela distância de sua estrutura em relação ao núcleo urbano ao qual ela serve e também pela extensão da sua área de drenagem, que se estende até o sul do estado de Minas Gerais.” Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_Cantareira. Acesso em 30/9/15, às 20h30. 6 A Artigo 19 é uma Organização Não-Governamental que “trabalha para que todos e todas, em qualquer lugar, possam se expressar de forma livre, acessar informação e desfrutar de liberdade de imprensa.” Criada em Londres em 1987 e com atuação em mais de 30 países, sua denominação refere-se ao Artigo 19°. da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece: “Todo indivíduo tem direito à 6 dificuldade no acesso e na compreensão das informações divulgadas pelos órgãos públicos paulistas, por vezes controversas. Na pesquisa desenvolvida pela organização, as maiores dificuldades encontradas foram a falta de notas e declarações oficiais acerca das medidas que estavam sendo consideradas a fim de se reduzir o consumo de água, sobretudo da Sabesp e do Governo do Estado de São Paulo, que pudessem corroborar com as informações obtidas pela mídia. Também os pedidos de informação sem resposta ou com resposta incompleta e/ou genérica mantêm obscura “boa parte daquilo que a população tem o direito de saber a respeito da crise” (p.40). A autora do estudo, Amanda Martins (2014), ressalta que isso instaura um clima de incerteza e falta de credibilidade. Se, de um lado, isso [a falta de transparência] pode vir a fortalecer os laços da sociedade civil, no que diz respeito à expansão da cidadania digital, ao buscar formas de minimizar a assimetria de informação, por outro, enfraquece o próprio sistema político e dificulta a tomada de decisões de forma democrática, resultando em uma crise de representação. (MARTINS, 2014, p.40, grifo nosso) Além disso, o mesmo estudo aponta que o ônus da economia de água, a diminuição de sua utilização nas atividades do dia a dia, é pago pelas populações de baixa renda, que residem, em sua maioria, em bairros periféricos, sem a penalização dos usuários das áreas mais nobres da capital paulista que não reduziram o consumo, conforme constatado à época da pesquisa. Para os moradores dos bairros de classe média-alta e alta de São Paulo, a variação do valor pago pelo serviço de abastecimento não impacta a renda familiar. Por outro lado, nesses locais ditos “mais nobres”, a água menos falta. Eis um clássico caso de injustiça ambiental. Novamente, o eixo de disputa centro-periferia afeta a vida dos sujeitos que, diante das questões ambientais como a da seca urbana, da crise hídrica, se vêm oprimidos e em condições de subalternidade. Diante de tudo isso, como destacam Mendes et al. (2014, p.58, 59), há uma debilidade do sujeito contemporâneo que deve encarar “a complexidade imposta por uma vida “globalizada” e a sensação de um futuro catastrófico (aquecimento global, potencial de aniquilação por armamentos nucleares etc.)”. Os sujeitos na vida online-offline são liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão." O escritório brasileiro da organização foi aberto em 30 de março de 2007, em São Paulo. Disponível em: artigo19.org., acessado em 30/9/15. 7 desafiados a ajuizar, dentre as representações diversas da realidade, aquelas que lhes parecem mais ou menos adequadas, o que os fazem se portar no presente, ou alienados sobre o que se passa, ou diante da tomada de ações possíveis; se posicionam de forma “pertubadoramente indecisa”, já que há impedimentos claros “a quaisquer prognósticos que passam a ser não só falíveis, mas indesejáveis”. Nessa toada, nas redes sociais online surgem manifestações estético-políticas, como é o caso da marchinha de carnaval “Sereia da Cantareira”7, com vistas a articular discursos e ações entre cidadãos que padecem com a escassez ou falta de água. Embora a priori “a parte dos sem parte” (RANCIÈRE, 2005) nesse regime de aparições e aparências no espaço público seja reservada pelo sistema social aos sertões urbanos – onde se encontram favelas, os favelados, os moradores de periferias, nas quais o abastecimento e o saneamento básico são, geralmente, deficientes – dessa vez a reconfiguração de sentidos, provocada pela escassez da água, ocasiona um deslocamento diverso do habitual. A sede ocupa novos territórios, do campo para a cidade e da periferia para o centro e produz (ou desentranha?) a cena política dissensual vivida pelos sujeitos nos ambientes online e offline. Água: onde? Para quem? Face o exposto, a grave e urgente questão da seca nos espaços urbano e rural – ou da crise hídrica8 como querem os governos – nos convoca à investigação sobre as possibilidades de subjetivação e assujeitamento nesse cenário. As barragens se esgotam, os cemitérios de automóveis vêm à tona nas imagens e textos online enunciando o assombro das elites e dos governos por meio da exposição de suas carcaças e dos seres míticos que povoam o universo simbólico da comunicação intersubjetiva. 7 Composição produzida para o Carnaval 2015 dos blocos de rua da capital paulista, “Sereia da Cantareira” tem autoria coletiva, incluindo-se no grupo de autores o cantor Marcelo Jeneci. A marchinha foi vencedora do concurso que elegeu a canção-tema do bloco “Nóis Trupica Mais Não Cai”. Também deu origem a um novo bloco, o “Sereias do Cantareira” que estreou em 7 de fevereiro, no Centro de São Paulo. In: http://g1.globo.com/sao-paulo/carnaval/2015/noticia/2015/02/musa-de-bloco-que-ironiza-seca-em-spdefende-beleza-como-brincadeira.html, acessado em 21/03/2015, às 12h45. 8 De acordo com o Informe 2014 da Agência Nacional das Águas (ANA) sobre a Conjuntura dos Recursos Hídricos: “Na Região Nordeste, por exemplo, especificamente na região Semiárida, a criticidade hídrica se deve principalmente a fatores naturais como a reduzida pluviosidade anual e as altas taxas de evapotranspiração, que favorecem uma menor disponibilidade hídrica nos rios (...) Já a Região Sudeste apresenta algumas bacias hidrográficas com problemas de criticidade mais relacionados à alta demanda e à poluição hídrica (principalmente devido ao lançamento de cargas orgânicas nos cursos d’água) do que a fatores naturais relacionados à disponibilidade hídrica. Esta é uma consequência direta da maior concentração populacional existente na região (ali residem 42% de toda população brasileira, além da maioria de seus habitantes, cerca de 92%, estarem em áreas urbanas).” Disponível em: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/crisehidrica.pdf, acessado em 28/9/15, às 17h26. 8 Finalmente, é preciso considerar que hoje as dimensões subjetivas da aparição de corpos, de rostos, das identidades individuais, grupais ou coletivas, são afetadas pelo acesso, tempestividade, capilaridade e hiperconectividade dos conteúdos transacionados entre sujeitos por meio de seus dispositivos e páginas pessoais das redes sociais na web. Isso não quer dizer que o espaço da web constitua-se alheio ao mundo offline, ao contrário; o ser e aparecer virtuais são tributários da experiência direta e imediata, da presença e vida dos homens no mundo, que por sua vez é também modificado pelo universo online. Entendemos que essa espécie de modus operandi social dos sujeitos que vivem em regime de itinerâncias entre o online e o offline é o motor que faz girar a roda das subjetividades contemporâneas, cujas presenças encontram-se manifestas nos signos que sustentam a presença e a ausência, na web ou fora dela, a um só tempo ou em temporalidades diversas, entre o estético e o político. O dissenso em cena O espaço público visto a partir de suas múltiplas arenas se constitui como instância, por excelência, do encontro e embate dos múltiplos interesses estéticos e políticos de atores sociais, dos sujeitos e das instituições que conformam o Estado e a sociedade, viabilizando a construção discursiva das alteridades e de suas relações intersubjetivas, em particular no âmbito dos conflitos ambientais. Por vezes lesionadas, ignoradas ou invisíveis, as alteridades se reificam em mesmidades construídas pela tirania do universal sobre o singular. Como alerta Lévinas, Nesse mundo sem multiplicidade, a linguagem perde toda a significação social, os interlocutores renunciam à sua unicidade não desejando um o outro, mas desejando o universal. (…) Ao completar a sua essência de discurso universalmente coerente, a linguagem realizaria ao mesmo tempo o Estado universal, onde a multiplicidade se incorpora e onde o discurso se acaba, à falta de interlocutores (LEVINAS, 1998, p.194-5, grifo nosso). Entretanto, esse aspecto universal da linguagem denunciado por Levinas, que muitas vezes incorpora e totaliza outrem – sobretudo o subalterno, o periférico, o excluído – encontra possibilidades de “fratura” naquilo que Jacques Rancière nomeará cenas de dissenso, conceito central no pensamento desse autor. Para Rancière, a base do dissenso localiza-se na polêmica; assim, uma cena dissensual se constrói no momento em 9 que “ações de sujeitos que não eram, até então, contados como interlocutores, irrompem e provocam rupturas na unidade daquilo que é dado e na evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível” (RANCIÈRE apud MARQUES, 2014, p.73). As cenas dissensuais possibilitam o protagonismo da ação do sujeito e de sua capacidade de ruptura com estruturas sociais a priori definidas. Rancière nomeia ainda regime da polícia como aquele que obrigatoriamente dissipa o dissenso, forçando a ordem social dos nomes, ligando isto a aquilo, assujeitando pessoas a padrões de subjetivação unívocos e totalizantes. Isentos da polêmica, os discursos encampados pela ordem policial produzem imagens consensuais que fixam limites à produção expressiva dos sujeitos, impedindo a “confusão” de nomes que a cena de dissenso contém. Assim, por exemplo, a identidade do proletário, originalmente ligada aos nomes salário, máquina e produção, ao romper com a ordem da polícia passa à poesia, ao contemplar e ao criar, como Rancière (1988) muito bem expõe em sua obra “A noite dos proletários. Arquivos do sonho operário”: Mais sutil e menos angustiado, nosso desejo de que cada um fique no seu lugar, se expressará mais discretamente: na insistência em julgar – conforme o caso – os gestos dos trabalhadores muito mais cultos do que seus discursos, sua disciplina mais revolucionária do que suas exaltações, suas risadas mais rebeldes, do que suas reivindicações, suas festas mais subversivas, do que seus motins, enfim, sua fala, tanto mais eloquente, quanto mais muda for e sua subversão, tanto mais radicais, quanto mais imperceptíveis forem as marcas deixadas na superfície da ordem cotidiana. A esse preço os deuses estão na cozinha, os operários são os nossos mestres e a verdade mora no espírito das pessoas simples.(RANCIÈRE, 1988, p.27, grifo nosso) O regime da política, a seu turno, opera justamente no campo de dissenso, do (in)comum; o político confunde nomes e papéis, estabelecendo a intriga necessária a reconfiguração do que se partilha socialmente. O regime da política, em suma, privilegiaria a multiplicidade de interlocutores em detrimento da unicidade universal. Como veremos adiante, seca e sertão são da ordem do consenso, da polícia, enquanto seca e urbe intrigam enquanto correspondentes, produzem a intriga política. Além disso, o autor não desvincula as práticas políticas das estéticas; para ele a ética neutraliza a política e a constituição do sujeito político. Rancière afirma que “a 10 comunidade política tende a ser transformada numa comunidade ética, que junta povos e partes singulares em um único povo que é supostamente contado como igual”. (RANCIÈRE, 2010, p. 184, grifo nosso). Ainda segundo Rancière (1995, p.59), a subjetivação é entendida como “a produção, por uma série atos, de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis em um campo de experiência dado, cuja identificação está ligada à reconfiguração do campo da experiência”. Nesse viés, vai-se além da argumentação racional e das justificações discursivas professadas pelos sujeitos e atores sociais no espaço público. A política apresenta, portanto, uma dimensão criativa, poética a ser explorada. Pela (des)ordem política, os interlocutores são capazes de aparecer e de performar publicamente por meio de suas produções estéticas, individuais ou coletivas, que reconfiguram as relações sociais e de poder. A imagética advinda dessas manifestações acorre em favor das alteridades, de uma desidentificação identitária da ordem policial vigente rumo a outrem, à “confusão dos nomes” e da (re)partilha do sensível entre as partes envolvidas na problemática do dissenso. Como alerta Marques (2014): O indivíduo que se expressa discursivamente constitui-se como sujeito ao alcançar status de interlocutor, ao criar e integrar uma cena polêmica enunciativa na qual o que está em jogo não é unicamente a reivindicação de identidades, mas a identificação de posições de sujeito pelas quais o indivíduo transita, encontrando a si mesmo nos hiatos entre nomes, visibilidades, ditos e não ditos. Ao falar, os indivíduos se tornam sujeitos perpassados por linhas de força que, ao se entrecruzarem, colocam em contato dinâmicas de assujeitamento e de subjetivação. (MARQUES, 2014, p. 131, grifo nosso) Assim, a construção de sentidos presente nos gestos estéticos dos internautas, ou relatados em conteúdos online, desenham uma espécie de cartografia a partir dos enunciados visuais e textuais que expõem novos tipos e modos de subjetivação política. Por isso, em pesquisas sobre questões ambientais e sobre dilemas delas derivados, é relevante se considerar as influências advindas dos sujeitos, da formação cultural, educacional, das possibilidades de acesso e de engajamento social, entre outros aspectos os quais não se concentram exclusivamente na esfera online. Perfilando-se nas plataformas da web, muitas vezes os sujeitos passam a ser, eles mesmos, espécie de mensagem do processo político-comunicacional. Esse eu expandido, conectado, que trata de questões de interesse público por meio da exposição pública de sua própria figura, 11 estabelece vínculos com outros, utilizando-se dos repertórios comunicativos que domina, resultado de sua formação familiar, educacional, política, cultural e de posição socioeconômica. Como ressalta Marques (2014), nas cenas dissensuais, os indivíduos aparecem e, nessa ação, “manifestam-se e desejam tomar posse dessa abertura para o mundo e para o outro. Essa apropriação da aparência, feita pela linguagem, transforma natureza em rosto” (AGAMBEN, 2000, p.91). Ao se exporem, os sujeitos passam a ter rosto e são “capazes de desenvolver capacidades enunciativas e demonstrativas de reconfigurar a relação entre o visível e o dizível, entre palavras e corpos.” (p.75) Aparições dos sujeitos: sobre sereias e carcaças A partir das reflexões acima expostas, passamos à análise de duas imagens recentes da seca urbana e rural no Brasil em que tentaremos aproximar os aqui conceitos apresentados. Na primeira imagem (Figura 1, p.13) tem-se a aparição de uma mulher travestida de sereia sobre a carcaça de um carro dentro da quase seca represa da Cantareira, na grande São Paulo. A imagem explora diversos elementos que promovem, numa primeira visada, uma manifestação estético-política9 que se vale da carnavalização10 da questão ambiental em questão. O discurso visual-textual ancora-se na ironia, na subversão, na composição do grotesco e da contestação social pelo riso e problematiza uma questão de interesse público: a escassez e falta d´água no espaço urbano. Nesse aparecer, a alegoria mítica se materializa em máscara: encara-nos uma musa paulistana das águas, às avessas, de canto e contornos próprios, como enuncia o refrão da marchinha de carnaval 11 que a “sereia” e o coro de vozes femininas entoam em vídeo conexo à imagem 12: “Tô seca, não tô molhada/ Eu sou sereia do Cantareira”. A canção circulou amplamente no YouTube, 9 A designer gráfica Joana Brasiliano, de 28 anos, encarna a “Sereia da Cantareira”, definindo-a como uma forma de protesto na qual o humor assume um papel importante na comunicação; para ela, o humor “é capaz de transmitir uma determinada mensagem, de uma maneira leve e corrosiva. Ele não deve ser limitado a temas menores e superficiais, mas sim tratar assuntos fundamentais da nossa sociedade” In: http://g1.globo.com/sao-paulo/carnaval/2015/noticia/2015/02/musa-de-bloco-que-ironiza-seca-em-spdefende-beleza-como-brincadeira.html, acessado em 22/03/15, às 10h04. 10 BAKHTIN, M (1999). 11 “Tô seca, não tô molhada / Eu sou sereia da Cantareira / Quem vai 'Alckmizar' água de esgoto por aí? / Do M'Boi Mirim até o U do Morumbi/ Tucano se mandou / O lambari morreu / E até sereia encalhou" In: https://www.youtube.com/watch?v=LvVSF1OiHtg, acessado em 21/3/15, às 16h48. 12 https://www.youtube.com/watch?v=LvVSF1OiHtg, acessado em 22/3/15, às 14h35. 12 embalou as comemorações de um bloco do carnaval paulistano e foi objetos de matérias de portais de notícias, como G1 e R7. Figura 1 – A "sereia" da Cantareira13 Figura 2 – As carcaças na Paraíba14 Entre esse estar e ser, como num espelho entre o si e outrem, em que pese os encantos aquáticos da sereia anunciarem trágico fim – a sua morte pela falta da água, seu elemento constituidor, e também a nossa morte, os seus ouvintes – o riso suspende o drama-nós-sereia como uma vacina contra o desespero. Aquém da imagem da imobilidade da mulher meio humana, meio peixe, também se enuncia um isto-foi na carcaça de um automóvel degradado sobre o qual repousa a máscara da musa. Ambos, sereia e carro, denunciam uma paralisia social e, especialmente a do governo Alckmin 15 diante do cenário da seca: “quem vai alckimizar a água de esgoto por aí?” Numa palavra, a sereia do deserto enuncia que sucumbiremos diante de nossa autodestruição, no que nos aprisiona na escassez, da falta. Mas rimos: esse vaticínio é posto em suspenso pelo momento do carnaval. E a máscara da sereia oculta para melhor revelar o riso da condenação diante do rosto nu que vocaliza a desgraça humana resultante de uma era de desencantamentos e de avanços científicos e tecnológicos focados no desenvolvimento a qualquer preço. E o próprio porvir do rosto inscreve um 13 http://g1.globo.com/sao-paulo/carnaval/2015/noticia/2015/02/musa-de-bloco-que-ironiza-seca-em-spdefende-beleza-como-brincadeira.html, acessado em 21 de mar. 2015, às 10h17 14 http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2013/04/em-protesto-com-gado-morto-na-pb-agricultorespedem-perdao-de-dividas.html, acessado em 2/11/2014, às 14h33 15 Geraldo Alckmin, atual governador do Estado de São Paulo, reeleito em 2014 e filiado ao Partido da Social Democracia Brasileira, cumpre seu terceiro mandato nesse cargo. 13 apocalíptico fim que o nega: o não-rosto. “Se ainda se ri, é um pouco o riso do condenado à morte (...) É um riso de desintegração. Agora, cada nova descoberta revela ao homem como ele é pequeno, como ele é nada.” (MINOIS, 2003, p. 544) O apelo à máscara mítica da sereia em sua expressão trash gera uma conflitiva visão entre o grotesco das vestes mal ajustadas, da exposição do “U” do Morumbi e o improviso teatral que performa o belo na exposição do corpo da designer Joana Brasiliano como tosca sereia. A máscara por meio do cômico nos faz silenciar o logos científico, estruturado em discursos bem articulados à técnica e ao progresso, e reconvoca o aspecto mítico-diabólico dos carnavais nessa aparição. “A morte do diabo não é a morte do riso, mas anuncia a era nonsense, do absurdo, do niilismo.” (p.544). Rimos diante do riso da sereia que, por sua vez, ri da seca e de nós, em nossa tão precária condição. Apelaremos para Deus? Não, ele não mais existe. Na mesma imagem, uma segunda aparição, a de uma máscara azulada, cor de pânico, dialoga com a aparição mítica da sereia. Olhos arregalados, narinas abertas, lábios caídos apontam um “para fora” do eixo espectador-imagem. Os traços planificados apontam para o vazio, presente na inscrição “Bem-vindo ao deserto da Cantareira”, na lateral da carcaça; uma interferência visual bidimensional de um grafismo chapado como é o dos ícones bizantinos, sem o volume possuidor do canto e do corpo delgado da sereia. Esse ícone nos dá as boas-vindas ao inferno. Mondzain (2013, p.127) ao tratar dos ícones bizantinos, aborda justamente o senso de vazio ou kenosis que a imagem promove na relação com que a observa. “Na imagem artificial, é a pressão da ausência que cria todo o peso da autoridade (...) O que dita a lei do ícone é aquilo cuja falta ele representa para nós.” Tal ideia se ajusta ao contexto da imagem em dois níveis mortais: do riso e do risco. A forma simplificada de um rosto grafitado encara o deserto para nos alertar para o porvir já manifesto no pano de fundo presente, o deserto Cantareira. Ele permite que a voz de denúncia apareça como rosto do subjetivo desespero, o qual anunciamos mas que, ao mesmo tempo, queremos ignorar, já que ele aponta para algo além de nós que envolve, para além do discurso, nossa própria autodestruição. O grafismo é obra de Thiago Mundano16, pintor e ativista pró-causas 16 O veículo da Figura 1 passou anos submerso, mas voltou a aparecer por causa da estiagem e foi transformado por Mundano em uma espécie de placa que recepciona os “visitantes” ao reservatório. Segundo o pintor, “Dá um desespero quando se chega lá e vê ao vivo a situação.” Fonte: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/02/grafiteiros-desenham-crise-em-sp-troco-iphone-6-por-dois- 14 ambientais que produziu intervenções similares a essa em outras partes da cidade, num esforço coletivo com outros artistas para denunciar a seca. A cena dissensual confunde Cantareira ao deserto; o protesto produz enunciados visuais e textuais políticos com forte carga expressiva, estética; sobre o regime da polícia, fortemente vinculado à carcaça dos automóveis, repousa o canto dissonante da sereia, oriundo da ordem política. Os elementos de subjetivação retratados na imagem evocam indicialmente elementos ambientais como corpos d´água, solo e vegetação, embora os vestígios da celeuma política em torno da falta d´água sejam mais sensíveis na letra musical que propriamente Figura 1. Em geral, a imagem traz um caráter de parecência com o objeto que é seu referente constante; a imagem ao ser representada torna-se também um objeto que pode eclipsar o sujeito-objeto dela, seu contexto social e as relações que relatam. Do vazio manifesto, não surgem as possibilidades de se estabelecer pontes intercomunicativas mediadas pela imagem, valendo-se inclusive das textualidades que a circundam? Pensamos que o que liberta a imagem e a nós é a garantia da distância entre nós e o que vemos. E isso é, talvez, um dos princípios de dissenso, fundamentais à subjetivação política. Aqui é válido abordar o processo de produção de “contra-imagens”, o qual pode fazer frente ao agenciamento instituído pelas formas sociais administradas pelas empresas que gerenciam as redes sociais, como YouTube, Instagram e Facebook; e mesmo às narrativas jornalísticas com suas típicas formas de enquadrar a priori, na própria cobertura do factual, o que se faz imediato, volátil (grupo do qual fazem parte as duas imagens em questão). Como afirma Mondzain (2009), É através da imagem, fac-similada ou objeto substantivo, que uma relação de poder se estabelece. Mesmo que estas imagens possuam um poder, existe uma resposta a esse poder, pois é sempre possível produzir contrapoderes, contra-imagens que desviam ou invalidam os poderes da primeira. (MONDZAIN, 2009, p.22) Entendemos a noção de contra-imagem, oferecida por Mondzain (2009) bastante potente; ela considera as dimensões políticas e estéticas de dissenso propostas por Rancière para o campo da imagem em experiências de subjetivação política. É o que nos parece ocorrer em relação à segunda imagem (Figura 2, p. 13), extraída litros-de-agua.html, acessado em 21/3/2015, às 13h46 15 de uma matéria jornalística trivial, a qual narra o drama da seca de maneira muito mais fragmentária e indicial. Politicamente, a Figura 2 poderia ser lida como uma contraimagem da Figura 1. Mesmo em sua considerável expressividade, a Sereia custa romper com a ordem consensual urbana; a seca retratada no contexto da represa não abriga aspectos rurais. A cidade fala para si mesma e, nesse nível, permanece na ordem do consenso; a periferia no sertão é, em grande medida, desconsiderada. Já na Figura 2, as “trilhas” dos rostos da seca nordestina, por assim dizer, estão pulverizadas na imagem que não remete, de imediato, a outra cena consensual explorada à exaustão pelas narrativas midiáticas tradicionais que, ao abordarem o tema, na maior parte do tempo apelam para imagens de solos e pés rachados; carcaças de boi destroçadas isoladas ao chão; corpos sertanejos encurvados e cabisbaixos sob o sol causticante. Como se sabe, a mídia antecipa-se aos acontecimentos, impondo um discurso imagético-textual a priori, o qual sofre um desvio dissensual nessa imagem. Na manifestação em questão, as carcaças de animais saem do campo e se tornam visíveis em outro espaço; desnaturalizam-se e são escancaradas ao capital financeiro presente no meio urbano – mesmo que Campina Grande seja um município de pequeno porte da Paraíba. O rural e seus espectros ocupam a cena de visibilidade urbana por meio de um protesto que tem sentido político fortemente marcado por catalisadores estéticos: o aparecer do animal depauperado, dos restos, do fedor, da visão encarniçada e da decomposição promovida pela situação de seca às portas do banco. Retrata-se um contrapoder (periferia-centro) nessa contra-imagem que, diferentemente do deserto insípido da cantareira, expressa-se nas víceras sertanejas. Ainda na Figura 2 percebe-se a ordem disciplinar urbana presente nos nomes da Rua João Suassuna e do Banco do Nordeste, sendo que esse segundo redunda em uma dupla aparição, seja na “moderna” placa vermelha com logomarca, seja fixado à parede de pedra, em letras de aço. Os nomes são estruturas sólidas, legais, de difícil desconstrução. Já os dois homens, sem nomes, ou melhor, de nomes quaisquer, parecem enunciar o oposto disso, em duas faces de uma mesma moeda. O que está à direita, ancorado à placa, é muito provável que tenha se preparado para ir da roça à cidade: vestido como está, calça, camisa e sapato “sociais”, apresenta elementos estéticos que muito provavelmente preparam sua apresentação pessoal aos outros, com vistas a auxiliá16 lo a suster um lugar de fala perante a instituição bancária; um padrão de vestir-se que o leva, em seu modo de ver e pensar, a ser considerado como falante pelo Estado. Já o segundo homem, trajando camiseta, bermuda e chinelo, aparece de costas para o espectador, como a observar a cena, esquecendo-se por um minuto de que faz parte dela, esquecido de si próprio. Ele nos projeta cena adentro, permitindo um sentido compartilhado de spectator “do dentro” e “do fora” da imagem. Não é possível identificar-lhe a face; Como seria? O que pensa? Seria um passante ou um manifestante? Tal distinção importa? A imagem aparentemente despretensiosa de uma nota jornalística dá o que pensar. Mas há uma gramática comum que circula entre um corpo e outro: ambos os homens têm as mãos atadas: uma à haste da placa, ou descansada à cintura, outras duas postas para trás, uma segurando a outra. Para ambos, o mesmo modelo de boné os protege do sol e oculta o olhar daquele que mira um ponto fora da imagem, algo perdido, possivelmente à espera. Não há espírito de certeza nessas aparições, apenas indícios de relações, indicativos de possíveis, há vestígios, carcaças sígnicas. Os homens parecem aguardar algo, alguém, um quando, uma interlocução. Não há previsão de término; numa palavra, há um cansaço em suspensão, uma atmosfera algo viciada que descansa sobre os restos dos animais. Há um silêncio perante as portas fechadas da agência, um vazio (kenosis) que nos provoca o olhar, que é ocupado pelo rosto emudecido do homem rural comum, e não como um. Na chamada jornalística tem-se: “Em protesto com gado morto na PB, agricultores pedem perdão de dívidas (...) Associação quer perdão das dívidas de 111 mil agricultores. Banco do Nordeste diz que vem negociando conforme determinação legal”... Ou, traduzindo: valendo-se da máscara da carcaça, esse rosto do homem da seca clama pelo perdão das dívidas, evoca o “não me mates!” levinasiano. Ele quer ser considerado como interlocutor, quer ser contado, na expressão de Rancière, em sua singularidade; por isso performa a cena dissensual. Tal sofrimento implícito à imagem e explicito ao rosto do sujeito que performa é, todavia, vestigial à visão e, como tal, revela o esgarçamento social e econômico produzido pela situação do dito e do visto sobre a seca, seja ela urbana ou rural. Os homens, sem nomes, deslocados como carcaças do campo para a cidade 17 esperam o reconhecimento de seus rostos pelo Banco. Mas até quando? Não sabemos. Diante do assujeitamento financeiro, manifestando-se publicamente entre o isto-foi das carcaças, os produtores rurais querem dizer em público e com isso constituem meios de subjetivação estéticos e políticos provocativos. As duas imagens analisadas contrapõem-se e convergem em vários aspectos. Todavia, é importante destacar que em ambas a presença da máscara como elemento agenciador do assujeitamento protagoniza o visto e o dito. Mas a máscara, ao ocultar, passa a revelar contradições que se desdobram dos elementos estéticos para as problemáticas políticas concernentes à seca. No primeiro caso a “sereia” canta o descalabro emulado pelo Estado, promove uma cena de dissenso circunscrita à represa; mas não rompe completamente com os limites da ordem de polícia (centro-periferia), visto que privilegia o espaço urbano em sua narrativa. A sereia não se associa a outras subjetividades, como, por exemplo, a sertaneja – seja do nordeste, seja das favelas urbanas. No segundo caso, as “carcaças” silenciosas esperam e contra-aparecem (periferia-centro). A primeira carnavaliza e a segunda grita por meio da mudez presente em suspenso na imagem. Mas ambas, em maior ou menor intensidade, subvertem: levam a sereia ao deserto e o gado morto ao asfalto. Essa movimentação nos convoca à escuta do rosto, que não está encapsulado na imagem ou no texto, mas se apresenta nos interstícios das relações entre esses e o spectador. O rosto é revelado na subjetivação dos elementos estéticos que clamam por reconhecimento, seja no rosto fissurado pelo desespero urbano sedento, acuado pela falta d ´água; seja no rosto endividado que aguarda o perdão. Ambos constituem vozes assombradas pela carestia, fruto dos excessos, em que outra mítica aparição se revela: a do diabo. Evocando a afirmação roseana, há um "o diabo na rua, no meio do redemoinho", a quem, não raro, nos negamos ver ou escutar. No limite dessa análise, somos levados a nos perguntar que “rosto” teria a água nessas cenas, uma vez que é ela um elemento ausente nas duas imagens e – pelo mesmo peso de sua ausência, a água se faz emergir da invisibilidade totalizante à política ambiental que considera as subjetividades e suas expressividades. 18 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. (2000) O rosto. In: Means without end: notes on politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, p.91-100. BAKHTIN, M. (1999) A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec. BARLOW, Maude. (2015) Água – Futuro Azul. Como proteger a água potável para o futuro das pessoas e do planeta para sempre. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda. BARROS, Wellington P. (2008) Direito ambiental sistematizado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. LATOUCHE, Serge (2009). Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. São Paulo: WMFMartins Fontes. LÉVINAS, Emmanuel (2007). Ética e infinito. 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