Subjetivação política e assujeitamentos em tempos de seca urbana

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39º Encontro Anual da Anpocs
GT07 - Conflitos ambientais, Estado e ideologia do
desenvolvimento: mediação e luta por direitos
Subjetivação política e assujeitamentos em tempos de seca urbana no
sudeste brasileiro: cenas de dissenso no espaço público
Frederico Vieira
1
Resumo: O artigo adota como ponto central a investigação dos sujeitos e de suas subjetividades
estético-políticas reveladas pelo conflito de interesses entre sociedade, Estado e iniciativa privada
no uso e gestão das águas. Centra-se na análise das cenas de dissenso presentes nesse campo, seja
pela pluralidade e singularidades subjetivas que expressam, seja pelos assujeitamentos políticos e
sociais promovidos na disputa pela água. O contexto analisado considera o recente período de
seca no Brasil, especialmente no espaço urbano paulista, em que a inédita escassez ou a falta
absoluta de água é responsável por uma reconfiguração das relações entre os sujeitos, e mesmo
por profundas transformações sociais e territoriais. A análise elege como ponto de partida as
imagerias e escrituras circundantes da cena de dissenso "Sereia da Cantareira", em que a
linguagem online de um irônico protesto enuncia e narra, em texto, som e imagem, os tipos e
modos de subjetivação gerados no bojo das tensões próprias ao contexto da estética e da política
na situação da seca.
Palavras-Chave: Sujeitos; Subjetivação; Cenas de Dissenso; Água; Seca no Brasil
Na contemporaneidade, diante dos enormes avanços tecnológicos e do
entranhamento desses em nossas vidas, paradoxalmente padecemos dos efeitos
degenerativos que o projeto de modernidade impôs sobre nós e sobre o mundo que
habitamos. A escassez ou falta d´água, por exemplo, é um sintoma cabal da distrofia
tecnológica construída pelo insaciável sistema de produção capitalista. Na maior parte do
tempo, explorando de forma excessiva as benesses finitas disponíveis na natureza, os
sujeitos se movem nesse ambiente online-offline e se valem de uma infinidade de
dispositivos para sustentarem um modo de vida predatório.
Infelizmente, ao que tudo indica, caminhamos para um aprofundamento do
colapso, já em curso, das formas de vida no planeta. Desde o Relatório de Brundtland,
também conhecido como Nosso Futuro Comum1, produzido nos anos 80, até a mais
recente noção de decrescimento sustentável, defendida por Latouche (2009), que advoga
princípios como a frugalidade, a sobriedade, até mesmo certa austeridade no consumo
material, a discussão sobre os limites do crescimento é colocada em cheque pela própria
natureza, da qual, queiramos ou não, dependemos.
1“O Relatório, elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas, faz parte de uma série de iniciativas, anteriores à Agenda 21, as quais
reafirmam uma visão crítica do modelo de desenvolvimento adotado pelos países industrializados e
reproduzido pelas nações em desenvolvimento, e que ressaltam os riscos do uso excessivo dos recursos
naturais sem considerar a capacidade de suporte dos ecossistemas.” Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_Brundtland, acessado em 1/11/20014, às 8h54.
2
Essa concepção do decrescimento não é de modo nenhum um antihumanismo ou um antiuniversalismo. Entre tratar os animais e as coisas
como pessoas (o que o animismo faria) e tratar as pessoas como coisas
à maneira da tecnoeconomia moderna, há espaço para o respeito das
coisas, dos seres e das pessoas. Talvez devêssemos falar de um ahumanismo, como eu falo de a-crescimento. (LATOUCHE, 2009,
p.147)
As evidentes mudanças climáticas globais parecem não ser suficientes para gerar
uma efetiva mudança de comportamento social nas mais diferentes esferas – iniciativa
privada, poder público e sociedade civil – pela redução dos fatores degeneradores da
vida. Ao contrário, o que se assiste? O avanço sistemático desses e uma inoperância, ou
incompetência, dos governos e das organizações internacionais no sentido de estabelecer
limites reais ou reduções drásticas para tais fatores, em todo o mundo.2
Sabe-se que a questão da escassez e da falta d´água, em particular, está diretamente
ligada à imagem do futuro catastrófico, tendo como uma de suas principais causas as
mudanças climáticas globais. No Brasil, a histórica notícia, amplamente divulgada nos
sistemas de comunicação social em outubro de 2014, sobre o esgotamento da principal
nascente do São Francisco, situada no município de São Romão, na Serra da Canastra,
em Minas Gerais, é uma imagem significativa de nosso momento histórico. Um
demonstrativo da gravidade do que estamos a enfrentar, já que nunca antes isso ocorrera
àquele que era, há menos de um século, conhecido (e temido!) pela força de suas águas –
o Velho Chico, marca pulsante do universo roseano. A imagem da fonte seca concretiza o
fim de um tempo e inicia, por outro lado, outra inexorável temporalidade marcada pela
sede, à revelia dos nossos desejos ou súplicas.
Mas além do Rio, os efeitos perniciosos da degradação e das mudanças climáticas
têm atualmente impactado áreas urbanas com intensidade como nunca antes observado.
Usualmente vinculadas às áreas rurais, especialmente ao semi-árido nordestino, as
2 As sucessivas Conferências das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP) realizadas na última
década têm apresentado, invariavelmente, resultados aquém do que seria necessário para frear as
catástrofes climáticas que vêm se intensificando ano a ano. Segundo o Greenpeace a 19a COP, realizada
em Varsóvia em novembro de 2013, encerrou seus trabalhos de forma frustrante, superando “as baixas
expectativas das quase 200 nações presentes”. A COP-19 objetivava criar os fundamentos básicos para a
construção de um novo acordo global pela redução das emissões de carbono entre outros aspectos a ela
relacionados, a ser assinado em 2015, em Paris, e que irá substituir o Protocolo de Kyoto, e que vigorará a
partir de 2020. Disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Fracasso-da-COP-19-superaprevisoes/, acessado em 1/11/2014, às 9h40.
3
imagens e textos circulantes na mídia sobre a seca e a sede agora são vistas por nós no
cenário dos grandes centros urbanos. Outrora o agricultor de subsistência, o retirante, as
viúvas da seca protagonizavam nos meios de comunicação massivos ou na web a
circulação de retratos e relatos da sede, com suas aparições fantasmáticas em rostos
sulcados, texturas cáusticas, cores de terras ressequidas. Hoje o espectro se ampliou e as
metrópoles, já sedentas, apresentam um elenco diversificado de rostos que aparecem no
cenário da seca.
São múltiplos os fatores envolvidos na falta d´água enfrentada pelas grandes
cidades do sudeste brasileiro. Os fatores naturais, tais como a escassez das chuvas, não
respondem sozinhos pela falta d´água: a ela se deve somar a pressão exercida pelo
aumento do consumo de água proporcional à crescente densidade populacional dos
grandes centros; a impermeabilização do solo coberto por asfalto e construções que não
consideram com a necessária seriedade os aspectos ambientais; o descarte/despejo
indiscriminado de lixo e esgoto nos cursos d´água, poluindo-os, assoreando os leitos e
impactando a manutenção de matas ciliares, das ictiofaunas e de biomas que conservam
as condições básicas dos mananciais; o desperdício institucionalizado pelos sistemas de
abastecimento das capitais que, devido à manutenção precária e à gestão pública
irregular, respondem pelo descarte de aproximadamente metade do volume captado 3,
multiplicando-se os vazamentos nas tubulações. Esses e outros fatores caracterizam o
retrato desolador de uma cultura do excesso que devora a si mesma, despreocupada com
o futuro imediato – e que dirá com o das próximas gerações.
Mais que um manejo estratégico de políticas públicas relacionadas à gestão da
água, entendemos que nosso modelo civilizatório precisa ser revisto, na perspectiva de
um decrescimento que considera a água não como um simples recurso natural, do qual o
homem pode dispor como bem entenda, sem medir os impactos que sua ação predatória
produz no todo. O desenvolvimento humano está intimamente interligado aos
ecossistemas e à manutenção das condições de vida no planeta.
Tentativas de se normatizar o uso racional da água, mas ainda compreendendo-a
como um recurso natural, foram envidadas por organismos internacionais, a exemplo da
“Declaração dos Direitos Universais da Água” publicada pela Organização das Nações
3 http://guiadoestudante.abril.com.br/crise-hidrica/, acessado em 28/9/15, às 15h57.
4
Unidas, no ano de 1992. De seu texto destacam-se noções como valor econômico,
patrimônio e herança de nossos predecessores que, embora sejam louváveis do ponto de
vista jurisdicional, não promovem a necessária ruptura com o entendimento da água
como um bem a ser instrumentalizado, explorado, manejado. Diferentemente da
perspectiva tecnicista ocidental, a água em outras culturas4 traz consigo a ideia de um
ente sagrado, uma forma de vida poderosa e de quem dependemos. Nada mais verdadeiro
que isso, todavia parece-nos que o desenvolvimento tecnológico fez-nos sofrer de uma
cegueira condicionante que substitui a causa pelo efeito e que faz girar, em volta do
homem, todo o mais qualificado como não-humano. Nos últimos cinquenta anos assistiuse, no campo jurídico, por exemplo, a ascensão do Direito Ambiental a partir de pioneiro
ativismo internacional, mas cuja tradição hermenêutica cria um campo de proteção do
meio ambiente ainda fortemente condicionado à atuação humana. Para Barros (2008):
[...] somente depois que fatos graves ocorreram, todos causados por
intervenção humana na busca de um desenvolvimento industrial
desmedido, e que vozes de peso soaram alertando para os perigos que
esses ataques ao meio ambiente pudessem produzir efeitos para toda a
humanidade, é que se começou a tomar consciência da necessidade de
se criar organismos políticos e estruturas jurídicas para protegê-lo.
(BARROS, 2008, p.21).
Um último, mas não menos importante aspecto a ser considerado nesse contexto,
são as tensões e conflitos decorrentes das disputas pelo controle e uso de mananciais. Há
uma tendência de que a visão da água como um patrimônio público se dilua na “maré”
dos direitos privados, na qual as preocupações do Estado, antes de atender às demandas
de interesse público da sociedade, acabem por beneficiar corporações que comercializam
a água. Em todo o mundo, legislações ambientais fracas ficam reféns de empresas
transnacionais que ganharam acesso a sementes, minerais, madeiras e corpos d´água,
promovendo um verdadeiro cerco à propriedade pública. Para Barlow (2015), a
comercialização mundial da água revela uma privatização que desafia a doutrina do
fundo público. A autora contesta o argumento favorável ao comércio de água ancorado
no mainstream das políticas econômicas, as quais defendem uma precificação da água
baseada no mercado, o que promoveria o incentivo para os usuários realocarem recursos
4 Sabe-se que muitos povos indígenas brasileiros, por exemplo cultuam corpos d´água, nos quais
acreditam viverem seres como iara, mãe d´água e entidades espirituais ligadas à natureza. Também na
África e na Ásia essa relação é encontrada na figura de potestades e deidades, como o são os Orixás e
divindades do hinduísmo.
5
de atividades de baixo valor para atividades de alto valor:
Na prática, no entanto, o comércio de água permite que os grandes
agronegócios, empresas de água engarrafada e outros grandes usuários
de água, comprem direitos à água para usá-los eles mesmos ou vendêlos no mercado aberto para investidores e estrangeiros. A água que um
dia foi de propriedade pública e um fundo público agora está
separada da terra e da sua bacia hidrográfica e é negociada entre
compradores e vendedores – a um curto passo de distância de um
mercado amplo e aberto da água como mercadoria. (BARLOW, 2015,
P.79, grifo nosso)
Borlow (2015) ainda acrescenta que publicações das Organizações das Nações
Unidades como o “Relatório Mundial de Desenvolvimento da Água” estão
profundamente influenciadas por interesses do setor privado. Segundo ela, houve
interferência direta do setor industrial no desenho das partes do relatório sobre “negócios,
comércio, finanças e envolvimento do setor privado”. (p.93)
Em nível local, no sudeste brasileiro, a falta d´água que São Paulo vem enfrentando
nos dois últimos anos também reflete esse mesmo jogo de interesses que, em grande
medida, subsume o público nos meandros do privado. Um dos elementos indicativos
dessa tensão é a falta de transparência das informações disponibilizadas pelos órgãos
públicos paulistas responsáveis pela administração do Sistema Cantareira5, sobretudo nos
dois últimos anos.
A accountability social e política é atravessada pelas articulações eleitorais e pelo
manejo estratégico da imagem pública dos candidatos; curva-se perante os interesses
particulares. Como se sabe, empresas e corporações financiam campanhas políticas, as
que garantem a eleição dos representantes que, na gestão da coisa pública, atuam de
acordo com os desígnios da iniciativa privada.
Conforme conclusões de estudo encomendado pela ONG Artigo 19 Brasil 6, há
5 “O Sistema Cantareira é o maior dos sistemas administrados pela Sabesp, destinado a captação e
tratamento de água para a Grande São Paulo e um dos maiores do mundo, sendo utilizado para abastecer
8,8 milhões de clientes da Sabesp.O sistema é composto por seis barragens interligadas por um complexo
sistema de túneis, canais, além de uma estação de bombeamento de alta tecnologia para ultrapassar a
barreira física da Serra da Cantareira.[5] O sistema chama atenção ainda pela distância de sua estrutura em
relação ao núcleo urbano ao qual ela serve e também pela extensão da sua área de drenagem, que se
estende
até
o
sul
do
estado
de
Minas
Gerais.”
Disponível
em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_Cantareira. Acesso em 30/9/15, às 20h30.
6 A Artigo 19 é uma Organização Não-Governamental que “trabalha para que todos e todas, em qualquer
lugar, possam se expressar de forma livre, acessar informação e desfrutar de liberdade de imprensa.”
Criada em Londres em 1987 e com atuação em mais de 30 países, sua denominação refere-se ao Artigo
19°. da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece: “Todo indivíduo tem direito à
6
dificuldade no acesso e na compreensão das informações divulgadas pelos órgãos
públicos paulistas, por vezes controversas. Na pesquisa desenvolvida pela organização,
as maiores dificuldades encontradas foram a falta de notas e declarações oficiais acerca
das medidas que estavam sendo consideradas a fim de se reduzir o consumo de água,
sobretudo da Sabesp e do Governo do Estado de São Paulo, que pudessem corroborar
com as informações obtidas pela mídia. Também os pedidos de informação sem resposta
ou com resposta incompleta e/ou genérica mantêm obscura “boa parte daquilo que a
população tem o direito de saber a respeito da crise” (p.40). A autora do estudo, Amanda
Martins (2014), ressalta que isso instaura um clima de incerteza e falta de credibilidade.
Se, de um lado, isso [a falta de transparência] pode vir a fortalecer os
laços da sociedade civil, no que diz respeito à expansão da cidadania
digital, ao buscar formas de minimizar a assimetria de informação, por
outro, enfraquece o próprio sistema político e dificulta a tomada de
decisões de forma democrática, resultando em uma crise de
representação. (MARTINS, 2014, p.40, grifo nosso)
Além disso, o mesmo estudo aponta que o ônus da economia de água, a diminuição
de sua utilização nas atividades do dia a dia, é pago pelas populações de baixa renda, que
residem, em sua maioria, em bairros periféricos, sem a penalização dos usuários das
áreas mais nobres da capital paulista que não reduziram o consumo, conforme constatado
à época da pesquisa. Para os moradores dos bairros de classe média-alta e alta de São
Paulo, a variação do valor pago pelo serviço de abastecimento não impacta a renda
familiar. Por outro lado, nesses locais ditos “mais nobres”, a água menos falta. Eis um
clássico caso de injustiça ambiental. Novamente, o eixo de disputa centro-periferia afeta
a vida dos sujeitos que, diante das questões ambientais como a da seca urbana, da crise
hídrica, se vêm oprimidos e em condições de subalternidade.
Diante de tudo isso, como destacam Mendes et al. (2014, p.58, 59), há uma
debilidade do sujeito contemporâneo que deve encarar “a complexidade imposta por uma
vida “globalizada” e a sensação de um futuro catastrófico (aquecimento global, potencial
de aniquilação por armamentos nucleares etc.)”. Os sujeitos na vida online-offline são
liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o
de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de
expressão." O escritório brasileiro da organização foi aberto em 30 de março de 2007, em São Paulo.
Disponível em: artigo19.org., acessado em 30/9/15.
7
desafiados a ajuizar, dentre as representações diversas da realidade, aquelas que lhes
parecem mais ou menos adequadas, o que os fazem se portar no presente, ou alienados
sobre o que se passa, ou diante da tomada de ações possíveis; se posicionam de forma
“pertubadoramente indecisa”, já que há impedimentos claros “a quaisquer prognósticos
que passam a ser não só falíveis, mas indesejáveis”.
Nessa toada, nas redes sociais online surgem manifestações estético-políticas, como
é o caso da marchinha de carnaval “Sereia da Cantareira”7, com vistas a articular
discursos e ações entre cidadãos que padecem com a escassez ou falta de água. Embora a
priori “a parte dos sem parte” (RANCIÈRE, 2005) nesse regime de aparições e
aparências no espaço público seja reservada pelo sistema social aos sertões urbanos –
onde se encontram favelas, os favelados, os moradores de periferias, nas quais o
abastecimento e o saneamento básico são, geralmente, deficientes – dessa vez a
reconfiguração de sentidos, provocada pela escassez da água, ocasiona um deslocamento
diverso do habitual. A sede ocupa novos territórios, do campo para a cidade e da periferia
para o centro e produz (ou desentranha?) a cena política dissensual vivida pelos sujeitos
nos ambientes online e offline. Água: onde? Para quem?
Face o exposto, a grave e urgente questão da seca nos espaços urbano e rural – ou
da crise hídrica8 como querem os governos – nos convoca à investigação sobre as
possibilidades de subjetivação e assujeitamento nesse cenário. As barragens se esgotam,
os cemitérios de automóveis vêm à tona nas imagens e textos online enunciando o
assombro das elites e dos governos por meio da exposição de suas carcaças e dos seres
míticos que povoam o universo simbólico da comunicação intersubjetiva.
7 Composição produzida para o Carnaval 2015 dos blocos de rua da capital paulista, “Sereia da Cantareira”
tem autoria coletiva, incluindo-se no grupo de autores o cantor Marcelo Jeneci. A marchinha foi vencedora
do concurso que elegeu a canção-tema do bloco “Nóis Trupica Mais Não Cai”. Também deu origem a um
novo bloco, o “Sereias do Cantareira” que estreou em 7 de fevereiro, no Centro de São Paulo. In:
http://g1.globo.com/sao-paulo/carnaval/2015/noticia/2015/02/musa-de-bloco-que-ironiza-seca-em-spdefende-beleza-como-brincadeira.html, acessado em 21/03/2015, às 12h45.
8 De acordo com o Informe 2014 da Agência Nacional das Águas (ANA) sobre a Conjuntura dos Recursos
Hídricos: “Na Região Nordeste, por exemplo, especificamente na região Semiárida, a criticidade hídrica se
deve principalmente a fatores naturais como a reduzida pluviosidade anual e as altas taxas de
evapotranspiração, que favorecem uma menor disponibilidade hídrica nos rios (...) Já a Região Sudeste
apresenta algumas bacias hidrográficas com problemas de criticidade mais relacionados à alta demanda e à
poluição hídrica (principalmente devido ao lançamento de cargas orgânicas nos cursos d’água) do que a
fatores naturais relacionados à disponibilidade hídrica. Esta é uma consequência direta da maior
concentração populacional existente na região (ali residem 42% de toda população brasileira, além da
maioria de seus habitantes, cerca de 92%, estarem em áreas urbanas).” Disponível em:
http://conjuntura.ana.gov.br/docs/crisehidrica.pdf, acessado em 28/9/15, às 17h26.
8
Finalmente, é preciso considerar que hoje as dimensões subjetivas da aparição de
corpos, de rostos, das identidades individuais, grupais ou coletivas, são afetadas pelo
acesso, tempestividade, capilaridade e hiperconectividade dos conteúdos transacionados
entre sujeitos por meio de seus dispositivos e páginas pessoais das redes sociais na web.
Isso não quer dizer que o espaço da web constitua-se alheio ao mundo offline, ao
contrário; o ser e aparecer virtuais são tributários da experiência direta e imediata, da
presença e vida dos homens no mundo, que por sua vez é também modificado pelo
universo online. Entendemos que essa espécie de modus operandi social dos sujeitos que
vivem em regime de itinerâncias entre o online e o offline é o motor que faz girar a roda
das subjetividades contemporâneas, cujas presenças encontram-se manifestas nos signos
que sustentam a presença e a ausência, na web ou fora dela, a um só tempo ou em
temporalidades diversas, entre o estético e o político.
O dissenso em cena
O espaço público visto a partir de suas múltiplas arenas se constitui como instância,
por excelência, do encontro e embate dos múltiplos interesses estéticos e políticos de
atores sociais, dos sujeitos e das instituições que conformam o Estado e a sociedade,
viabilizando a construção discursiva das alteridades e de suas relações intersubjetivas, em
particular no âmbito dos conflitos ambientais. Por vezes lesionadas, ignoradas ou
invisíveis, as alteridades se reificam em mesmidades construídas pela tirania do universal
sobre o singular. Como alerta Lévinas,
Nesse mundo sem multiplicidade, a linguagem perde toda a significação
social, os interlocutores renunciam à sua unicidade não desejando um o
outro, mas desejando o universal. (…) Ao completar a sua essência de
discurso universalmente coerente, a linguagem realizaria ao mesmo
tempo o Estado universal, onde a multiplicidade se incorpora e
onde o discurso se acaba, à falta de interlocutores (LEVINAS, 1998,
p.194-5, grifo nosso).
Entretanto, esse aspecto universal da linguagem denunciado por Levinas, que
muitas vezes incorpora e totaliza outrem – sobretudo o subalterno, o periférico, o
excluído – encontra possibilidades de “fratura” naquilo que Jacques Rancière nomeará
cenas de dissenso, conceito central no pensamento desse autor. Para Rancière, a base do
dissenso localiza-se na polêmica; assim, uma cena dissensual se constrói no momento em
9
que “ações de sujeitos que não eram, até então, contados como interlocutores, irrompem
e provocam rupturas na unidade daquilo que é dado e na evidência do visível para
desenhar uma nova topografia do possível” (RANCIÈRE apud MARQUES, 2014, p.73).
As cenas dissensuais possibilitam o protagonismo da ação do sujeito e de sua capacidade
de ruptura com estruturas sociais a priori definidas.
Rancière nomeia ainda regime da polícia como aquele que obrigatoriamente
dissipa o dissenso, forçando a ordem social dos nomes, ligando isto a aquilo, assujeitando
pessoas a padrões de subjetivação unívocos e totalizantes. Isentos da polêmica, os
discursos encampados pela ordem policial produzem imagens consensuais que fixam
limites à produção expressiva dos sujeitos, impedindo a “confusão” de nomes que a cena
de dissenso contém.
Assim, por exemplo, a identidade do proletário, originalmente ligada aos nomes
salário, máquina e produção, ao romper com a ordem da polícia passa à poesia, ao
contemplar e ao criar, como Rancière (1988) muito bem expõe em sua obra “A noite dos
proletários. Arquivos do sonho operário”:
Mais sutil e menos angustiado, nosso desejo de que cada um fique no
seu lugar, se expressará mais discretamente: na insistência em julgar
– conforme o caso – os gestos dos trabalhadores muito mais cultos do
que seus discursos, sua disciplina mais revolucionária do que suas
exaltações, suas risadas mais rebeldes, do que suas reivindicações, suas
festas mais subversivas, do que seus motins, enfim, sua fala, tanto mais
eloquente, quanto mais muda for e sua subversão, tanto mais radicais,
quanto mais imperceptíveis forem as marcas deixadas na superfície da
ordem cotidiana. A esse preço os deuses estão na cozinha, os
operários são os nossos mestres e a verdade mora no espírito das
pessoas simples.(RANCIÈRE, 1988, p.27, grifo nosso)
O regime da política, a seu turno, opera justamente no campo de dissenso, do
(in)comum; o político confunde nomes e papéis, estabelecendo a intriga necessária a
reconfiguração do que se partilha socialmente. O regime da política, em suma,
privilegiaria a multiplicidade de interlocutores em detrimento da unicidade universal.
Como veremos adiante, seca e sertão são da ordem do consenso, da polícia, enquanto
seca e urbe intrigam enquanto correspondentes, produzem a intriga política.
Além disso, o autor não desvincula as práticas políticas das estéticas; para ele a
ética neutraliza a política e a constituição do sujeito político. Rancière afirma que “a
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comunidade política tende a ser transformada numa comunidade ética, que junta povos e
partes singulares em um único povo que é supostamente contado como igual”.
(RANCIÈRE, 2010, p. 184, grifo nosso). Ainda segundo Rancière (1995, p.59), a
subjetivação é entendida como “a produção, por uma série atos, de uma instância e de
uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis em um campo de experiência
dado, cuja identificação está ligada à reconfiguração do campo da experiência”.
Nesse viés, vai-se além da argumentação racional e das justificações discursivas
professadas pelos sujeitos e atores sociais no espaço público. A política apresenta,
portanto, uma dimensão criativa, poética a ser explorada. Pela (des)ordem política, os
interlocutores são capazes de aparecer e de performar publicamente por meio de suas
produções estéticas, individuais ou coletivas, que reconfiguram as relações sociais e de
poder. A imagética advinda dessas manifestações acorre em favor das alteridades, de uma
desidentificação identitária da ordem policial vigente rumo a outrem, à “confusão dos
nomes” e da (re)partilha do sensível entre as partes envolvidas na problemática do
dissenso. Como alerta Marques (2014):
O indivíduo que se expressa discursivamente constitui-se como sujeito
ao alcançar status de interlocutor, ao criar e integrar uma cena polêmica
enunciativa na qual o que está em jogo não é unicamente a
reivindicação de identidades, mas a identificação de posições de sujeito
pelas quais o indivíduo transita, encontrando a si mesmo nos hiatos
entre nomes, visibilidades, ditos e não ditos. Ao falar, os indivíduos se
tornam sujeitos perpassados por linhas de força que, ao se
entrecruzarem, colocam em contato dinâmicas de assujeitamento e
de subjetivação. (MARQUES, 2014, p. 131, grifo nosso)
Assim, a construção de sentidos presente nos gestos estéticos dos internautas, ou
relatados em conteúdos online, desenham uma espécie de cartografia a partir dos
enunciados visuais e textuais que expõem novos tipos e modos de subjetivação política.
Por isso, em pesquisas sobre questões ambientais e sobre dilemas delas derivados, é
relevante se considerar as influências advindas dos sujeitos, da formação cultural,
educacional, das possibilidades de acesso e de engajamento social, entre outros aspectos
os quais não se concentram exclusivamente na esfera online. Perfilando-se nas
plataformas da web, muitas vezes os sujeitos passam a ser, eles mesmos, espécie de
mensagem do processo político-comunicacional. Esse eu expandido, conectado, que trata
de questões de interesse público por meio da exposição pública de sua própria figura,
11
estabelece vínculos com outros, utilizando-se dos repertórios comunicativos que domina,
resultado de sua formação familiar, educacional, política, cultural e de posição
socioeconômica.
Como ressalta Marques (2014), nas cenas dissensuais, os indivíduos aparecem e,
nessa ação, “manifestam-se e desejam tomar posse dessa abertura para o mundo e para o
outro. Essa apropriação da aparência, feita pela linguagem, transforma natureza em
rosto” (AGAMBEN, 2000, p.91). Ao se exporem, os sujeitos passam a ter rosto e são
“capazes de desenvolver capacidades enunciativas e demonstrativas de reconfigurar a
relação entre o visível e o dizível, entre palavras e corpos.” (p.75)
Aparições dos sujeitos: sobre sereias e carcaças
A partir das reflexões acima expostas, passamos à análise de duas imagens recentes
da seca urbana e rural no Brasil em que tentaremos aproximar os aqui conceitos
apresentados. Na primeira imagem (Figura 1, p.13) tem-se a aparição de uma mulher
travestida de sereia sobre a carcaça de um carro dentro da quase seca represa da
Cantareira, na grande São Paulo. A imagem explora diversos elementos que promovem,
numa primeira visada, uma manifestação estético-política9 que se vale da
carnavalização10 da questão ambiental em questão.
O discurso visual-textual ancora-se na ironia, na subversão, na composição do
grotesco e da contestação social pelo riso e problematiza uma questão de interesse
público: a escassez e falta d´água no espaço urbano. Nesse aparecer, a alegoria mítica se
materializa em máscara: encara-nos uma musa paulistana das águas, às avessas, de canto
e contornos próprios, como enuncia o refrão da marchinha de carnaval 11 que a “sereia” e
o coro de vozes femininas entoam em vídeo conexo à imagem 12: “Tô seca, não tô
molhada/ Eu sou sereia do Cantareira”. A canção circulou amplamente no YouTube,
9 A designer gráfica Joana Brasiliano, de 28 anos, encarna a “Sereia da Cantareira”, definindo-a como uma
forma de protesto na qual o humor assume um papel importante na comunicação; para ela, o humor “é
capaz de transmitir uma determinada mensagem, de uma maneira leve e corrosiva. Ele não deve ser
limitado a temas menores e superficiais, mas sim tratar assuntos fundamentais da nossa sociedade” In:
http://g1.globo.com/sao-paulo/carnaval/2015/noticia/2015/02/musa-de-bloco-que-ironiza-seca-em-spdefende-beleza-como-brincadeira.html, acessado em 22/03/15, às 10h04.
10 BAKHTIN, M (1999).
11 “Tô seca, não tô molhada / Eu sou sereia da Cantareira / Quem vai 'Alckmizar' água de esgoto por aí? /
Do M'Boi Mirim até o U do Morumbi/ Tucano se mandou / O lambari morreu / E até sereia encalhou" In:
https://www.youtube.com/watch?v=LvVSF1OiHtg, acessado em 21/3/15, às 16h48.
12 https://www.youtube.com/watch?v=LvVSF1OiHtg, acessado em 22/3/15, às 14h35.
12
embalou as comemorações de um bloco do carnaval paulistano e foi objetos de matérias
de portais de notícias, como G1 e R7.
Figura 1 – A "sereia" da Cantareira13
Figura 2 – As carcaças na Paraíba14
Entre esse estar e ser, como num espelho entre o si e outrem, em que pese os
encantos aquáticos da sereia anunciarem trágico fim – a sua morte pela falta da água, seu
elemento constituidor, e também a nossa morte, os seus ouvintes – o riso suspende o
drama-nós-sereia como uma vacina contra o desespero. Aquém da imagem da
imobilidade da mulher meio humana, meio peixe, também se enuncia um isto-foi na
carcaça de um automóvel degradado sobre o qual repousa a máscara da musa. Ambos,
sereia e carro, denunciam uma paralisia social e, especialmente a do governo Alckmin 15
diante do cenário da seca: “quem vai alckimizar a água de esgoto por aí?”
Numa palavra, a sereia do deserto enuncia que sucumbiremos diante de nossa
autodestruição, no que nos aprisiona na escassez, da falta. Mas rimos: esse vaticínio é
posto em suspenso pelo momento do carnaval. E a máscara da sereia oculta para melhor
revelar o riso da condenação diante do rosto nu que vocaliza a desgraça humana
resultante de uma era de desencantamentos e de avanços científicos e tecnológicos
focados no desenvolvimento a qualquer preço. E o próprio porvir do rosto inscreve um
13 http://g1.globo.com/sao-paulo/carnaval/2015/noticia/2015/02/musa-de-bloco-que-ironiza-seca-em-spdefende-beleza-como-brincadeira.html, acessado em 21 de mar. 2015, às 10h17
14 http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2013/04/em-protesto-com-gado-morto-na-pb-agricultorespedem-perdao-de-dividas.html, acessado em 2/11/2014, às 14h33
15 Geraldo Alckmin, atual governador do Estado de São Paulo, reeleito em 2014 e filiado ao Partido da
Social Democracia Brasileira, cumpre seu terceiro mandato nesse cargo.
13
apocalíptico fim que o nega: o não-rosto. “Se ainda se ri, é um pouco o riso do
condenado à morte (...) É um riso de desintegração. Agora, cada nova descoberta revela
ao homem como ele é pequeno, como ele é nada.” (MINOIS, 2003, p. 544)
O apelo à máscara mítica da sereia em sua expressão trash gera uma conflitiva
visão entre o grotesco das vestes mal ajustadas, da exposição do “U” do Morumbi e o
improviso teatral que performa o belo na exposição do corpo da designer Joana
Brasiliano como tosca sereia. A máscara por meio do cômico nos faz silenciar o logos
científico, estruturado em discursos bem articulados à técnica e ao progresso, e
reconvoca o aspecto mítico-diabólico dos carnavais nessa aparição. “A morte do diabo
não é a morte do riso, mas anuncia a era nonsense, do absurdo, do niilismo.” (p.544).
Rimos diante do riso da sereia que, por sua vez, ri da seca e de nós, em nossa tão precária
condição. Apelaremos para Deus? Não, ele não mais existe.
Na mesma imagem, uma segunda aparição, a de uma máscara azulada, cor de
pânico, dialoga com a aparição mítica da sereia. Olhos arregalados, narinas abertas,
lábios caídos apontam um “para fora” do eixo espectador-imagem. Os traços planificados
apontam para o vazio, presente na inscrição “Bem-vindo ao deserto da Cantareira”, na
lateral da carcaça; uma interferência visual bidimensional de um grafismo chapado como
é o dos ícones bizantinos, sem o volume possuidor do canto e do corpo delgado da sereia.
Esse ícone nos dá as boas-vindas ao inferno.
Mondzain (2013, p.127) ao tratar dos ícones bizantinos, aborda justamente o senso
de vazio ou kenosis que a imagem promove na relação com que a observa. “Na imagem
artificial, é a pressão da ausência que cria todo o peso da autoridade (...) O que dita a lei
do ícone é aquilo cuja falta ele representa para nós.” Tal ideia se ajusta ao contexto da
imagem em dois níveis mortais: do riso e do risco. A forma simplificada de um rosto
grafitado encara o deserto para nos alertar para o porvir já manifesto no pano de fundo
presente, o deserto Cantareira. Ele permite que a voz de denúncia apareça como rosto do
subjetivo desespero, o qual anunciamos mas que, ao mesmo tempo, queremos ignorar, já
que ele aponta para algo além de nós que envolve, para além do discurso, nossa própria
autodestruição. O grafismo é obra de Thiago Mundano16, pintor e ativista pró-causas
16 O veículo da Figura 1 passou anos submerso, mas voltou a aparecer por causa da estiagem e foi
transformado por Mundano em uma espécie de placa que recepciona os “visitantes” ao reservatório.
Segundo o pintor, “Dá um desespero quando se chega lá e vê ao vivo a situação.” Fonte:
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/02/grafiteiros-desenham-crise-em-sp-troco-iphone-6-por-dois-
14
ambientais que produziu intervenções similares a essa em outras partes da cidade, num
esforço coletivo com outros artistas para denunciar a seca.
A cena dissensual confunde Cantareira ao deserto; o protesto produz enunciados
visuais e textuais políticos com forte carga expressiva, estética; sobre o regime da polícia,
fortemente vinculado à carcaça dos automóveis, repousa o canto dissonante da sereia,
oriundo da ordem política. Os elementos de subjetivação retratados na imagem evocam
indicialmente elementos ambientais como corpos d´água, solo e vegetação, embora os
vestígios da celeuma política em torno da falta d´água sejam mais sensíveis na letra
musical que propriamente Figura 1.
Em geral, a imagem traz um caráter de parecência com o objeto que é seu referente
constante; a imagem ao ser representada torna-se também um objeto que pode eclipsar o
sujeito-objeto dela, seu contexto social e as relações que relatam. Do vazio manifesto,
não surgem as possibilidades de se estabelecer pontes intercomunicativas mediadas pela
imagem, valendo-se inclusive das textualidades que a circundam? Pensamos que o que
liberta a imagem e a nós é a garantia da distância entre nós e o que vemos. E isso é,
talvez, um dos princípios de dissenso, fundamentais à subjetivação política.
Aqui é válido abordar o processo de produção de “contra-imagens”, o qual pode
fazer frente ao agenciamento instituído pelas formas sociais administradas pelas
empresas que gerenciam as redes sociais, como YouTube, Instagram e Facebook; e
mesmo às narrativas jornalísticas com suas típicas formas de enquadrar a priori, na
própria cobertura do factual, o que se faz imediato, volátil (grupo do qual fazem parte as
duas imagens em questão). Como afirma Mondzain (2009),
É através da imagem, fac-similada ou objeto substantivo, que uma
relação de poder se estabelece. Mesmo que estas imagens possuam um
poder, existe uma resposta a esse poder, pois é sempre possível produzir
contrapoderes, contra-imagens que desviam ou invalidam os poderes da
primeira. (MONDZAIN, 2009, p.22)
Entendemos a noção de contra-imagem, oferecida por Mondzain (2009) bastante
potente; ela considera as dimensões políticas e estéticas de dissenso propostas por
Rancière para o campo da imagem em experiências de subjetivação política.
É o que nos parece ocorrer em relação à segunda imagem (Figura 2, p. 13), extraída
litros-de-agua.html, acessado em 21/3/2015, às 13h46
15
de uma matéria jornalística trivial, a qual narra o drama da seca de maneira muito mais
fragmentária e indicial. Politicamente, a Figura 2 poderia ser lida como uma contraimagem da Figura 1. Mesmo em sua considerável expressividade, a Sereia custa romper
com a ordem consensual urbana; a seca retratada no contexto da represa não abriga
aspectos rurais. A cidade fala para si mesma e, nesse nível, permanece na ordem do
consenso; a periferia no sertão é, em grande medida, desconsiderada.
Já na Figura 2, as “trilhas” dos rostos da seca nordestina, por assim dizer, estão
pulverizadas na imagem que não remete, de imediato, a outra cena consensual explorada
à exaustão pelas narrativas midiáticas tradicionais que, ao abordarem o tema, na maior
parte do tempo apelam para imagens de solos e pés rachados; carcaças de boi destroçadas
isoladas ao chão; corpos sertanejos encurvados e cabisbaixos sob o sol causticante. Como
se sabe, a mídia antecipa-se aos acontecimentos, impondo um discurso imagético-textual
a priori, o qual sofre um desvio dissensual nessa imagem.
Na manifestação em questão, as carcaças de animais saem do campo e se tornam
visíveis em outro espaço; desnaturalizam-se e são escancaradas ao capital financeiro
presente no meio urbano – mesmo que Campina Grande seja um município de pequeno
porte da Paraíba. O rural e seus espectros ocupam a cena de visibilidade urbana por meio
de um protesto que tem sentido político fortemente marcado por catalisadores estéticos: o
aparecer do animal depauperado, dos restos, do fedor, da visão encarniçada e da
decomposição promovida pela situação de seca às portas do banco. Retrata-se um
contrapoder (periferia-centro) nessa contra-imagem que, diferentemente do deserto
insípido da cantareira, expressa-se nas víceras sertanejas.
Ainda na Figura 2 percebe-se a ordem disciplinar urbana presente nos nomes da
Rua João Suassuna e do Banco do Nordeste, sendo que esse segundo redunda em uma
dupla aparição, seja na “moderna” placa vermelha com logomarca, seja fixado à parede
de pedra, em letras de aço. Os nomes são estruturas sólidas, legais, de difícil
desconstrução. Já os dois homens, sem nomes, ou melhor, de nomes quaisquer, parecem
enunciar o oposto disso, em duas faces de uma mesma moeda. O que está à direita,
ancorado à placa, é muito provável que tenha se preparado para ir da roça à cidade:
vestido como está, calça, camisa e sapato “sociais”, apresenta elementos estéticos que
muito provavelmente preparam sua apresentação pessoal aos outros, com vistas a auxiliá16
lo a suster um lugar de fala perante a instituição bancária; um padrão de vestir-se que o
leva, em seu modo de ver e pensar, a ser considerado como falante pelo Estado.
Já o segundo homem, trajando camiseta, bermuda e chinelo, aparece de costas para
o espectador, como a observar a cena, esquecendo-se por um minuto de que faz parte
dela, esquecido de si próprio. Ele nos projeta cena adentro, permitindo um sentido
compartilhado de spectator “do dentro” e “do fora” da imagem. Não é possível
identificar-lhe a face; Como seria? O que pensa? Seria um passante ou um manifestante?
Tal distinção importa? A imagem aparentemente despretensiosa de uma nota jornalística
dá o que pensar.
Mas há uma gramática comum que circula entre um corpo e outro: ambos os
homens têm as mãos atadas: uma à haste da placa, ou descansada à cintura, outras duas
postas para trás, uma segurando a outra. Para ambos, o mesmo modelo de boné os
protege do sol e oculta o olhar daquele que mira um ponto fora da imagem, algo perdido,
possivelmente à espera. Não há espírito de certeza nessas aparições, apenas indícios de
relações, indicativos de possíveis, há vestígios, carcaças sígnicas. Os homens parecem
aguardar algo, alguém, um quando, uma interlocução. Não há previsão de término; numa
palavra, há um cansaço em suspensão, uma atmosfera algo viciada que descansa sobre os
restos dos animais.
Há um silêncio perante as portas fechadas da agência, um vazio (kenosis) que nos
provoca o olhar, que é ocupado pelo rosto emudecido do homem rural comum, e não
como um. Na chamada jornalística tem-se: “Em protesto com gado morto na PB,
agricultores pedem perdão de dívidas (...) Associação quer perdão das dívidas de 111 mil
agricultores. Banco do Nordeste diz que vem negociando conforme determinação
legal”... Ou, traduzindo: valendo-se da máscara da carcaça, esse rosto do homem da seca
clama pelo perdão das dívidas, evoca o “não me mates!” levinasiano. Ele quer ser
considerado como interlocutor, quer ser contado, na expressão de Rancière, em sua
singularidade; por isso performa a cena dissensual.
Tal sofrimento implícito à imagem e explicito ao rosto do sujeito que performa é,
todavia, vestigial à visão e, como tal, revela o esgarçamento social e econômico
produzido pela situação do dito e do visto sobre a seca, seja ela urbana ou rural.
Os homens, sem nomes, deslocados como carcaças do campo para a cidade
17
esperam o reconhecimento de seus rostos pelo Banco. Mas até quando? Não sabemos.
Diante do assujeitamento financeiro, manifestando-se publicamente entre o isto-foi das
carcaças, os produtores rurais querem dizer em público e com isso constituem meios de
subjetivação estéticos e políticos provocativos.
As duas imagens analisadas contrapõem-se e convergem em vários aspectos.
Todavia, é importante destacar que em ambas a presença da máscara como elemento
agenciador do assujeitamento protagoniza o visto e o dito. Mas a máscara, ao ocultar,
passa a revelar contradições que se desdobram dos elementos estéticos para as
problemáticas políticas concernentes à seca.
No primeiro caso a “sereia” canta o descalabro emulado pelo Estado, promove uma
cena de dissenso circunscrita à represa; mas não rompe completamente com os limites da
ordem de polícia (centro-periferia), visto que privilegia o espaço urbano em sua
narrativa. A sereia não se associa a outras subjetividades, como, por exemplo, a sertaneja
– seja do nordeste, seja das favelas urbanas. No segundo caso, as “carcaças” silenciosas
esperam e contra-aparecem (periferia-centro). A primeira carnavaliza e a segunda grita
por meio da mudez presente em suspenso na imagem. Mas ambas, em maior ou menor
intensidade, subvertem: levam a sereia ao deserto e o gado morto ao asfalto.
Essa movimentação nos convoca à escuta do rosto, que não está encapsulado na
imagem ou no texto, mas se apresenta nos interstícios das relações entre esses e o
spectador. O rosto é revelado na subjetivação dos elementos estéticos que clamam por
reconhecimento, seja no rosto fissurado pelo desespero urbano sedento, acuado pela falta d
´água; seja no rosto endividado que aguarda o perdão. Ambos constituem vozes assombradas
pela carestia, fruto dos excessos, em que outra mítica aparição se revela: a do diabo.
Evocando a afirmação roseana, há um "o diabo na rua, no meio do redemoinho", a quem, não
raro, nos negamos ver ou escutar.
No limite dessa análise, somos levados a nos perguntar que “rosto” teria a água nessas
cenas, uma vez que é ela um elemento ausente nas duas imagens e – pelo mesmo peso de sua
ausência, a água se faz emergir da invisibilidade totalizante à política ambiental que
considera as subjetividades e suas expressividades.
18
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19
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