A RESPOSTA GAY Alípio de Sousa Filho [email protected] “Acho que o que mais perturba quem não é gay é a forma de vida gay, e não os atos sexuais. (...) O que muitas pessoas são incapazes de tolerar é a possibilidade de que os gays sejam capazes de criar tipos de relações não previstas até agora.” Michel Foucault 1. Para começo de conversa: que é a homossexualidade? Não é mais desconhecida a formulação teórica (na psicologia, antropologia, sociologia, pedagogia etc.) que define a homossexualidade como uma orientação sexual para pessoa do mesmo sexo. Deve-se evitar, contudo, a confusão de pensar que apenas a homossexualidade é uma orientação sexual (com talvez mais a bissexualidade), acreditando-se que a heterossexualidade seria outra coisa diferente de uma orientação. Aqui, quando se forjaria o engano de se pensar a heterossexualidade como inata, natural, uma realidade à parte dos demais casos das chamadas “orientações”. Que tem sido definido como orientação sexual? Em geral, define-se a orientação sexual como a atração e o desejo sexuais (paixões, fantasias) de uma pessoa por outra de um gênero particular, portanto, como a direção da atração e do desejo nas escolhas sexuais. Assim, reconhece-se a bissexualidade (atração por dois gêneros; em geral, pensamos nos homens e mulheres que se sentem atraídos, igualmente, por homens e mulheres), a homossexualidade (atração pelo mesmo gênero), a heterossexualidade (atração pelo gênero oposto) e, certamente, considerando a diversidade do desejo humano, e a própria complexidade do sexual, as orientações sexuais não terminam com essas variantes nem podem ser simplificadas ao preço de uma nomenclatura que pode dizer muito pouco do que elas são, assim como dizer muito pouco das pessoas que praticam esta ou aquela modalidade de sexualidade. Temos ainda as relações que envolvem os transgêneros (travestis e transexuais), que, modificando inteiramente a lógica do gênero (o binarismo masculino/feminino), introduzem novos elementos para a reflexão sobre as chamadas orientações sexuais. Compreendendo que, na variação que o uso do termo pode ter, incluindo as apropriações conservadores, diversas expressões sexuais humanas podem ser avaliadas como “orientação sexual”, torna-se importante destacar que, para situar a homossexualidade, consideramos aqui, como orientação, modalidades do desejo que implicam eleição de pessoas para o sexo consentido, prazeroso, em relações afetivo-sexuais, dentro ou fora de casamentos, uniões, em relações duradouras ou breves. Nessa perspectiva, a existência de orientações sexuais diferentes situa a questão no campo das liberdades individuais (e aqueles que falam de “opção”, “preferência” não deixam de ter razão; voltaremos ao assunto mais adiante), não se devendo permitir, todavia, que a defesa da liberdade de orientação sexual seja confundida, como o pensamento conservador tenta fazer crer, com uma suposta “reivindicação de liberdade para todos os atos sexuais”, quando as orientações são equiparadas até mesmo aos atos praticados sob violência, agressão, constrangimento. Visa-se aí invalidar as manifestações em favor de orientações sexuais estigmatizadas ou marginalizadas, que passam a ser perversamente confundidas com uma suposta defesa de uma “liberdade absoluta em matéria sexual”. Contra essa manipulação, podemos lembrar o que Michel Foucault assinalou em certa ocasião: refiro-me à liberdade de escolha sexual, e não à liberdade dos atos sexuais, porque há atos sexuais, como o estupro, que não devem ser permitidos, independentemente de seus sujeitos serem um homem e uma mulher ou dois homens. Não acho que se deva perseguir a consecução de nenhum tipo de liberdade absoluta ou de liberdade total dos atos sexuais. No que diz respeito à liberdade de escolha sexual, contudo, precisamos ser absolutamente intransigentes. Essa liberdade inclui a liberdade de expressão dessa escolha, quer dizer, a de torná-la pública e a de não torná-la pública (FOUCAULT, 2005, p.16). Como vimos, as orientações sexuais envolvem relações de gêneros. A questão do gênero já foi discutida amplamente (SCOTT, 1990; HEILBORN, 1992; LOURO, 2002), embora não se esgote (as reflexões de BUTLER, 2003; IRIGARAY, 1977; WITTIG, 1973 são exemplos). O desvio que aqui faremos, ao nos referirmos às categorias de gênero e identidade, justifica-se pelas relações (mas, igualmente, pelas confusões) existentes quando o assunto é orientação sexual ou sexualidade em geral. De fato, quando se trata das sexualidades de homens e mulheres, logo aparecem juntas as concepções do que é ser masculino e feminino, homem e mulher na sociedade. Quando as homossexualidades masculina ou feminina são mencionadas, não é apenas a orientação sexual que vem à tona, mas todo um conjunto de representações, imaginários, etc. que se referem à identidade sexual, ao gênero, aos papéis sociais/sexuais etc. Para o caso dos homossexuais masculinos, por exemplo, representações que deixam ver as formas pelas quais a sociedade procura construir “o homem”, pois, este não apenas não pode ser “como uma mulher”, ele também não pode ser o que não seja o estereótipo social do homem, produzido pelo e no discurso masculinista, em correspondência com a política da heterossexualização compulsória.1 Numa definição limitada e, por isso, que se torna necessário afastar, o gênero é a conformação física, orgânica, celular, particular que permitiria distinguir, nas espécies, os machos e as fêmeas e, na espécie humana, o homem e a mulher, o sexo masculino e o sexo feminino. Contudo, na vida de homens e mulheres, o que é chamado de “gênero” é uma construção histórica e social que se configura numa relação com o que, em cada cultura e época histórica, se define como sendo a identidade sexual, os papéis sexuais, idéias de masculinidade, feminilidade etc. (HÉRITIER, 1996; BADINTER, 1985; 1986; 1992; BOURDIEU, 1999) e, mais importante ainda, como adverte Judith Butler (2003), não se reduzindo o “gênero” nem o “sexo” a apenas “dois”, como se a “construção” cultural/social se desse sobre o “dado” pré-existente, “fixo” e “imutável” dos sexos anatômicos “naturais”. Nesses termos, uma definição ainda prisioneira da ilusão binarista que separa os gêneros humanos em apenas “dois”, a partir de derivá-los do sexo biológico, pela “crença numa 1 Para os termos masculinismo e heterossexualização compulsória, cf. Judith Butler, Op. Cit., passim. relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito” (BUTLER, idem, p. 24 e segs). Para a autora, embora não exista um corpo neutro, o status verdadeiramente construído dos gêneros e igualmente dos sexos deixa todas as indicações para se entender que, nesse âmbito, toda “metafísica da substância” (ibid, p. 29 e segs), fazendo crer na existência de “substâncias” e “essências” de sexo e de gênero, como coisas pré-existentes à própria cultura (linguagem, discurso), torna-se, por excelência, o mecanismo ideológico da fabricação de uma ilusão que se impõe como verdade inabalável: dois sexos, dois gêneros. Os segundos como decorrências naturais dos primeiros. Modo ideológico de representar a realidade do sexo humano e as “marcas de gênero” (ibid, passim) nos corpos que, dentre outros efeitos, concorre para a produção e sustentação da falsa idéia da diferença sexual como dada a priori, em algum plano (biológico ou “outro”, na metafísica da substância), e da idéia correlata-imediata da heterossexualidade como igualmente natural e inata. Tudo o que não se enquadra nesse esquema passa a ser considerado da ordem do “desvio”, do “bizarro”, da “anomalia”. Esquema fundador dos preconceitos e da discriminação contra homossexuais e, igualmente, contra transgenêros, travestis, transexuais. Em geral, ao gênero se vincula uma identidade sexual, mas, como advertem os estudiosos do assunto, essa relação entre gênero e identidade é uma realidade bem mais complexa, na qual também está presente o elemento da plasticidade, fluidez, diversidade: “o modelo biológico do masculino e do feminino é válido para a definição celular; mas seria ilusório pensar que a identidade sexuada poderia ser definida a partir do biológico” (CECCARELLI, 1998, s/p). A orientação sexual, na maior parte dos casos, não interfere na identidade sexual, que consiste na maneira como cada um se representa e relaciona-se socialmente com os demais, individualizando-se e constituindo uma consciência de “persistência” do que se “é” como homem, mulher, masculino, feminino. Fenômeno tanto individual como coletivo, a identidade é, igualmente como o gênero, uma construção cultural/social e histórica, uma aquisição, e é uma performance, uma atuação. O que chamamos de identidade sexual é uma construção ligada a práticas sexuais, mas, da mesma maneira, ligada também a estilos de vida que asseguram, para cada um, contextos de identidades coletivas, nos quais se definem pares, iguais, com quem se vai estabelecer relações sociais, e realizar desejos sexuais específicos. Nesse sentido, a identidade corresponde ao modo como o próprio indivíduo se vê e à representação com a qual a sociedade o enxerga. Assim, contrariamente ao que imagina a opinião popular, um homossexual masculino, por exemplo, não se sente identificado (como que por conseqüência) com o “sexo feminino”, não se sente “mulher”, assim como a mulher lésbica não se sente identificada com o “sexo masculino”. O que não deve ser entendido como modelo, pois casos podem haver nos quais essas identificações existam. Nada disso sendo fixo, estático; as identidades sexuais e de gênero são fluídas, linhas de fuga, contínuo fluxo, potência, desempenho, performance etc.2 Ainda é predominante no senso comum social a crença que, associadas à conformação biológica, existem características admitidas como “típicas” do comportamento de homens ou de mulheres. Certas dessas características, “constatáveis” na maioria dos homens e mulheres, seriam “naturais” de cada sexo (anatomicamente definido). Algumas seriam “de homens”, outras, “de mulheres”. Uma tal visão (que não é apenas espontânea, mas reiterada pelos discursos ideológicos da família, escola, meios de comunicação etc.) nega que o gênero, a identidade sexual e suas representações são invenções e acréscimos culturais, não devendo nada ao biológico como tal.3 Variando com as culturas, os “sexos” das crianças são cercados de expectativas familiares e sociais e, desde o nascimento, essas expectativas direcionam os caminhos que constituirão crianças em “homens” e “mulheres”. Não sem razão, Simone de Beauvoir, em seu O Segundo Sexo (2000; 2001), escreveu frase que já se tornou obrigatório citar quando o assunto é gênero: “on nait pas femme, on le devient” (que poderia ser traduzido por “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”), claramente para dizer que se nasce com um sexo anatômico, mas o sexo não causa o gênero: o gênero é uma “experiência vivida”, o gênero é 2 Recomendo, sobre o assunto, a leitura do texto de Alexandre Fleming Câmara Vale “O riso da paródia: transgressão, feminismo e subjetividade”. In: VALE, Alexandre Fleming Câmara e PAIVA, Antonio Cristian Saraiva (Orgs.). Estilísticas da sexualidade. Fortaleza: Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC; Campinas: Pontes Editores, 2006. 3 Curioso ver, hoje, o retorno de um discurso biologizante, como o que se pode verificar nos escritos da chamada sociobiologia e da psicologia evolucionista, que insistem em questionar as ciências sociais e a primazia da cultura sobre o homem, pretendendo que práticas, crenças, comportamentos humanos e sociais têm origem na biologia do ser humano: seriam genéticos, hereditários, fisiológicos etc. Exemplos dessa visão são os escritos de Steven Pinker (2004), Robert Wright (1996), Robert Winston (2006), entre outros. “adquirido” (BUTLER, idem, p. 163). E embora a fabricação de homens e mulheres ocorra em experiências bastante distintas, as palavras de Simone de Beauvoir poderiam igualmente ser aplicadas aos homens. Com efeito, não se nasce nada, tornamo-nos; homens ou mulheres, somos construções culturais, sociais e históricas. Não contestamos o uso do conceito de orientação sexual para pensar a homossexualidade. Embora, como já assinalamos, não se deva pensar apenas neste único caso ao aludir-se ao conceito. E é importante destacar que sua utilização é considerada, pelo movimento gay, em muitas partes, embora não sem uma calorosa discussão4, um avanço e uma conquista política, no esforço de desconstruir a categorização médica e ideológica, discriminatória da homossexualidade como “doença”, “suspensão do desenvolvimento sexual normal”, “inversão sexual”. O termo “orientação sexual” surge na década de 1980, em substituição ao conceito de "preferência sexual", uma criação dos anos 70.5 A esse propósito, no contexto em que a discussão sobre o uso do conceito se desenvolvia no Brasil, nos anos 1986-1987, o antropólogo Peter Fry fez uma feliz observação (e não menos cheia de humor), que, embora simples no dizer, resume, sem floreios e sem o embuste ideológico das explicações psicologizantes, o que talvez não se devesse esquecer: a orientação sexual simplesmente descreve o que uma pessoa acabou gostando em matéria de parceiros sexuais. Uns acabam gostando de pessoas do mesmo sexo, outros de pessoas do sexo oposto, outros de ambos, e, quem sabe, outros de ninguém, ou de outras coisas (FRY apud CÂMARA, 2002, p. 102). Com efeito, para um uso crítico do conceito e para evitar possíveis apropriações preconceituosas e conservadoras, torna-se importante dessubstancializar a orientação sexual, relativizando o papel que as variáveis psicológicas e pedagógicas ocupam no conceito, que às vezes tornam a orientação sexual uma substância em si (algo quase natural, universal). O que poderá fazer que se acredite, mais uma vez, que os indivíduos portam algo (“a 4 A esse propósito, cf. Elisabeth Badinter, Op. Cit., pp. 167-171. Para situar a maneira como o conceito de orientação sexual chega e é apropriado no Brasil, é esclarecedora a leitura de CÂMARA, Cristina. Cidadania e orientação sexual: a trajetória do grupo Triângulo Rosa. Rio de Janeiro: Academia Avançada, 2002. 5 orientação”) identificável a uma sexualidade fixa, inteligível, coerente, inteira, um conjunto de atributos idêntico a si mesmo, provavelmente também “com uma gênese específica”. Para evitar a substancialização psicologizante da orientação sexual, é importante trazer a reflexão sobre o assunto para o terreno da reflexão antropológica, sociológica e política. A orientação sexual é uma construção subjetiva, certo!, como expressão do desejo obedece, em grande medida, a determinações inconscientes, tornando-se singular, mas é igualmente uma construção que envolve direcionamentos conscientes e que são definidos em termos sociais e identitários políticos. Não se devendo entender, por desejo e por inconsciente, termos negativos, como em conceituações que os definem como o que “escapa ao controle”, “insatisfação que não encontra objeto” etc. Notadamente a idéia de “inconsciente” como aquilo que “foge ao controle racional”, como se se tratasse aí de uma realidade inferior, baixa, a ser evitada, que mereceria alguma reprovação, ou a idéia demasiadamente reducionista de desejo, como uma força desgovernada, sem fins, desmedida, e “a disciplinar”, não raro serve para enquadrar, como “desvios”, “perversões”, “patologias”, os desejos sexuais que fogem ao modelo da heterossexualização procriativa. Constituída de prazeres, sensações, fantasias, imaginação, práticas eróticas etc., a orientação sexual é construída nos embates subjetivos e sociais, produzidos nas interações, sob padrões culturais, relações de poder, idéias sociais, configurando-se como um fenômeno individual tanto quanto coletivo. A orientação sexual é construída na relação do indivíduo com os padrões culturais de gênero, na sua relação com o seu próprio mundo psíquico, com os caminhos percorridos por cada um nas relações familiares e sociais, nas relações no interior da cultura como um todo. Produz-se no contínuo processo de subjetivação do indivíduo pela e em sua sociedade. E emerge em contextos nos quais a questão identitária política passa a ser uma componente importante. Todos esses fatores interagem em um complexo sistema, constituindo um processo único, que se trate de heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, transexualismo etc. Uma orientação sexual constitui uma direção do desejo, sua expressão, uma manifestação das possibilidades sexuais e eróticas humanas, sempre contextualizadas e socialmente comuns a muitos indivíduos. Expressa as possibilidades, a pluralidade e a plasticidade humanas no terreno da sexualidade, como em outros. De todo modo, convém assinalar, o conceito de orientação sexual, embora mais crítico, não deve levar a que se acredite que serve para distinguir pessoas, falar de suas afetividades, suas práticas sexuais, reduzindo-as a categorias que inventamos – heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade ou outra –, todas falíveis, que não apreendem nem resumem o que é uma pessoa, em sua pluralidade como ser, em seus desejos, suas atividades sociais. Nem mesmo deve levar a pensar que a orientação sexual encerra alguém dentro de práticas sexuais exclusivas e eternas. E mesmo deve-se saber que tudo isso – a preocupação com definir a “orientação sexual” de alguém, discutir o que se é a partir do que se faz com seu próprio sexo etc., dividir as pessoas por categorias sexuais – é coisa recente e característica de uma época e sociedade particulares. Talvez não haja erro em dizer – como assinalou John Boswell (1998), ao revelar as diferenças históricas e sociais no modo como a homossexualidade foi encarada no ocidente europeu, nem sempre como algo negado e a ser reprimido, e como, repetidas vezes, assinalou Michel Foucault (1979; 1984; 1985; 2004) – que se trata de prática pertencente a culturas ocidentais modernas, opressivas em suas obsessões morais, que acreditam arrancar a “verdade” dos indivíduos a partir da confissão de suas “partes mais secretas”, logo quando as próprias fantasias dessa obsessão se voltam para os prazeres do sexo, paras as práticas eróticas dos indivíduos. Como era comum às suas análises, Michel Foucault foi taxativo em declarar que a própria idéia de “sexualidade” (como “verdade do sexo e de seus prazeres”, “substância” penetrável, decifrável, tratável, confessável, e que define o “comportamento” de cada um) é uma invenção do discurso médico do século XIX, que vem instaurar uma nova divisão entre a norma e o desvio (FOUCAULT, 1985). Não fizemos, até aqui, a discussão sobre a validade do uso dos termos homossexualidade e homossexual, que, como já se sugeriu, são limitados e deveriam ser substituídos por outros: gay, homoerotismo etc. (Boswell, idem; Foucault, 2005; Costa, 1992). Palavras que afastariam a conotação pejorativa e a alusão a todas as figuras ideológicas que marcam a história dos termos homossexual e homossexualidade. Em seu Cristianismo, tolerancia y homosexualidad, John Boswell, embora não descarte inteiramente usos do termo “homossexualidade”, destaca que “homossexual” é termo que “sugere implicitamente que a característica distintiva primária dos gays é sua sexualidade” (BOSWELL, idem, p. 68), e esta, como sabemos, definida em termos médicos (a inventada “inversão” sexual, “disfunção”, “desvio”), enquanto que o termo gay estaria livre dessa conotação. Boswell expõe aspectos históricos importantes que se torna valioso conhecer: a palavra “gay” antecede em vários séculos a “homossexual” e, em geral, emprega-se com muita mais precisão: a maior parte dos falantes se refere com ela a pessoas conscientes de sua preferência erótica por pessoas de seu próprio sexo” (ibid, p. 66). E mais adiante: a palavra provençal gai se usava nos séculos XIII e XIV em referência ao amor cortês e à sua literatura, e persiste no catalão – o parente vivo mais próximo do provençal – para designar a “arte da poesia” (gai saber), um “amante” (gaiol) e uma pessoa abertamente homossexual. Não é claro que, nesse último sentido, o termo não tenha sido tomado do inglês, mas semelhante contaminação não constitui prova alguma de que, em um momento anterior, gai não significasse “homossexual”. Onde o culto do amor cortês alcançou mais popularidade foi no sul da França, zona conhecida pela sexualidade gay, e certa poesia trovadoresca era explicitamente homossexual. (...) É possível que, fora das áreas familiares, gai também adquira conotações homossexuais com todo o alcance do erotismo trovadoresco. (...) No início do século XX, o termo “gay” era comum na subcultura homossexual inglesa, como contra-senha ou como código (ibid, p. 453). Por sua vez, Michel Foucault, seguindo Boswell, acreditava que o termo gay, em lugar de homossexual, “contribui para uma avaliação positiva (...) de um tipo de consciência em que a afetividade, o amor, o desejo e a relação sexual interpessoais assumem uma importância decisiva" (FOUCAULT, 2005, pp.12-13). Considerava que “do ponto de vista das definições, inclusive, a palavra “homossexualidade” não tem muito sentido” (ibid, p. 22). Embora não deixemos de reconhecer a importância da questão, e mesmo suas implicações para formulação de objetivos políticos, não faremos essa discussão aqui. Por agora, consideraremos que se torna importante não abandonar o emprego dos termos homossexualidade e homossexual, pela própria necessidade de questionar o que tem sido afirmado preconceituosamente com seus usos. E talvez seja mesmo o caso de admitir, esses são termos que conhecem uma utilização e uma difusão tais que não se torna mais possível removê-los. O caso agora é buscar defini-los contra os preconceitos que suscitam. Definir-se homossexual (ou seus equivalentes, gay, lésbica etc.) tornou-se uma atitude de afirmação política, de identidade política, com seus riscos, mas cujo sentido é esvaziar as conotações pejorativas que acompanharam o termo e, principalmente, subverter a conotação do homossexual como objeto clínico, criada pelas ciências médicas nas sociedades ocidentais modernas (em que teve grande papel a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise). Afirmar-se homossexual é afirmar-se como sujeito político de desejo e de direitos. A essa questão se associa uma outra, não menos polêmica. Desde que passou a ser concebida como uma orientação sexual, a idéia da homossexualidade como uma opção sexual passou a ser contestada. De fato, considerando os aspectos complexos, difusos e cambiantes que se entrecruzam no sexual, não se pode pretender que uma orientação sexual seja, de maneira absoluta, uma “opção”. Mas, nem liberdade absoluta nem determinação completa, no âmbito do sexual, e este tomado aqui como um fato social e de cultura, e não obstante as lacunas do conhecimento sobre o que é o sexual, há o que nele é de começos múltiplos, inexatos, imprecisos, vagos, não conscientes (e talvez tudo isso em maior grau), mas há igualmente o que pode ser atribuído a decisões racionais do indivíduo. Não é demais repetir, o mesmo valendo para todas as modalidades de orientação sexual. Nesse sentido, não se torna de todo inexato ou inadequado o uso dos termos opção e preferência, quando utilizados em contextos em que a questão identitária política se apresenta como importante para a referência a, principalmente, orientações sexuais socialmente estigmatizadas, marginalizadas – situando-se aqui os casos dos gays, lésbicas, travestis, transexuais etc. Deve-se admitir, então, que, nesses casos, tendo ao redor de si o violento trabalho de colonização da sociedade inteira para que todos sejam heterossexuais, alguém afirmar que sua orientação sexual é uma tomada de posição, uma escolha, uma opção (identitárias, políticas) é ação mais do que apropriada à finalidade política a que se destina. Por força do preconceito, entre os homossexuais, por exemplo, há aqueles que permanecem escondidos, clandestinos, reprimidos, no “armário” (como ressalta a gíria gay), enquanto há outros, e, hoje, cada vez mais, que optam por assumir sua sexualidade, de maneira pública e política. Como não falar aí de opção, escolha? Nesse sentido, reproduzirei aqui os termos do antropólogo e professor da UFBA Luiz Mott, ao manifestar-se sobre o assunto em discussão na [email protected], não sem antes dizer que considera adequado o termo orientação sexual: não é pecado mortal nem erro grave utilizar eventualmente opção sexual em vez de orientação sexual (...) e também porque, em certos contextos e para milhões de GLBTs, há sim OPÇÃO, p.ex., em assumir ou não se assumir, em adotar estilos diferentes de vivência homossexual (MOTT, [email protected], s/p) Definida como orientação, opção, preferência, tendência, quaisquer que sejam os termos, o que é mais importante é evitar a queda na ilusão produzida pela ideologia6 (poderíamos aqui voltar a mencionar a “metafísica da substância”), que, não possibilidade saudável, enxergando a positiva legítima, e homossexualidade variante como uma alternativa à heterossexualidade, procura fazer crer que se trata de fenômeno para o qual concorre uma causa específica (biológica, social, psicológica ou outra) que o afasta e o diferencia (como “desvio”, “interrupção” etc.) do fenômeno da constituição da sexualidade humana em geral. Como se sabe, diversas são as tentativas ideológicas de “explicação” das “causas” da homossexualidade, mas, até aqui, o que não se disse é que as “pesquisas” e as “explicações” sobre as “causas específicas” da homossexualidade, e que se queira defendê-la ou atacá-la, são quedas na ideologia, em alguns casos puras fraudes no campo 6 Para o que chamo de ideologia, ver SOUSA FILHO, Alípio. Medos, mitos e castigos. São Paulo: Cortez, 2001, e igualmente SOUSA FILHO, Alípio. Cultura, ideologia e representações sociais. In: CARVALHO, Maria do Rosário; PASSEGGI, Maria da Conceição; SOBRINHO, Moisés Domingos (Orgs.) Representações sociais. Mossoró, Fundação Guimarães Duque, 2003. científico ou moral.7 Trata-se de preconceito e ideologia disfarçados em ciência, teoria, pois simplesmente não há o que se possa chamar de “causas específicas” que produzem a homossexualidade, do mesmo modo como não há o que se apontar como “causa específica” da heterossexualidade, bissexualidade etc. Aliás, se na mesma proporção em que se falou ou escreveu sobre as “causas específicas” da homossexualidade tivessem sido produzidas teorias que buscassem as “causas específicas” (a psicogênese) da heterossexualidade, talvez nossa época não continuasse mais a destacar a homossexualidade como uma sexualidade à parte, e não mais se falaria nem se escreveria sobre o assunto8. E como escreveu Boswell: Concernente à etiologia, deve-se observar que as “causas” da homossexualidade somente constituem um problema importante para as sociedades que consideram os gays como indivíduos estranhos e anômalos. A maioria das pessoas não se pergunta pelas “causas” das características estatisticamente ordinárias, como o desejo heterossexual ou o uso da mão direita; somente procuram “causas” de atributos pessoais que se supõem à margem dos padrões ordinários da vida. No mundo antigo, eram muito poucos aqueles que consideravam rara ou anormal a conduta homossexual, os comentários sobre sua etiologia são muito escassos (BOSWELL, idem, p. 73). Se há que se falar de causa, a causa da homossexualidade é a mesma de toda expressão/orientação sexual, a mesma da sexualidade humana como tal: libido, desejo, erotismo, afetividade. Aqui, entendidos como forças que, em cada um de nós, atuam e interagem na produção da nossa subjetivação pela 7 Tratei do tema em um outro trabalho. Cf. SOUSA-FILHO, Alípio. “Teorias sobre a gênese da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude”. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.) Educação e diversidade sexual: problematizando a homofobia na escola brasileira. Brasília: Ministério da Educação, 2007. (Coleção Educação para Todos). 8 Em seu XY: De l’idendité masculine, Elisabeth Badinter menciona alguns exemplos do que, depois de 1852, com um dos primeiros escritos sobre os “pederastas”, produzido na Alemanha por médico legista, tornou-se freqüente, e até nossos dias, e admitido como estudos que apresentariam a “causa” da homossexualidade (ver, principalmente, as páginas 162 até 167). Igualmente, John Boswell, em Cristinanismo, tolerância y homosexualidad, menciona publicações nas quais as “causas” da homossexualidade são especuladas, de Krafft-Ebing a Edward Wilson (ibid, p. 439). Ver, ainda, observações críticas sobre a idéia de uma causa específica para a homossexualidade, FRY, Peter FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. cultura, por um dado sistema de sociedade. E forças que nos mobilizam a construir caminhos, escolhas, potencialidades, com menos ou mais consciência, em cada circunstância da existência. Assim, heterossexualidade, homossexualidade ou bissexualidade são nomenclaturas usuais (todas com sentidos culturais e históricos) para direções do desejo, da libido, da afetividade. Todas essas orientações são modos possíveis de expressão da sexualidade que podem aparecer na vida de um indivíduo, sem que sejam fixas e inevitáveis. Desestabilizando ingenuidades e confrontando à opinião comum, as esferas do desejo, da libido e da sexualidade são possibilidades abertas e sempre mais surpreendentes, superando toda predeterminação e naturalismo. A nosso favor, mais uma vez, citaremos o psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli: “Tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são posições libidinais e identificatórias que o sujeito alcança dentro da particularidade de sua história” (CECCARELLI, 2000, s/p.). No âmbito do desejo e da sexualidade, toda procura de inteligibilidade – causas específicas – está fadada a cair em preconceitos, nos discursos de poder, na ideologia, porque buscarão determinações sempre arbitrárias, reducionistas, e sob o domínio dos discursos de normalidade social. Do ponto de vista de uma constante antropológica e psíquica, ninguém está afastado da possibilidade de práticas eróticas com pessoas do mesmo sexo, de relações homossexuais. Não há o que se possa chamar de prédisposição (inata ou adquirida) à homossexualidade em alguns e sua inexistência absoluta em outros, como algo determinado por movimentos internos do psiquismo ou como fenômeno enzimático-endocrinológico. Freud, por mais que tenha fechado algumas vezes a via crítica aberta por ele próprio (é dele a idéia que a homossexualidade é “uma suspensão do desenvolvimento sexual normal”, que se conserva ainda hoje entre certo número de psicanalistas, psicólogos e sexólogos), deve ser lembrado entre os autores que indicaram a existência de uma “bissexualidade psíquica originária” no ser humano (FREUD, 1972, 1974; cf. também ROUDINESCO, 2002, p. 41). O que torna possível pensar que é somente à custa de prolongada domesticação cultural que essa disposição psíquica desaparece para dar lugar à heterossexualidade ratificada como “normal” e “em conformidade com a natureza” – o que Judith Butler chamou de heterossexualização compulsória do desejo. Freud, embora todas as ambigüidades que se possa anotar em suas reflexões sobre o assunto9, não deixou de anotar o erro em se destacar os homossexuais, “colocando-os à parte” (FREUD, 1972, p. 146), e pôs em dúvida a heterossexualidade como natural: “o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo” (ibid, p.146). E observar que o próprio Freud considera a hipótese da domesticação e da “proibição terminante pela sociedade” como fator de exclusão da homossexualidade na sexualidade dos indivíduos (FREUD, 1972, p. 236; 1974, passim). O preconceito inverteu as razões e apresentou a homossexualidade como um desvio de um suposto desenvolvimento normal, quando se trata de uma variante da sexualidade existindo em todos, mas inibida pela sujeição cultural – através da ideologia da heteronormatividade. A própria normalidade não sendo mais do que uma construção simbólica reversível, mas que, para se perpetuar, procura todos os meios de sua naturalização e divinização. 2 . A resposta gay A recusa da homossexualidade como uma orientação sexual de mesmo caráter que qualquer outra e a recusa em admitir a opção daqueles que escolhem assumir (pública e politicamente) a vida gay convertem-se no que, hoje, é conhecido como homofobia10. De fato, por diversos acontecimentos, atos e pronunciamentos, há todas as razões para se falar de homofobia na relação de diversas pessoas e setores da sociedade com os homossexuais e a homossexualidade. Se verificamos a etimologia do termo fobia, vamos encontrar a palavra grega phóbos. Este é termo que significa “pavor” e “ação de horrorizar, amedrontar, dar medo”. Em diversos empregos, o termo fobia passou a 9 Para uma contribuição à interpretação crítica do pensamento de Freud, no tocante à homossexualidade, sugiro a leitura do artigo de Ricardo L.L. Barrocas, “A relação entre uma ordem das homossexualidades masculinas e a heterossexualidade atípica da histeria de angústia”. In: VALE, Alexandre Câmara e PAIVA, Cristian Saraiva (Orgs.). Estilísticas da sexualidade. Fortaleza: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC; Campinas: Pontes Editores, 2006. 10 Conforme Elisabeth Badinter, o termo foi criado em 1972, por George Weinberg, e significaria “medo de contato com homossexuais” (Op. Cit., p. 173) designar o “medo doentio, impossível de ser dominado” ou o “horror a”. A homofobia, então, passou a ser definida como o horror aos homossexuais, que pode chegar a formas do ódio, como nos casos da agressão física ou do assassinato. Porém, podemos acrescentar, a homofobia é igualmente as tentativas de horrorizar, gerar pânico, amedrontar gays, lésbicas, travestis, transexuais, por suas condições e posições, e em circunstâncias diversas. Assim, a própria existência do preconceito em torno da homossexualidade é já homofobia e há práticas homofóbicas quando temos o preconceito em suas manifestações mais sutis, e não importa como seja praticado: um simples olhar, um gesto, uma pilhéria, zombaria. A homofobia é igualmente praticada quando se tem o assédio moral nas relações de trabalho, relações de vizinhança e nas relações no espaço público em que homossexuais sejam constrangidos, chantageados, ameaçados. Na esfera privada, a homofobia tem um de seus exemplos nas manifestações do preconceito na família. A apreensão e a recusa de que filhos gays, lésbicas, travestis etc. não cumpram as expectativas ou convenções morais e sociais: a procriação, a continuidade da família etc. faz com que, no caso de não poucas famílias, jovens e adultos sejam cercados de controle, insinuações, observações ou sejam violentamente perseguidos. Em nossas sociedades atuais, e a sociedade brasileira se insere no cenário com destaque, a homofobia tem sido admitida e praticada com o consentimento dos poderes legalmente constituídos e de diversas instituições religiosas, jurídicas, pedagógicas, políticas. Nos últimos anos, de instituições como a Igreja Católica, através de seus chefes, a Governos de diversos países, passando por intelectuais e políticos, o preconceito homofóbico é manifestado abertamente e reivindica seu direito de afirmar-se como uma verdade. Na sociedade brasileira, ninguém desconhece os ditos sociais do tipo “prefiro um filho ladrão a ter um filho gay” ou “prefiro um filho morto a ter um gay vivo” ou ainda “prefiro uma filha prostituta a uma lésbica em casa”, repetidos como estribilhos em muitas famílias. Uma imagem de depreciação dos homossexuais que se vê complementada no “humor” de nossas mídias, nos sermões em nossas igrejas e até mesmo nas escolas (pela boca de muitos professores!)... o que tornaria possível concluir que ser gay seria a pior das coisas. Explicando-se assim talvez porque a sociedade brasileira está entre as que mais praticam crimes de homofobia (MOTT, 2001). A resposta dos homossexuais (homens ou mulheres) é a vida gay como exemplo. As uniões homossexuais existem de fato e os casais homossexuais constituem, hoje, parte da diversidade da família em diversos países. Contrariando a opinião popular, a de conservadores e a de correntes religiosas, que acreditam que o casamento somente se consuma nas uniões de homens com mulheres, os gays, lésbicas, travestis e transexuais vivem uniões afetivas em relações duradouras, organizam famílias, tendo seus próprios filhos ou adotando-os. Os homossexuais constroem lares, moram sob o mesmo teto, têm amigos, saem de férias. Casais de homens ou de mulheres vivem juntos muitos anos: três, seis, dezessete, vinte e cinco, cinqüenta anos. Compram juntos carros, casas, apartamentos. Brigam e fazem as pazes como qualquer casal. E também se separam. O amor e o sexo entre dois homens, como entre duas mulheres, realizam-se igualmente como ocorrem entre um homem e uma mulher, e são também obras de amizade e de ternura. O que se tem feito, até aqui, conservando-se o preconceito, é fazer sofrer um grande número de pessoas que poderiam viver mais felizes não fosse o preconceito, a discriminação; sendo muitos os homossexuais que gostariam de partilhar suas vidas com pais, irmãos e colegas, partilhar problemas, alegrias, sonhos. A resposta gay vem, pouco a pouco, destruindo as falácias do discurso conservador. E uma dessas últimas falácias é a questão da incapacidade dos homossexuais educarem crianças. A vida de casal dos homossexuais funciona igualmente como a de casais heterossexuais e, assim, a educação de crianças pode nela ocorrer igualmente. É falso o ponto de vista segundo o qual a criança, para se constituir psíquica e socialmente, necessita obrigatoriamente da presença de um homem e de uma mulher como referentes simbólicos do masculino e do feminino, dos papéis sexuais, etc. A criança humana o que necessita é de outros seres humanos socializados que possam tomá-la a seu encargo, dando-lhe afeto e direção, fazendo-a compartilhar as significações sociais que constituem o sentido da realidade em sua cultura. Os homossexuais podem cumprir essa tarefa igualmente como os heterossexuais, seja em casais formados por homens ou por mulheres, seja um gay ou uma lésbica solteiros. A ausência de um homem (culturalmente tomado como o "pai") ou de uma mulher (culturalmente tomada como a "mãe") não "desequilibra" a educação da criança, como crêem a opinião popular e mesmo ainda certos pontos de vista que se consideram "científicos", “autorizados” a tratar do assunto (entre outros, o ponto de vista de certos psicólogos e psicanalistas11). Como demonstram inúmeras experiências e em diversos paises, e argumentam antropólogos, psicanalistas, psicólogos e sociólogos, que não se deixaram capturar pelo preconceito, crianças educadas por homossexuais crescem com os mesmos referentes culturais que as demais crianças quando se trata das distinções de sexo, gênero, identidade sexual etc., até porque não são educadas isoladas, mas em contato com todos os demais da sociedade. E, em muitos casos, tornam-se crianças mais abertas e críticas às intolerâncias sociais produzidas pelos diversos preconceitos. Educadas por pais e mães que combatem preconceitos, tornam-se crianças cujos paradigmas e modelos societários são outros. Na falácia do pensamento conservador, a educação gay estaria impedida de introduzir, na formação das crianças, a diferença sexual, por roubar da cena doméstica dois papéis que lhe seriam essenciais e insubstituíveis: o do cumprimento da "função paterna", que seria exclusivo dos “homens”, complementado pelo papel de uma “mulher”, sempre submissa e pronta a “obedecer ao marido”, que é também o pai de seus filhos. No conservadorismo, o modelo da família patriarcal, monogâmica e heterossexual é universal, eterno, natural, divino e necessário. Ora, por se tratar tão somente da função de socialização na cultura, a chamada “função paterna” é exercível por qualquer humano adulto (homens, mulheres) em condições de fazê-lo, assim como se cumpre (com os mesmos problemas, erros e acertos conhecidos de todos) se o casal for formado por dois homens ou por duas mulheres, ou ainda se a criança for educada por um homem ou uma mulher solteiros. Os homossexuais (em casais ou sozinhos) 11 Para a crítica da homofobia em psicanálise, ver o ensaio de PAIVA, Antonio Crístian Saraiva. Cartografia psicanalítica da homossexualidade. In: VALE, Alexandre Câmara e PAIVA, Cristian Saraiva (Orgs.). Estilísticas da sexualidade. Fortaleza: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC; Campinas: Pontes Editores, 2006. não vêm instalar nenhuma confusão nesse processo: crianças educadas por gays ou lésbicas crescem normais e saudáveis, sem nada a mais nem nada a menos que as crianças educadas por heterossexuais. A única coisa que podem enfrentar de diferente é o preconceito em torno da homossexualidade (dos seus pais e mães) ainda existente em nossas sociedades. Mas de outros preconceitos nossas crianças também são vítimas: racismo, quando são negras, indígenas, migrantes!, preconceito de classe, quando são pobres!, entre outros exemplos. Finalmente, uma palavra sobre uma polêmica existente entre os próprios homossexuais: lutar pelo reconhecimento legal das uniões homossexuais não é sucumbir ao integracionismo, aos modelos heterossexuais vigentes, nem é uma postura reprodutivista acrítica da moral dominante: é combater o preconceito até onde ele não pretende ser atingido. Ao reivindicarem o reconhecimento legal de suas uniões, os homossexuais desconstroem o preconceito da concepção naturalista-religiosa das uniões sexuais e afetivas, para a qual somente se pode falar de casal e de família quando se está na presença de um homem e de uma mulher, pois quando se teria a “conjugação normal” dos seres da natureza: machos e fêmeas, tornando-se possível a procriação que reproduz os próprios seres, em cumprimento a supostos desígnios, naturais ou divinos, de multiplicação das espécies. Assim como não podem continuar prisioneiros da concepção naturalistareligiosa da sexualidade, os homossexuais também não podem cair nas armadilhas de um falso projeto crítico (vindo do próprio meio homossexual) que acredita numa identidade marginal homossexual que rejeitaria toda defesa em favor do reconhecimento das uniões, da conjugalidade homossexual, da adoção etc., em nome de evitar o viés familista, e por acreditar ainda que os homossexuais, eles próprios, não constituem relações estáveis. Bem ao contrário, os números mostram a multiplicação dos casais homossexuais em todos os países, e afirmar a conjugalidade homossexual (incluindo a exigência do reconhecimento legal) é afirmar a legitimidade da diversidade, do direito à diferença, e arrancar da sociedade, do Estado, dos governantes e dos nossos representantes políticos o compromisso com o respeito à diversidade e à igualdade de direitos. Única maneira de, com efeito, podermos dizer que em nossas sociedades predominam democracias. Centrada na reivindicação de cidadania plena para cidadãos plenos, a formulação política da resposta gay é clara: não se pode mais continuar aceitando, na realidade de diversas sociedades, que se digam ou não democráticas, a cidadania pela metade que é concedida a milhares de homens e mulheres homossexuais. A defesa do reconhecimento legal das uniões homossexuais, do direito à adoção de filhos e outros direitos gays não é bandeira sem razão de ser: como paradas gays fizeram o slogan correr mundo, para indivíduos e cidadãos iguais em tudo, “direitos iguais, nem mais nem menos”. Referências BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BADINTER, Elisabeth. L’un est l’autre. Paris : Odile Jacob, 1986. BADINTER, Elisabeth. XY: De l’identité masculine. Paris : Odile Jacob, 1992 BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: fatos e mitos. v.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: a experiência vivida. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BOSWELL, John. Cristianismo, tolerancia social y homosexualidad. Barcelona: Muchnik Editores, 1998. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CÂMARA, Cristina. Cidadania e orientação sexual: a trajetória do grupo Triângulo Rosa. Rio de Janeiro: Academia Avançada, 2002. CECCARELLI, Paulo Roberto. “Homossexualidade e preconceito”. In: http://www.ceccarelli.psc.br (2000) CECCARELLI, Paulo Roberto. “Transexualismo e identidade sexuada”. http://www.ceccarelli.psc.br (1998) COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 (Ditos e escritos; V). FOUCAULT, Michel. Entrevista a James O’Higgins (1982). In: Um diálogo sobre os prazeres do sexo. Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Philosoficum. São Paulo: Landy Editora, 2005 FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro, Imago, 1972 (Obras Completas, v. VII). FREUD, Sigmund. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1974 (Obras Completas, v. XXI). HEILBORN, Maria Luiza. Fazendo gênero? A antropologia da mulher no Brasil. In: COSTA, A. O. e BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma questão de gênero. Rio de Janeiro : Rosa dos Tempos. São Paulo : Fundação Carlos Chagas, 1992 HÉRITIER, Françoise. Masculin/Féminin : la pensée de la différence. Paris: Odile Jacob, 1996 IRIGARAY, Luce. Ce sexe qui n’en est pas un. Paris : Éditions de Minuit, 1977 LOURO, Guacira Lopes. Epistemologia feminista e teorização social – desafios, subversões e alianças. In: ADELMAN, Miriam; SILVESTRIN, Celsi Brönstrup (Orgs.). Curitiba: Ed. UFPR, 2002 MOTT, Luiz. [email protected], 2007 MOTT, Luiz . Causa mortis: homofobia. Salvador: Editora do Grupo Gay da Bahia, 2001. PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ROUDINESCO, Elisabeth. “Psicanálise e homossexualidade”. In: Pulsional, Revista de psicanálise, ano IV, n. 161, set/2002. SOUSA FILHO, Alípio. Medos, mitos e castigos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001 SOUSA FILHO, Alípio. “Cultura, ideologia e representações sociais”. In: CARVALHO, Maria do Rosário; PASSEGGI, Maria da Conceição; SOBRINHO, Moisés Domingos (Orgs.) Representações sociais. Mossoró, Fundação Guimarães Duque, 2003. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. Vol. 15, nº 02. Jul/Dez. Porto Alegre, 1990 SOUSA FILHO, Alípio. “Mito e ideologia”. IN: Comunicologia: revista de comunicação e espistemologia da Universidade Católica de Brasília. Ano 0, Nº 1, 2006 (http//www.ucb.br) VALE, Alexandre Fleming Câmara e PAIVA, Antonio Cristian Saraiva (Orgs.). Estilísticas da sexualidade. Fortaleza: Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC; Campinas: Pontes Editores, 2006. WINSTON, ROBERT. Instinto humano: como os nossos impulsos primitivos moldaram o que somos hoje. São Paulo: Globo, 2006. WRIGHT, Robert. O animal moral: porque somos como somos – a nova ciência da psicologia evolucionista. Rio de Janeiro: Campus, 1996. WITTIG, Monique. Le corps lesbien. Paris : Éditions de Minuit, 1973 (Publicado em SOUSA FILHO, A. . A resposta gay. In: Francisco de Oliveira Barros Júnior e Solimar Oliveira Lima. (Org.). Homossexualidades sem fronteiras: olhares. Rio de Janeiro: BookLink, 2007, v. 1, 11-35)