DOI: 10.4025/4cih.pphuem.654 “A BIOGRAFIA DE CÉSAR: UM

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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.654
“A BIOGRAFIA DE CÉSAR: UM ESTUDO SOBRE OS PRODIGIA EM SUETÔNIO”
Renata Cintra/Unesp – Assis
Orientadora: Andrea Lúcia D. O.C. Rossi
Bolsista FAPESP – Iniciação Científica
Há uma importante produção historiográfica sobre o império romano. A partir do
século XIX, tem sido possível compreender a extensão do domínio romano pelo mundo
antigo expressos na historiografia. A sociedade romana estava intrinsecamente ligada ao seu
passado e origem. A historicidade da consciência romana, antes de tudo, é o elo entre os
antepassados e seus descendentes. Por isso ela é tão harmoniosa e tão penetrada pelo tempo,
porém no ambiente retratado, I século d.C., a conscientização mantém um caráter
profundamente público, não se torna privada ou pessoal. A detentora dessa tradição e de sua
perpetuação é a família. É essa família, antes de tudo romana e patrícia, que lhes dá o
fundamento da vida.
A família romana não é uma família burguesa, símbolo de tudo o que é privado. A família
romana é uma instituição patrícia que se une diretamente ao Estado. A manutenção desse
mesmo Estado, e seus cargos de domínio eram confiados ao chefe de família. A consciência
pública é uma lembrança concreta e orientada pela ascendência e pelas tradições. A
ascendência romana e seu passado glorificado era a representação do ideal de humanitas e de
mos maiorum.
Com as épocas helênica e romana, há o início de um processo onde ocorre à
transferência de esferas da existência do próprio homem para fora dele, e que torna-se uma
exteriorização realizada numa coletividade, e por isso a coesão dessa extroversão tinha um
caráter público. (BAKHTIN, 1988)
Nas formas biográficas da época helênico-romana há uma inversão que excluiu o
futuro. A juventude é tratada como uma antecedência da concretização da maturidade. A base
do jovem é a sua essência como homem completo normatizada pela consciência pública, há
uma dinâmica nessa situação somente pela luta de tendências e emoções e pelo exercício da
virtude em si. É por isso que a unidade dessa coesão do homem tinha um caráter público, ela
refletiria o espelhamento das suas virtudes nas dos seus antepassados, tornando-se assim o
ideal do homem público, para si e para Roma.
A literatura romana do I século d.C. tem profunda conotação política. O estudo da
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historiografia romana produzida desde o final do I século a.C., passando pelo I século de
nossa era e chegando ao início do II século d.C., não representa tudo o que os romanos
chegaram a produzir naquele campo de conhecimento, portanto suas biografias são terreno
fértil de análise, tanto de seus personagens mais memoráveis como de toda uma sociedade.
Além da produção literária, os romanos tinham como suporte para a construção desse
ideal de cidadão, a realidade concreta, cercada principalmente por um aparato cerimonial
complexo e utilitário. Nesse aparato cerimonial, o que mais chama atenção são as
representações religiosas e suas interpretações que também estão presentes na literatura. Os
prodígioss também fazem parte de um sistema manipulatório interpretativo, que vai desde os
acontecimentos naturais, ditos como augúrios, até os sonhos, considerados premonitórios.
Nesse contexto surge a biografia analítica, que tem Suetônio como seu principal
representante. Tal biografia baseia-se na análise de um material biográfico específico: a vida
social, a vida familiar, comportamento na guerra, relações de amicitia, máximas dignas de
lembranças, virtudes, vícios, aparência exterior e hábitos. É uma análise instituída através de
rubricas. Dessa forma, a série biográfica temporal está quebrada. Estes pressupostos serão
usados para a análise de Suetônio.
Suetônio reflete o pensamento geral existente nos círculos intelectuais romanos. A
construção de suas biografias mostra bem isso se observarmos que elas estão divididas em
duas partes bem distintas. A primeira parte corresponde ao período em que o biógrafo
desenvolve o discurso sobre as virtudes do imperador. Para tanto, se vale das práticas
divinatórias na exaltação das ações dos imperadores. A segunda parte é construída com o
discurso sobre os vícios e os defeitos morais e psíquicos do governante. Em resumo, as duas
partes em que se divide o texto são produzidas sobre as bases do maniqueísmo -entre o bem e
o mal- muito ao gosto do público literário romano da época de Suetônio.
Vale ressaltar que entre os doze biografados, deve ser dado destaque às biografias de
César e de Augusto que fogem a estes princípios narrativos. Esta dicotomia entre o início e o
fim de suas vidas públicas são atenuadas pois estes dois governantes, no final do Século I
d.C., são as imagens representativas do ideal governante.
A biografia, dentre os gêneros históricos, um dos mais difíceis, é reveladora, por tudo
o que desperta como declarações, descrições e ilustrações, pelas ondas que seus gestos ou
suas palavras põem em movimento ao seu redor. (DUBY, 1989)
O caráter do biografado e suas particularidades são escolhidos por acontecimentos
distintos ocorridos em épocas diferentes de sua vida, como comprovação de determinado
traço é dado um ou mais exemplos da vida desse personagem. Suetônio têm grande
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representatividade sobre essa forma biográfica, que têm caráter essencialmente público. Na
antiguidade, encontramos o início de um processo de privatização do homem e de sua vida.
(BAKHTIN, 1988)
Em De uita Caesarum, Suetônio torna-se biógrafo de um personagem tipo: o
imperador. Sua obra é uma narrativa de grande expressividade estética e de um grande
colorido, já que é um biógrafo único ao narrar e personificar seus biografados com suas
fragilidades e inconstâncias. Suetônio penetra mais e mais na vida de seus biografados ao
sondar seus vícios, ditando suas virtudes, ou até desprestigiando valores até então intocáveis.
Ao retratar o personagem imperador, Suetônio instala atração ao cenário por ele retratado, a
sociedade aristocrática de Roma. Estes princípios interpretativos serão dados como
pressupostos na análise literária a ser realizada.
A obra proporciona ao leitor uma macrovisão da cultura romana e de suas bases, e ao a
analisarmos, devemos lembrar que a biografia não é somente a reconstrução de uma vida
humana, mas um referencial, um texto de comportamento moral e social de um indivíduo. A
grande inovação de De uita Caesarum é a adoção de uma variedade de ações públicas e
privadas dos biografados, e sua irreverência, sem nenhuma garantia de fidelidade irrestrita das
fontes. Suetônio adota uma variedade de ações públicas e privadas dos biografados, atuando
como mediador dos vícios e das virtudes dos imperadores.
Suetônio não segue efetivamente um modelo rigoroso, o que se pode perceber em sua
narrativa biográfica onde o cenário político como maior referencial na maioria dos doze
biografados. O autor trata os imperadores como seres humanos comuns que vão enredando
práticas exóticas, inusitadas e criminosas.
No entanto, restringimo-nos a analisar a vida de seu primeiro biografado, Caio Júlio
César, e como os prodígios e augúrios moldaram e definiram seu destino. Uma particularidade
da biografia romana é o papel dos prodigia, ou seja, toda espécie de presságios e suas
interpretações. Os prodigia são extremamente importantes para a iniciação e posteriormente a
realização das iniciativas estatais, que estão atadas a esse antigo costume, e não tomam
qualquer decisão sem consultá-lo. Nos presságios, o individual e o público-estatal unem-se
inequivocamente, pois são os índices do destino da nação, que prenunciam sua felicidade ou
desgraça. Passando assim a agir no individual, agindo na personalidade do ditador ou chefe
militar, confundindo-se com seu destino pessoal, já que seu destino está indissoluvelmente
ligado ao da nação.
Na idealização explorada pelo biógrafo, a imagem do homem é extremamente simples,
e quase não tem momento de transformação. Ela nasce como uma imagem ideal de um modo
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de vida, de um chefe militar, de um personagem político. Com a enumeração das propriedades
e virtudes de um chefe militar, afinal, essa forma é a totalidade daquilo que esta posição
exige.
Tudo isso é revelado na existência do personagem glorificado. A imagem do
personagem glorificado é estética e é evocada no momento culminante de sua existência, a
imagem ideal e a imagem do defunto se fundem.
O Império Romano do I século d.C assistiu a consolidação de seus domínios militar,
político e econômico. No fim da República e início do Império, há um aumento crescente da
importância do poder pessoal, representado na instituição do Imperium, que têm como maior
ícone à figura do imperator, general aclamado pelo seu exército. A ampla literatura sobre o
período deu significado ao embate político, destacando os níveis de representação da
realidade em Roma. A crise da República culminou com a instalação do poder pessoal através
da figura do princeps. (OLIVEIRA, 2001)
Nessa representação literária, a sociedade ideal é produto da combinação do passado
conhecido e vivido. Esta literatura é cercada por ideais fundamentais, imaginado e idealizado
pelo homem romano tendo como principais conceitos a res publica, a libertas e o mos
maiorum. Esses autores têm o apoio e patrocínio da elite romana. Alguns deles como Suetônio
perpetuaram a figura romana do imperador e do tempo em que viviam. Uma das teses
levantadas para o seu estudo é de que este autor promove a propaganda política para a elite
romana, e é criando representações do bem e do mal que o autor, como muitos outros, critica e
analisa a figura dos imperadores. Essa estrutura ideológica buscava construir a imagem ideal
o princeps.
No século I antes de nossa era, Roma não é mais exatamente uma República, mas
também ainda não é um Império. As instituições, concebidas nas dimensões de uma cidade
vicinal, correm perigo e o próprio Senado demonstra sua imperícia. As guerras contínuas
favorecem o aparecimento de novos personagens pessoais, como generais cobertos de glória
ou sediciosos ávidos de poder. A paz civil está ameaçada. Em seu trabalho, Suetônio
admirador de Augusto, pinta-lhe um retrato entusiasmático, estimulado pelos seus
imperadores contemporâneos –Trajano e Adriano- louvando-o claramente. Porém, Suetônio
têm suas singulares qualidades, muitas vezes menosprezadas.
Além da produção literária, os romanos tinham como suporte para essa construção, a
realidade concreta, cercada principalmente por um aparato cerimonial complexo e utilitário.
Os prodigia fazem parte de um sistema manipulatório interpretativo, que vai desde os
acontecimentos naturais, ditos como augúrios, até os sonhos, considerados premonitórios.
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Esse aparato é explorado intensamente por Suetônio, todos os seus doze personagens têm
significativa representação dos prodigia em suas vidas. Assim, toda a sociedade também
estava impregnada por essas representações. A adivinhação e o augúrio eram, evidentemente,
ma atividade muito difundida no mundo antigo.
Era igualmente característico dos romanos que esse grande poder de interpretação é
derivado, de fato, dos aspectos da religião oficial que estavam plenamente incorporados ao
aparelho governamental. Nesta estrutura, é possível identificar os pontífices e os augures, e
outros autorizados a realizar sacrifícios, que organizavam as atividades de culto e
interpretavam os sinais divinos, eram homens que também tinham assento no Senado e
ocupavam magistraturas.
Durante o final da República Romana, a adivinhação pública era dependente dos
auspícios, dos oráculos sibilinos, dos extipícios (a leitura das entranhas) e dos arúspices e,
ocasionalmente, envolvia a consulta de oráculos estrangeiros. A adivinhação privada era mais
eclética. Lado a lado com os auspícios tradicionais, as pessoas recorriam a astrólogos e
profetas itinerantes. Sob o advento do Império, as práticas foram transformadas. De modo
geral, as instituições mudaram no que diz respeito ao campo da adivinhação pública:
auspícios e consultas aos oráculos sibilinos não cumpriam mais o papel inicial, enquanto a
interpretação dos prodígios e as técnicas de prognósticos astrológicos ganharam importância.
Enquanto isso, no nível privado, a expansão do Império e a extensão do povo romano
favoreceu
a
divulgação
das
técnicas
de
adivinhação
a
todos
os
cantos
do
Império.(ROSSI;CINTRA,2009)
Assim, nota-se como o I século d.C. está impregnado pela representatividade
ideológica, assim como pela sua criação e representação na cultura material e textual. Neste
aspecto, é a presença constante da tradição romana e a sua religiosidade, na sociedade romana
do I século, que embasou a construção de um mundo de acordo com o seu ideal e de como as
pessoas deveriam vê-lo. É através desses princípios ideológicos, políticos e religiosos que
atua Suetônio na constituição de sua obra De uita Caesarum.
A historiografia romana encontra em Suetônio o representante de uma nova ordem
vigente na biografia. Em seu texto inovador, o autor desenvolve uma metodologia única, onde
há o abandono do esquema produzido até então no gênero e adota uma variedade de ações
públicas e privadas. (SOBRAL, 2007)
O autor tem uma técnica ousada e irreverente, assinalada pela sua falta de fidelidade às
fontes, embora utilizando-as.Suetônio retrata os vícios e as virtudes dos imperadores, e
principalmente, é a sua exposição da sociedade romana, suas bases políticas, sociais, étnicas e
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religiosas que demonstra com ímpar qualidade a macrovisão de um mundo na virada do I
século para o II século de nossa era.
É complexa a análise da obra biográfica de Suetônio, pois o gênero biográfico, antes
do autor, tinha um caráter laudatório para os personagens. Considerando seus feitos heróicos,
ano a ano, a obra de Suetônio se torna única, pois ela expõe as fragilidades e defeitos dos
homens mais poderosos de seu tempo, os imperadores (caesar, princeps).O autor é um
biógrafo “sui generis”, uma vez que em sua obra seus biografados são personificados com
suas fragilidades e oscilações.
Júlio César têm papel importante no corpo desta obra por representar uma idealização
política de imperadores, embora não o tivesse sido, que objetivaram refletir em sua imagem o
ideal de governante e militar, supostamente representado com perfeição pelo personagem.
Essa identidade de papéis civis e militares existiu. É desta forma, portanto, que se justifica
esta pesquisa com o intuito de entender as construções ideais dos governantes do período da
formação do Império Romano em um contexto em que as tradições romanas devem ser
reforçadas na visão da aristocracia de Roma. Ao estudar o contexto de elaboração da obra De
uita Caesarum é necessário rever as construções historiográficas a partir da leitura de
Suetônio como um dos principais autores que retratam a vida política romana no I século d. C.
É por estudar a trajetória de Júlio César que torna-se imprescindível a análise do papel
ideológico da religião e suas manifestações expostas pelos prodigia. Assim, ao estudar a
figura do general, busca-se entender a profundidade das tradições e representações para a
sociedade romana no final do século I a.C e a remissão às práticas políticas e religiosas do
século I d.C. Roma era uma sociedade em que a moralidade obtinha argumentos tirados da
velha moral cívica pautada no que os romanos identificavam como mos maiorum e humanitas
(ARIÉS, 1989).
É verdade que a maioria dos biógrafos tenta dar sentido à vida do biografado, um
sentido artificial, passando por cima das lacunas que os documentos deixaram. Acreditando
que a vida apresenta essa ordenação cronológica tão perfeita, à base de ações e reações, onde
o futuro do biografado necessariamente foi conseqüência de seu passado, e nesse ínterim nem
a sorte nem a genialidade do biografado interferiram em sua própria vida (ZIEGLER, 2009).
Dessa forma, para Bourdieu (1989) a biografia é uma ilusão, porque tenta reconstituir
a memória de um indivíduo, como se ele fosse único, desprezando o contexto da qual ele faz
parte. É neste aspecto que deve ser vista a construção das biografias de Suetônio para que
possam ser analisadas como fontes historicamente construídas a partir de um determinado
contexto do biógrafo e não de seu biografado já que muitos deles distanciavam-se
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temporalmente e “documentalmente” do período em que esta obra, De uita Caesarum foi
escrita.
Nesta perspectiva é necessário entender que os historiadores são frutos de seu tempo,
não deixam de forma alguma o seu presente fora de suas análises sobre o passado. As
biografias e narrações de vida há muito tempo vem sendo contadas, o fato é que o interesse do
historiador sobre esse tipo de narrativa se acentuou. Nas últimas décadas, quebrou-se o
estigma de que as biografias e autobiografias sejam um gênero inferior a História. História ou
ficção, o fato é que a biografia tem suscitado muitas indagações, justamente porque não se
consegue distinguir perfeitamente a tênue linha que separa a História da biografia.
Referências Bibliográficas
ARIÉS, Philippe e DUBY, Georges. História da vida privada. Do império romano ao ano
mil.Trad: Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
BAKHTIN, Mikail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo:
Editora Hucitec, 1988.
GEORGES, Duby. Idade Média: idade dos homens. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
OLIVEIRA, Andréa Lúcia Dorini de. Princeps e Basileus nos Discursos de Díon Crisóstomo
(96 a 117 d.C). Tese de Doutorado. Unesp –Campus de Assis. 2001.
ROSSI, Andrea L. D. O. C. & CINTRA, Renata. “Práticas Divinatórias nas Biografias de
Suetônio”. In: ROSSI, Andrea L. D. O. C. (org.) Migrações e Imigrações entre saberes,
culturas e religiões no mundo antigo e medieval. Assis/SP, UNESP, 2009.
SOBRAL, Aldo Eustáquio Assir. Suetônio revelado: o texto narrativo biográfico e a cultura
política em “As Vidas dos Doze Césares”. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, 2007.
ZIEGLER, V. Plutarco e a formação do governante ideal no Principado Romano: uma
análise da biografia de Alexandre. Dissertação de Mestrado. Assis, UNESP, 2009.
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