Música e literatura na obra “o continente i” de Érico Veríssimo: humanismo, atração e sedução Letícia Boff Scheffer A música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto e a instância própria para o seu apaziguamento. (Theodor W. Adorno) Resumo: Considerando-se a relevante presença da música na vida do grande escritor Érico Veríssimo, examinou-se, neste artigo, a presença da música na obra O Continente I, especificamente nos episódios A fonte, Ana Terra e Um certo Capitão Rodrigo. A análise leva em consideração principalmente as ações relacionadas aos personagens que lidam com instrumentos musicais e aos sons, responsáveis por superar barreiras sociais e preconceitos, atraindo e seduzindo. Palavras-chave: música, literatura, Érico Veríssimo. Abstract: Considering the relevant presence of the music in the life of the great writer Erico Verissimo, it was examined in this article, the presence of the music in The Continent I work, specifically in the episodes The source, Ana Terra and A certain Captain Rodrigo. The analysis takes into account mainly the actions related with the characters who deal with musical instruments and the sounds, responsible to overcome social barriers and prejudices, attracting and seducing. Keywords: music, literature, Erico Verissimo. Aproximar música e literatura, mesmo sendo manifestações artísticas infinitamente ricas, quanto mais afirmar a supremacia do gosto pela primeira ao se falar no grande escritor Érico Veríssimo, parece um disparate. A música, na vida e obra de Veríssimo, não é um elemento que concentra estudos de grande abrangência, contudo, faz-se presente e tem importância primordial, ao passo que, em certa ocasião, ao ser interrogado acerca do que gostava de fazer, elencou: ouvir música, ler, ficar sentado pensando e ao mesmo tempo rabiscando num papel figuras humanas, principalmente faces. Escrever? Bom, só considero isso um prazer, quando me sinto erguido na crista dessa onda irisada que em geral chamamos de inspiração (1975: 3-4). Pós-graduanda em Diálogos entre a História e a Literatura do Rio Grande do Sul pela Faculdade Cenecista de Osório. Graduada em Letras pela Faculdade Cenecista de Osório. [email protected] 54 Maria da Glória Bordini (1995:68), ao analisar a criação literária em Érico, apresenta rituais ou manias do escritor, como escrever usando calças velhas, escrever a si próprio bilhetes – muitas vezes brigando –, desenhar perfis de gente em seus manuscritos, e os considera arbitrários quando analisados do ponto de vista do conjunto, mas afirma que a música, o inglês e o desenho foram atividades que sempre estiveram associadas com o prazer estético desde a infância do Autor.O ambiente de trabalho, segundo a mesma autora, era um quarto minúsculo no porão de sua casa no qual, cabe destacar aqui, a música da Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul o acompanhava a todas as horas, de preferência a de câmara, mais condizente com seu modo de ser. Além disso, ao referir-se ao ofício de escrever, afirmava fazê-lo sempre ao som de músicas clássicas. Na literatura, a música também está presente. Para mostrar como se dá essa relação, faz-se necessário explorar o enredo narrativo e estabelecer ligações entre as duas artes, tomando também referências históricas no intuito de considerar importantes questões sociais a partir deste par. Ao escrever a trilogia O tempo e o vento, a criação literária de Érico Veríssimo encontra-se aí aperfeiçoada. Érico delineia sua obra, faz previsões, esboça, cria personagens, conflitos, símbolos. Bordini afirma que em O continente I a história ficcional deveria abranger a evolução social e moral, a imigração, as crises econômicas e épocas de abundância, os fatos históricos (...), o progresso, as invenções e o conforto, bem como os objetos culturais do cotidiano (p. 131). É possível encontrar, na obra, dentre essas preocupações com a verossimilhança, muitas as que estão relacionadas à música. A ideia inicial de Érico não o entusiasmou muito, de acordo com Bordini (p. 125), porque a imagem que tinha da sua terra era a desenvolvida na escola, onde parecia haver mais cavalos que seres humanos, mais guerra e mais correrias sem sentido do que coisas capazes de criarem no aluno o orgulho de ser gaúcho. 55 Concluindo, mais tarde, que o Rio Grande era muito mais vivo e belo do que sua mitologia, mais convencido ficava de que era necessário desmistificar a história. Seus parentes e conhecidos pareciam não ter a profundidade psicológica necessária para construir algum conflito dramático, pois via neles homens “vazios” que desprezavam a arte (BORDINI: 1995: 125). Posteriormente, admitiu uma variedade de gente do Rio Grande, e que o material humano que dispunha era fascinante, sendo possível romper com o sentimentalismo exagerado da primeira fase. Para explorar os episódios e melhor compreendê-los à luz da presença da música, vale ressaltar que a linearidade do tempo natural e a planearidade do espaço físico são desafiadas constantemente pela voz narrativa, que as inverte, recorta e atravessa, retrocede e avança, detém-se, penetra consciências individuais e coletivas, retorna e acelera (BORDINI; ZILBERMAN, 2004: 52). Dessa maneira, a análise aqui dar-se-á em ordem cronológica. Além disso, dada a relevância do tema em alguns episódios, priorizaram-se três: A fonte, Ana Terra e Um certo Capitão Rodrigo. A organização original compõe-se de subdivisões, as quais são intercaladas pelas ações no sobrado, no qual se encontra a família Terra-Cambará. Cronologicamente, A fonte é a primeira referência, que narra, a partir de 1745, ações das missões jesuíticas. Pe. Alonzo é um padre jesuíta dedicado à catequese dos índios guaranis. A sensibilidade que o envolve com relação à música já está expressa logo no início do capítulo, quando, ao procurar o colo da mãe para um aconchego diante do pranto, encontra sossego em uma canção de ninar: E quando a mãe se pôs a cantar baixinho uma canción de cuna, uma paz quente e profunda desceu sobre Alonzo, que fechou os olhos e adormeceu no paraíso (p. 23). É fato que o personagem possui aptidão para a arte em geral, mas os aspectos relacionados à música são mencionados com bastante frequência e, segundo a 56 história, elemento de atração do povo indígena. Em O Continente I, a informação: Aqueles índios amavam a música. E com que talento a interpretavam! Que ouvido privilegiado tinham! (p. 34). Para o historiador Preiss (1988), os guaranis (...) desde os primeiros contatos, mostraram muita sensibilidade no que tange à música, e esse foi o principal fator através do qual os missionários, traduzindo a Doutrina Cristã em cânticos no idioma nativo, lograram atraí-los (p. 20). E a obra também registra isso: a música havia sido e ainda era para os missionários um dos meios mais efetivos de catequização. Tocando seus instrumentos e cantando, eles se haviam aproximado pela primeira vez dos guaranis, desarmando-os espiritual e fisicamente e conquistando-lhes a confiança e a simpatia (p. 34). Há aí uma questão de atração e também de humanismo, no sentido de que a confiança se estabeleceu a partir de ações envolvendo a arte, eliminando uma possível visão duvidosa acerca dos missionários, uma vez que através da música se entendiam. Flausino Vale (1978:24) discorre que a música, como elemento civilizador, é empregada em diversas nações e, ao educar os Guaranis do Uruguai, edificam com eles freguesias e vilas e realizavam festas religiosas com orquestra e canto. Além disso, os padres ensinavam aos indígenas a fabricação de instrumentos (...). Dessa maneira não só abrandavam-se os feros instintos dessa gente, como eram atraídos os mais distantes e arredios. No discurso de Pe. Alonzo percebe-se também a relativa importância da musicalidade nas missões no que diz respeito a aquisições e a ritos nos quais essa arte destacava-se: naquele ano precisavam exportar mais erva-mate e algodão para Buenos Aires, pois quanto mais coisas exportassem mais dinheiro teriam, não só para pagar os dízimos ao rei de Espanha, como também para comprar remédios, instrumentos e – oh! sim – mais coisas belas para a igreja: cálices, cruzes, castiçais... Quando ele terminou de falar, os índios trouxeram de dentro da catedral a imagem de Santo Isidoro e o cortejo se formou. À frente iam tocadores de flautas, tiorbas, clarins e tambores;(...) depois vinham os outros índios, cujas vozes, que entoavam um canto sacro, subiam no ar luminoso (p. 29). 57 Entretanto, não eram apenas as comemorações que eram avivadas com melodias. Até mesmo o caminho à lavoura era feito ao som das músicas e dos cânticos, bem como o retorno à redução ao anoitecer. Flausino Vale afirma que historicamente era, também, usual fazer acompanhar por alegres bandas de música as turmas de trabalhadores que se dirigiam aos campos de agricultura (1978:24). A música era por assim dizer o veículo que levava aquelas almas a Cristo (p. 34). Bordini (1995: 219), em sua análise de A fonte destaca que às artes é atribuído o papel civilizador principal, já que os princípios doutrinários do cristianismo, que os jesuítas tentam incutir nos guaranis, tornam-se experimentáveis por estes apenas quando revestidos da beleza da oratória, das realizações plásticas ou musicais. Torna-se interessante contrastar, neste ponto, o estado selvagem original dos índios com a produção cultural destes, vista com admiração e surpresa por Pe. Alonzo, que percebe as possibilidades de convívio entre a cultura europeia cristã e a cultura indígena pagã como sementes de uma nova civilização (BORDINI: P. 219). De maneira especial, nota-se a inclinação de Pedro Missioneiro, filho de índia violada por um bandeirante, para a música, sobretudo porque se diferencia dos companheiros por saber improvisar e compor na flauta: às vezes tomava da flauta e começava a improvisar. Inventava melodias que ora eram tristes e arrastadas ora rompiam em trêmulos e arabescos alegres, para depois caírem de novo numa melopeia (p. 44). Mais tarde, no episódio Ana Terra, é exatamente Pedro Missioneiro e sua flauta que desencadeiam conquistas. O aluno de Pe. Alonzo vai parar na fazenda onde vive Ana Terra, seus pais e seus dois irmãos. A ausência da música no cenário da estância onde vivem é extremamente contrário aos aspectos criativos da vida nas missões contada em A fonte. A monotonia do lugar era sentida nos desejos e sonhos da jovem de apenas 25 anos. É fato que nas missões também se trabalhava, mas conforme já se mencionara, a música acompanhava os afazeres. O silêncio descrito e sentido, aquilo que não é mencionado, tem relativa importância para a compreensão deste espaço e desta realidade: naquela casa nunca entrava 58 nenhuma alegria, nunca se ouvia uma música, e ninguém pensava em divertimento (p. 79). Ana Terra cantava. Mas o fazia apenas quando estava sozinha ou perto da mãe. Na presença dos pais ou irmãos tinha vergonha. Aliás, não se lembrava de jamais ter ouvido o pai cantar ou até mesmo assobiar (p. 77). Há a ausência da arte e a pessoa de Maneco Terra, pai de Ana, é quem domina a família e aí, consequentemente, o diferente não acontece e os únicos sons que se ouvem são os naturais e o do trabalho. Pedro Missioneiro, antes parte do grupo conquistado pelos jesuítas, agora tem uma atitude individual, mas que reflete processo semelhante: entre seres de grupos diferentes, a conquista por meio da música. Afirma Bordini: As mulheres (...) são facilmente presas da música de sua flauta, que dá voz a sentimentos antes inexprimíveis. O próprio velho Terra devolve o punhal de prata que tomara de Pedro após uma sessão de música em que o jovem põe na flauta toda a sua tristeza e infelicidade de desgarrado (1995: p. 220). A sedução de Ana Terra fica, na verdade, nas entrelinhas. O não poder prevalece sobre o não querer e o leitor completa informações que ficam subentendidas. Érico Veríssimo contempla o que Theodor Adorno (1980: 272), em A posição do narrador no romance contemporâneo, chama de encurtamento da distância estética, recurso por meio do qual o narrador quebra a tranquilidade do leitor, tirando-o de um estado meramente contemplativo, como no trecho: Pedro sentou-se, cruzou as pernas, tirou algumas notas da flauta, como para experimentá-la e depois, franzindo a testa, entrecerrando os olhos, alçando muito as sobrancelhas, começou a tocar. Era uma melodia lenta e meio fúnebre. O agudo som do instrumento penetrou Ana Terra como uma agulha, e ela se sentiu ferida, trespassada. Mas notas graves começaram a sair da flauta e aos poucos Ana foi percebendo a linha da melodia... Reagiu por alguns segundos, procurando não gostar dela, mas lentamente se foi entregando e deixando embalar. Sentiu então uma tristeza enorme, um desejo amolecido de chorar. Ninguém ali na estância tocava nenhum instrumento. Ana não se lembrava de jamais ter ouvido música de verdade naquela casa. Às vezes um dos irmãos assobiava. Ou então eram as cantigas tristonhas e desafinadas de sua mãe. Ou dela mesma, Ana, que só cantava quando estava sozinha. Agora aquela melodia, tão bonita, tão cheia de sentimento, bulia com ela, dava-lhe um aperto no coração, uma vontade danada de... (p. 88). 59 Ana Terra conclui que aquela música exprimia sua tristeza, e a flauta é instrumento tradutor do que muitas vezes tentou dizer à mãe, mas não encontrava palavras para tanto. Quando a música cessa chegou a doer nos nervos de Ana (p. 89). É após isso que Maneco Terra devolve o punhal ao índio e sem dizer nada. O silêncio era suficiente, uma vez que a ação anterior é que exprimira a atitude de Maneco; é simplesmente a música como instrumento apaziguador e de conquista. Todo o encantamento da moça dá-se com referências ao som da flauta tocada nesse dia, ao passo que a melodia que Pedro tocara naquela noite de chuva não lhe saia da memória, noite e dia, dia e noite (p. 92). Seu desejo por homem era aguçado ao som daquela música. Entretanto, justificava pensar em Pedro apenas porque era o único homem da estância além do pai e dos irmãos e que no fundo o odiava. E no mesmo instante em que o leitor tem essas informações, se depara com estas, relacionadas à Ana, rebentando, conforme mencionado por Adorno (1980: 272), sua tranquilidade: Pensou nos beiços úmidos do índio colados à flauta de taquara. Os beiços de Pedro nos seus seios. Aquela música saía do corpo de Pedro e entrava no corpo dela... Oh! Mas ela odiava o índio. Tinha-lhe nojo. Pedro era sujo. Pedro era mau. Mas apesar de odiá-lo, não podia deixar de pensar no corpo dele, na cara dele, no cheiro dele – aquele cheiro que ela conhecia das camisas – não podia, não podia, não podia. - Se ele parasse de beijar! – exclamou ela. E percebendo que tinha dito beijar em vez de tocar, ficou vermelha e confusa. (p. 96) No dia em que Pedro e Ana ficam juntos pela primeira vez, a cena é prenunciada com um misto de sons, descrevendo a situação da moça momentos antes da aproximação do índio: ficou num torpor dolorido e tonto, escutando o murmúrio da água, o canto da cigarra, o farfalhar das folhas e o pulsar do próprio sangue (p. 102). Sempre que há sons, há movimento e vivacidade ou vice-versa. Quem também se apresenta como um estranho a um grupo conservador é Capitão Rodrigo. O próprio título anuncia: Um certo Capitão Rodrigo, pois não se sabe de onde vem nem das suas intenções. Agora a narrativa não se concentra mais na estância de Maneco Terra, mas na Cidade de Santa Fé, cuja população, além de conservadora, é regida e controlada por um Coronel chamado Ricardo Amaral Neto. 60 Além da estranheza da maneira como chegara o Cap. Rodrigo ao povoado, há o relato descritivo deste homem, cujo olhar de gavião irritava e fascinava as pessoas ao mesmo tempo. Além da espada, tinha um violão a tiracolo (p. 171), e este também (...) inspirava desconfiança (p. 174). Usa-se a palavra também porque outras características já haviam sido citadas como suspeitas: a combinação estranha de bombacha e casaco de soldado e o lenço vermelho. O violão associa-se aí a arte, onde tudo é possível, e isso implica em suspeições. Há um período de adaptação a aceitação do Cap. Rodrigo na cidade. Franco, expressa seus gostos e a música e o tocar violão estão entre eles. No balcão de Nicolau – proprietário de uma venda e cidadão que acolhe o capitão em sua casa – Rodrigo Cambará cantava modinhas e quadras que falavam de mulheres, cavalos, amor e morte. Dedilhava o violão e soltava a bonita voz: Quem canta refresca a alma, Cantar adoça o sofrer, Quem canta zomba da morte, Cantar ajuda a viver. Nicolau sacudiu a cabeça e disse: - Que ajuda, ajuda mesmo. (p. 197) Rodrigo se apaixona, logo que chega na cidade, pela personagem Bibiana, cujo pai é severo e não se convence da boa índole do capitão, contrariando a aproximação de sua filha com o novo que chega à cidade. Rodrigo, no entanto, ganha a confiança de grande parte daquela população por meio de sua desenvoltura, recitais e canções, bem como sua bravura. Mais uma vez encontram-se realidades contrastantes, diferentes, e a música, assim como em A fonte e, em seguida, em Ana Terra, vai servir como instrumento de aproximação, sedução, humanismo. É a linguagem pela qual os povos se entendem e que vai além de uma questão social entre história e literatura. Aspectos tão bem explorados por Érico Veríssimo, nos episódios aqui analisados, colocam a música como instrumento universal associado a sentimentos e personalidades, atração e sedução, cultura e quebra de insegurança à frente de dessemelhantes. 61 Referências ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In. BENJMAMIN, Walter, HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor W. HABERMAS, Jürgen.Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980. BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Érico Veríssimo. Porto Alegre: L&PM/EDIPUCRS, 1995. BORDINI, Maria da Glória; ZILBERMAN, Regina. O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. PREISS, Jorge Hirt. A música nas missões jesuíticas nos séculos XVII e XVIII. Porto Alegre: Martins, 1988. Última entrevista de Érico Veríssimo. Boletim do Instituto Cultural BrasileiroNorte-Americano, nov. 1975, p. 3 e 4. Entrevista. VALE, Flausino Rodrigues. Elementos de folclore musical brasileiro. São Paulo: Nacional, 1978. VERÍSSIMO, Érico. O Continente I. 25ª edição. Rio de Janeiro: Globo, 1949. 62