Hieróglifos A caligrafia médica desafia os profissionais envolvidos com a saúde e prejudica os pacientes secretária Cláudia Vieira, de 34 anos, até que tentou decifrar aqueles "estranhos códigos", mas de nada adiantou seu esforço. Grávida de dois meses, ela jamais imaginaria que, ao chegar no laboratório para fazer uma série de exames referentes ao pré-natal, ninguém entenderia a letra do obstetra. Um "f " que mais lembrava um "p" e um "s" com cara de "z". Todos no laboratório tentaram, em vão, ajudá-la: da recepcionista ao dono. Depois de quase meia hora, finalmente ela conseguiu localizar seu médico para tirar a dúvida. A "Agora eu estou achando graça. Só que na hora, foi muito constrangedor. Fiquei preocupada. E se eu não conseguisse falar com ele, como seria?", indaga a secretária. "Eu não sei nem como poderia agir num momento como esse. Nunca havia passado por isso", completa. Assim como Cláudia, muitos outros pacientes já tiveram problemas parecidos na hora de comprar um remédio ou fazer um exame. A caligrafia dos profissionais de saúde, na maioria das vezes, continua sendo um empecilho na vida de quem depende deles. Durante muitos anos, a chamada letra de médico foi vista como sinônimo de ascensão social e status. Hoje, ela representa dor 10 de cabeça e preocupação. O que muita gente não sabe, no entanto, é que existe um Decreto Federal de 1932, que obriga os médicos a escreverem de forma legível. No Rio de Janeiro, por exemplo, esse decreto é reforçado por uma Lei Estadual de 1988, que exige que todos os profissionais da área de saúde escrevam com letra de forma em receitas e prontuários. O grafólogo Paulo Sérgio de Camargo, habituado a dar cursos pelo Brasil, tem 80 mil caligrafias arquivadas em sua casa. A partir deste material e de conversas com os amigos, ele fez um estudo mostrando que, pelo menos, 35% dos médicos brasileiros escrevem de forma ilegível. "Trata-se de uma distorção profissional", assegura, revelando que, por causa desse capricho, há relatos até de mortes de pessoas em função de prescrições medicamentosas não entendidas. O vício da escrita, segundo o grafólogo, vem do período da Faculdade, atingindo os médicos com mais tempo de profissão. Camargo conta que havia uma mística de que, como o curso de Medicina era difícil, os alunos tinham que anotar tudo com rapidez. "Antes dos anos 60, com a escassez das indústrias farmacêuticas, os médicos eram obrigados a escrever os remédios em fórmulas. Só os farmacêuticos entendiam. Isso também contribuiu para piorar a caligrafia", acredita. uma vez que muitos médicos evitam fazer cursos de caligrafia por vergonha. "Eles se acham auto-suficientes. Mas a situação é melhor do que há dez anos. A tendência é melhorar cada vez mais. Os pacientes não podem ficar a mercê dos médicos", avalia. Camargo ressalta que atualmente o problema vem sendo enfrentado nos bancos universitários. Em São Paulo, muitas Faculdades vêm ensinando aos alunos a forma certa de escrever. Camargo considera um avanço esse tipo de iniciativa, Conseqüências desagradáveis O descumprimento da lei que obriga o uso de uma caligrafia legível pode levar o médico a uma série de penalidades, inclusive à cassação do CRM ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A falta de conhecimento da lei, que exige uma escrita legível, não pode ser usada como desculpa pelos médicos. Além do Decreto Federal da década de 30, o Código de Ética Médica, do mesmo período, falam que a receita ou o atestado não podem ser escritos de "forma secreta ou ilegível". De acordo com Mauro Brandão, secretário geral do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), os médicos que não cumprirem a lei estão sujeitos a punições, que podem representar a cassação do registro profissional e a suspensão dos direitos do exercício da profissão. Brandão admite, no entanto, que não há como fiscalizar os 45 mil médicos existentes no Estado. A melhor forma de contribuir com o Cremerj, explica, é formular uma denúncia junto ao órgão. "Num primeiro momento, nós damos uma advertência. Em caso de reincidência, dependendo do dano causado pelo seu erro, o médico pode ser processado, julgado e suspenso pelo Conselho", alerta o secretário. "Isso pode levar até a cassação do registro profissional", garante, ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ dizendo que nunca teve esse tipo de problema no Cremerj. A neurologista, Dra. Maria de Lurdes Ribeiro Gaspar, assegura ter uma letra que foge aos padrões médicos, por ter feito caligrafia em escola de freira. Ela conta que sempre procura escrever de forma legível para os pacientes. A especialista conta que nunca teve grandes dificuldades nesse sentido. "Mesmo assim, eu já tive problemas. Como minha letra é muito redonda, às vezes o farmacêutico não entende. Eles acabam ligando para mim", revela, dizendo que esse deve ser o procedimento. "Se não entendeu a pessoa deve ligar", frisa. Para ele, se alguns médicos ainda continuam escrevendo de forma ilegível, é porque não dão a devida atenção que o paciente precisaria ter. Brandão ressalta que esse profissional está agindo de forma equivocada. "O importante é fazermos um trabalho educativo com boletins periódicos, mostrando a existência da lei e exigindo o seu cumprimento. As Faculdades também deveriam se preocupar em educar os estudantes nesse sentido. Já seria uma grande ajuda", acredita. A Dra. Maria de Lurdes conta que nunca enfrentou um problema grave no consultório, mas fala que já viu muitas receitas de colegas, que são verdadeiros códigos secretos. "Além de escrever os remédios em letra de forma, eu escrevo no verso da receita os efeitos colaterais e depois leio para o paciente. Existem médicos que usam o computador, mas eu não gosto. Isso distancia o paciente do ato médico", avalia, acrescentando que a fiscalização do Cremerj tem sido mais rigorosa. “Além do Decreto Federal da década de 30, o Código de Ética Médica, do mesmo período, falam que a receita ou o atestado não podem ser escritos de forma secreta ou 11