Desafios dos Estudos Gays, Lésbicos e Transgêneros

Propaganda
Comunicação, mídia e consumo
Desafios dos Estudos
Gays, Lésbicos e
Transgêneros
Denilson Lopes1
RESUMO
Este ensaio introduz algumas questões relativas aos estudos
feministas, gays, lésbicos, transgênesos e teoria queer na busca de
contribuições teórico-metodológicas na análise da cultura contemporânea.
Palavras-chaves: Estudos gays e lésbicos, estudos transgêneros,
teoria queer, cultura.
ABSTRACT
This essay introduces some issues related tofeminist studies, gay
and lesbian studies, transgender studies and queer theory in the search
of theoretical and methodological contributions in the analysis of
contemporary culture.
Keywords: Gay and Lesbian Studies, transgender studies, queer
theory, culture
No fim do século XIX, a sexualidade, como nos ensina Michel
Foucault na sua História da sexualidade (1985), passa se constituir
cada vez mais como central na constituição do sujeito moderno, num
processo de valorização da intimidade que já vinha se processando
desde o Romantismo. A centralidade da sexualidade na construção
do sujeito moderno levou à proliferação de saberes que tratam desta
questão tais como a psicologia, a psicanálise e a sexologia.
Paralelamente à publicização do falar de si, que assumirá proporções
nunca vistas na cultura de massa, como observamos pela quantidade
de programas de televisão, canais de rádio, sites na Internet centrados
nos debates sobre sexualidade, não raramente levando a uma
espetacularização do privado; a intimidade passa a ser politizada. E
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nesse sentido que devemos entender o surgimentos dos movimentos
feministas, gays, lésbicos e transgêneros. A chave desses grupos reside
na expressão visibilidade pública para combater preconceitos e formas
de exclusão, muitas vezes associados aos discursos médico, legal e
religioso; bem como buscar a igualdade de direitos na sociedade
marcada pela universalização dos valores do homem heterossexual e
branco.
Não é minha intenção fazer o histórico desses movimentos, mas
apontar sua importância para a compreensão de como a questão da
sexualidade vai ser tratada na cultura, na arte, e aqui, enfatizando suas
contribuições teórico-metodológicas. Para compreender essa guinada
rumo à constituição de uma área de estudos de gênero, termo que
ressalta a construção cultural da sexualidade para além de qualquer
visão naturalista, essencialista - é fundamental lembramos um momento
histórico. É nos anos 60, no contexto da contracultura, que os
movimentos feministas, gays, lésbicos e de transgêneros passam de
uma visão meramente integrativa em relação às democracias
representativas ocidentais, para contestá-la num plano mais amplo,
articulando-se a propostas comunistas, socialistas, anarquistas e
libertárias. Num momento privilegiado de questionamento das relações
entre saber e poder, entre universidade e sociedade, emerge um novo
intelectual engajado, não só definido pelas questões de nação e classe,
mas também de etnia e gênero. Politicamente, a questão é como sair
de um lugar específico e dialogar com o conjunto da sociedade.
Teoricamente, inserir os estudos gays, lésbicos e transgêneros nos
debates centrais desta virada de século, a partir da experiência
intelectual de um país periférico.
Os estudos gays, lésbicos e transgêneros são áreas
interdisciplinares de estudos emergentes na academia norte-americana
após os anos 60, com o estabelecimento de disciplinas, programas,
centros, realização de congressos. Essa área sofre crítica nos anos 90
pela teoria estudos queer, ao retomar uma radicalidade política na
contraposição a uma visão integrativa que o termo gay foi assumindo
na sociedade norte-americana. O termo queer inclui simpatizantes e é
paralelo ao interesse pelo transgênero, pela bissexualidade e outros
situações pós-identitárias, como os pomosexuals (fusão da palavra pósmodernidade com homossexualidade) e o pós-gay. O que me interessou
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nessa polêmica foi a complexifícação da noção de identidade, na busca
de posições mais fluidas mas não menos politizadas. Nos anos 90, a
chegada desses estudos no Brasil redimensiona nossa produção
centralmente definida pelas ciências sociais e pela história.
Tanto os estudos feministas quanto os estudos gays, lésbicos e
transgêneros têm um primeiro movimento de criticar representações
sociais estereotipadas, os silêncios e as opressões. Essa abordagem
sócio-histórica é fundamental para quebrar núcleos da misoginia e da
homofobia, ao demonstrar que as diversas sociedades e os vários tempos
históricos lidaram de forma bastante diversificada para além das
dualidades masculino/feminino e heterossexualidade/homossexualidade.
O preconceito se expressa na sociedade pela ridicularização e pelas
violências; na política, ao ser considerado um tema menor diante das
transformações conduzidas pelos partidos e pelos sindicatos; bem como
na universidade, ao não legitimar estes estudos cm pé de igualdade
com correntes de pensamento mais tradicionais.
Essa preocupação leva ao questionamento da cultura e da arte
não como criadoras, mas por terem uma papel reafirmador ou crítico
dos clichês das representações de gênero e de orientação sexual. Pelo
seu impacto, o principal alvo passa a ser os filmes hollywoodianos, e
depois a televisão, pelo seu papel hegemônico na indústria cultural cada
vez mais transnacional.
Num primeiro momento, como no caso de outros movimentos
minoritários, foi e ainda é necessário mapear sócio-historicamente as
representações sociais da mulher e da homossexualidade bem corno
desconstruir raciocínios simplificadorcs, como o de que haveria um
caminho progressivo e evolutivo da repressão à liberação. No clássico
Celluloid Closet, Vitor Russo identifica clichés como a da sissy,
personagem masculino afeminado, normalmente em papéis pequenos
em comédias, ou da possibilidade da apresentação de personagens
lésbicas no auge da censura norte-americana, dos anos 30 a 50, como
vampiras ou presidiárias. No Brasil, este esforço pioneiro se encontra no
trabalho de Antonio Moreno, A Personagem Homossexual no Cinema
Brasileiro. Lembrando que o estereótipo (DYER, 1993; BHABHA,
1998) tem pelo menos um mérito em iniciar um diálogo que pode dissolver
o próprio estereótipo pela dinâmica dos conflitos sociais.
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A representação social possibilita uma política identitária de
confronto e marcação das diferenças que, num primeiro momento,
enfatiza uma luta política e teórica contra a repetição da imagens
negativas em favor da necessidade de imagens positivas. Essa estratégia
teve o papel de enfatizar a relação entre estereótipo, estigma e cultura
mas nos conduziu a um outro extremo, ao criar novos esterótipos,
desta vez idealizados e romantizados, como o dos personagens gays
masculinos em recentes comédias românticas como o novo herói
romanesco. O que nos leva a defender hoje mais do que a necessidade
de imagens positivas, a diversidade de narrativas.
Se a noção de representação, claramente se justifica na história,
nas ciências socias, nos estudos de comunicação social, muitas vezes,
acaba por transformar a obra de arte em ilustração de problemáticas
da realidade sem considerá-las como estruturantes. É fruto dessa
preocupação que nos anos 70 emerge a questão de gênero ser
considerada como algo mais interno às obras artísticas e práticas
culturais, e não meramente um tema. Quanto aos estudos feministas,
sobretudo no caso francês, haverá um salto qualitativo ao se dialogar
mais com a psicanálise e a filosofia. Nos EUA, tal movimento também
ocorre, somando-se a viés mais político, fruto das esperanças dos
movimentos libertários dos anos 60, fonte da explosão multiculturalista
dos anos 80. O trabalho de Laura Mulvey em seu clássico ensaio
"Narrativa e Prazer Visual", publicado no início dos anos 70, abre
todo um leque de possibilidade ao associar a necessidade de abandonar
a narrativa e o prazer visual cultivado pelo cinema hollywoodiano em
favor de um cinema experimental, ainda mais próximo de um
distanciamento brechtiano tão caro a vários cinemas novos. Este artigo
influente produzirá um intenso debate e a medida que muito da produção
das décadas seguintes buscará conciliar qualidade, mercado e público,
arte e diversão, se produzirá quase uma inversão, como veremos no
trabalho influente nos estudos gays (DYER, 1992) e nos ensaios
marcado pelo pensamento de Deleuze e Guattari (SHAVIRO, 2000).
Voltando um pouco ainda para os anos 70, é neste momento que
emergem categorias como olhar feminino e homotextualidade (ver
STOCKINGER, 1978). Respostas formalistas tanto em relação ao
Estruturalismo como ao New Criticism, com o risco de se enrijecerem
se usadas de forma muito classificatória, mas que tiveram o mérito de
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ir além de apenas marcar o gesto identifícatório do autor como criador
engajado a partir das questões de gênero. A grande arte moderna
privilegiou a linguagem sobre qualquer explicação biografizante. O autor
foi apagado diante do texto, da obra, esta sim é que interessava. Se,
por um lado, falar em arte de mulheres e arte gay aparecia como um
esforço militante de fazer falar na história do cinema e na atualidade
sujeitos silenciados, o que foi logo articulado a um processo de
segmentação do mercado, na criação de festivais e mostras pelo mundo
afora, mas que adotará estratégias mais recentes de politizar mesmo as
relações entre identidade e consumo. Por outro lado, o interesse pelo
olhar irá realizar uma desconstruçào primeira do paradigma
hollywoodiano do olhar masculino/objeto feminino. Ou seja, com
exceção do melodrama, os gêneros cinematográficos eram feitos em
grande medida para um público masculino ou para quem se colocava
na sua posição. A glamourização da personagem feminina a prendia
sempre como um objeto de desejo e de contemplação. Esse processo
exemplarmente estudado em A mulher e o cinema (KAPLAN, 1998),
abre a porta para uma descontrução do cinema comercial por cineastas
como Chantal Ackerman e Ana Carolina, bem como por respostas
narrativas mais tradicionais, mas não menos estimulantes como as de
Jane Campion e Claire Denis.
Curiosamente, nos estudos gays e lésbicos, a questão de uma
homotextualidade ficou mais presente na literatura2 do que no cinema.
Se pela homotextual idade estava presente a preocupação não com o
autor mas com o texto, que dissolvia a dualidade, tão cara aos marxistas,
entre arte e sociedade e suspendia o problema das mediações em favor
de consideração de qualquer prática ou produto como texto, ela
possibilita estar atenta a traços e marcas sutis na produção anterior a
Stonewall, marco da explosão do movimento gay dos anos 60, da
política de afirmação pública da homossexualidade e da formação de
uma cultura gay de consumo (NUNAN, 2003) ou homocultura
transnacional. Talvez mais fortemente do que nos estudos feministas, a
determinação de um olhar gay descontrai o par olhar masculino/objeto
feminino ao ressignificar filmes que não feitos para eles, ao construir
todo um jogo de identificações com as stars, sobretudo femininas,
como personagens excepcionais que impõem ao seu mundo a sua
diferença (DYER, 1987). O próprio melodrama feito para um publico
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feminino é desconstruído pelo olhar gay, que resulta em trabalhos
elaborados desde Douglas Sirk a Fassbinder, Almodóvar e o último
filme de Todd Haynes, "Far From Heaven". Se o melodrama é a
forma permitida da entrada da mulher e do feminino no cinema, ele é
transformado pela audiência e por criadores gays.
Podemos voltar a falar em uma estética, sem dúvida localizada
e engajada num tempo e numa sociedade, ao invés de abstrata e
universal, que emerge do embate com as obras mas procura confrontálas, compará-las, estabelecer séries, linhagens, a partir de problemas,
conceitos, categorias. Uma estética interessada, parcial e empenhada,
sem que implique uma submissão a interesses de partidos políticos,
classes e/ou grupos socais. Uma estética pop, indissociável de uma
cultura de consumo, que não tem medo do fácil, da redundância
informativa, do descartável, do afetivo e coloca no mesmo lugar o
que antes chamávamos de popular e erudito. Uma estética híbrida,
intertextual, transemiótica, multynidiática. É a partir desta compreensão que a estética se encontra mais até do que com a
homossexualidade, mas com o transgênero através do camp.
O termo camp aponta para uma sensibilidade e para uma
estética marcadas pelo artifício, pelo exagero, presente no interesse
por ópera, melodramas e canções românticas. O camp se situa no
campo semântico de ruptura entre alta cultura e baixa cultura, como
o kitsch, o trash e o brega. Como comportamento, a palavra remete
à fechação, ao homossexual espalhafatoso e afetado, ao transformista
que dubla cantores conhecidos tão presente em boates e programas
de auditório, não só como clichê criticado por vários ativistas e
recusado no próprio meio gay, quando se deseja firmar talvez um
novo estereótipo ou pelo menos uma imagem mais masculinizada de
homens gays, mas como uma base para pensar um política sustentada
na alegria e no humor, como alternativa ao ódio e ao ressentimento.
Através do humor, trata-se de uma estratégia do diálogo e de fluidez,
não do isolamento e da marcação de identidades rígidas e bem
definidas.
Como categoria estética, o camp se insere e a experiência do
transgênero num longa tradição centrada no artifício, do Barroco ao
Neo-Barroco, passando pelo Decadentismo, da metáfora do teatro
do mundo às simulações tecnológicas.
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Apreocupação com esse termo surgiu do interesse em considerar o
travesti não só como uma minoria dentro de uma minoria, um grupo social
excluído, a prostituta ou o bufão tornado exótico na televisão, mas pensar
o travestimento que atravessa a nós todos, dentro uma longa história de
troca constante de fronteiras entre o masculino e feminino, incluindo desde
os xamãs aos ciborgues, das amazonas aos eunucos, das dames aos
onnagata, dos castratti às divas da ópera, do cinema e da música; do
andrógino original a deuses hermafroditas, do anjo ao adolescente, dos
homens ultramusculosos às drag queens e dragkings. O travestimento
tão presente em várias tradições culturais e na historia do teatro contribui
para problematizar não só visões bem delimitadas do masculino e do
feminino, como também da polaridade estabelecida no século XIX entre
heterossexualidade e homossexualidade.
Outra alternativa, mais política e menos estética, horizonte mesmo
do boom multiculturalista está em defender cada vez a necessidade de
articular gênero, orientação sexual com as questões de classe,
nacional idade, condição periférica ou metropolitana, etnia para evitar
simplificações identitárias. A identidade, no seu melhor, não seria uma
classificação, mas uma experiência. Ainda que seja imediata na
percepção, a experiência3 traz uma estória, uma verdade, não a
verdade, que é sempre mediada por discursos sociais (SCOTT, 1999,
p. 42). Apartir do cruzamento entre os estudos culturais e dos estudos
de gênero, a experiência não só se insere num solo sócio-histórico,
mas se constitui como a encarnação, a narrativização de identidades,
transita por elas. Identidade que deve ser vista não só como questão
lógica, formal, filosófica, mas sobretudo histórica, social e política. A
experiência, lembrando Joan Scott, não é origem de explicação,
evidência autorizada, mas o que buscamos explicar, sobre o qual se
produz conhecimento (SCOTT, 1999, p. 27), que nos diz que é
importante refletir sobre quem fala (SCOTT, 1999, p. 31).
Essa ênfase levou ao resgate das narrativas de testemunho,
autobiografias, diários, não só como alternativa a uma estética do
artifício, mas a uma politizaçào da experiência privada dos sujeitos
excluídos da sociedade e das formas tradicionais do conhecimento
científico. Talvez neste último questionamento tenhamos uma grande
contribuição ao colocar o desafio da crítica não só como análise mas
texto, escritura. O sujeito da pesquisa se expõe não como ato narcisista
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mas para contextualizar o lugar de fala, torná-lo mais concreto,
estabelecer seus limites e alcance. Se, nos anos 60, a linguagem
era enfatizada em detrimento do autor, este retorna até mesmo
nos discursos teóricos, traduzido em diversas estratégias analíticas
como a autoetnografia, a critica autobiográfica e o uso da
narrativa.
O mote à volta do autor não deve ser visto como mero
retorno ingênuo ao biografismo, mas busca de um adensamento
e sofisticação. Primeiro, falar de um cinema de mulheres e de
uma escrita feminina implica dizer que o corpo deixava de ser
objeto do voyeurismo masculino e assume uma concretude, uma
história. Se as falas no mundo das ciências, do trabalho e da
política eram hegemonicamente masculinas, os espaços da
intimidade, da casa, do corpo deixam de ser apenas lugares de
opressão e de uma fala única. Se o mundo exterior, das viagens
era dos homens, a intimidade deixa de ser prisão para emergir
como possibilidade de resistência, de demarcação da diferença.
Se não se trata mais de falar da histórias dos grandes fatos e
acontecimentos, mas também do cotidiano; uma linhagem feminina
se constrói onde aparentemente só havia silêncio e opressão. Por
um lado isso levou a um trabalho de arquivos, de resgate, mas
levou também a apontar as possibilidades estratégicas de uma
estética feminina.
Para além deste trabalho historiográfico, temos o resgate da
intimidade, da afetividade, no contexto dos estudos gays e
lésbicos, ao afirmar sua relação com a ética. Na medida em que
o próprio material da arte é a ambiguidade e não a persuasão,
uma outra importante contribuição é
repensar a
homossociabilidade masculina (em lugares como bares, jogos,
escolas, internatos, forças armadas) não só como forma
homofóbica (SEDGW1CK, 1985), em que a masculinidade é
reafirmada pela violência, mas compreender fomas mais sutis de
afetividade que não se encaixam numa atitude confrontacional
ativista de fortalecimento de uma identidade homossexual visível
publicamente. Para tanto, pensei no termo homoafetividade para
discutir no mesmo espaço quaisquer relações afetivas entre
pessoas do mesmo sexo, desconstruindo a polaridade criada no
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século passado entre homossexualidade e heterossexualidade e
alargando o conceito de homoerotismo, resgatado entre nós por
Jurandir Freire Costa. A relação entre ética e a fetividade não nega
a questão do mercado mas a desloca oferecendo uma alternativa
estética e política num mundo em que os discursos de contestação
rapidamente se banalizam. Neste quadro, procurei na arte não só
a circulação dos discursos e imaginários sociais, mas talvez algo
que arte possa dizer de diferente. Gostaria de dar dois exemplos
a temas bastante polêmicos como a pedofilia e a união civil entre
parceiros do mesmo sexo.
A tradição lírica brasileira teria uma importante contribuição
para a redução, feita com o aval dos meios de comunicação de
massa, das relações entre homens adultos e adolescentes/menores
à pornografia, violência e estupro. Um dos temas mais antigos na
lírica ocidental, a pederastia homossexual se viu sem espaço pelo
processo em que se transformou a pedofília como uma verdadeira
paranóia globalizada, fazendo com que ministros caiam, o papa se
prenuncie, passeatas sejam feitas, mas pouco se falou de afeto
consentido. Seria um novo velho puritanismo, o mesmo que
ridicularizou Freud quando afirmou que toda criança, longe do anjo
idealizado, já possuía uma sexualidade polimorfa? Já que aos
homens adultos que gostam de adolescentes e dos adolescentes
que gostam de homens adultos foi-lhes tirada a voz, gostaria de
lembrar que também a tradição lírica pederasta atravessa a
produção poética brasileira, como já se pode comprovar desde
um poema escrito por por Mario de Andrade, em 1937, até vários
trabalhos contemporâneos, como contraponto a construção
demonizadora desta prática, como aliás foi feita em relação com a
homossexualidade no século passado. Em raros filmes, como
"Chicken Hawks" de Adi Siderman, temos a passagem do discurso
jurídico, da medicina ou da religião para a voz dos sujeitos sociais.
Outro exemplo é relativo à parceria civil entre pessoas do
mesmo sexo que se tornou uma importante bandeira do movimento
gay internacional, mas curiosamente as narrativas literárias e
cinematográficas brasileiras, diferentes das norte-americanas,
apresentam em sua quase totalidade as relações afetivas e sexuais
entre homens como marcadas pela rapidez do encontro, mesmo
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quando felizes. Seria interessante pensar esta construção não como
afirmação do clichê da h o m o s s e x u a l i d a d e associada à
promiscuidade, mas como uma alternativa afetiva para além da
submissão a modelos tradicionais da família monogâmica estável.
Não pretendi dar uma única resposta à contribuição dos estudos de
gênero, e mais espeficamente, dos estudos gays, à análise de produtos
culturais e objetos artísticos mas levantar algumas possibilidades sem me
aprofundar em nenhuma, talvez mais até contar uma estória, uma aventura.
Esta trajetória me leva hoje a pensar a identidade feminina, a
homossexualidade e o travestimento não só como experiências que apenas
digam respeito, respectivamente, a mulheres, homossexuais e a travestis,
nem só como uma questão que diga respeito a com quem cada indivíduo
tem relações sexuais, mas uma base para uma formação (Bildung)
contemporânea, pela qual aprendemos com o que somos mas também
com o que não somos; uma ética, entendida como uma forma de conduta
diante do mundo, em que a amizade e a deriva, como nos ensinou Michel
Foucault (FOUCAULT, 1989 e 1994), aparecem como contraponto às
prisões patriarcais do amor romântico e ao sexo rei, bem como base para
uma estética mais afetiva e direta, o retorno ao simples e ao cotidiano.
Trata- se ainda de um lugar de fala silenciado mas que precisa e tem sido
resgatado se quisermos uma democracia multicultural, uma base para uma
política em que o privado não é apenas espetáculo midiático permanente
mas possibilidade de adesão ao mundo, uma política tão ambígua como
somos todos nós.
O encontro de dois homens pode ser apenas um encontro, mas
também pode ser uma uma possibilidade de diálogo e abertura para o
mundo, desafio maior de todo discurso minoritário, alguma vez discriminado.
Esta é a estória que queria contar e o motivo por que acho central ainda
hoje assinar como crítico, gay. Não se trata de apenas considerar a
homossexualidade como um adjetivo, mas afirmar uma experiência
substantiva que interliga vida cotidiana e prática intelectual. A experiência
gay nada tem de redutora, classificadora, se assim o quisermos, é um
mistério insondável, um ponto de partida, uma pergunta mais do que uma
resposta.
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