Censurar dicionários?

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Censurar dicionários?
No embalo de ação do MP contra o ‘Houaiss’, Sírio Possenti retoma, em sua coluna de
março, a função básica desse tipo de obra. Para o linguista, tirar uma palavra do
dicionário equivale a tirar um animal do catálogo da fauna.
Por: Sírio Possenti
Dicionários são catálogos de palavras. Registram sua grafia ou grafias, sua história e seus sentidos. Não faz sentido
que essas obras deixem de registrar ‘fatos’ em decorrência de uma avaliação negativa deles, defende linguista. (foto:
Carla Almeida)
Discutiu-se um pouco, nas últimas semanas, sobre dicionários. Mais exatamente, foram tornadas
claras algumas características e funções dessas obras. Todos os que se pronunciaram
reafirmaram verdades óbvias. É de esperar que a maioria das pessoas tenha uma ideia clara
sobre o que seja um dicionário.
O que levou às recentes manifestações foi uma inusitada ação do Ministério Público, acionado
por um cidadão que considerou que dicionários ofendem grupos (etnias etc.) ao registrarem
acepções negativas de certas palavras. Concretamente, houve uma ação do MP contra o
Dicionário Houaiss, por registrar acepções de “cigano” consideradas ofensivas (“aquele que
trapaceia, velhaco, burlador”).
Pode-se ver melhor o caso na versão on-line do referido dicionário, até porque as acepções
consideradas ofensivas tinham sido retiradas do ar, em decorrência da ação ou de sua
divulgação. Mas, pouco tempo depois, foram repostas, com uma explicação sobre a origem
daquelas acepções (talvez em decorrência das manifestações contra a ação): “Uso: as acepções
5 e 6 resultam de antiga tradição europeia, pejorativa e xenófoba por basear-se em ideias
errôneas e preconcebidas sobre as características deste povo que no passado levava uma
existência nômade”.
Após ação do Ministério Público, o verbete 'cigano' ganhou no 'Dicionário Houaiss' uma explicação sobre a
origem de acepções da palavra consideradas negativas. (imagem: reprodução)
Algumas coisas já poderiam estar claras nesta altura da história. Uma delas é que cada obra tem
uma função diferente nas sociedades. Jornais informam e opinam, romances e filmes contam
histórias seguindo determinadas técnicas, catálogos registram objetos (os de pássaros registram
pássaros, os de flores, flores). Mapas registram dados geográficos, coletâneas de piadas
registram piadas, e as de provérbios, provérbios. Algumas não deveriam existir? Pode ser. Mas
não faz sentido deixar de registrar ‘fatos’ em decorrência de uma avaliação negativa deles (como
deixar de registrar o impeachment de Collor em uma exposição das atividades no Senado?!).
Dicionários são catálogos de palavras. Registram sua grafia ou grafias, sua história e seus
sentidos. Quase todas as palavras têm diversos sentidos ou usos (o Houaiss registra 57
acepções de “ponto” e 15 de “doce”, por exemplo). Se o dicionário é bem feito, se resulta de boa
pesquisa, incluirá as acepções das palavras e assinalará também o efeito ou a origem de certos
usos: se as palavras ou os sentidos e usos são populares ou eruditos, se são técnicos, se
conotam preconceitos etc.
Existem dicionários de gíria, de palavrões, de regionalismos, de economia, de psicanálise, de
arte, de sociologia, de sonhos... O que se espera de um bom dicionário de cada uma dessas
especialidades é que registre o máximo de palavras e de seus usos e sentidos em cada campo,
exatamente como de um catálogo de animais ou de plantas se espera o melhor e mais
minucioso registro da fauna e da flora.
Ato ou efeito de registrar
Diversas manifestações bastante óbvias na mídia tentaram fazer com que o representante do
MP entendesse que o dicionário é apenas um registro mais ou menos completo. Dicionário não
inventa palavras, não inventa os sentidos das palavras, não incentiva uso de palavras em
sentidos desabonadores. Mas também não condena palavras nem sentidos.
Dicionário não inventa palavras, não inventa os sentidos das palavras, não incentiva uso de
palavras em sentidos desabonadores
Dicionário não ensina. Não manda falar. Não sugere que se ofenda algum grupo. O que não
quer dizer que seja ‘neutro’, elaborado por marcianos ou anjos sem interesse ideológico. Tomará
decisões, como outras publicações nas áreas da economia, da política, da história, da ecologia,
da religião. O melhor combate a um dicionário que tenha problemas é outro dicionário que não
os tenha, assim como o remédio para um livro ‘inclinado’ de história é outro livro de história que
não seja inclinado ou que seja inclinado para outro lado.
Para ficar num exemplo mais neutro: bons dicionários registram diversas acepções de “namorar”
e fornecem também uma informação gramatical, baseada no uso: que sua regência é direta e
indireta (namorar o filho do vizinho, namorar com a filha do prefeito). Os exemplos aduzidos
mostram também que a regência é sempre direta quando “namorar” tem o sentido de
‘demonstrar interesse episódico’ (namorar a bolsa, o carro, nunca com um carro ou com uma
bolsa).
Há dicionários de ‘ajuda’, como os analógicos (bons para quem quer incrementar o léxico em
seus textos), assim como há catálogos de plantas medicinais (espera-se que saibam o que
dizem!).
Liberdade de expressão? Ah?
A ação do MP baseou-se em decisão judicial segundo a qual "o direito à liberdade de expressão
não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando
caracterizadas como infração penal" (fui ao dicionário para ver os sentidos registrados de
“albergar”...).
Mas não ocorre a nenhum dicionarista imaginar que o registro de palavras ou sentidos seja uma
atividade relacionada à questão da liberdade de expressão ou com “albergar” posições
preconceituosas. Recorro de novo às comparações: registrar um animal nocivo não implica
apoiar que ele mate; registrar uma planta carnívora não implica combatê-la em tempos de
defesa da alimentação vegetariana; estudar cânceres não implica ser favorável ao aumento do
número de casos dessas doenças.
Assim, a censura a um dicionário não é medida adequada para combater preconceitos.
Dicionaristas não enunciam, não proferem, não assumem, não se comprometem com o que
registram. Registram que determinado objeto existe e que tem certas origens e conotações. Foi
a sociedade, durante sua história, que produziu e manteve vivas as palavras e seus sentidos.
Foi a sociedade, durante sua história, que produziu e manteve vivas as palavras e seus sentidos.
Eventualmente, o combate ao uso de certas palavras, especialmente em contextos que implicam
agressão, injúria, preconceito etc. é defensável e até elogiável. Mas combater empregos efetivos
em contextos específicos é completamente diferente de combater o registro desses
comportamentos.
Pedir que a edição seja recolhida ou modificada é equivalente a pedir a retirada de animais de
catálogos da fauna, ou que livros de anatomia suprimam órgãos ou partes do corpo que
pareçam ofensivos (intestino grosso, pênis, cordas vocais etc., conforme o gosto do leitor). A
atitude lembra estranhas regras: denunciado um crime, pune-se o repórter ou o jornal. É tirar o
sofá da sala...
Se o MP acha que deve agir em questões de ofensa à honra e em casos semelhantes, que
processe, por exemplo, quem chama de cigano aos velhacos. Aliás, para fundamentar sua ação,
o MP vai precisar de um dicionário em que a acepção injuriosa esteja registrada e avaliada como
negativa. Sem ela, vai se basear em quê?
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/palavreado/censurar-dicionarios - Publicado em
23/03/2012 e acessado em 15/04/2012
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