Movimentos altermundialistas – uma mirada através da Teoria Crítica de Relações Internacionais Trabalho preparado para apresentação no VII Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da USP, de 8 a 12 de maio de 2017 Natália Lima de Araújo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo Mestrado Abril 2017 Resumo: O objetivo deste artigo é localizar o altermundialismo no embate de forças hegemônicas e contra hegemônicas, apontando seus êxitos e seus conflitos ainda não resolvidos, de modo a ensejar uma reflexão sobre o futuro desse movimento, que foi uma das grandes novidades políticas do fim do século XX e início do século XXI. Para embasar as reflexões, será empregada a Teoria Crítica, principalmente a vertente desenvolvida pela obra de Robert Cox, autor que trouxe para as Relações Internacionais diversos conceitos gramscianos, como hegemonia e bloco histórico. O artigo é parte de uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento, então também aponta caminhos que poderão ser percorridos no estudo sobre o altermundialismo. Palavras-chave: Altermundialismo, Teoria Crítica, Hegemonia, Contra hegemonia, Relações Internacionais. Introdução Em um período como o atual, de incertezas e de mudanças de paradigmas, as experiências históricas podem trazer luz a diversas questões que vem sendo debatidas. Diversos intelectuais e ativistas têm colocado que o neoliberalismo está em crise e que o mundo está se desglobalizando, fato que é exemplificado pela ascensão de nacionalismos conservadores, pela vitória de Donald Trump e pela saída do Reino Unido da União Europeia. Diante desse cenário, pode ser útil resgatar a experiência do movimento altermundialista, que teve por objetivo construir um projeto contra hegemônico de globalização. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é localizar o altermundialismo no embate de forças hegemônicas e contra hegemônicas, apontando seus êxitos e seus conflitos ainda não resolvidos, de modo a ensejar uma reflexão sobre o futuro desse movimento, que foi uma das grandes novidades políticas do fim do século XX e início do século XXI. Para embasar as reflexões, será empregada a Teoria Crítica, principalmente a vertente desenvolvida pela obra de Robert Cox, autor que trouxe para as Relações Internacionais diversos conceitos gramscianos, como hegemonia e bloco histórico. Este artigo é dividido em quatro partes. A primeira trata dos avanços epistemológicos e ontológicos que a Teoria Crítica trouxe para as Relações Internacionais e dos motivos pelos quais ela constitui um ferramental teórico adequado para analisar processos de mudanças sociais. A segunda parte explica o uso do conceito de hegemonia nas Relações Internacionais e, a partir dele, emprega as ideias de Robert Cox para fazer uma análise da conjuntura mundial à época do surgimento do altermundialismo e como ele se constitui como uma força contra hegemônica. A terceira parte traz a contribuição do movimento altermundialista, principalmente do Fórum Social Mundial, na disputa de ideias; por fim, a quarta parte aponta rumos para futuros debates e pesquisas sobre o assunto. Por que utilizar a teoria crítica de Relações Internacionais? Por abordar a Teoria Crítica de Relações Internacionais (TC), este trabalho encaixa-se na onda de questionamento epistemológico e ontológico da disciplina, iniciado na década de 1980. A TC, como a maioria das teorias, não é um bloco monolítico. Ela apresenta três vertentes: a inspirada pela Escola de Frankfurt, principalmente por Jurgen Habermas, e que tem Andrew Linklater como principal autor; a que comumente se denomina “pósmoderna”, que tem Richard Ashley como maior referência; e a neo-gramsciana, inaugurada por Robert Cox, que é a tendência utilizada neste trabalho (RENGGER e THIRKELL-WHITTE, 2007). Robert Cox foi o primeiro autor a adaptar o ferramental teórico do pensador italiano Antonio Gramsci para as Relações Internacionais, com destaque para o conceito de hegemonia, trabalhado por Gramsci nos Cadernos do Cárcere (GRAMSCI, 2001). Os principais pontos de sua teoria estão sistematizados no artigo seminal Social Forces, States and World orders, publicado em 1981 na Revista Millenium. Além de lançar as bases de sua interpretação da obra de Gramsci, neste artigo Cox recupera a diferenciação epistemológica cunhada por Max Horkheimer (1937) entre as teorias dominantes e as que ele via como necessárias. As teorias dominantes seriam aquelas que trabalham com as relações sociais, políticas e de poder nos termos em que elas estão colocadas. São teorias que, intencionalmente ou não, possuem um compromisso com o status quo pelo fato de não questionarem as relações tal como estão estabelecidas, mas serem desenhadas para resolver problemas pontuais que possam trazer problemas ao funcionamento da ordem. Em outras palavras, as teorias dominantes, que Cox denominou de teorias de solução de problemas, visam a azeitar as peças da engrenagem social para que funcionem da melhor maneira possível, e não questionar o arranjo ou a própria existência dessas peças. Já as teorias vistas como necessárias, as teorias críticas, teriam o objetivo de desvelar a realidade e evidenciar os interesses e ideologias que estão por trás dos diversos tipos de relações sociais. São, portanto, teorias que buscam conhecer a origem dos arranjos sociais em questão, bem como verificar se estão em processo de mudança e quais são as alternativas. “Toda Teoria serve para alguém e para algum propósito” (COX, 1981). Com essa frase Robert Cox desmascara a suposta neutralidade das abordagens positivistas, como o Realismo, e traça uma linha divisória entre estas e as abordagens pós-positivistas. As primeiras são as que compõem o mainstream das Relações Internacionais, e apoiam-se sobre diversos pressupostos da ciência moderna e iluminista. Um desses pressupostos é a separação entre o sujeito e o objeto, tal como se espera nas ciências naturais, em que o pesquisador não realiza nenhuma interferência naquilo que está sendo estudado. Além disso, parte importante dessas teorias é a elaboração de leis abstratas e universais, que são válidas para todos os períodos da história e para todos os contextos sociais. Um exemplo desse tipo de formulação é a afirmação de que, em um sistema anárquico, os Estados agem baseando-se em interesses definidos em termos de poder. Outra ideia sustentada pelas teorias positivistas é a racionalidade instrumental, segundo a qual todos os atores, inclusive os Estados, agem de maneira racional e auto interessada, realizando cálculos de custos e benefícios de suas ações. Para esse tipo de teoria, o pesquisador é neutro e, ao empreender uma “análise objetiva” da realidade, narra os fatos tal como se apresentam, sem emitir sobre eles juízos de valor. Robert Cox, na parte reflexiva de sua teoria, desmascara a suposta neutralidade do pesquisador e evidencia que as análises positivistas estão imbuídas de valores e interesses, grande parte dos quais associados à manutenção da ordem e do status quo. O sistema de valores da Teoria Crítica, por outro lado, é explícito e sabe-se que ela é voltada para a transformação social. Toda teoria tem algum propósito e serve para sustentar interesses de determinados grupos sociais; uma das diferenças entre os dois grupos de teorias é que as positivistas mascaram esse fato, ao passo que a Teoria Crítica é explícita nessa questão. O autor também coloca que a Teoria Crítica avança em relação ao Realismo (e outras teorias positivistas) em três pontos principais (MOOLAKKATTU, 2011): o primeiro é a inserção de uma perspectiva dialética de análise da realidade social. Abre-se, então, a possibilidade do surgimento de alternativas por meio do confronto entre forças sociais opostas, em uma dada situação histórica concreta. A inserção da dialética no ferramental teórico crítico representa também uma mudança de visão sobre Teoria da História. Para o Realismo, o conflito é consequência de uma estrutura que se perpetua, já a TC enxerga o caráter dinâmico dos conflitos como geradores de mudanças, que advêm das próprias contradições que a ordem vigente apresenta. O segundo ponto é a inserção do materialismo, que acrescenta uma dimensão vertical à rivalidade horizontal entre os Estados. O materialismo evidencia situações concretas de dominação entre centro e periferia e relaciona o sistema de produção econômica ao sistema de poder, tanto no nível nacional quanto no nível internacional. O terceiro ponto é a consideração que a Teoria Crítica faz dos cidadãos comuns atores legítimos das Relações Internacionais, o que é feito ao se colocar que o Estado não é um ator homogêneo, mas é fruto das relações sociais internas a ele. Também é importante destacar que Robert Cox trabalha com a noção de que sempre existem três forças que interagem em uma dada estrutura histórica: forças materiais, ideias e instituições (COX, 1981). O framework para a ação é uma imagem que mostre a interação entre esses três tipos de força. Essa interação não determina de maneira mecânica a ação dos atores, mas explicita as forças a que os atores da mudança social terão que se opor. Também é importante destacar que essas três forças se influenciam de maneira recíproca e nenhuma delas têm importância superior. As capacidades materiais têm potencial construtivo ou destrutivo; elas compreendem as tecnologias, capacidades administrativas, recursos naturais que podem ser transformados, equipamentos e riquezas. As ideias organizam-se em dois tipos distintos. Um deles são as ideias intersubjetivas, que são noções compartilhadas sobre a natureza das relações sociais e que geram expectativas de comportamento, independentemente de haver concordância com elas ou não. O exemplo que Cox coloca é a noção de que os cidadãos estão organizados em Estados e que estes possuem soberania dentro de determinado território. O segundo tipo de ideias são as imagens coletivas que os diferentes grupos possuem sobre qual deveria ser a natureza de determinadas relações sociais. Essas imagens podem ser numerosas e divergentes entre si, e é nesse campo que estão as possibilidades mais imediatas de mudança social. As instituições são meios de estabilizar e perpetuar uma determinada ordem, e refletem as relações de poder que existiam no período em que foram criadas. Elas reforçam imagens coletivas compatíveis com essas relações de poder. Entretanto. As instituições podem adquirir autonomia e constituir-se como campos de batalha de tendências opostas. Para Gramsci, existe uma conexão estreita entre a institucionalização e a hegemonia, uma vez que instituições podem operar como fóruns para o apaziguamento de conflitos, evitando assim o uso da força. Diante do que foi exposto, considera-se que a Teoria Crítica é um ferramental adequado para o estudo do movimento altermundialista porque transporta para as Relações Internacionais o conceito de hegemonia de Gramsci. Esse conceito é útil para analisar o altermundialismo uma vez que esse movimento se coloca como uma alternativa contra hegemônica para a globalização neoliberal. Além disso, a tríade coxiana constituída por capacidades materiais, forças sociais e instituições oferece ao pesquisador um framework para estudar o terreno em que os movimentos sociais atuam e qual a correlação de forças com a qual os movimentos terão que lidar. Quem possui a hegemonia? Para pensar em possibilidades de mudança social, é preciso ter um diagnóstico preciso sobre o que necessita ser mudado e qual a correlação de forças sociais. É necessário fazer uma análise extensa da conjuntura para saber em que contexto o movimento altermundialista surgiu, quais são suas possibilidades de atuação e qual a força do seu inimigo. Para isso, Cox nos apresenta as direções para as quais temos que direcionar nosso olhar - ideias, instituições e capacidades materiais - e também nos apresenta uma “caixa de ferramentas” com vários conceitos que podem ser mobilizados nessa análise. Um desses conceitos é o de hegemonia. Nas Relações Internacionais existem diversas visões do que seria hegemonia. Uma dessas visões é a de hegemonia como a dominação material que um Estado exerce sobre outro. Isso significa exercer poder sobre; uma ação unilateral e absoluta. Essa concepção é característica das Teorias Realistas. Outra visão possível, calcada na Economia Política Internacional, é a da hegemonia como dominação econômica. Nesse sentido, um Estadonação serve como centro, como âncora para o sistema capitalista. Das políticas desse país originam-se as regras que sustentam o sistema internacional. São características desta perspectiva as Teorias do Sistema-Mundo de Immanuel Wallerstein e a Teoria dos Ciclos Hegemônicos de Giovanni Arrighi (ROBINSON, 2005). Apresenta-se ainda um terceiro ponto de vista, que trabalha com o conceito de hegemonia tal como colocado por Antonio Gramsci ou baseando-se nele. Esta é a perspectiva empregada neste trabalho, e nela se encaixa a obra de Robert Cox. No artigo Gramsci, Hegemony and International Relations: an essay in method (1983), Cox apresenta sua visão acerca do conceito gramsciano de hegemonia e como ele poderia ser adaptado para o estudo da ordem global. É importante destacar que no pensamento de Gramsci, os conceitos são elásticos e só se tornam precisos a partir do contato com a situação concreta que com eles deve ser explicada. O pensador italiano não construía conceitos abstratos e universais; seu pensamento possui estreita conexão com as circunstâncias históricas (RUPERT, 1998). No artigo supracitado, Robert Cox comenta que, para elaborar o conceito de hegemonia, Gramsci teve duas influências principais: os debates da III Internacional e a obra de Nicolau Maquiavel. No âmbito da III Internacional, destaca-se a ideia de que o proletariado deveria exercer influência sobre as classes aliadas, e dominação sobre os inimigos. Gramsci, então, aplicou esse pensamento para a análise da burguesia, com o objetivo de verificar quais seriam os mecanismos de hegemonia da classe dominante. Nos casos em que a ideologia burguesa estava fortemente arraigada nas pessoas comuns, esta classe sequer necessitava conquistar o poder do Estado para exercer sua influência. Esse fato levou Gramsci a desenvolver uma concepção alargada de Estado. Uma vez que os aparatos administrativo, executivo e coercitivo estavam sendo pautados pelas ideias hegemônicas, não faria sentido restringir o Estado a esses aparatos governamentais. Seria, então, necessário incluir as bases que sustentam o sistema de ideias hegemônicas, tais como escolas, igrejas e a mídia. Essas instituições compõem a sociedade civil, que, juntamente à sociedade política (aparatos governamentais), formam o Estado. A segunda influência sobre as ideias de Gramsci veio de Nicolau Maquiavel, de quem recuperou a imagem do poder como um centauro: “metade humano, metade besta, uma combinação necessária de consentimento e coerção. Enquanto o aspecto consensual do poder estiver em primeiro plano, a hegemonia prevalece. A coerção está sempre latente, mas somente é aplicada em casos marginais e desviantes” (COX, 1983, p.164). Em nível internacional, “a hegemonia é uma ordem na economia mundial com um modo de produção dominante que penetra em todos os países e se liga a outros modos de produção subordinados. Também é um complexo de relações sociais internacionais que conecta classes sociais de diferentes países” (COX, 1983, p.171). Tal hegemonia deve ser uma junção das estruturas social, econômica e política, e nunca apenas uma delas. Para Cox, a construção da hegemonia não é um processo vertical, imposto de cima para baixo, mas o produto de negociações entre dominantes e dominados, de modo que os interesses das classes dominantes pareçam universais. Ou seja, ela é expressão de um consenso geral e envolve a aceitação de ideias apoiadas por forças materiais e instituições. O consentimento das massas não pode ser assegurado por muito tempo, então tem que ser constantemente renegociado e reassegurado sempre que houver mudanças nas circunstâncias históricas. As relações sociais de produção são o ponto de partida para analisar a operação da hegemonia. Ressalta-se que isso não é uma opção que reduz tudo à produção em seu sentido economicista, uma vez que a produção deve ser entendida em termos amplos e que não diz respeito apenas à produção de bens consumidos ou comercializados, “e abarca a produção e reprodução do conhecimento e das relações sociais, da moral e as instituições que são pré-requisitos para a produção de bens físicos” (COX apud MORTON, 2009, p.155). Robert Cox coloca que, na história do sistema internacional moderno, houve dois períodos de hegemonia: a Pax Britannica (1845-1875) e a Pax Americana. Esta última representa o os anos durante os quais o mundo viveu sob hegemonia dos Estados Unidos, entre o fim da II Guerra Mundial (1945) até o começo da década de 1970. De maneira resumida, pode-se dizer que essa ordem foi mantida pelo Sistema de Bretton Woods, caracterizado por taxas de câmbio fixas, pelo padrão ouro e por instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Essa também foi a época do “embedded liberalism”, que consistia em uma combinação de livre comércio internacional com a possibilidade de os governos intervirem em suas economias nacionais para manter a estabilidade. A forma de Estado correspondente era o bem-estar social keynesiano, e as relações sociais de produção eram organizadas pelo sistema fordista, caracterizado pela produção e pelo consumo em massa, bem como por uma aliança corporativa entre governos, empresários e trabalhadores (RUGGIE, 1982). A partir do começo da década de 1970, essa ordem internacional começou a ruir, colocando fim ao período de hegemonia dos Estados Unidos e abrindo um período de não-hegemonia. Stephen Gill aponta que a Pax Americana foi um bloco histórico internacional baseado no modelo de produção fordista e cujas bases políticas incluem uma variedade de grupos, como “trabalho moderado organizado” e grande capital. Entretanto, as mudanças políticas e a globalização econômica minaram essa hegemonia (GILL, 1993). Atualmente, vê-se uma guinada para o neoconservadorismo na política e para o neoliberalismo na economia. Antes havia um bloco histórico internacional e agora há um bloco histórico transnacional liderado pelos EUA, caracterizado pela supremacia desse país e não pela sua hegemonia. Assim, a ordem global atual vive em um estado de nãohegemonia, desde a queda de Bretton Woods, e há a emergência de movimentos contra hegemônicos. Cumpre notar que existe uma ligação entre a fase não hegemônica e a emergência de movimentações políticas, como os protestos de Seattle em 1999 e o Fórum Social Mundial (DEAK, 2005). Como coloca Carnoy, a hegemonia é expressa tanto na sociedade civil quanto no Estado (em sentido estrito). O Estado é o mecanismo ao qual a burguesia recorre quando ela perde controle sobre as consciências, quando o consentimento não é mais o que prevalece e há desafios colocados para a ordem social. É isso que caracteriza um período como nãohegemônico (CARNOY, 1984). Adotando uma perspectiva materialista e dialética, afirma-se que a ordem hegemônica é repleta de contradições; assim, as contradições que emergiram fizeram com que as mudanças políticas e econômicas trazidas pela globalização minassem a hegemonia dos Estados Unidos. Como resultado, houve uma ascensão conservadora na política e do neoliberalismo na política. Os exemplos típicos dessa guinada são Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Com isso, passou-se de um bloco histórico centrado nos Estados Unidos para um bloco histórico transnacional. Esse período tem sido caracterizado pela força econômica das corporações transnacionais e de seus aliados nos governos, bem como por uma variedade de redes que propagam a ideologia da globalização. Além disso, alguns autores, como Van der Pijl (1998), colocam ainda a formação de uma classe capitalista transnacional. Esse período também apresenta uma crise de hegemonia, que é caracterizada por uma crise de representatividade, em que há forças sociais antigas coexistindo com forças novas. As antigas estão desconectadas das organizações políticas que costumavam representa-las, mas as forças sociais novas ainda não produziram organizações e intelectuais orgânicos que pudessem auxiliá-las na formação de um novo bloco histórico. Em uma crise orgânica, há três resultados possíveis: a tentativa de reestabelecimento da antiga hegemonia, a constituição de uma nova hegemonia ou a emergência de formas de revolução passiva. Uma dessas formas de revolução passiva é o transformismo, que se caracteriza pela cooptação de grupos marginalizados. Umas das instituições internacionais que tentam restaurar a hegemonia dos Estados Unidos é a Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem como objetivo coordenar as políticas de comércio internacional. Idealmente, a função da OMC é construir consensos nos assuntos de comércio internacional. Entretanto, diversos autores apontam que, a partir do encontro de Seattle, em 1999, ocorreram séries de falhas que, gradativamente, foram expondo as contradições da organização. Desde então, os grandes gargalos das rodadas de negociação têm sido a construção de pacotes de medidas amplos o suficiente para agradar a todos os países-membros. Cumpre notar que o principal sustentáculo da hegemonia é o consenso, obtido por meio de um processo de mediação com os grupos subalternos, através do qual os interesses das classes dominantes são colocados como universais. Entre o fracasso de Seattle e a Rodada de Doha, a única mudança em termos de negociação foi o fato de que a posição dos países periféricos e dissidentes foi comprada pelos países centrais de maneira mais sofisticada, evidenciando a implementação de transformismo dentro da Organização Mundial do Comércio. Ainda assim, a organização passa por grandes dificuldades em tomar decisões legítimas, pois os processos decisórios têm sido questionados. Colocam-se recorrentes queixas sobre o déficit democrático que, ainda que não seja exclusivo a uma organização internacional, tem ficado evidente no âmbito da OMC. Existem também políticas deliberadamente excludentes, como as discussões na “sala verde”, em que um grupo seleto de países toma as principais decisões, à revelia dos outros membros da organização. Destaca-se a tentativa de despolitização dos fóruns de discussão, com tentativas de desvincular a política da economia, como se esta pudesse ser administrada por técnicas supostamente neutras. Além disso, os termos dos debates já são pré-determinados, de modo que as delegações que não concordam com eles quedam-se excluídas. A exclusão se dá também na participação de atores não-estatais, pois é restrita a organizações nãogovernamentais que não demonstrem interesse em trazer à tona assuntos recorrentemente negligenciados, como direitos humanos e preservação ambiental. Em suma, os problemas internos da Organização Mundial do Comércio fazem com que ela não tenha capacidade de construir consensos e, por isso, não consiga estabelecer hegemonia. A OMC passa por uma crise de legitimidade, abrindo um vão entre o que é defendido pelos tomadores de decisão e a vontade das pessoas que são afetadas pela decisão. “Se a hegemonia é baseada no consentimento e na inclusão de grupos subalternos, então a contra hegemonia iria emergir das contradições do período não hegemônico. Quando o consentimento ou legitimidade de uma hegemonia é perdida, os grupos subalternos ficam descontentes. As condições seriam apropriadas para um desafio legítimo e popular à ordem social que teria marginalizado essas pessoas” (DEAK, 2005, p. 50). O descontentamento, porém, não estava restrito aos representantes dos Estados-membros da OMC. Cidadãos comuns, ao redor do mundo, também se mostraram insatisfeitos com o projeto político, econômico e social da globalização neoliberal. Esse foi o contexto para a criação do movimento altermundialista, que se tornou um dos movimentos políticos mais marcantes da última década do século XX e do começo do século XXI. Por meio de diversas estratégias, esse movimento pautava um projeto contra hegemônico de globalização, que fosse voltado para as demandas sociais e não pelas exigências do capitalismo. A primeira manifestação do movimento altermundialista foi o Levante Zapatista, de 1º de janeiro de 1994. Nesta data, entrava em vigor o North America Free Trade Agreement (NAFTA), um acordo de livre comércio entre Estados Unidos, Canadá e México, em que a economia mexicana acabaria sendo subordinada aos dois outros países, e que previa a livre circulação de mercadorias, mas não de pessoas. Na ação de 1º de janeiro, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) pegou em armas para defender os direitos dos camponeses e indígenas contra o sistema político neoliberal do México, com suas promessas de modernização. Nesse dia, grupos de indígenas ocuparam sete municípios de Chiapas, o estado mais pobre do país. As ocupações foram violentamente reprimidas por tropas federais, que contavam com um número de soldados muito superior ao EZLN. Os embates duraram doze dias e resultaram em um número alto de mortes, a maioria delas de zapatistas. Diante das perdas, o EZLN teve que recuar, mas, com o apoio da população, abriu-se um processo de diálogo entre os soldados e o governo (ORTIZ, 2005). Em 1996, os zapatistas organizaram o Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, que ficou conhecido como Intergaláctico, e foi a primeira grande reunião de ativistas que pautavam um novo projeto de globalização. Após avanços e retrocessos nas negociações com o Estado, os zapatistas decidiram prosseguir suas atividades de maneira totalmente autônoma em relação ao aparato estatal. Depuseram as armas, tornaram-se a Frente Zapatista de Libertação Nacional e passaram a organizar seus próprios territórios. Apesar de o Levante Zapatista ter sido a primeira grande ação de contestação ao projeto de globalização neoliberal, o marco inaugural do que se convencionou chamar de movimento altermundialista foi o que ficou conhecido como Batalha de Seattle. No ano de 1999, em Seattle, nos Estados Unidos, a Organização Mundial do Comércio organizou a “Rodada do Milênio”, uma articulação entre representantes governamentais para estabelecer as regras do livre comércio (DELLA PORTA, 2008). Meses antes do evento, uma carta chamada Stop WTO Round, escrita por membros da sociedade civil, circulou pela internet, convocando organizações e indivíduos a aderirem à luta contra um “mercado global”. Cerca de 1500 entidades, de 89 países aderiram ao chamado e, em 30 de novembro de 1999, 50.000 manifestantes saíram às ruas. Posicionaram-se na avenida que levava ao centro de convenções onde haveria a cerimônia de abertura da rodada de negociações da OMC e bloquearam a passagem. Com essa ação, tiveram êxito em cancelar a realização do evento, mas foram violentamente reprimidos pela polícia (CODAS, 2007). “Seattle foi um marco na história dos movimentos sociais, primeiro por ter se dado no centro do império norte-americano, colocando lado a lado antigos adversários da luta social norte-americana, como sindicalistas e ambientalistas. Mas principalmente por colocar em xeque algumas certezas das elites dominantes, dentre elas a de que os únicos inimigos a serem enfrentados eram os terroristas e os fundamentalistas religiosos” (RABELO, 2006, p. 52). Com a Batalha de Seattle, estaria então inaugurado o movimento altermundialista, que culminou na criação do Fórum Social Mundial (FSM). O primeiro evento do Fórum ocorreu entre 25 e 30 de janeiro de 2001, em Porto Alegre, mas, como colocado anteriormente, seu processo tem início vários anos antes, com um crescendo de mobilizações populares contra o neoliberalismo e contra as instituições responsáveis pela administração desse projeto político e econômico, ou em outras palavras, responsáveis pela governança global. Existe uma disputa de versões sobre a criação do FSM. No livro O desafio do Fórum Social Mundial (2005), Francisco Whitaker relata que ele e Oded Grajew teriam tido a ideia de iniciar uma articulação internacional, pois se existia o Fórum Econômico Mundial, deveria existir um Fórum Social Mundial, como forma de disputa direta entre projetos políticos. Com essa ideia, Whitaker e Grajew foram a Paris para encontrar Bernard Cassen - diretor do Jornal Le Monde Diplomatique - e tentar mobilizar as redes que se formaram durante os eventos do movimento altermundialista. A proposta inicial era de que o encontro ocorresse na França, mas Cassen teria sugerido que o lugar fosse Porto Alegre, por contar com um governo progressista e ter desenvolvido ferramentas inovadoras de democracia popular, como o Orçamento Participativo. Bernard Cassen também escreveu um livro, Tout a commencé à Porto Alegre (2003), relatando como teria sido a primeira reunião do processo de criação. Ele afirma ter sido dele a ideia de que o Fórum tivesse um caráter social e fosse organizado em um país da periferia do capitalismo. Essa disputa sobre paternidade e local de nascimento do Fórum Social Mundial pode parecer apenas uma divergência sobre os fatos, mas é uma tensão que se espraia para todos os âmbitos do FSM e faz parte de uma disputa maior entre duas tendências opostas pela liderança no interior do Fórum. De acordo com a classificação da pesquisadora Ana Maria Prestes Rabelo, uma dessas tendências é a que ela denomina de “horizontalistas”, e a outra é a dos “movimentistas” (RABELO, 2006). A tendência horizontalista considera-se representante de uma geração política que se diferencia dos antigos movimentos e organizações do século XX, bem como de seus vícios. Nesse grupo, há grandes organizações como CBJP, CIVES, Oxfam International e várias redes formadas principalmente por ONGs. O tipo de pensamento apresentado pelos horizontalistas tem tido grande influência na condução dos processos do Fórum; portanto, vigoram ideias de que o FSM é um espaço horizontal, que não deve ter participação oficial de partidos políticos e que já está plenamente mundializado. Quanto ao grupo dos “movimentistas”, este representa os que acreditam ser necessária uma maior capacidade propositiva e de resistência ao neoliberalismo por parte do Fórum. Sua maior representante é a Rede Mundial de Movimentos Sociais, que surgiu no I FSM, a partir de uma iniciativa da Central Única dos Trabalhadores, da Via Campesina, do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), Marcha Mundial das Mulheres, Jubileu Sul, entre outros (NOBRE e FARIA, 2003). Para Whitaker, pertencente à tendência horizontalista, transformar o FSM em um movimento é jogar fora um instrumento de luta criado a partir da descoberta política mais poderosa dos últimos tempos, que seria a organização horizontal e sem líderes. A partir dessa concepção, o Fórum seria como uma praça sem dono. A preocupação em demarcálo como um espaço e não como um movimento se dá em reação às assembleias e declarações aprovadas pela Rede Mundial de Movimentos Sociais no interior do FSM, visto que muitas vezes essas declarações são divulgadas pela imprensa e pelos próprios participantes como sendo do próprio Fórum (WHITAKER, 2013). Os representantes movimentistas afirmam que o Fórum se fortalece quando define agendas e lutas prioritárias, que o mantém em funcionamento entre um encontro e outro, em âmbito local, nacional e mundial. Para eles, também é necessário que as razões que motivam a criação do Fórum concretizem-se sob a forma de capacidade material para mudar os rumos da globalização hegemônica, o que coloca a necessidade de uma agenda mínima, que agregue a todos os que se reúnem no Fórum em uma mesma luta (RABELO, 2006). Cumpre lembrar que esse tipo de embate político não é exclusivo ao Fórum Social Mundial e tem estado presente nas lutas das esquerdas mundiais. Estruturas mais tradicionais de mobilização, como partidos e sindicatos, têm passado por uma forte crise de legitimidade, derivada de uma crise da democracia representativa e da ascensão de novas formas de organização política, mais fluidas, sem hierarquias e que pautam formas de democracia direta. Atualmente, formas novas e antigas de luta social coexistem, algumas vezes sendo motivo de embates, outras vezes sendo matéria-prima de processos inovadores de síntese. Altermundialismo e guerra de posição Períodos de crise hegemônica abrem a janela histórica para a ascensão de formas sociais contra hegemônicas, que emergem das contradições presentes no seio da antiga ordem, e que podem vir a conquistar a nova hegemonia. Uma das características de um projeto hegemônico é o fato de que as ideias que o sustentam espraiam-se por todas as partes que conformam o bloco histórico. Um bloco histórico é uma amálgama entre a sociedade política e a sociedade civil, e comporta forças sociais coesionadas em torno de um projeto político. Portanto, é a justaposição de relações políticas, éticas e ideológicas com a esfera econômica. Para a constituição de um novo bloco histórico, os membros do que pode vir a ser a nova classe hegemônica devem engajar-se em uma luta não apenas para conquistar os meios de produção econômicos ou o Estado, mas também o imaginário político e moral dos cidadãos. Em outras palavras, para que se conforme um novo bloco histórico é necessário que ideias contra hegemônicas vençam a disputa de consciência da população. É necessário formar um novo “senso comum”, um novo conjunto de significados intersubjetivos que informem a leitura de mundo das pessoas. Cumpre notar que um dos pontos de destaque da obra de Gramsci foi a importância conferida às ideias no processo de construção e manutenção da hegemonia. Ao pensar sobre o processo de construção de uma nova hegemonia na sociedade italiana nas décadas de 1920 e 1930, Antonio Gramsci debruçou-se sobre a experiência da Revolução Bolchevique para tirar lições que pudessem ser aplicadas a um processo revolucionário na Europa Ocidental. A fim de ilustrar a diferença de táticas, Gramsci recorre ao vocabulário militar e utiliza as expressões “guerra de movimento” e “guerra de posição”. Na Rússia, o aparelho administrativo e coercitivo do Estado era grande, porém frágil, e a sociedade civil era subdesenvolvida. Nesse cenário, uma pequena classe trabalhadora liderada por um partido de vanguarda poderia tomar o poder do Estado por meio de uma guerra de movimento, um assalto, e não haveria resistência efetiva na sociedade civil. Esse partido de vanguarda poderia fundar um novo Estado, aplicando coerção sobre elementos opositores e construindo consenso entre os apoiadores. Já na Europa Ocidental, a sociedade civil encontrava-se bastante desenvolvida, de modo que uma guerra de movimento poderia até tomar o aparato estatal, mas a sociedade civil apresentaria resistência e essa empreitada fracassaria. A alternativa para a derrubada da hegemonia burguesa nesses países seria o empenho em uma longa guerra de posição que fosse construindo força social para a fundação de um novo Estado. Na Europa Ocidental, os grupos revolucionários deveriam primeiramente ganhar a guerra na sociedade civil e depois tomar o aparato estatal, o que significa que sua primeira tarefa era derrotar as ideias burguesas. De maneira análoga, quando o movimento altermundialista foi criado, era necessário empreender uma guerra de posição contra a ideologia neoliberal, que se espalhava sob a égide da governança global. A palavra governança passa a fazer parte do vocabulário corrente quando surge a globalização. Boaventura de Sousa Santos coloca que até 1975, o catálogo da Biblioteca do Museu Britânico contava com apenas 47 títulos com a palavra governança (SANTOS, 2005). A partir da década de 1970, o contrato social dos Estados sociais-democráticos foi colocado em questão, pois tornava-se cada vez mais evidente que ele visava excluir grupos sociais. Essa ruptura social ficou muito explícita com o relatório da Comissão Trilateral lançado em 1975. De acordo com o relatório, a democracia estava em crise, mas não por ser insuficiente, e sim por estar presente em excesso, resultando em uma sobrecarga de reivindicações. Seria necessário, portanto, reduzir o grau de inclusão das democracias. Além de apresentar o suposto problema, o relatório também apresentava as soluções. Propunha-se a neutralização da política pela técnica, a substituição da participação popular para a tomada de decisões pelos colegiados de especialistas, do público pelo privado e do Estado pelo mercado. Tamanho foi o impacto das sugestões que, na década seguinte, construiu-se um novo regime político e social baseado nessas ideias. Esse novo regime foi imposto mundialmente como um verdadeiro consenso. Quando o que se convencionou denominar de consenso de Washington entrou em vigor, três palavras de ordem fundamentais foram colocadas: privatização, mercantilização e liberalização. As leis de mercado ocuparam o lugar da regulamentação econômica e criaram-se diversas organizações não-governamentais que passaram a suprir as demandas que não interessavam ao mercado. O enxugamento do Estado veio acompanhado da ideologia da meritocracia e do esforço individual, segundo a qual a ascensão social ou mesmo o suprimento de necessidades básicas está sob total responsabilidade dos indivíduos. As soluções propostas pela Comissão Trilateral logo mostraram-se ineficazes. O fracasso da atuação do mercado como princípio da regulação social acarretou aumento da fome, da pobreza, da corrupção, da devastação ambiental e a eclosão de conflitos civis. Esse é o cenário de emergência da governança, que, como coloca Santos, visa a dar respostas tanto para as demandas de inclusão e participação quanto para a exigência de autonomia dos mercados. É importante destacar que, nos mecanismos de governança, a participação de atores que apresentam demandas sociais está sujeita a critérios de escolha. Os Estados, por exemplo, só podem participar caso se despojem de sua soberania e assumam um estatuto semelhante ao dos demais atores. Assim, o Estado é privado de seu papel de regulador social e acentua-se o seu caráter de entidade responsável por criar condições de atuação para os reguladores não-estatais. “À luz desta realidade, a governança neoliberal procede àquilo a que De Angelis chama de ‘a inversão de Polanyi’. Enquanto Polanyi defendia que a economia existe incrustada na sociedade, a matriz da governança tem por premissa a necessidade de incrustar a sociedade na economia” (SANTOS, 2005, p.18). Assim, a governança neoliberal enfraqueceu mecanismos democráticos de participação social e de redistribuição de recursos, de modo que a democracia se tornou compatível com o neoliberalismo e perdeu grande parte de sua legitimidade. Ressalta-se que o período da formulação da globalização neoliberal correspondeu à ascensão de governos conservadores como o de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, que expressavam a suposta inexorabilidade desse modelo econômico, político e social. “There’s no alternative” (não existe alternativa), proclamava Thatcher, expressando que o neoliberalismo prevaleceria porque não existiria alternativa viável. Nesse cenário de descrença nas alternativas ao liberalismo, o movimento altermundialista, reunido no Fórum Social Mundial, teve a tarefa de mostrar que “outro mundo é possível”. O slogan do FSM exprime a função que ele cumpriu na guerra de posição das forças contra hegemônicas progressistas, ao colocar de volta no horizonte político as utopias críticas. Nesse caso, as utopias críticas são opostas às utopias conservadoras, tais como o neoliberalismo. Como coloca Boaventura de Sousa Santos, as utopias conservadoras possuem um critério único de eficácia, que logo se torna um critério ético supremo. No caso do neoliberalismo, o critério de eficácia é a régua das leis do mercado, e seu caráter utópico reside na ideia de que a sua realização acarreta a destruição de todas as outras utopias. A utopia conservadora do neoliberalismo faz os cidadãos acreditarem que a fome, o desemprego e a exclusão social, por exemplo, existem porque as leis do mercado não estão sendo plenamente aplicadas, e não porque elas apresentam limites. Nesse contexto, o Fórum Social Mundial engendrou a reemergência de uma utopia crítica. Santos coloca que o neoliberalismo se baseia em dois pressupostos: a pretensão de controle total sobre a sociedade através do saber e da técnica, e a rejeição a alternativas à realidade dominante. Como utopia crítica, o FSM responde a esses pressupostos colocando que o controle total é uma ilusão, tal qual o saber e o poder, e que existem alternativas concretas e viáveis ao status quo. Em um período em que prevalece a crença de que as alternativas sequer são possíveis, seria mais importante colocar no horizonte a possibilidade de alternativas do que as definir. Com isso, coloca Santos, justifica-se o caráter aberto das propostas do FSM, pois sua utopia caracteriza-se mais por uma negatividade (criticar a globalização hegemônica) que por uma positividade (a definição de um programa contra hegemônico). A globalização hegemônica está assentada em uma determinada forma de conhecimento técnico-científico igualmente hegemônico. A ciência ocidental moderna não apenas coloca a si como detentora de verdades, mas também deslegitima outras formas de produção de conhecimento. Nesse sentido, uma das atuações do Fórum Social Mundial na guerra de posição é colocar em evidência práticas e saberes que possuam uma diversidade de pressupostos epistemológicos (o que conta como conhecimento) e ontológicos (o que conta como humano). Uma das questões pautadas pelo Fórum Social Mundial é que não há justiça social global sem justiça cognitiva global. Nesse sentido, o Fórum busca quebrar com a monocultura do saber, que transforma a ciência moderna e a alta cultura nos critérios absolutos de verdade e de estética. À monocultura do saber, contrapõe-se a ecologia dos saberes, que identifica outros saberes e outros critérios de rigor que operam em distintas práticas sociais. “Não há ignorância em geral nem conhecimento em geral. Toda a ignorância é ignorante de um certo conhecimento, e todo o conhecimento é a superação de uma ignorância particular” (SANTOS, 2005, p. 18). Cumpre notar que a ecologia dos saberes não implica um relativismo total, pois o relativismo é a ausência de critérios de hierarquia entre os saberes e, da perspectiva da emancipação social, essa posição é insustentável, uma vez que, se todos os conhecimentos têm o mesmo valor, todos os projetos de mudança social - sejam eles progressistas ou conservadores - são igualmente válidos, o que, em última instância, significa que são igualmente inválidos. O que a ecologia dos saberes propõe é uma nova forma de relação entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento, que conceda oportunidades iguais para que diferentes tipos de saberes acessem as disputas epistemológicas. Outra contribuição do Fórum Social Mundial para a guerra de posição é o que Santos denomina de ecologia das trans-escalas, que significa confrontar a lógica da escala global por meio da recuperação de aspectos locais que não foram afetados pela globalização hegemônica. É necessário desglobalizar os locais, retirá-los da lógica da globalização hegemônica, para eventualmente reglobalizá-lo de maneira contra hegemônica. Por meio desse processo, amplia-se o leque de práticas sociais que podem constituir-se como alternativas aos impactos do “globalismo localizado”. Walden Bello, economista e sociólogo filipino afirma que a evolução no pensamento mundial nos últimos anos é evidente e, em grande parte, isso foi influência do Fórum Social Mundial. Bello acrescenta ainda que “se olharmos o mundo em 1995, a hegemonia das empresas neoliberais era realmente dominante, e se olharmos em 2010, o neoliberalismo está desacreditado, e a hegemonia das empresas está sob forte crítica em todas as partes do mundo” (BELLO, 2010). O altermundialismo poderá engendrar um novo bloco histórico? A parte final deste artigo não tem como objetivo fechar o texto, mas abrir portas investigativas através das quais entrarei no restante da pesquisa de mestrado. O primeiro ponto a ser colocado é se o movimento altermundialista e, consequentemente, Fórum Social Mundial, possui condições de conformar um novo bloco histórico por meio das forças sociais arrebanhadas no processo da guerra de posição descrito anteriormente e, consequentemente, formar uma nova hegemonia. Ao longo da história do FSM, diversos intelectuais e ativistas afirmaram que o Fórum era a maior novidade política do século XXI. Passados dezessete anos de sua criação, o Fórum tem perdido importância como ator da política global e como ferramenta organizativa para o movimento altermundialista. Desde 2011, as organizações que compõem o Conselho Internacional têm colocado a questão da perda de relevância. É necessário, pois, investigar quais são as causas do esgotamento do Fórum Social Mundial, investigação que será realizada no restante da pesquisa de mestrado da qual este artigo é parte. Uma das hipóteses que a pesquisa aventa é a de que o capitalismo mudou muito desde a criação do FSM, bem como as formas de organização e de mobilização da sociedade civil. Entretanto, o Fórum não foi capaz de acompanhar as transformações e dar respostas adequadas. As clivagens internas ao Fórum, como a oposição entre movimentistas e horizontalistas, ensejam análises muito diversas acerca da conjuntura mundial, o que pode levar à paralisia decisória e de ação, caso as divergências não sejam colocadas de maneira adequada. São vários os diagnósticos acerca da situação atual do Fórum Social Mundial. Oded Grajew afirma que o FSM está em crise, bem como as organizações que o compõem. Portanto, é necessário “reconhecer nossa responsabilidade sobre essa crise. Só conseguiremos reerguer as forças do outro mundo possível e enfrentar o neoliberalismo se reconhecermos nossos erros, fizermos uma reflexão sincera sobre eles e construirmos outras formas de dar legitimidade às nossas ações. Se não conseguirmos mudar, haverá muito poucos conosco” (GRAJEW, 2016). Além disso, aponta-se a necessidade de incorporação de novos sujeitos políticos, como os jovens secundaristas que ocuparam escolas. Também é necessário fazer a articulação entre as questões internas do Fórum Social Mundial e a onda de eleições de governos progressistas, principalmente na América Latina, na primeira década dos anos 2000. Nesse sentido, Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres afirma que “não podemos desvincular nossas questões dos impasses, conflitos e limites que esses governos tiveram, e que agora estão implicando nas derrotas que estamos tendo na região. Tais impasses são fruto de uma relação contraditória desses governos com a ordem geral capitalista, que se utilizou das ferramentas do capital para implementar uma série de políticas públicas” (FARIA, 2016). Para não cometer injustiças com o Fórum Social Mundial, é necessário ressaltar que o seu legado como articulador de uma proposta de globalização contra hegemônica ainda está por ser avaliado, e é possível que os frutos sejam colhidos por muitos anos. Ainda que a relação não seja direta, pode-se tecer a relação entre o FSM e diversas movimentações políticas que ocorreram ao redor do mundo, como o Occupy Wall Street; a Primavera Árabe; a criação dos partidos Podemos e Syriza, na Espanha e na Grécia, respectivamente; as Jornadas de Junho no Brasil, protagonizadas pelo Movimento Passe Livre; as ocupações de escolas por estudantes secundaristas; e o Nuit Debout, na França. Dada a dimensão dos impasses internos ao Fórum Social Mundial, uma das questões sobre a qual as entidades organizadoras devem se debruçar é a possibilidade de encerramento do ciclo do Fórum. Até agora foram 17 anos de grandes inovações políticas, seja em termos teóricos, seja em termos práticos. Talvez o legado deixado já baste e o Fórum Social Mundial seja uma estrela que se apaga. Referências Bibliográficas Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. BELLO, Walden. Fórum Social Mundial transformou mentalidade global, dizem analistas. 2010. Disponível em: <http://www.dw.com/pt-br/f%C3%B3rum-socialmundial-transformou-mentalidade-global-dizem-analistas/a-5157367 > Acesso em: 21 abril 2017. CARNOY, Martin. Gramsci and the State. In: The State and Political Theory. Princeton: Princeton University Press, 1984. CASSEN, Bernard. Tout a commencé à Porto Alegre. Paris: Mille et une nuits, 2003. CODAS, Gustavo. Retalhos para uma história dos movimentos contra a globalização neoliberal. In: FRATI, Mila. Curso de formação em política internacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. COX, Robert. 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