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Movimentos altermundialistas – uma mirada através da Teoria Crítica de Relações
Internacionais
Trabalho preparado para apresentação no VII Seminário Discente da Pós-Graduação em
Ciência Política da USP, de 8 a 12 de maio de 2017
Natália Lima de Araújo
Instituto de Relações Internacionais
da Universidade de São Paulo
Mestrado
Abril
2017
Resumo: O objetivo deste artigo é localizar o altermundialismo no embate de forças
hegemônicas e contra hegemônicas, apontando seus êxitos e seus conflitos ainda não
resolvidos, de modo a ensejar uma reflexão sobre o futuro desse movimento, que foi uma
das grandes novidades políticas do fim do século XX e início do século XXI. Para
embasar as reflexões, será empregada a Teoria Crítica, principalmente a vertente
desenvolvida pela obra de Robert Cox, autor que trouxe para as Relações Internacionais
diversos conceitos gramscianos, como hegemonia e bloco histórico. O artigo é parte de
uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento, então também aponta caminhos que
poderão ser percorridos no estudo sobre o altermundialismo.
Palavras-chave: Altermundialismo, Teoria Crítica, Hegemonia, Contra hegemonia,
Relações Internacionais.
Introdução
Em um período como o atual, de incertezas e de mudanças de paradigmas, as experiências
históricas podem trazer luz a diversas questões que vem sendo debatidas. Diversos
intelectuais e ativistas têm colocado que o neoliberalismo está em crise e que o mundo
está se desglobalizando, fato que é exemplificado pela ascensão de nacionalismos
conservadores, pela vitória de Donald Trump e pela saída do Reino Unido da União
Europeia. Diante desse cenário, pode ser útil resgatar a experiência do movimento
altermundialista, que teve por objetivo construir um projeto contra hegemônico de
globalização.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é localizar o altermundialismo no embate de forças
hegemônicas e contra hegemônicas, apontando seus êxitos e seus conflitos ainda não
resolvidos, de modo a ensejar uma reflexão sobre o futuro desse movimento, que foi uma
das grandes novidades políticas do fim do século XX e início do século XXI. Para
embasar as reflexões, será empregada a Teoria Crítica, principalmente a vertente
desenvolvida pela obra de Robert Cox, autor que trouxe para as Relações Internacionais
diversos conceitos gramscianos, como hegemonia e bloco histórico.
Este artigo é dividido em quatro partes. A primeira trata dos avanços epistemológicos e
ontológicos que a Teoria Crítica trouxe para as Relações Internacionais e dos motivos
pelos quais ela constitui um ferramental teórico adequado para analisar processos de
mudanças sociais. A segunda parte explica o uso do conceito de hegemonia nas Relações
Internacionais e, a partir dele, emprega as ideias de Robert Cox para fazer uma análise da
conjuntura mundial à época do surgimento do altermundialismo e como ele se constitui
como uma força contra hegemônica. A terceira parte traz a contribuição do movimento
altermundialista, principalmente do Fórum Social Mundial, na disputa de ideias; por fim,
a quarta parte aponta rumos para futuros debates e pesquisas sobre o assunto.
Por que utilizar a teoria crítica de Relações Internacionais?
Por abordar a Teoria Crítica de Relações Internacionais (TC), este trabalho encaixa-se na
onda de questionamento epistemológico e ontológico da disciplina, iniciado na década de
1980. A TC, como a maioria das teorias, não é um bloco monolítico. Ela apresenta três
vertentes: a inspirada pela Escola de Frankfurt, principalmente por Jurgen Habermas, e
que tem Andrew Linklater como principal autor; a que comumente se denomina “pósmoderna”, que tem Richard Ashley como maior referência; e a neo-gramsciana,
inaugurada por Robert Cox, que é a tendência utilizada neste trabalho (RENGGER e
THIRKELL-WHITTE, 2007).
Robert Cox foi o primeiro autor a adaptar o ferramental teórico do pensador italiano
Antonio Gramsci para as Relações Internacionais, com destaque para o conceito de
hegemonia, trabalhado por Gramsci nos Cadernos do Cárcere (GRAMSCI, 2001). Os
principais pontos de sua teoria estão sistematizados no artigo seminal Social Forces,
States and World orders, publicado em 1981 na Revista Millenium. Além de lançar as
bases de sua interpretação da obra de Gramsci, neste artigo Cox recupera a diferenciação
epistemológica cunhada por Max Horkheimer (1937) entre as teorias dominantes e as que
ele via como necessárias.
As teorias dominantes seriam aquelas que trabalham com as relações sociais, políticas e
de poder nos termos em que elas estão colocadas. São teorias que, intencionalmente ou
não, possuem um compromisso com o status quo pelo fato de não questionarem as
relações tal como estão estabelecidas, mas serem desenhadas para resolver problemas
pontuais que possam trazer problemas ao funcionamento da ordem. Em outras palavras,
as teorias dominantes, que Cox denominou de teorias de solução de problemas, visam a
azeitar as peças da engrenagem social para que funcionem da melhor maneira possível, e
não questionar o arranjo ou a própria existência dessas peças.
Já as teorias vistas como necessárias, as teorias críticas, teriam o objetivo de desvelar a
realidade e evidenciar os interesses e ideologias que estão por trás dos diversos tipos de
relações sociais. São, portanto, teorias que buscam conhecer a origem dos arranjos sociais
em questão, bem como verificar se estão em processo de mudança e quais são as
alternativas.
“Toda Teoria serve para alguém e para algum propósito” (COX, 1981). Com essa frase
Robert Cox desmascara a suposta neutralidade das abordagens positivistas, como o
Realismo, e traça uma linha divisória entre estas e as abordagens pós-positivistas. As
primeiras são as que compõem o mainstream das Relações Internacionais, e apoiam-se
sobre diversos pressupostos da ciência moderna e iluminista. Um desses pressupostos é a
separação entre o sujeito e o objeto, tal como se espera nas ciências naturais, em que o
pesquisador não realiza nenhuma interferência naquilo que está sendo estudado.
Além disso, parte importante dessas teorias é a elaboração de leis abstratas e universais,
que são válidas para todos os períodos da história e para todos os contextos sociais. Um
exemplo desse tipo de formulação é a afirmação de que, em um sistema anárquico, os
Estados agem baseando-se em interesses definidos em termos de poder. Outra ideia
sustentada pelas teorias positivistas é a racionalidade instrumental, segundo a qual todos
os atores, inclusive os Estados, agem de maneira racional e auto interessada, realizando
cálculos de custos e benefícios de suas ações. Para esse tipo de teoria, o pesquisador é
neutro e, ao empreender uma “análise objetiva” da realidade, narra os fatos tal como se
apresentam, sem emitir sobre eles juízos de valor.
Robert Cox, na parte reflexiva de sua teoria, desmascara a suposta neutralidade do
pesquisador e evidencia que as análises positivistas estão imbuídas de valores e interesses,
grande parte dos quais associados à manutenção da ordem e do status quo. O sistema de
valores da Teoria Crítica, por outro lado, é explícito e sabe-se que ela é voltada para a
transformação social. Toda teoria tem algum propósito e serve para sustentar interesses
de determinados grupos sociais; uma das diferenças entre os dois grupos de teorias é que
as positivistas mascaram esse fato, ao passo que a Teoria Crítica é explícita nessa questão.
O autor também coloca que a Teoria Crítica avança em relação ao Realismo (e outras
teorias positivistas) em três pontos principais (MOOLAKKATTU, 2011): o primeiro é a
inserção de uma perspectiva dialética de análise da realidade social. Abre-se, então, a
possibilidade do surgimento de alternativas por meio do confronto entre forças sociais
opostas, em uma dada situação histórica concreta. A inserção da dialética no ferramental
teórico crítico representa também uma mudança de visão sobre Teoria da História. Para
o Realismo, o conflito é consequência de uma estrutura que se perpetua, já a TC enxerga
o caráter dinâmico dos conflitos como geradores de mudanças, que advêm das próprias
contradições que a ordem vigente apresenta.
O segundo ponto é a inserção do materialismo, que acrescenta uma dimensão vertical à
rivalidade horizontal entre os Estados. O materialismo evidencia situações concretas de
dominação entre centro e periferia e relaciona o sistema de produção econômica ao
sistema de poder, tanto no nível nacional quanto no nível internacional. O terceiro ponto
é a consideração que a Teoria Crítica faz dos cidadãos comuns atores legítimos das
Relações Internacionais, o que é feito ao se colocar que o Estado não é um ator
homogêneo, mas é fruto das relações sociais internas a ele.
Também é importante destacar que Robert Cox trabalha com a noção de que sempre
existem três forças que interagem em uma dada estrutura histórica: forças materiais, ideias
e instituições (COX, 1981). O framework para a ação é uma imagem que mostre a
interação entre esses três tipos de força. Essa interação não determina de maneira
mecânica a ação dos atores, mas explicita as forças a que os atores da mudança social
terão que se opor. Também é importante destacar que essas três forças se influenciam de
maneira recíproca e nenhuma delas têm importância superior.
As capacidades materiais têm potencial construtivo ou destrutivo; elas compreendem as
tecnologias, capacidades administrativas, recursos naturais que podem ser transformados,
equipamentos e riquezas. As ideias organizam-se em dois tipos distintos. Um deles são
as ideias intersubjetivas, que são noções compartilhadas sobre a natureza das relações
sociais e que geram expectativas de comportamento, independentemente de haver
concordância com elas ou não. O exemplo que Cox coloca é a noção de que os cidadãos
estão organizados em Estados e que estes possuem soberania dentro de determinado
território. O segundo tipo de ideias são as imagens coletivas que os diferentes grupos
possuem sobre qual deveria ser a natureza de determinadas relações sociais. Essas
imagens podem ser numerosas e divergentes entre si, e é nesse campo que estão as
possibilidades mais imediatas de mudança social.
As instituições são meios de estabilizar e perpetuar uma determinada ordem, e refletem
as relações de poder que existiam no período em que foram criadas. Elas reforçam
imagens coletivas compatíveis com essas relações de poder. Entretanto. As instituições
podem adquirir autonomia e constituir-se como campos de batalha de tendências opostas.
Para Gramsci, existe uma conexão estreita entre a institucionalização e a hegemonia, uma
vez que instituições podem operar como fóruns para o apaziguamento de conflitos,
evitando assim o uso da força.
Diante do que foi exposto, considera-se que a Teoria Crítica é um ferramental adequado
para o estudo do movimento altermundialista porque transporta para as Relações
Internacionais o conceito de hegemonia de Gramsci. Esse conceito é útil para analisar o
altermundialismo uma vez que esse movimento se coloca como uma alternativa contra
hegemônica para a globalização neoliberal. Além disso, a tríade coxiana constituída por
capacidades materiais, forças sociais e instituições oferece ao pesquisador um framework
para estudar o terreno em que os movimentos sociais atuam e qual a correlação de forças
com a qual os movimentos terão que lidar.
Quem possui a hegemonia?
Para pensar em possibilidades de mudança social, é preciso ter um diagnóstico preciso
sobre o que necessita ser mudado e qual a correlação de forças sociais. É necessário fazer
uma análise extensa da conjuntura para saber em que contexto o movimento
altermundialista surgiu, quais são suas possibilidades de atuação e qual a força do seu
inimigo. Para isso, Cox nos apresenta as direções para as quais temos que direcionar nosso
olhar - ideias, instituições e capacidades materiais - e também nos apresenta uma “caixa
de ferramentas” com vários conceitos que podem ser mobilizados nessa análise. Um
desses conceitos é o de hegemonia.
Nas Relações Internacionais existem diversas visões do que seria hegemonia. Uma dessas
visões é a de hegemonia como a dominação material que um Estado exerce sobre outro.
Isso significa exercer poder sobre; uma ação unilateral e absoluta. Essa concepção é
característica das Teorias Realistas. Outra visão possível, calcada na Economia Política
Internacional, é a da hegemonia como dominação econômica. Nesse sentido, um Estadonação serve como centro, como âncora para o sistema capitalista. Das políticas desse país
originam-se as regras que sustentam o sistema internacional. São características desta
perspectiva as Teorias do Sistema-Mundo de Immanuel Wallerstein e a Teoria dos Ciclos
Hegemônicos de Giovanni Arrighi (ROBINSON, 2005).
Apresenta-se ainda um terceiro ponto de vista, que trabalha com o conceito de hegemonia
tal como colocado por Antonio Gramsci ou baseando-se nele. Esta é a perspectiva
empregada neste trabalho, e nela se encaixa a obra de Robert Cox. No artigo Gramsci,
Hegemony and International Relations: an essay in method (1983), Cox apresenta sua
visão acerca do conceito gramsciano de hegemonia e como ele poderia ser adaptado para
o estudo da ordem global. É importante destacar que no pensamento de Gramsci, os
conceitos são elásticos e só se tornam precisos a partir do contato com a situação concreta
que com eles deve ser explicada. O pensador italiano não construía conceitos abstratos e
universais; seu pensamento possui estreita conexão com as circunstâncias históricas
(RUPERT, 1998).
No artigo supracitado, Robert Cox comenta que, para elaborar o conceito de hegemonia,
Gramsci teve duas influências principais: os debates da III Internacional e a obra de
Nicolau Maquiavel. No âmbito da III Internacional, destaca-se a ideia de que o
proletariado deveria exercer influência sobre as classes aliadas, e dominação sobre os
inimigos. Gramsci, então, aplicou esse pensamento para a análise da burguesia, com o
objetivo de verificar quais seriam os mecanismos de hegemonia da classe dominante. Nos
casos em que a ideologia burguesa estava fortemente arraigada nas pessoas comuns, esta
classe sequer necessitava conquistar o poder do Estado para exercer sua influência.
Esse fato levou Gramsci a desenvolver uma concepção alargada de Estado. Uma vez que
os aparatos administrativo, executivo e coercitivo estavam sendo pautados pelas ideias
hegemônicas, não faria sentido restringir o Estado a esses aparatos governamentais. Seria,
então, necessário incluir as bases que sustentam o sistema de ideias hegemônicas, tais
como escolas, igrejas e a mídia. Essas instituições compõem a sociedade civil, que,
juntamente à sociedade política (aparatos governamentais), formam o Estado.
A segunda influência sobre as ideias de Gramsci veio de Nicolau Maquiavel, de quem
recuperou a imagem do poder como um centauro: “metade humano, metade besta, uma
combinação necessária de consentimento e coerção. Enquanto o aspecto consensual do
poder estiver em primeiro plano, a hegemonia prevalece. A coerção está sempre latente,
mas somente é aplicada em casos marginais e desviantes” (COX, 1983, p.164).
Em nível internacional, “a hegemonia é uma ordem na economia mundial com um modo
de produção dominante que penetra em todos os países e se liga a outros modos de
produção subordinados. Também é um complexo de relações sociais internacionais que
conecta classes sociais de diferentes países” (COX, 1983, p.171). Tal hegemonia deve ser
uma junção das estruturas social, econômica e política, e nunca apenas uma delas.
Para Cox, a construção da hegemonia não é um processo vertical, imposto de cima para
baixo, mas o produto de negociações entre dominantes e dominados, de modo que os
interesses das classes dominantes pareçam universais. Ou seja, ela é expressão de um
consenso geral e envolve a aceitação de ideias apoiadas por forças materiais e instituições.
O consentimento das massas não pode ser assegurado por muito tempo, então tem que ser
constantemente renegociado e reassegurado sempre que houver mudanças nas
circunstâncias históricas.
As relações sociais de produção são o ponto de partida para analisar a operação da
hegemonia. Ressalta-se que isso não é uma opção que reduz tudo à produção em seu
sentido economicista, uma vez que a produção deve ser entendida em termos amplos e
que não diz respeito apenas à produção de bens consumidos ou comercializados, “e abarca
a produção e reprodução do conhecimento e das relações sociais, da moral e as
instituições que são pré-requisitos para a produção de bens físicos” (COX apud
MORTON, 2009, p.155).
Robert Cox coloca que, na história do sistema internacional moderno, houve dois
períodos de hegemonia: a Pax Britannica (1845-1875) e a Pax Americana. Esta última
representa o os anos durante os quais o mundo viveu sob hegemonia dos Estados Unidos,
entre o fim da II Guerra Mundial (1945) até o começo da década de 1970. De maneira
resumida, pode-se dizer que essa ordem foi mantida pelo Sistema de Bretton Woods,
caracterizado por taxas de câmbio fixas, pelo padrão ouro e por instituições como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Essa também foi a época do “embedded liberalism”, que consistia em uma combinação
de livre comércio internacional com a possibilidade de os governos intervirem em suas
economias nacionais para manter a estabilidade. A forma de Estado correspondente era o
bem-estar social keynesiano, e as relações sociais de produção eram organizadas pelo
sistema fordista, caracterizado pela produção e pelo consumo em massa, bem como por
uma aliança corporativa entre governos, empresários e trabalhadores (RUGGIE, 1982).
A partir do começo da década de 1970, essa ordem internacional começou a ruir,
colocando fim ao período de hegemonia dos Estados Unidos e abrindo um período de
não-hegemonia. Stephen Gill aponta que a Pax Americana foi um bloco histórico
internacional baseado no modelo de produção fordista e cujas bases políticas incluem
uma variedade de grupos, como “trabalho moderado organizado” e grande capital.
Entretanto, as mudanças políticas e a globalização econômica minaram essa hegemonia
(GILL, 1993).
Atualmente, vê-se uma guinada para o neoconservadorismo na política e para o
neoliberalismo na economia. Antes havia um bloco histórico internacional e agora há um
bloco histórico transnacional liderado pelos EUA, caracterizado pela supremacia desse
país e não pela sua hegemonia. Assim, a ordem global atual vive em um estado de nãohegemonia, desde a queda de Bretton Woods, e há a emergência de movimentos contra
hegemônicos. Cumpre notar que existe uma ligação entre a fase não hegemônica e a
emergência de movimentações políticas, como os protestos de Seattle em 1999 e o Fórum
Social Mundial (DEAK, 2005).
Como coloca Carnoy, a hegemonia é expressa tanto na sociedade civil quanto no Estado
(em sentido estrito). O Estado é o mecanismo ao qual a burguesia recorre quando ela
perde controle sobre as consciências, quando o consentimento não é mais o que prevalece
e há desafios colocados para a ordem social. É isso que caracteriza um período como nãohegemônico (CARNOY, 1984). Adotando uma perspectiva materialista e dialética,
afirma-se que a ordem hegemônica é repleta de contradições; assim, as contradições que
emergiram fizeram com que as mudanças políticas e econômicas trazidas pela
globalização minassem a hegemonia dos Estados Unidos.
Como resultado, houve uma ascensão conservadora na política e do neoliberalismo na
política. Os exemplos típicos dessa guinada são Ronald Reagan e Margareth Thatcher.
Com isso, passou-se de um bloco histórico centrado nos Estados Unidos para um bloco
histórico transnacional. Esse período tem sido caracterizado pela força econômica das
corporações transnacionais e de seus aliados nos governos, bem como por uma variedade
de redes que propagam a ideologia da globalização. Além disso, alguns autores, como
Van der Pijl (1998), colocam ainda a formação de uma classe capitalista transnacional.
Esse período também apresenta uma crise de hegemonia, que é caracterizada por uma
crise de representatividade, em que há forças sociais antigas coexistindo com forças
novas. As antigas estão desconectadas das organizações políticas que costumavam
representa-las, mas as forças sociais novas ainda não produziram organizações e
intelectuais orgânicos que pudessem auxiliá-las na formação de um novo bloco histórico.
Em uma crise orgânica, há três resultados possíveis: a tentativa de reestabelecimento da
antiga hegemonia, a constituição de uma nova hegemonia ou a emergência de formas de
revolução passiva. Uma dessas formas de revolução passiva é o transformismo, que se
caracteriza pela cooptação de grupos marginalizados.
Umas das instituições internacionais que tentam restaurar a hegemonia dos Estados
Unidos é a Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem como objetivo coordenar
as políticas de comércio internacional. Idealmente, a função da OMC é construir
consensos nos assuntos de comércio internacional. Entretanto, diversos autores apontam
que, a partir do encontro de Seattle, em 1999, ocorreram séries de falhas que,
gradativamente, foram expondo as contradições da organização.
Desde então, os grandes gargalos das rodadas de negociação têm sido a construção de
pacotes de medidas amplos o suficiente para agradar a todos os países-membros. Cumpre
notar que o principal sustentáculo da hegemonia é o consenso, obtido por meio de um
processo de mediação com os grupos subalternos, através do qual os interesses das classes
dominantes são colocados como universais. Entre o fracasso de Seattle e a Rodada de
Doha, a única mudança em termos de negociação foi o fato de que a posição dos países
periféricos e dissidentes foi comprada pelos países centrais de maneira mais sofisticada,
evidenciando a implementação de transformismo dentro da Organização Mundial do
Comércio.
Ainda assim, a organização passa por grandes dificuldades em tomar decisões legítimas,
pois os processos decisórios têm sido questionados. Colocam-se recorrentes queixas
sobre o déficit democrático que, ainda que não seja exclusivo a uma organização
internacional, tem ficado evidente no âmbito da OMC. Existem também políticas
deliberadamente excludentes, como as discussões na “sala verde”, em que um grupo
seleto de países toma as principais decisões, à revelia dos outros membros da organização.
Destaca-se a tentativa de despolitização dos fóruns de discussão, com tentativas de
desvincular a política da economia, como se esta pudesse ser administrada por técnicas
supostamente neutras. Além disso, os termos dos debates já são pré-determinados, de
modo que as delegações que não concordam com eles quedam-se excluídas. A exclusão
se dá também na participação de atores não-estatais, pois é restrita a organizações nãogovernamentais que não demonstrem interesse em trazer à tona assuntos recorrentemente
negligenciados, como direitos humanos e preservação ambiental.
Em suma, os problemas internos da Organização Mundial do Comércio fazem com que
ela não tenha capacidade de construir consensos e, por isso, não consiga estabelecer
hegemonia. A OMC passa por uma crise de legitimidade, abrindo um vão entre o que é
defendido pelos tomadores de decisão e a vontade das pessoas que são afetadas pela
decisão.
“Se a hegemonia é baseada no consentimento e na inclusão de grupos
subalternos, então a contra hegemonia iria emergir das contradições do período não
hegemônico. Quando o consentimento ou legitimidade de uma hegemonia é perdida, os
grupos subalternos ficam descontentes. As condições seriam apropriadas para um desafio
legítimo e popular à ordem social que teria marginalizado essas pessoas” (DEAK, 2005,
p. 50).
O descontentamento, porém, não estava restrito aos representantes dos Estados-membros
da OMC. Cidadãos comuns, ao redor do mundo, também se mostraram insatisfeitos com
o projeto político, econômico e social da globalização neoliberal. Esse foi o contexto para
a criação do movimento altermundialista, que se tornou um dos movimentos políticos
mais marcantes da última década do século XX e do começo do século XXI. Por meio de
diversas estratégias, esse movimento pautava um projeto contra hegemônico de
globalização, que fosse voltado para as demandas sociais e não pelas exigências do
capitalismo.
A primeira manifestação do movimento altermundialista foi o Levante Zapatista, de 1º de
janeiro de 1994. Nesta data, entrava em vigor o North America Free Trade Agreement
(NAFTA), um acordo de livre comércio entre Estados Unidos, Canadá e México, em que
a economia mexicana acabaria sendo subordinada aos dois outros países, e que previa a
livre circulação de mercadorias, mas não de pessoas. Na ação de 1º de janeiro, o Exército
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) pegou em armas para defender os direitos dos
camponeses e indígenas contra o sistema político neoliberal do México, com suas
promessas de modernização.
Nesse dia, grupos de indígenas ocuparam sete municípios de Chiapas, o estado mais pobre
do país. As ocupações foram violentamente reprimidas por tropas federais, que contavam
com um número de soldados muito superior ao EZLN. Os embates duraram doze dias e
resultaram em um número alto de mortes, a maioria delas de zapatistas. Diante das perdas,
o EZLN teve que recuar, mas, com o apoio da população, abriu-se um processo de diálogo
entre os soldados e o governo (ORTIZ, 2005).
Em 1996, os zapatistas organizaram o Primeiro Encontro Intercontinental pela
Humanidade e contra o Neoliberalismo, que ficou conhecido como Intergaláctico, e foi a
primeira grande reunião de ativistas que pautavam um novo projeto de globalização. Após
avanços e retrocessos nas negociações com o Estado, os zapatistas decidiram prosseguir
suas atividades de maneira totalmente autônoma em relação ao aparato estatal.
Depuseram as armas, tornaram-se a Frente Zapatista de Libertação Nacional e passaram
a organizar seus próprios territórios.
Apesar de o Levante Zapatista ter sido a primeira grande ação de contestação ao projeto
de globalização neoliberal, o marco inaugural do que se convencionou chamar de
movimento altermundialista foi o que ficou conhecido como Batalha de Seattle. No ano
de 1999, em Seattle, nos Estados Unidos, a Organização Mundial do Comércio organizou
a “Rodada do Milênio”, uma articulação entre representantes governamentais para
estabelecer as regras do livre comércio (DELLA PORTA, 2008).
Meses antes do evento, uma carta chamada Stop WTO Round, escrita por membros da
sociedade civil, circulou pela internet, convocando organizações e indivíduos a aderirem
à luta contra um “mercado global”. Cerca de 1500 entidades, de 89 países aderiram ao
chamado e, em 30 de novembro de 1999, 50.000 manifestantes saíram às ruas.
Posicionaram-se na avenida que levava ao centro de convenções onde haveria a cerimônia
de abertura da rodada de negociações da OMC e bloquearam a passagem. Com essa ação,
tiveram êxito em cancelar a realização do evento, mas foram violentamente reprimidos
pela polícia (CODAS, 2007).
“Seattle foi um marco na história dos movimentos sociais, primeiro por ter se dado no
centro do império norte-americano, colocando lado a lado antigos adversários da luta
social norte-americana, como sindicalistas e ambientalistas. Mas principalmente por
colocar em xeque algumas certezas das elites dominantes, dentre elas a de que os únicos
inimigos a serem enfrentados eram os terroristas e os fundamentalistas religiosos”
(RABELO, 2006, p. 52).
Com a Batalha de Seattle, estaria então inaugurado o movimento altermundialista, que
culminou na criação do Fórum Social Mundial (FSM). O primeiro evento do Fórum
ocorreu entre 25 e 30 de janeiro de 2001, em Porto Alegre, mas, como colocado
anteriormente, seu processo tem início vários anos antes, com um crescendo de
mobilizações populares contra o neoliberalismo e contra as instituições responsáveis pela
administração desse projeto político e econômico, ou em outras palavras, responsáveis
pela governança global.
Existe uma disputa de versões sobre a criação do FSM. No livro O desafio do Fórum
Social Mundial (2005), Francisco Whitaker relata que ele e Oded Grajew teriam tido a
ideia de iniciar uma articulação internacional, pois se existia o Fórum Econômico
Mundial, deveria existir um Fórum Social Mundial, como forma de disputa direta entre
projetos políticos. Com essa ideia, Whitaker e Grajew foram a Paris para encontrar
Bernard Cassen - diretor do Jornal Le Monde Diplomatique - e tentar mobilizar as redes
que se formaram durante os eventos do movimento altermundialista.
A proposta inicial era de que o encontro ocorresse na França, mas Cassen teria sugerido
que o lugar fosse Porto Alegre, por contar com um governo progressista e ter
desenvolvido ferramentas inovadoras de democracia popular, como o Orçamento
Participativo. Bernard Cassen também escreveu um livro, Tout a commencé à Porto
Alegre (2003), relatando como teria sido a primeira reunião do processo de criação. Ele
afirma ter sido dele a ideia de que o Fórum tivesse um caráter social e fosse organizado
em um país da periferia do capitalismo.
Essa disputa sobre paternidade e local de nascimento do Fórum Social Mundial pode
parecer apenas uma divergência sobre os fatos, mas é uma tensão que se espraia para
todos os âmbitos do FSM e faz parte de uma disputa maior entre duas tendências opostas
pela liderança no interior do Fórum. De acordo com a classificação da pesquisadora Ana
Maria Prestes Rabelo, uma dessas tendências é a que ela denomina de “horizontalistas”,
e a outra é a dos “movimentistas” (RABELO, 2006).
A tendência horizontalista considera-se representante de uma geração política que se
diferencia dos antigos movimentos e organizações do século XX, bem como de seus
vícios. Nesse grupo, há grandes organizações como CBJP, CIVES, Oxfam International
e várias redes formadas principalmente por ONGs. O tipo de pensamento apresentado
pelos horizontalistas tem tido grande influência na condução dos processos do Fórum;
portanto, vigoram ideias de que o FSM é um espaço horizontal, que não deve ter
participação oficial de partidos políticos e que já está plenamente mundializado.
Quanto ao grupo dos “movimentistas”, este representa os que acreditam ser necessária
uma maior capacidade propositiva e de resistência ao neoliberalismo por parte do Fórum.
Sua maior representante é a Rede Mundial de Movimentos Sociais, que surgiu no I FSM,
a partir de uma iniciativa da Central Única dos Trabalhadores, da Via Campesina, do
Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), Marcha Mundial das
Mulheres, Jubileu Sul, entre outros (NOBRE e FARIA, 2003).
Para Whitaker, pertencente à tendência horizontalista, transformar o FSM em um
movimento é jogar fora um instrumento de luta criado a partir da descoberta política mais
poderosa dos últimos tempos, que seria a organização horizontal e sem líderes. A partir
dessa concepção, o Fórum seria como uma praça sem dono. A preocupação em demarcálo como um espaço e não como um movimento se dá em reação às assembleias e
declarações aprovadas pela Rede Mundial de Movimentos Sociais no interior do FSM,
visto que muitas vezes essas declarações são divulgadas pela imprensa e pelos próprios
participantes como sendo do próprio Fórum (WHITAKER, 2013).
Os representantes movimentistas afirmam que o Fórum se fortalece quando define
agendas e lutas prioritárias, que o mantém em funcionamento entre um encontro e outro,
em âmbito local, nacional e mundial. Para eles, também é necessário que as razões que
motivam a criação do Fórum concretizem-se sob a forma de capacidade material para
mudar os rumos da globalização hegemônica, o que coloca a necessidade de uma agenda
mínima, que agregue a todos os que se reúnem no Fórum em uma mesma luta (RABELO,
2006).
Cumpre lembrar que esse tipo de embate político não é exclusivo ao Fórum Social
Mundial e tem estado presente nas lutas das esquerdas mundiais. Estruturas mais
tradicionais de mobilização, como partidos e sindicatos, têm passado por uma forte crise
de legitimidade, derivada de uma crise da democracia representativa e da ascensão de
novas formas de organização política, mais fluidas, sem hierarquias e que pautam formas
de democracia direta. Atualmente, formas novas e antigas de luta social coexistem,
algumas vezes sendo motivo de embates, outras vezes sendo matéria-prima de processos
inovadores de síntese.
Altermundialismo e guerra de posição
Períodos de crise hegemônica abrem a janela histórica para a ascensão de formas sociais
contra hegemônicas, que emergem das contradições presentes no seio da antiga ordem, e
que podem vir a conquistar a nova hegemonia. Uma das características de um projeto
hegemônico é o fato de que as ideias que o sustentam espraiam-se por todas as partes que
conformam o bloco histórico.
Um bloco histórico é uma amálgama entre a sociedade política e a sociedade civil, e
comporta forças sociais coesionadas em torno de um projeto político. Portanto, é a
justaposição de relações políticas, éticas e ideológicas com a esfera econômica. Para a
constituição de um novo bloco histórico, os membros do que pode vir a ser a nova classe
hegemônica devem engajar-se em uma luta não apenas para conquistar os meios de
produção econômicos ou o Estado, mas também o imaginário político e moral dos
cidadãos.
Em outras palavras, para que se conforme um novo bloco histórico é necessário que ideias
contra hegemônicas vençam a disputa de consciência da população. É necessário formar
um novo “senso comum”, um novo conjunto de significados intersubjetivos que
informem a leitura de mundo das pessoas. Cumpre notar que um dos pontos de destaque
da obra de Gramsci foi a importância conferida às ideias no processo de construção e
manutenção da hegemonia.
Ao pensar sobre o processo de construção de uma nova hegemonia na sociedade italiana
nas décadas de 1920 e 1930, Antonio Gramsci debruçou-se sobre a experiência da
Revolução Bolchevique para tirar lições que pudessem ser aplicadas a um processo
revolucionário na Europa Ocidental. A fim de ilustrar a diferença de táticas, Gramsci
recorre ao vocabulário militar e utiliza as expressões “guerra de movimento” e “guerra de
posição”.
Na Rússia, o aparelho administrativo e coercitivo do Estado era grande, porém frágil, e a
sociedade civil era subdesenvolvida. Nesse cenário, uma pequena classe trabalhadora
liderada por um partido de vanguarda poderia tomar o poder do Estado por meio de uma
guerra de movimento, um assalto, e não haveria resistência efetiva na sociedade civil.
Esse partido de vanguarda poderia fundar um novo Estado, aplicando coerção sobre
elementos opositores e construindo consenso entre os apoiadores.
Já na Europa Ocidental, a sociedade civil encontrava-se bastante desenvolvida, de modo
que uma guerra de movimento poderia até tomar o aparato estatal, mas a sociedade civil
apresentaria resistência e essa empreitada fracassaria. A alternativa para a derrubada da
hegemonia burguesa nesses países seria o empenho em uma longa guerra de posição que
fosse construindo força social para a fundação de um novo Estado. Na Europa Ocidental,
os grupos revolucionários deveriam primeiramente ganhar a guerra na sociedade civil e
depois tomar o aparato estatal, o que significa que sua primeira tarefa era derrotar as ideias
burguesas.
De maneira análoga, quando o movimento altermundialista foi criado, era necessário
empreender uma guerra de posição contra a ideologia neoliberal, que se espalhava sob a
égide da governança global. A palavra governança passa a fazer parte do vocabulário
corrente quando surge a globalização. Boaventura de Sousa Santos coloca que até 1975,
o catálogo da Biblioteca do Museu Britânico contava com apenas 47 títulos com a palavra
governança (SANTOS, 2005).
A partir da década de 1970, o contrato social dos Estados sociais-democráticos foi
colocado em questão, pois tornava-se cada vez mais evidente que ele visava excluir
grupos sociais. Essa ruptura social ficou muito explícita com o relatório da Comissão
Trilateral lançado em 1975. De acordo com o relatório, a democracia estava em crise, mas
não por ser insuficiente, e sim por estar presente em excesso, resultando em uma
sobrecarga de reivindicações. Seria necessário, portanto, reduzir o grau de inclusão das
democracias.
Além de apresentar o suposto problema, o relatório também apresentava as soluções.
Propunha-se a neutralização da política pela técnica, a substituição da participação
popular para a tomada de decisões pelos colegiados de especialistas, do público pelo
privado e do Estado pelo mercado. Tamanho foi o impacto das sugestões que, na década
seguinte, construiu-se um novo regime político e social baseado nessas ideias. Esse novo
regime foi imposto mundialmente como um verdadeiro consenso.
Quando o que se convencionou denominar de consenso de Washington entrou em vigor,
três palavras de ordem fundamentais foram colocadas: privatização, mercantilização e
liberalização. As leis de mercado ocuparam o lugar da regulamentação econômica e
criaram-se diversas organizações não-governamentais que passaram a suprir as demandas
que não interessavam ao mercado. O enxugamento do Estado veio acompanhado da
ideologia da meritocracia e do esforço individual, segundo a qual a ascensão social ou
mesmo o suprimento de necessidades básicas está sob total responsabilidade dos
indivíduos.
As soluções propostas pela Comissão Trilateral logo mostraram-se ineficazes. O fracasso
da atuação do mercado como princípio da regulação social acarretou aumento da fome,
da pobreza, da corrupção, da devastação ambiental e a eclosão de conflitos civis. Esse é
o cenário de emergência da governança, que, como coloca Santos, visa a dar respostas
tanto para as demandas de inclusão e participação quanto para a exigência de autonomia
dos mercados.
É importante destacar que, nos mecanismos de governança, a participação de atores que
apresentam demandas sociais está sujeita a critérios de escolha. Os Estados, por exemplo,
só podem participar caso se despojem de sua soberania e assumam um estatuto
semelhante ao dos demais atores. Assim, o Estado é privado de seu papel de regulador
social e acentua-se o seu caráter de entidade responsável por criar condições de atuação
para os reguladores não-estatais.
“À luz desta realidade, a governança neoliberal procede àquilo a que De Angelis chama
de ‘a inversão de Polanyi’. Enquanto Polanyi defendia que a economia existe incrustada
na sociedade, a matriz da governança tem por premissa a necessidade de incrustar a
sociedade na economia” (SANTOS, 2005, p.18). Assim, a governança neoliberal
enfraqueceu mecanismos democráticos de participação social e de redistribuição de
recursos, de modo que a democracia se tornou compatível com o neoliberalismo e perdeu
grande parte de sua legitimidade.
Ressalta-se que o período da formulação da globalização neoliberal correspondeu à
ascensão de governos conservadores como o de Margareth Thatcher e Ronald Reagan,
que expressavam a suposta inexorabilidade desse modelo econômico, político e social.
“There’s no alternative” (não existe alternativa), proclamava Thatcher, expressando que
o neoliberalismo prevaleceria porque não existiria alternativa viável.
Nesse cenário de descrença nas alternativas ao liberalismo, o movimento
altermundialista, reunido no Fórum Social Mundial, teve a tarefa de mostrar que “outro
mundo é possível”. O slogan do FSM exprime a função que ele cumpriu na guerra de
posição das forças contra hegemônicas progressistas, ao colocar de volta no horizonte
político as utopias críticas. Nesse caso, as utopias críticas são opostas às utopias
conservadoras, tais como o neoliberalismo.
Como coloca Boaventura de Sousa Santos, as utopias conservadoras possuem um critério
único de eficácia, que logo se torna um critério ético supremo. No caso do neoliberalismo,
o critério de eficácia é a régua das leis do mercado, e seu caráter utópico reside na ideia
de que a sua realização acarreta a destruição de todas as outras utopias. A utopia
conservadora do neoliberalismo faz os cidadãos acreditarem que a fome, o desemprego e
a exclusão social, por exemplo, existem porque as leis do mercado não estão sendo
plenamente aplicadas, e não porque elas apresentam limites.
Nesse contexto, o Fórum Social Mundial engendrou a reemergência de uma utopia crítica.
Santos coloca que o neoliberalismo se baseia em dois pressupostos: a pretensão de
controle total sobre a sociedade através do saber e da técnica, e a rejeição a alternativas à
realidade dominante. Como utopia crítica, o FSM responde a esses pressupostos
colocando que o controle total é uma ilusão, tal qual o saber e o poder, e que existem
alternativas concretas e viáveis ao status quo.
Em um período em que prevalece a crença de que as alternativas sequer são possíveis,
seria mais importante colocar no horizonte a possibilidade de alternativas do que as
definir. Com isso, coloca Santos, justifica-se o caráter aberto das propostas do FSM, pois
sua utopia caracteriza-se mais por uma negatividade (criticar a globalização hegemônica)
que por uma positividade (a definição de um programa contra hegemônico).
A globalização hegemônica está assentada em uma determinada forma de conhecimento
técnico-científico igualmente hegemônico. A ciência ocidental moderna não apenas
coloca a si como detentora de verdades, mas também deslegitima outras formas de
produção de conhecimento. Nesse sentido, uma das atuações do Fórum Social Mundial
na guerra de posição é colocar em evidência práticas e saberes que possuam uma
diversidade de pressupostos epistemológicos (o que conta como conhecimento) e
ontológicos (o que conta como humano).
Uma das questões pautadas pelo Fórum Social Mundial é que não há justiça social global
sem justiça cognitiva global. Nesse sentido, o Fórum busca quebrar com a monocultura
do saber, que transforma a ciência moderna e a alta cultura nos critérios absolutos de
verdade e de estética. À monocultura do saber, contrapõe-se a ecologia dos saberes, que
identifica outros saberes e outros critérios de rigor que operam em distintas práticas
sociais. “Não há ignorância em geral nem conhecimento em geral. Toda a ignorância é
ignorante de um certo conhecimento, e todo o conhecimento é a superação de uma
ignorância particular” (SANTOS, 2005, p. 18).
Cumpre notar que a ecologia dos saberes não implica um relativismo total, pois o
relativismo é a ausência de critérios de hierarquia entre os saberes e, da perspectiva da
emancipação social, essa posição é insustentável, uma vez que, se todos os conhecimentos
têm o mesmo valor, todos os projetos de mudança social - sejam eles progressistas ou
conservadores - são igualmente válidos, o que, em última instância, significa que são
igualmente inválidos. O que a ecologia dos saberes propõe é uma nova forma de relação
entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento, que conceda
oportunidades iguais para que diferentes tipos de saberes acessem as disputas
epistemológicas.
Outra contribuição do Fórum Social Mundial para a guerra de posição é o que Santos
denomina de ecologia das trans-escalas, que significa confrontar a lógica da escala global
por meio da recuperação de aspectos locais que não foram afetados pela globalização
hegemônica. É necessário desglobalizar os locais, retirá-los da lógica da globalização
hegemônica, para eventualmente reglobalizá-lo de maneira contra hegemônica. Por meio
desse processo, amplia-se o leque de práticas sociais que podem constituir-se como
alternativas aos impactos do “globalismo localizado”.
Walden Bello, economista e sociólogo filipino afirma que a evolução no pensamento
mundial nos últimos anos é evidente e, em grande parte, isso foi influência do Fórum
Social Mundial. Bello acrescenta ainda que “se olharmos o mundo em 1995, a hegemonia
das empresas neoliberais era realmente dominante, e se olharmos em 2010, o
neoliberalismo está desacreditado, e a hegemonia das empresas está sob forte crítica em
todas as partes do mundo” (BELLO, 2010).
O altermundialismo poderá engendrar um novo bloco histórico?
A parte final deste artigo não tem como objetivo fechar o texto, mas abrir portas
investigativas através das quais entrarei no restante da pesquisa de mestrado. O primeiro
ponto a ser colocado é se o movimento altermundialista e, consequentemente, Fórum
Social Mundial, possui condições de conformar um novo bloco histórico por meio das
forças sociais arrebanhadas no processo da guerra de posição descrito anteriormente e,
consequentemente, formar uma nova hegemonia.
Ao longo da história do FSM, diversos intelectuais e ativistas afirmaram que o Fórum era
a maior novidade política do século XXI. Passados dezessete anos de sua criação, o
Fórum tem perdido importância como ator da política global e como ferramenta
organizativa para o movimento altermundialista. Desde 2011, as organizações que
compõem o Conselho Internacional têm colocado a questão da perda de relevância. É
necessário, pois, investigar quais são as causas do esgotamento do Fórum Social Mundial,
investigação que será realizada no restante da pesquisa de mestrado da qual este artigo é
parte.
Uma das hipóteses que a pesquisa aventa é a de que o capitalismo mudou muito desde a
criação do FSM, bem como as formas de organização e de mobilização da sociedade civil.
Entretanto, o Fórum não foi capaz de acompanhar as transformações e dar respostas
adequadas. As clivagens internas ao Fórum, como a oposição entre movimentistas e
horizontalistas, ensejam análises muito diversas acerca da conjuntura mundial, o que pode
levar à paralisia decisória e de ação, caso as divergências não sejam colocadas de maneira
adequada.
São vários os diagnósticos acerca da situação atual do Fórum Social Mundial. Oded
Grajew afirma que o FSM está em crise, bem como as organizações que o compõem.
Portanto, é necessário “reconhecer nossa responsabilidade sobre essa crise. Só
conseguiremos reerguer as forças do outro mundo possível e enfrentar o neoliberalismo
se reconhecermos nossos erros, fizermos uma reflexão sincera sobre eles e construirmos
outras formas de dar legitimidade às nossas ações. Se não conseguirmos mudar, haverá
muito poucos conosco” (GRAJEW, 2016). Além disso, aponta-se a necessidade de
incorporação de novos sujeitos políticos, como os jovens secundaristas que ocuparam
escolas.
Também é necessário fazer a articulação entre as questões internas do Fórum Social
Mundial e a onda de eleições de governos progressistas, principalmente na América
Latina, na primeira década dos anos 2000. Nesse sentido, Nalu Faria, da Marcha Mundial
das Mulheres afirma que “não podemos desvincular nossas questões dos impasses,
conflitos e limites que esses governos tiveram, e que agora estão implicando nas derrotas
que estamos tendo na região. Tais impasses são fruto de uma relação contraditória desses
governos com a ordem geral capitalista, que se utilizou das ferramentas do capital para
implementar uma série de políticas públicas” (FARIA, 2016).
Para não cometer injustiças com o Fórum Social Mundial, é necessário ressaltar que o seu
legado como articulador de uma proposta de globalização contra hegemônica ainda está
por ser avaliado, e é possível que os frutos sejam colhidos por muitos anos. Ainda que a
relação não seja direta, pode-se tecer a relação entre o FSM e diversas movimentações
políticas que ocorreram ao redor do mundo, como o Occupy Wall Street; a Primavera
Árabe; a criação dos partidos Podemos e Syriza, na Espanha e na Grécia, respectivamente;
as Jornadas de Junho no Brasil, protagonizadas pelo Movimento Passe Livre; as
ocupações de escolas por estudantes secundaristas; e o Nuit Debout, na França.
Dada a dimensão dos impasses internos ao Fórum Social Mundial, uma das questões
sobre a qual as entidades organizadoras devem se debruçar é a possibilidade de
encerramento do ciclo do Fórum. Até agora foram 17 anos de grandes inovações políticas,
seja em termos teóricos, seja em termos práticos. Talvez o legado deixado já baste e o
Fórum Social Mundial seja uma estrela que se apaga.
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