XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE E PRÉ-ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina. GT 10 - Relações de Gênero e entre as Gerações. Papéis de Gênero na Passagem do Tempo: vivências de mulheres idosas em São Luís – MA. Autor: Carla Maria Lobato Alves. Universidade Estadual do Maranhão - UEMA. [email protected] Papéis de Gênero na Passagem do Tempo: vivências de mulheres idosas em São Luís – MA. 1. Introdução Este estudo é constituído por narrativas de quatro mulheres que tem atualmente entre 61 e 76 anos de idade, consideradas velhas ou idosas1, cujo objetivo consiste em analisar mudanças e/ou permanências nas relações de gênero tendo como foco de análise as vivências no casamento, criação e orientação de filhos, cuidados com a saúde, conhecimento das mudanças corporais e práticas da intimidade. Nesse sentido, Joana, Rosa, Rosário e Francisca2 constituíram-se, voluntariamente, como importantes colaboradoras deste estudo que busca compreender, a partir da fala dos próprios sujeitos, como significam experiências vividas nas relações com suas famílias de origem e com aquelas geradas a partir de suas parcerias conjugais e amorosas. São mulheres que, atualmente, participam de grupos de terceira idade, na cidade de São Luís – MA, como a UNITI (Universidade da Terceira Idade) e o GEN (Gerenciamento do Envelhecimento Natural), casaram somente uma vez, tiveram filhos, netos e uma delas hoje já tem bisnetos. Duas são viúvas e as outras duas são casadas. O fato de terem se casado somente uma vez, bem como de duas delas serem casadas e das outras duas serem viúvas, foram coincidências que surgiram no processo investigativo e não situações, propositalmente, estabelecidas. Estas instituições foram escolhidas devido ao contato existente com uma das interlocutoras, por meio de uma pesquisa anterior. A partir destes 1 Na década de 1960, o termo “idoso” foi trazido da França para o Brasil pelo Gerontólogo Marcelo Salgado com a finalidade de substituir o termo “velho” dos documentos oficiais em referência aos sujeitos com idade superior a 60 anos (MASCARO, 2004). Neste estudo adotarei o termo idoso para me referir aos sujeitos que também são categorizados como “velhos”, “terceira idade”, “melhor idade”, entre outras denominações. 2 Os nomes destas mulheres e de seus familiares são fictícios, decisão tomada conjuntamente para que o sigilo fosse mantido. 2 contatos foram mantidas visitas e participações nos referidos grupos com a finalidade de explicar nossa pesquisa e conversar com outras componentes que, posteriormente, somar-se-iam ao nosso quadro de interlocutoras. Contemporaneamente as instituições e os especialistas planejam suas ações e criam programas, aulas de dança, ginástica, informática, universidades e outras atividades voltadas para os que estão inseridos numa faixa etária que passa a ser designada como terceira idade. Propõem uma nova maneira de ser velho. Nesta perspectiva destacam-se a UNITI e o GEN, uma vez que seus discursos oficiais envolvem ações para seu público alvo, denominado de idoso e não mais velho3. A UNITI, localizada no campus do Bacanga da UFMA (Universidade Federal do Maranhão), foi criada em 1996. A instituição realiza processo seletivo anual que oferece 150 vagas, mas nem todas são preenchidas. As atividades, divididas em dois semestres, iniciam conforme o calendário acadêmico da UFMA. Dentre algumas das disciplinas oferecidas têm-se Noções Básicas de Gerontologia Social, Concentração e Memória, Terapia Ocupacional, Nutrição, Lazer na Terceira Idade e algumas das oficinas são Artesanato, Fitoterapia, Informática. GEN, localizado nas dependências do Hospital Estadual Dr. Carlos Macieira, foi criado em 2001. O Grupo oferece atendimento médico em diversas especialidades (geriatria, cardiologia, ginecologia, urologia, nutrição, terapia ocupacional, fisioterapia, entre outras), além de orientar quanto ao processo do envelhecimento e buscar a longevidade com qualidade de vida. Atende funcionários públicos aposentados do Estado do Maranhão, e/ou seus dependentes, neste caso, exclusivamente o (a) cônjuge, com idade superior a 60 anos. Além de atendimento médico-ambulatorial conta com reuniões semanais realizadas na sede do Programa de Apoio ao Idoso (PAI), que oferecem oficinas de Tai Chi Chuan, Dança, Artesanato, Pintura, Ginástica, Hidroginástica e Natação e etc. 3 A categoria idoso é, em geral, trabalhada por algumas instituições na medida em que visam promover uma mudança na concepção da velhice. A gerontologia é o estudo multidisciplinar da velhice que, segundo Guita Debert (2004), engloba profissionais de diferentes áreas interessados em relacioná-la às questões políticas, econômicas, culturais, sociais e de saúde. 3 2. Interlocutoras e Suas Narrativas Para o estudo em questão considerei pertinente a articulação entre História de Vida e Memória, enquanto recurso teórico-metodológico, pois através da rememoração dos sujeitos podemos apreender modos de pensar, comportar e múltiplas visões de mundo através da escolha de acontecimentos elegidos como significativos sobre diversas passagens de suas vidas. Nesse sentido, a técnica de História de Vida permite resgatar e ativar reminiscências que, segundo Regina Faria e Antônio Montenegro (2005, p.21), trazem seleções de “contornos, imagens, emoções, desafios, sonhos, desejos realizados ou não, vitórias e derrotas”, à medida que se remetem às experiências passadas, presentes e projeções futuras. Também permite captar indicadores do contexto social e das redes de sociabilidade das quais participaram/participam os sujeitos que ora narram. Atentar para as narrativas e interpretá-las, cuidadosamente, sem perder de vista que são vários os sentidos atribuídos pelos sujeitos que as constroem, requer utilizar a memória enquanto instrumentação metodológica e, ainda, como fundamentação teórica. Nessa perspectiva, Maurice Halbwachs (2006) é um autor importante na medida em que, em seus estudos, enfatiza fortes vínculos entre as rememorações de experiências vividas individualmente e os grupos sociais nos quais os sujeitos vivenciam tais experiências. Rosa, Francisca, Rosário e Joana registram recordações que estão apoiadas no processo de interação com os indivíduos e grupos sociais (família, escola, igreja, trabalho), nos quais estão presentes “os outros” com quem conviveram e construíram memórias coletivas, o que se aproxima das assertivas de Halbwachs (2006). Ao percorrerem os caminhos trilhados, ao longo da passagem do tempo, estas mulheres ressaltam os movimentos de avanços e recuos da memória, pois o ato de rememorar não é linear ou cronológico, perspectiva corroborada por Ecléa Bosi em “Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos” (2004), pois em várias oportunidades, Rosa, Francisca, Rosário e Joana invocam 4 lembranças presentes e recorrem às vivências do passado quando avaliam, exemplificam, criticam, censuram ou reforçam modos de agir e pensar. Trabalhar com história de vida possibilita ainda que os narradores contem livremente os fatos que lhes forem despertados nos processos de rememorações. Conforme recomenda Verena Alberti (2004), o pesquisador deve elaborar um roteiro preliminar de apresentação para evitar perguntas a todo o momento e assim, interromper constantemente o fluxo das rememorações. Entretanto, algumas poucas intervenções podem ser feitas na medida em que as questões apontem ou encaminhem para outros focos das vivências. Walter Benjamim (1994), contudo, destaca que nada do que relata o narrador é considerado perdido para a história ainda que os significados variem de importância para o pesquisador e o sujeito que narra. A narrativa difere da informação. Esta é breve, e, em geral, contada do mesmo jeito por diferentes pessoas, enquanto a narrativa pode durar muito tempo e ser contada diferentemente por diversas maneiras. 3. Papéis de Gênero e a Passagem do Tempo Seguindo estas orientações, deixei Rosa, Francisca, Joana e Rosário narrarem livremente, sendo poucas as minhas intervenções4. Aos poucos elas reúnem elementos sobre faixa etária, local de nascimento, profissão exercida pelos pais, escolaridade cursada, profissão exercida, tempo de residência em São Luís, estado civil e relacionamentos amorosos, privilegiando o papel significativo do relato das histórias de vida, nas quais os sujeitos recortam aquilo que lhes pareça mais significativo. Desse modo, elas se apresentam: Eu não sou daqui do Maranhão. Eu sou do Piauí, Teresina, né , aí eu nasci no dia 30 de Agosto de 47. Em Teresina. Eu vim pra cá conhecer o Maranhão. E com dois meses que eu tava aqui no Maranhão, eu namorei, noivei e casei. Uma irmã minha veio pra cá porque o marido era do Exército, aí se aposentou lá, reformou, e aí veio pra cá. Aqui ela teve nenê e quando...ela pediu pra mamãe: “Mande uma das meninas aqui pra me ajudar”. Aí mamãe mandou a outra irmã, mas ela disse: “Mamãe, eu mesma que não vou”. Eu disse: “Eu vou mamãe!”. E eu vim. Eu fui criada por minha avó. Minha mãe me deu pra minha avó me criar com dois meses de nascida. Não fui criada em Teresina, fui criada em União [PI]. Meu pai era lavrador e tinha um comercio. Minha mãe era 4 Utilizo fonte diferenciada nas narrativas com o intuito de destacar e diferenciar estes trechos do restante do texto. As informações contidas em alguns colchetes são alguns esclarecimentos que faço sobre o que vem sendo narrado por estas mulheres. 5 dona de casa. Papai prometeu pra ela: “Mamãe, nessa próxima barrigada eu vou lhe dar”. Bem assim, desse jeito. Eu nasci e com 2 meses ela me levou. Eu estudei no colégio das freiras, lá mesmo em União. O colégio era semi-interno. Fiz o primário e depois ela se mudou pra Teresina por causa de mim, pra eu estudar. Eu fiz até o segundo ano ginasial. Foi o tempo que eu parei, casei e agora eu queria continuar, mas não podia com os filhos tudo pequeno. (Francisca - 64 anos, mulher branca, reside em São Luís há 38 anos, atualmente no bairro Cohab). Eu tenho 71 anos. É difícil hoje em dia alguém chegar nessa idade. Eu nasci no Piauí, na capital Teresina. Eu vim pra cá, minha mãe disse, que com 4 anos. Eu vim com meus pais e meus irmãos. Nós éramos quatro irmãs e a mais nova veio com 11 meses. Eu era a segunda das filhas. Meu pai veio pra cá transferido. Ele era jogador. Ele chegou aqui e mandou buscar a gente...a família era nós e minha avó. A minha criação foi muito rígida. Meu pai não queria que a gente fosse nem na janela!! Quando a gente avistava e dizia: “Lá vem papai!”, ele já dizia “O que tu já tá fazendo na janela? Entra logo!”. Ele não deixava a gente sair.A minha mãe trabalhava numa fábrica, a Fabril. A minha mãe trabalhava e chegava em casa só a noite. Então quem me criou mais foi minha avó. Ela criava assim....Não queria pra gente fazer nada, né? Ela queria fazer tudo e minha mãe chegava às vezes na hora do almoço só pra comer e saía de novo pra fábrica. Quando ela vinha na hora do jantar, era jantar e dormir. No outro dia ela ia pro serviço. Há 4 anos sou viúva. Eu tive cinco filhos, mas morreu um e ficaram quatro. São dois casais. Todos são casados. Eu fiz até a 6ª porque meu marido era igual meu pai. Não deixava sair, não deixava estudar. Ele dizia que quem quisesse estudar não tinha casado. Ele não deixou eu terminar os estudos. Eu casei....deixa eu ver.....eu casei com 17 anos. (Rosário - 71 anos, mulher negra, reside em São Luís há 66 anos, atualmente no bairro Vila Palmeira). Bom, eu nasci em Penalva, na cidade de Penalva, Maranhão, só que nem eu mesma conheço a cidade porque eu nasci e meus pais se mudaram logo de lá, eu era muito pequena, e eu nunca mais voltei lá. Porque eu estudei na cidade de Monção, também uma cidade da Baixada, porque tinha uma professora de preferência de todos os pais, que queriam que as crianças estudassem com ela. Por conta disso meu pai se mudou pra onde ela veio morar, que foi em Monção. (....) Aí, lá que eu fiz o meu primário até o quinto ano na época. Aí terminou o primário e tudo e meu avô se mudou pra Santa Inês, aí eu fui pra Santa Inês...eu já tinha quatorze anos. Aí de lá, em Santa Inês, eu fiquei até...eu comecei a trabalhar, me casei, tenho seis filhos. Me casei muito nova, com dezoito anos, mas graças a Deus fui muito feliz, tenho os meus seis filhos. (Rosa - 76 anos, mulher negra, reside em São Luís há 35 anos, atualmente no bairro Bequimão). Eu tenho 61 anos. Eu nasci em Cururupu, cidadezinha daqui do Maranhão. Eu vivi lá a minha infância.....praticamente a infância toda lá. Quando eu vim pra cá eu já tinha 18 anos. Eu vim pra casa de parente. Eu vim estudar aqui e fiquei na casa de parente. Até porque.....lá o estudo era fraco, e meu pai era de pouca condições, então eu morava na casa de parente aqui. Vim pra estudar, pra continuar estudando. Só fiz até o segundo grau. O meu pai era pescador. A minha mãe, dona de casa e ajudava também. Ela ajudava assim na roça, mas ela não era de trabalhar direto na roça. Ela dava sempre uma ajuda porque meu pai além de trabalhar na pescaria ele também trabalhava na roça. Era mais a farinha, pro nosso consumo. Não era pra ele vender ou....viver só daquilo. Ele tinha...da pesca era pra ele vender. Ele vendia. Passava 15 dias fora de casa pescando aí voltava por 15 dias, aí tornava a voltar. Aí nesse intervalo ele ia na roça, ele fazia um pouco de farinha pra gente não ter que comprar. Eu vim pra São Luís. Eu morava no Bairro de Fátima junto com uma prima do meu pai. Aí depois essa minha prima ela foi pra Belém [Pará]. E eu fiquei aqui no São Francisco na casa de outra prima. Tava terminando o Segundo Grau quando eu engravidei. Terminei o colégio e o que é que eu fiz? Eu fui embora pro interior. (Joana - 61 anos, é branca, reside em São Luís há 38 anos, atualmente no bairro São Francisco). 6 Nestas primeiras lembranças aparecem personagens e situações significativas como as experiências com suas famílias de origem, os arranjos familiares de outrora, as recordações da escola, do trabalho. Como já aparecem nas lembranças da infância, o núcleo familiar é marcado pela distinção hierárquica de papéis, nos quais, em geral o pai aparece como o personagem que encarna a autoridade maior e a mãe aparece como aquela que gerencia o lar, cuida dos filhos e filhas e toma as decisões consideradas importantes na educação destes. O pai de Rosário controlava os filhos mais que do que a mãe, talvez porque esta trabalhasse na fábrica e passasse o dia todo fora de casa, o que desconstrói a concepção de que todas as mulheres viviam dentro do lar assistidas por maridos provedores. Assim, coube à avó paterna o cuidado dos netos. Delegar os cuidados de uma criança às mulheres, situação que parece ser bastante comum no contexto das décadas de 1940 a 1960, reforçava a noção de que aquelas saberiam cuidar destes “naturalmente”, como se uma das condições primordiais de ser mulher fosse a de ser predestinada a cuidar dos filhos e do marido. Também é importante destacar que nos casos em que as mães trabalhavam fora de casa, como é o caso da mãe de Rosário, avós e/ou tias assumiriam cuidar das crianças. De acordo como Margareth Rago (1985) no período de 1890 a 1930 todos os discursos voltavam-se para priorizarem a ocupação das mulheres com a atividade da educação, com a formação do caráter das crianças com a destilação de valores morais, concebendo-se, a partir de então, a maternidade como traço da “natureza feminina”. Jurandir Freire (1994) afirma que discursos produzidos pela medicina higienista no Brasil do século XIX afirmavam que a vocação natural das mulheres seria a maternidade, de acordo com suas disposições físicocorporais. Nesta construção, vai se consolidando uma distinção entre “modelo de homem” e “modelo de mulher”, “natureza masculina” e “natureza feminina”, como pólos opostos e excludentes que embora tenha se disseminado como a “norma”, “o modelo” tenham encontrado, em contraposição, a muitas outras 7 formas práticas de convivência familiar nas mais diversas camadas sócioeconômicas. As narrativas continuam e enfatizam a configuração de um sistema binário de relações de gênero que, em geral, preconiza o masculino e o feminino a atributos demarcados como opostos e excludentes, sobretudo na vivência conjugal. A minha vida foi dentro de casa cuidando de menino porque casei e com um ano de casada já tinha filho. No outro ano, outro filho. Ainda não tinha nem feito um ano!! A minha vida....eu perdi minha mocidade, pra completar, cuidando de meus filhos. Nunca paguei ninguém. Nunca levei filho pra casa de mamãe pra ela cuidar. Eu aqui nessa casinha criei meus filhos tudinho. Todos eles. Fui mãe e pai dos meus filhos. O marido saía de manhã pro serviço, almoçava pra lá mesmo. Eu é que ia pra colégio, eu é que ia pra reunião, eu é que ia pra todo lado com meus filhos. Então, eles são mais apegados a mim do que ao pai (risos). (Francisca). Rosário também enfatiza: Meu marido não queria pra mim trabalhar, nem terminar de estudar. Se eu quisesse estudar que não tivesse procurado marido e casado. Era pra cuidar dos filhos. E eu não estudei mais, nem trabalhei. Não queria pra mim estudar, nem fazer nada...nem trabalhar. Aí, mesmo assim, eu trabalhava em casa, eu fazia unha, eu costurava e ajudava ele, mas tudo em casa. Aí eu comecei a fazer cursos e com isso aí ele não se importava. Eu fiz curso de cabeleireiro, de manicure. Nesse tempo no SENAC não se pagava nada, era grátis. Eu fiz lá. Ele não queria que eu trabalhasse porque ele disse que ele conhecia e via como era esse negócio de patrão com empregada, que tomava gosto e até meu pai também falava isso. Ele não queria pra mim trabalhar porque ele trabalhava numa repartição e sabia de patrão que ficava tomando gosto. E ele dizia: “Não, mulher minha não vai trabalhar!” (Rosário). Rosa acrescenta: (...) Na família é uma coisa muito importante esse controle, essa firmeza, saber os deveres que a mãe deve ter. Esses deveres são distintos, mas muitas vezes a mãe absorve. No meu caso foi assim. O Fernando [marido falecido] sempre deixava a meu critério. Ora, reunião de pais e mestres? Nunca o Fernando assistiu uma. Eu sempre falava: “Os meninos só tem mãe?”. Ele dizia que eu estava mais inteirada, mais próxima, que cuidava mais deles. A educação maior dependeu de mim mesma. Ele dava apoio e tudo. (Rosa). Estes relatos realçam modos de construção e atribuição dos papéis de gênero num sistema de marcação que parece como fixo e sem mobilidade, cujo vetor é a naturalização da diferença sexual. Esta marcação distinta entre masculino e feminino é, conforme afirma Judith Butler (2003), construída por atos, gestos e significações constantemente reiteradas e o espaço privado 8 aparece nas narrativas como privilegiado para a construção da feminilidade via divisão de tarefas. Francisca também apresenta as maneiras de expressão do corpo que, em conformidade com os padrões sociais de conduta das décadas de 1940 e 1950, orientavam modos e qualidades socialmente esperados das mulheres através do processo de socialização. Até roupa naquele tempo era diferente. Eu tinha um vestido, que o zíper era de lado e às vezes ele abria um pouco e isso causava a maior coisa se o corpo aparecesse. Precisava ver....minissaia, vestido cavado, era tudo coisa das mulheres lá de baixo, que eles chamavam de mulher da vida. Nesse tempo o Quartel era lá embaixo, lá na Vinte e Oito 5. Meu marido trabalhava lá no Quartel, nesse tempo, na Polícia (Francisca). Segundo esta rememoração, era necessário que as mulheres tivessem consciência de que a conduta social mantida diferenciava as mulheres em mulheres virtuosas e mulheres devassas. Usar roupas provocativas, por exemplo, poderia associar às mulheres à fama “de leviana, namoradeira, vassourinha ou maçaneta (que passa de mão em mão), enfim, de garota fácil” (BASSANEZI, 2007, p. 612) (Grifos da Autora). Carla Bassanezi (1996 e 2007) e Sandra Sousa (1998) apresentam algumas seções e colunas de revistas e jornais que eram destinadas às mulheres e circularam, em caráter local e nacional, entre as décadas de 1940 a 1960. Essas publicações transmitiam mensagens que reforçavam o controle sobre as mulheres no que se refere às roupas consideradas provocativas, à vaidade, aos cuidados dedicados com decoração da casa, às leituras aconselháveis, ao modo de se comportar frente ao namoro, casamento, criação de filhos e possíveis relações extraconjugais dos maridos6. 5 A Zona de Baixo Meretrício (ZBM) de São Luís ficava localizada no centro da cidade. As chamadas pensões eram gerenciadas pelas madames e reuniam muitas mulheres, que nos dias de hoje são denominadas de profissionais do sexo, em casarões localizados em sua maioria na Rua Afonso Pena, Rua da Palma, Rua 28 de Julho e Rua da Estrela. Algumas daquelas pensões mais conhecidas foram a Pensão da Maroca e a Pensão da Lolita. 6 Jornal das Moças, Querida, Você, Vida Doméstica, O Cruzeiro e Revista Feminina foram algumas das revistas de publicação nacional estudadas por Carla Bassanezi (2007). A Página Feminina (1950), do jornal O Imparcial; O Diário nos Assuntos Femininos (1952), do Diário Popular; Suplemento Feminino (1959), do Diário da Manhã, A Coluna Feminina (1960), do Jornal do Dia e o Jornal do Povo (1963) foram algumas das seções e colunas jornalísticas maranhenses analisadas por Sandra Sousa (1998). 9 Ficava mal à reputação de uma jovem, por exemplo, usar roupas muito ousadas, sensuais, sair com muitos rapazes diferentes, ou ser vista em lugares escuros ou em situação que sugerisse intimidades com um homem. Os mais conservadores ainda preferiam que elas só andassem com rapazes na companhia de outras pessoas – amigas, irmãos ou parentes, os chamados seguradores de vela (BASSANEZI, 2007, p. 612). Grande parte daquelas publicações legitimou socialmente a construção dos papéis de mãe e esposa, o que reforçou a concepção de que às mulheres caberia ao âmbito privado7. Não destoando das orientações contidas naqueles jornais e revistas, Rosário e Francisca contam, a seguir, alguns dos cuidados com aparência física e beleza que socialmente são associados como marcadores da feminilidade Tem uma colega da minha neta que veio aqui e perguntou se eu tinha 70 anos, porque eu sou dura. Não aparento!(risos). Minha neta diz que eu sou toda vaidosa! E eu passo uma coisinha no rosto, uns cremes, um batom leve, porque eu nunca gostei de batom forte, só mesmo pra mudar a cor. Passar um perfume eu também gosto. Pintar meu cabelo! Desde moça que eu pinto meu cabelo (risos). Tem vezes que eu gosto de fazer uma limpeza de rosto. Eu uso produto da Avon e da Jequiti, e também vendo. Eu vendia tudo que era cosmético, mas agora só esses. Então eu tô nesse meio e uso. Uso perfume, uso creme, hidratante. Isso tudo eu uso. Eu sou vaidosa, mas tem muitas mulheres que perdem a vaidade. Tem senhora que não gosta, fica mesmo natural. Agora eu, desde nova, uso. Eu gosto de me arrumar. Gosto de usar secador. Gosto de rímel, mas só daquele transparente. Ele é bom porque não mancha. (Rosário). Ontem a colega ligou dizendo que não ia ter aula, aí eu fui na casa da minha irmã, aqui no Angelim, levar uma calça pra ela ajeitar. Eu tô chegando e outra colega liga perguntando se eu não vou pra aula. Eu estranhei porque me avisaram que não ia ter, mas na mesma hora mandei minha irmã descer e nós pegamos o ônibus correndo. Ainda chegamos lá pelas 15:00 horas e tava todo mundo já no auditório e as colegas guardaram nossos lugares lá. Quando eu cheguei todo mundo ficou me olhando porque eu fui mais arrumada né. Na verdade eu tava indo pra casa da minha irmã, aí ligaram dizendo que ia ter aula, fui assim mesmo. Eu sempre fui vaidosa, quer dizer, desde novinha não, mas depois, quando eu tava já saindo com minha irmã, eu me arrumava mesmo. Eu fazia até sinal de lápis no rosto (risos). Hum...tudo pra ficar bonita. Eu sair de casa sem pintura e sem perfume, é a mesma coisa de que eu tá nua, nua, nua. Tenho que sair arrumada, direitinho. Eu não gosto de vestido, mas uso um ou outro quando me dão. Não gosto de saia, é usando bermuda o tempo todo, ou então calça. Uso minhas roupinhas e não to nem aí, mas menino....hum! Eu uso o que eu gosto. Quando vou sair é usando cheia de balangandãs, mas eu gosto (risos). (Francisca). Estas mulheres citam quais são as coisas que mais lhes despertam interesse no cuidado de seus corpos. Percebo que acessórios e roupas da 7 Contrariando esta perspectiva, Michelle Perrot (1989) e Maria Bernardete Flores (1995) afirmam que as memórias das mulheres podem revelar acontecimentos significativos que se referem à conjuntura política, social e/ou econômica. 10 moda, modelos de cortes de cabelo, maquiagem e outros produtos de beleza, são alguns dos recursos que foram socialmente constituídos como sendo próprios para as mulheres, consolidando a concepção de que eram assuntos que somente interessariam a elas e reforçando a perspectiva de uma “natureza feminina”. Esta perspectiva vem sendo modificada contemporaneamente, sobretudo, pelos homens das gerações mais novas que já apresentam interesse frente a alguns daqueles elementos, a exemplo de algumas reportagens transmitidas na mídia televisiva. Com isso se percebe um pouco da flexibilização que os papéis de gênero tiveram nas últimas décadas, embora estas duas perspectivas ainda (co)existam. Tais cuidados com a expressão do corpo podem ser considerados como um dos atos ou gestos performáticos, ressaltados por Judith Butler (2003), que não são simples singularidade. São, na verdade, todos os atos que são citados e reiterados constantemente e elencam traços marcadores da feminilidade em oposição à masculinidade. Como notamos, a socialização de homens e mulheres naturaliza traços da masculinidade e feminilidade em identidades opostas num sistema de relações heteronormativas. De acordo com Branca Moreira Alves et al. (1980), a identidade feminina foi caracterizada por alguns atributos, tais como timidez, docilidade, fragilidade, pureza enquanto que a identidade masculina foi caracterizada pela coragem, tenacidade e virilidade. Outros elementos que configuram a identidade feminina estão atrelados ao desconhecimento a respeito da sexualidade e das transformações corporais que acontecem com as mulheres. Nesse sentido, sentimentos como medo, vergonha e insegurança expressariam um pouco do que as mulheres pensariam a respeito, por exemplo, da primeira menstruação, das experiências erótico-sexuais vividas com namorados, maridos e/ou parceiros e da menopausa. Os relatos de Joana, Rosário, Francisca e Rosa sobre o momento de sua primeira menstruação também são marcados tanto pelo desconhecimento quanto pelas recriminações e ocultações que, em geral, as mães faziam sobre aquele momento. 11 Eu sempre fui muito retraída. É até um avanço eu sair agora com o Sr. Luís. Outra coisa que não se falava era sobre menstruação. Nessa época minha mãe foi muito calada. A não ser com alguma colega que a gente falava e eu com muita vergonha de perguntar. Eu não tinha coragem assim... e depois o pessoal podia falar: “Essa menina tão saliente. Quer saber das coisas antes do tempo”. Então, eu me reservava. Fiquei esperando. Menstruei com treze anos, aí falei pra mamãe e ela disse: “Não, isso é assim mesmo. A menina tem que ficar moça. Agora você é moça”. Aí tinha as recomendações: “não comer isso, não comer aquilo. Não podia comer limão, não podia comer azedo”. Era tanta coisa (Rosa). Acho que foi com 15 anos que eu menstruei. Não se conversava sobre isso não. Nada, nada. Nunca. Minha mãe não falava e meu pai, piorou. Eu fui criada assim, sem saber nada. Quando eu menstruei, eu pensava que tinha me cortado. Eu pensava que era corte e perguntei pra uma prima minha, também naquele tempo, não sabia o que era. Ninguém respondia quando a gente perguntava, tinham vergonha de falar (Rosário). Eu acho....eu não tenho certeza, não tô lembrada, mas acho que foi na idade de 13 anos que eu menstruei. Foi nessa faixa. A minha mãe sempre teve vergonha de contar as coisas. Conversar com a gente, se abrir com a gente. Ninguém contava, era assim como algo vergonhoso. Eu não sabia de nada. Eu lembro assim porque quando eu menstruei eu não sabia nem o que é que era. Quer dizer, não sabia entre aspas, porque eu já olhava minha mãe aqui e acolá, visto que elas usavam panos, não era absorvente. Eu olhava e criança sempre é curiosa e eu perguntava, mas elas não queriam nem responder o que é que era aquilo. Quando elas respondiam, respondiam errado. Era assim: “Ah, isso aí. Isso é meu. É que eu uso e tudo...”, mas não dizia o que era, qual era a finalidade. Aí quando eu menstruei eu me assustei. Eu não sabia o que é que era, mas tinha mais ou menos a idéia, já imaginava né? A gente conversava, eu e minhas primas. Às vezes as primas mais velhas, que menstruava primeiro, contava que nós iríamos passar por isso. Porque do jeito que era minha mãe, eram minhas tias. E nos primeiros dias eu escondi. Eu fiquei escondida, toda sem jeito. Depois que eu falei pra minha mãe e ela ficava com vergonha. Ela não olhava nos meus olhos. (Joana). Foi de 15 pra 16 anos que eu menstruei. Foi perto, um pouco depois que minha avó morreu. Todo mundo lá de casa falava pra minha avó pra ela me dar um remédio caseiro que eu com 15 anos não tinha vindo nada. E ela não me dava, dizia que na hora certa viria. E de lá pra cá nunca passou de três dias. Nunca, nunca, nunca. Não sei nem o que foi cólica (risos). Quando eu pensava que não, minha roupa já tava suja e eu me espantava: “Vixe, já?” (risos). Agora ninguém falava nada. Minha mãe mesmo não falou. Minha avó também, ela era uma cabocona do interior e não gostava de falar dessas coisas. A gente acabava aprendendo era com as colegas (Francisca). As narrativas de Rosa, Joana, Francisca e Rosário demonstram que falar sobre menstruação, bem como manifestar alguma curiosidade sobre a sexualidade era um comportamento desaprovado às mulheres no contexto das décadas de 1940 e 1950. Estas mulheres contam que tinham medo de perguntar e contar que tinham menstruado, porém o desconhecimento sobre o assunto não era total, visto que as informações chegavam até elas observando, aqui e ali, que o mesmo acontecia com suas mães e tias. Tinham uma breve idéia do que poderia ser, mas sempre que perguntavam; as respostas geralmente eram evasivas. As reações das mães, avós e tias, 12 envoltas de mistérios e segredos, acabaram por consolidar ideais de pureza e inocência ao comportamento socialmente esperado das mulheres como “essências” ou “naturezas” biologicamente determinadas, no que se refere às vivências da sexualidade. No que se refere às primeiras experiências sexuais, Rosário e Joana burlaram o que era considerado como comportamento normativo das mulheres, para o contexto nas décadas de 1940 e 1950, ao narrarem que as tiveram com namorados. No caso de Joana, as experiências com um namorado ocasionou a gravidez do seu primeiro filho. Sua narrativa ressalta que ser mãe solteira representaria uma ofensa social e desonra para famílias daquela época. Nesses casos, era muito comum que as moças escondessem a gravidez como estratégia para adiar uma possível reprovação social. Eu tive relações antes de casar, mas..... Foi com o primeiro namorado, eu tinha 16 anos. Eu não casei porque ele foi embora. Ah, mas meu pai quase me mata e me batia. Foi horrível. Eu nunca fiquei grávida ou tive filho, mas quando eu fui casar eu contei pro meu futuro marido, pra não dizer que eu tinha enganado. Se enganasse era pior. Nesse tempo era ruim! Não tomei nada porque eu só fiz essa vez mesmo. Só foi aquela relação e acabou, não vi mais ele. Também fiquei escondida, sem falar nada (...) Depois que eu arrumei esse namorado, que eu contei pra ele, ele foi e contou pra minha mãe. Aí foi aberto e ele disse que queria casar comigo, que ela não se preocupasse que eu não ia ficar prejudicada. E foram 46 anos de casados (Rosário). Quando eu descobri que tava grávida, eu escondi. Eu passei cinco meses grávida e escondendo. Ninguém sabia. Eu acredito que como era a primeira gestação, eu não tinha quase barriga. E eu apertava, né. Amarrava um pano pra ninguém saber. Aí depois ficou muito difícil pra mim, porque o povo ia falar: “Ah, é mãe solteira. Não vai morar com o pai do filho dela (em tom de reprovação)”. Não contei nada e quando ele foi saber.....assim, eu morava aqui na época, que eu estudava aqui, tava terminando o Segundo Grau quando eu engravidei. Terminei o colégio e o que é que eu fiz? Eu fui embora pro interior e quando ele soube eu já tinha tido a criança lá. Ele nunca procurou assim....e também eu não quis mais, não quis mais....não procurei aproximação. Ele sabe, conhece, mas eu também nunca procurei. Eu assumi. Eu trabalhava e eu mesma assumi. Eu trabalhava lá mesmo no interior. Eu ganhava pouquinho, mas dava e com a ajuda dos meus pais fui levando. (...) Eu tive um namorado lá em Cururupu. Foi mais ou menos um ano, um ano ou pouco mais de um ano que a gente namorou. E quando eu vim pra cá que eu conheci o pai do meu primeiro filho. Eu tinha 16 anos quando perdi a virgindade, mas não foi com o pai do meu filho mais velho. Foi com o de lá [Cururupu]. Nos não chegamos a morar juntos. Naquela época ninguém conversava, era cheio de dúvidas. É como eu falei, a gente tinha até medo de tocar no assunto. A gente não tinha orientação nenhuma. Falar nisso aí era...sobre relações....não se tinha nem conhecimento. Naquela época era um problema ser mãe solteira. Tinha muito problema, e como tinha! Por isso que os pais tinham tantos cuidados (Joana). 13 Por outro lado, seguindo os conselhos e normas sociais daquela época, Francisca e Rosa contam que tiveram suas primeiras experiências sexuais com rapazes que se tornaram seus maridos somente após o casamento. Eu casei logo. Foi rápido, dois meses. Namorei, noivei e casei. Eu tinha umas paquerinhas de longe, de longe na época, mas minha filha esse aí foi meu primeiro homem fixo, com que eu perdi a virgindade, com ele que eu casei, com ele tive meus filhos. E tô aqui, ano que vem, o outro, tô fazendo quarenta anos de casada (Francisca). Eu trabalhava na loja que era dele. Eu era balconista, comerciária. Na época, eu trabalhava lá e ele era solteiro. A gente teve um namoro e eu tinha muito medo, justamente, da língua do povo. Isso me comprometia muito, porque eu tinha medo. (...) Agora desde que ele chegou em Santa Inês, tinha aquele flertezinho, aquele namorico. Depois que eu fui pra loja dele ficou mais sério e eu fiquei com medo. Eu tinha medo de me casar e não dar certo. Aí eu tinha medo. Porque ele...a nossa diferença de nível, e ele um homem já maduro e eu uma menina muito jovem e não tinha conhecimento de nada. Assim, era muito....precisava de mais conhecimento mesmo. Eu não conhecia nada da vida. Não tive orientação, não sabia fazer. Não tive....[pausa]. Relações sexuais era um outro assunto que a mãe da gente não falava. Moçinha não tinha que saber. Por isso eu era muito ingênua quando me casei. Não tinha conhecimento de nada. Depois, lendo, que eu vi algumas coisas (Rosa). Sobressaem-se, nas narrativas, a desinformação e o desconhecimento sobre a sexualidade. Ao falar que tinha medo que a união não desse certo, Rosa ressalta sua preocupação com a falta de conhecimento e orientação sobre o exercício das práticas sexuais. A ingenuidade, registrada em seu relato, constitui como um dos atributos que são estipulados à conduta das mulheres frente ao exercício da sexualidade. De acordo com Branca Moreira Alves et al. (1980), na divisão dos papéis de gênero exigia-se que elas fossem castas, passivas e inibidas sexualmente para que os homens as envolvessem e conduzissem nos jogos de prazer e sedução. Desse modo, Rosa e Joana continuam registrando a “falta de conhecimento” e “’vergonha” ao narrarem como eram os encontros íntimos com seus maridos: Eu fiquei viúva de marido vivo, durante muito tempo. O Fernando fumava muito, bebia muito e por ser mais velho do que eu, ele perdeu a atividade sexual, ele brochava. Aí ele ficava chateado, mas eu sempre dizia que não tinha nada não, que não era a principal coisa, quando na verdade é! É uma das principais, mas pra mim ajudá-lo pra ele não cair em depressão eu ajudava. Na cabeça dele ele queria, mas o membro não ajudava. Aí não realizava. E nisso passou foi muito tempo. Quando ele morreu, já fazia muito tempo que a gente era irmão. Que não tinha mais...da parte dele não tinha. E eu me conformava e acho que também não tinha vontade. Eu não sentia prazer. Não sabia o que era orgasmo. Só fui saber dessas coisas bem depois, lendo, conversando com as amigas. No começo ele que ajudava, mas eu ficava muito acanhada. Muito, muito, muito. Pra te ser sincera, nunca tomei banho junto com ele. Nunca fiquei despida na frente dele, pelada. Sempre foi assim reservado. Naquele momento e 14 pronto. Ali, era sem luz. Era tudo sem intimidade. Ele não era assim carinhoso, como eu vejo o povo falando. Às vezes era brusco, muito avançado, mas aí terminava e não era assim de ter aquele carinho, como eu vejo sobre o preparo, as preliminares. Eu leio muito sobre isso. Eu olho hoje que passou tanto tempo e ficou por isso (risos). Agora que eu já tenho o conhecimento e tudo, só falta experimentar mesmo e saber (risos) (Rosa). Antes eu também não procurava meu marido. Eu achava que aquilo era vergonhoso, porque eu fui ensinada assim: “Que o homem que tinha que procurar a mulher”. Então era vergonhoso se uma mulher procurasse o marido! Era assanhamento! Era isso, era aquilo. Então eu não procurava porque eu tinha vergonha. Depois, um dia, ele perguntou pra mim porque eu não procurava ele. Ele chegou e perguntou pra mim se eu não sentia vontade? Foi aí que eu me abri. Eu disse que sentia, mas tinha vergonha. Ele disse que eu não devia sentir vergonha. Ai que mudou, melhorou. Antes eu não tinha coragem de chegar e tomar a iniciativa. Eu tinha que esperar. Eu achava que era assim, que tinha que ser assim. Porque eu fui ensinada assim. Eu não falava nada. Hoje já mudou. Hoje eu aprendi que a gente tem que falar o que gosta, o que agrada, que dá prazer. Tem que dizer o que a gente acha, o que a gente gosta. Hoje em dia tudo é diferente. A gente vê na televisão, a gente lê. Eu gosto muito de ler. Às vezes vejo alguma entrevista. É bom se informar e saber mais (Joana). Estes trechos de relatos registram que estas mulheres foram socializadas de modo que não revelassem preferências e/ou desgostos nos encontros íntimos e nem demonstrassem interesse pelas práticas sexuais comportando-se de maneira considerada ousada, naquele contexto, ao “procurarem os maridos”. No entanto, ainda é possível perceber uma flexibilização nos papéis de gênero na medida em que Joana conta que seu comportamento modificou-se e hoje já toma iniciativa e conversa sobre as suas preferências nas práticas sexuais com seu marido. Rosa, assim como Joana, ainda narram que adquiram mais informações sobre assuntos considerados como da “intimidade” lendo revistas e assistindo matérias exibidas na mídia televisiva. Estas mulheres também ressaltam alguns dos problemas fisiológicos que podem interferir nas práticas da intimidade de pessoas idosas, tais como a impotência sexual e a menopausa8. Rosário, Francisca, Joana e Rosa apresentam algumas das complicações vividas com o período da menopausa. Suas narrativas corroboram das assertivas de Ricardo Iacub (2007). Este autor destaca que apesar dos sintomas característicos (a diminuição das taxas hormonais de estrógeno e progesterona, interrupção da ovulação, suspensão 8 Os especialistas da área da saúde destacam que tanto a impotência sexual como a menopausa podem acontecer em qualquer momento da idade adulta, pois são processos fisiológicos e, como tais, são difíceis de serem precisados cronologicamente. Assim, algumas pessoas podem senti-los mais cedo e outras, mais tarde (Butler e Lewis, 1985). 15 do ciclo menstrual, calor excessivo e mudanças abruptas de humor), nem todas as mulheres os sentirão, uma vez que a menopausa é um processo fisiológico que comporta variações orgânicas, tal como se percebe nos trechos a seguir: E quando eu entrei na menopausa, eu nem sabia. Eu nem fiz tratamento. A minha mãe também nunca fez tratamento. Nunca ouvi ela falar. Eu me consultei porque eu pensei que tava grávida. Com 45 anos começou a menstruação a parar, aí eu pensei que tava grávida. Eu ia até tomar remédio, que minha prima disse que tinha um muito bom pra descer, mas aí na outra semana veio a menstruação. No dia que eu fui comprar o remédio, desceu. Ai começou a vir de novo normal, mas tratamento eu não fiz. A única coisa que eu sinto hoje é uma quentura na cabeça. (...) Agora mesmo, mês retrasado eu fiz preventivo e a doutora disse que tinha um problema de ressecamento, que não tava úmida, tava seca né, e passou um remédio. Tinha também uma inflamaçãozinha, mas aí eu cuidei e tá tudo certo agora. Não tenho coceira, não tenho corrimento. Quando eu era mais jovem, eu tinha, mas agora parou, não tem nada. Sempre eu faço também exame de sangue, pra cuidar a saúde. Tem até que marcar. Agora meu marido não era assim. Ele reclamava que eu só vivia no medico (risos) (Rosário). Eu sempre tive uns problemas de saúde, mas nessas coisas de mulher não. Por incrível que pareça, eu não sentia cólica, só tive dor de parto, nem na menopausa eu num senti nada como eu vejo o povo falando aí de uns calores (risos). Cheguei até a tomar Cálcio, mas não tomei hormônio. Cálcio eu cheguei a tomar uns três vidros, e pronto. Eu faço meus exames de rotina e nunca dá nada. Agora eu vou fazer de novo, ne?. Nem ressecamento na vagina eu sinto, mas sabe por quê? Eu não sinto nada de inflamação ou de outra coisa porque minha avó, tu sabe o que ela fazia? Ela fazia, fazia não, ela mandava buscar lá nos matos pra mim comer Jatobá. Eu comia e eu gostava tanto daquela massinha. Ela é dessa grossura [gesticula mostrando] e quando tá no ponto de comer você quebra, que a casca é dura, e come normal mesmo (Francisca). Percebe-se que o processo da menopausa foi marcado pelo desconhecimento para todas elas. Esta situação se aproxima das idealizações dos papéis de gênero, destacadas por Branca Moreira Alves et al. (1980), segundo as quais as mulheres desconheceriam os próprios processos de mudanças corporais. Rosa e Joana ainda vivenciaram o período menopáusico com alguns problemas. O tratamento de reposição hormonal, feito até hoje, ajudaram Rosa a driblar as complicações que sentia, sobretudo, as hemorragias. Para Joana, o ressecamento vaginal foi registrado como a maior implicação da menopausa, interferindo principalmente nas relações sexuais com seu marido, tal como se percebe: Tô me sentindo ótima (risos). Com regime e sem passar fome, sem deixar de me alimentar bem e estou controlando todas as taxas. Agora mamografia também. Eu faço acompanhamento ginecológico. Já estou com data marcada pra levar resultado 16 de mamografia e ultrasonografia. A mamografia eu faço de ano em ano e a ultrasonografia faz de seis em seis meses. Acredita que eu entrei na menopausa com trinta e cinco anos? Isso mesmo. Foi muito cedo, muito precoce. Com trinta e cinco anos eu já estava na menopausa. Eu sofri muito porque tive hemorragia, mas eu comecei a fazer o acompanhamento. Daí eu comecei a fazer reposição hormonal. E isso eu faço ate hoje. Sempre fazendo, então os médicos recomendam que a gente tem que se cuidar (Rosa). Eu vim parando aos poucos. Tinha mês que eu menstruava, tinha mês que não. Aí eu passava três meses sem menstruar e quando eu menos imaginava vinha. Eu não cheguei a ter....assim.....calor, aquele calor insuportável! E às vezes baixava uma depressão....um início de depressão. Em outro tempo eu jamais falaria ou chegaria pra falar isso pra médica! Hoje em dia eu já chego e falo pra ela a situação. Quando a pessoa entra na menopausa o prazer diminui, mesmo pelo fato dos hormônios que mudam tudo. E a gente sente a dificuldade na penetração. Quando a vagina da pessoa tá ressecada, ela não vai sentir prazer. Ela vai sentir é dor ou arder. Então, hoje em dia já tem os cremes que a gente pode usar. E isso já melhora muito. No meu caso eu já uso creme direto e eu deveria tomar hormônio, mas aí como eu já sou operada do seio a médica achou melhor eu não usar hormônio. Eu já tirei um nódulo. No começo eu não falei nadinha. A mudança é muito brusca. Eu não cheguei logo e me abri com meu marido não. Logo de imediato, não. Eu passei em alguns médicos, que eu também não tinha coragem de falar dessa dificuldade. Aí foi quando eu conheci a Dra. Socorro e ela começou a fazer perguntas e aí eu comecei a me soltar mais. Eu já tive coragem de perguntar as coisas. Eu já tinha passado em outras médicas, mas mesmo assim não falava. (...) Com ela não precisou nem eu chegar e falar logo. Depois que eu conversei com ela aí que eu já fui conversar com meu marido. Aí ele entendeu minha dificuldade. Antes eu vinha seguindo o mesmo exemplo da minha mãe. Assim, não era o mesmo, o mesmo [bem enfática], mas muita coisa veio mudando aos poucos. Às vezes é um a opinião aqui de uma colega.....Eu tenho algumas colegas que conversam comigo e já dou até certos conselhos com as colegas que vem e se abrem comigo. Quer dizer, já converso porque antigamente eu tinha vergonha, eu não falava. Eu tinha vergonha porque eu aprendi assim. Eu não procurava porque achava que era vergonhoso, que o certo era o homem procurar, mas hoje mudou (Joana). Expor as dificuldades e angústias nas práticas sexuais causadas pelo ressecamento vaginal a alguns ginecologistas se constituiu uma tarefa impossível para Joana, uma vez que a vergonha a rondava. Conversar com seu marido sobre suas preferências mais íntimas também era algo “impensável” para ela. Estas atitudes indicam vínculos com elementos dos processos de sua socialização, e das demais moças, que nasceram nas décadas de 1930 a 1950, contexto no qual perpassavam alguns discursos como “mulheres são educadas para fazer isto e não fazer aquilo”. Nesse sentido, ao projetarem, igualarem e compararem seus comportamentos aos de seus familiares, amigos e outras pessoas que foram conhecidas ao longo de suas vidas, Rosa, Joana, Francisca e Rosário registram variados processos de mudanças e permanências nos padrões idealizados para os papéis de gênero. 17 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS As narrativas de Joana, Rosário, Francisca e Rosa articulam, através da rememoração, experiências vividas no passado às da atual conjuntura e apontam para a construção da divisão de especificidades de gênero polarizada, segundo a qual o vetor das diferenças sexuais justificariam as atribuições dos papéis de gênero e consolidariam a distinção entre “natureza feminina” e “natureza masculina” em pólos excludentes e opostos. Elas nos fazem perceber que as especificidades de gênero são construídas ao longo das diferentes etapas da vida. Os atributos que configuram a masculinidade e a feminilidade vão sendo apresentados, distintamente, a meninos e meninas, desde a infância, a fim de que estes comecem a assimilar e se comportar de acordo com o que é/será esperado socialmente de homens e mulheres ao longo de suas vidas. Assim, o sistema binário do gênero vai sendo constituído a partir das vivências cotidianas com o grupo familiar através de atos performáticos constantemente reiterados, tais como a hierarquia do núcleo familiar (papéis materno e paterno), as brincadeiras demarcadas, especificamente, “para meninos” e “para meninas”, a vigilância dos pais sobre os horários das brincadeiras, o controle das escolas a respeito das vestimentas e dos modos de se comportar, sobretudo, das meninas e os cuidados e controles frente aos namoros juvenis. Entretanto, se algumas vezes o sistema de demarcações dos papéis de gênero aparece polarizado e fixo, em outras projeta mudanças e mobilidades forjadas ao longo da passagem do tempo nas práticas cotidianas, perceptíveis no modo de criação dos filhos, netos e bisnetos, nos valores e concepções que contemporaneamente circulam entre as variadas gerações. Desse modo, em alguns casos a flexibilização destes papéis é ressaltada como positiva e em outros como negativa. Essa avaliação depende, em suma, dos referenciais (religiosos, familiares e morais) que direcionam as vivências de Rosário, Joana, Francisca e Rosa. 18 5. REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004. 2ª ED. ALVES, Branca Maria Moreira; ROMANI, Jacqueline Pitanguy de; BARSTED, Leila de Andrade Linhares; HEILBORN, Maria Luíza; RIBEIRO, Mariska e BOSCHI, Sandra. Sexualidade e Desconhecimento: a negação do saber. In: Vivência – História, Sexualidade e Imagens Femininas. 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