Trabalho - Sintese Eventos

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE E
PRÉ-ALAS BRASIL.
04 a 07 de setembro de 2012,
UFPI, Teresina.
GT 10 - Relações de Gênero e entre as Gerações.
Papéis de Gênero na Passagem do Tempo: vivências de mulheres idosas
em São Luís – MA.
Autor: Carla Maria Lobato Alves.
Universidade Estadual do Maranhão - UEMA.
[email protected]
Papéis de Gênero na Passagem do Tempo: vivências de mulheres idosas
em São Luís – MA.
1. Introdução
Este estudo é constituído por narrativas de quatro mulheres que tem
atualmente entre 61 e 76 anos de idade, consideradas velhas ou idosas1, cujo
objetivo consiste em analisar mudanças e/ou permanências nas relações de
gênero tendo como foco de análise as vivências no casamento, criação e
orientação de filhos, cuidados com a saúde, conhecimento das mudanças
corporais e práticas da intimidade.
Nesse sentido, Joana, Rosa, Rosário e Francisca2 constituíram-se,
voluntariamente, como importantes colaboradoras deste estudo que busca
compreender, a partir da fala dos próprios sujeitos, como significam
experiências vividas nas relações com suas famílias de origem e com aquelas
geradas a partir de suas parcerias conjugais e amorosas.
São mulheres que, atualmente, participam de grupos de terceira idade,
na cidade de São Luís – MA, como a UNITI (Universidade da Terceira Idade) e
o GEN (Gerenciamento do Envelhecimento Natural), casaram somente uma
vez, tiveram filhos, netos e uma delas hoje já tem bisnetos. Duas são viúvas e
as outras duas são casadas. O fato de terem se casado somente uma vez,
bem como de duas delas serem casadas e das outras duas serem viúvas,
foram coincidências que surgiram no processo investigativo e não situações,
propositalmente, estabelecidas.
Estas instituições foram escolhidas devido ao contato existente com
uma das interlocutoras, por meio de uma pesquisa anterior. A partir destes
1
Na década de 1960, o termo “idoso” foi trazido da França para o Brasil pelo Gerontólogo
Marcelo Salgado com a finalidade de substituir o termo “velho” dos documentos oficiais em
referência aos sujeitos com idade superior a 60 anos (MASCARO, 2004). Neste estudo
adotarei o termo idoso para me referir aos sujeitos que também são categorizados como
“velhos”, “terceira idade”, “melhor idade”, entre outras denominações.
2
Os nomes destas mulheres e de seus familiares são fictícios, decisão tomada conjuntamente
para que o sigilo fosse mantido.
2
contatos foram mantidas visitas e participações nos referidos grupos com a
finalidade de explicar nossa pesquisa e conversar com outras componentes
que, posteriormente, somar-se-iam ao nosso quadro de interlocutoras.
Contemporaneamente as instituições e os especialistas planejam suas
ações e criam programas, aulas de dança, ginástica, informática, universidades
e outras atividades voltadas para os que estão inseridos numa faixa etária que
passa a ser designada como terceira idade. Propõem uma nova maneira de ser
velho. Nesta perspectiva destacam-se a UNITI e o GEN, uma vez que seus
discursos oficiais envolvem ações para seu público alvo, denominado de idoso
e não mais velho3.
A UNITI, localizada no campus do Bacanga da UFMA (Universidade
Federal do Maranhão), foi criada em 1996. A instituição realiza processo
seletivo anual que oferece 150 vagas, mas nem todas são preenchidas. As
atividades, divididas em dois semestres, iniciam conforme o calendário
acadêmico da UFMA. Dentre algumas das disciplinas oferecidas têm-se
Noções Básicas de Gerontologia Social, Concentração e Memória, Terapia
Ocupacional, Nutrição, Lazer na Terceira Idade e algumas das oficinas são
Artesanato, Fitoterapia, Informática.
GEN, localizado nas dependências do Hospital Estadual Dr. Carlos
Macieira, foi criado em 2001. O Grupo oferece atendimento médico em
diversas especialidades (geriatria, cardiologia, ginecologia, urologia, nutrição,
terapia ocupacional, fisioterapia, entre outras), além de orientar quanto ao
processo do envelhecimento e buscar a longevidade com qualidade de vida.
Atende funcionários públicos aposentados do Estado do Maranhão, e/ou seus
dependentes, neste caso, exclusivamente o (a) cônjuge, com idade superior a
60 anos. Além de atendimento médico-ambulatorial conta com reuniões
semanais realizadas na sede do Programa de Apoio ao Idoso (PAI), que
oferecem oficinas de Tai Chi Chuan, Dança, Artesanato, Pintura, Ginástica,
Hidroginástica e Natação e etc.
3
A categoria idoso é, em geral, trabalhada por algumas instituições na medida em que visam
promover uma mudança na concepção da velhice. A gerontologia é o estudo multidisciplinar da
velhice que, segundo Guita Debert (2004), engloba profissionais de diferentes áreas
interessados em relacioná-la às questões políticas, econômicas, culturais, sociais e de saúde.
3
2. Interlocutoras e Suas Narrativas
Para o estudo em questão considerei pertinente a articulação entre
História de Vida e Memória, enquanto recurso teórico-metodológico, pois
através da rememoração dos sujeitos podemos apreender modos de pensar,
comportar e múltiplas visões de mundo através da escolha de acontecimentos
elegidos como significativos sobre diversas passagens de suas vidas.
Nesse sentido, a técnica de História de Vida permite resgatar e ativar
reminiscências que, segundo Regina Faria e Antônio Montenegro (2005, p.21),
trazem seleções de “contornos, imagens, emoções, desafios, sonhos, desejos
realizados ou não, vitórias e derrotas”, à medida que se remetem às
experiências passadas, presentes e projeções futuras. Também permite captar
indicadores do contexto social e das redes de sociabilidade das quais
participaram/participam os sujeitos que ora narram.
Atentar para as narrativas e interpretá-las, cuidadosamente, sem perder
de vista que são vários os sentidos atribuídos pelos sujeitos que as constroem,
requer utilizar a memória enquanto instrumentação metodológica e, ainda,
como fundamentação teórica. Nessa perspectiva, Maurice Halbwachs (2006) é
um autor importante na medida em que, em seus estudos, enfatiza fortes
vínculos entre as rememorações de experiências vividas individualmente e os
grupos sociais nos quais os sujeitos vivenciam tais experiências.
Rosa, Francisca, Rosário e Joana registram recordações que estão
apoiadas no processo de interação com os indivíduos e grupos sociais (família,
escola, igreja, trabalho), nos quais estão presentes “os outros” com quem
conviveram e construíram memórias coletivas, o que se aproxima das
assertivas de Halbwachs (2006).
Ao percorrerem os caminhos trilhados, ao longo da passagem do tempo,
estas mulheres ressaltam os movimentos de avanços e recuos da memória,
pois o ato de rememorar não é linear ou cronológico, perspectiva corroborada
por Ecléa Bosi em “Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos” (2004), pois
em várias oportunidades, Rosa, Francisca, Rosário e Joana invocam
4
lembranças presentes e recorrem às vivências do passado quando avaliam,
exemplificam, criticam, censuram ou reforçam modos de agir e pensar.
Trabalhar com história de vida possibilita ainda que os narradores
contem livremente os fatos que lhes forem despertados nos processos de
rememorações. Conforme recomenda Verena Alberti (2004), o pesquisador
deve elaborar um roteiro preliminar de apresentação para evitar perguntas a
todo o momento e assim, interromper constantemente o fluxo das
rememorações. Entretanto, algumas poucas intervenções podem ser feitas na
medida em que as questões apontem ou encaminhem para outros focos das
vivências. Walter Benjamim (1994), contudo, destaca que nada do que relata o
narrador é considerado perdido para a história ainda que os significados variem
de importância para o pesquisador e o sujeito que narra. A narrativa difere da
informação. Esta é breve, e, em geral, contada do mesmo jeito por diferentes
pessoas, enquanto a narrativa pode durar muito tempo e ser contada
diferentemente por diversas maneiras.
3. Papéis de Gênero e a Passagem do Tempo
Seguindo estas orientações, deixei Rosa, Francisca, Joana e Rosário
narrarem livremente, sendo poucas as minhas intervenções4. Aos poucos elas
reúnem elementos sobre faixa etária, local de nascimento, profissão exercida
pelos pais, escolaridade cursada, profissão exercida, tempo de residência em
São Luís, estado civil e relacionamentos amorosos, privilegiando o papel
significativo do relato das histórias de vida, nas quais os sujeitos recortam
aquilo que lhes pareça mais significativo. Desse modo, elas se apresentam:
Eu não sou daqui do Maranhão. Eu sou do Piauí, Teresina, né , aí eu nasci no dia 30 de
Agosto de 47. Em Teresina. Eu vim pra cá conhecer o Maranhão. E com dois meses que
eu tava aqui no Maranhão, eu namorei, noivei e casei. Uma irmã minha veio pra cá
porque o marido era do Exército, aí se aposentou lá, reformou, e aí veio pra cá. Aqui
ela teve nenê e quando...ela pediu pra mamãe: “Mande uma das meninas aqui pra me
ajudar”. Aí mamãe mandou a outra irmã, mas ela disse: “Mamãe, eu mesma que não
vou”. Eu disse: “Eu vou mamãe!”. E eu vim. Eu fui criada por minha avó. Minha mãe me
deu pra minha avó me criar com dois meses de nascida. Não fui criada em Teresina,
fui criada em União [PI]. Meu pai era lavrador e tinha um comercio. Minha mãe era
4
Utilizo fonte diferenciada nas narrativas com o intuito de destacar e diferenciar estes trechos
do restante do texto. As informações contidas em alguns colchetes são alguns esclarecimentos
que faço sobre o que vem sendo narrado por estas mulheres.
5
dona de casa. Papai prometeu pra ela: “Mamãe, nessa próxima barrigada eu vou lhe
dar”. Bem assim, desse jeito. Eu nasci e com 2 meses ela me levou. Eu estudei no
colégio das freiras, lá mesmo em União. O colégio era semi-interno. Fiz o primário e
depois ela se mudou pra Teresina por causa de mim, pra eu estudar. Eu fiz até o
segundo ano ginasial. Foi o tempo que eu parei, casei e agora eu queria continuar, mas
não podia com os filhos tudo pequeno. (Francisca - 64 anos, mulher branca, reside em
São Luís há 38 anos, atualmente no bairro Cohab).
Eu tenho 71 anos. É difícil hoje em dia alguém chegar nessa idade. Eu nasci no Piauí,
na capital Teresina. Eu vim pra cá, minha mãe disse, que com 4 anos. Eu vim com
meus pais e meus irmãos. Nós éramos quatro irmãs e a mais nova veio com 11 meses.
Eu era a segunda das filhas. Meu pai veio pra cá transferido. Ele era jogador. Ele
chegou aqui e mandou buscar a gente...a família era nós e minha avó. A minha
criação foi muito rígida. Meu pai não queria que a gente fosse nem na janela!! Quando
a gente avistava e dizia: “Lá vem papai!”, ele já dizia “O que tu já tá fazendo na
janela? Entra logo!”. Ele não deixava a gente sair.A minha mãe trabalhava numa
fábrica, a Fabril. A minha mãe trabalhava e chegava em casa só a noite. Então quem
me criou mais foi minha avó. Ela criava assim....Não queria pra gente fazer nada, né?
Ela queria fazer tudo e minha mãe chegava às vezes na hora do almoço só pra comer
e saía de novo pra fábrica. Quando ela vinha na hora do jantar, era jantar e dormir.
No outro dia ela ia pro serviço. Há 4 anos sou viúva. Eu tive cinco filhos, mas morreu
um e ficaram quatro. São dois casais. Todos são casados. Eu fiz até a 6ª porque meu
marido era igual meu pai. Não deixava sair, não deixava estudar. Ele dizia que quem
quisesse estudar não tinha casado. Ele não deixou eu terminar os estudos. Eu
casei....deixa eu ver.....eu casei com 17 anos. (Rosário - 71 anos, mulher negra, reside
em São Luís há 66 anos, atualmente no bairro Vila Palmeira).
Bom, eu nasci em Penalva, na cidade de Penalva, Maranhão, só que nem eu mesma
conheço a cidade porque eu nasci e meus pais se mudaram logo de lá, eu era muito
pequena, e eu nunca mais voltei lá. Porque eu estudei na cidade de Monção, também
uma cidade da Baixada, porque tinha uma professora de preferência de todos os pais,
que queriam que as crianças estudassem com ela. Por conta disso meu pai se mudou
pra onde ela veio morar, que foi em Monção. (....) Aí, lá que eu fiz o meu primário até o
quinto ano na época. Aí terminou o primário e tudo e meu avô se mudou pra Santa
Inês, aí eu fui pra Santa Inês...eu já tinha quatorze anos. Aí de lá, em Santa Inês, eu
fiquei até...eu comecei a trabalhar, me casei, tenho seis filhos. Me casei muito nova,
com dezoito anos, mas graças a Deus fui muito feliz, tenho os meus seis filhos. (Rosa -
76 anos, mulher negra, reside em São Luís há 35 anos, atualmente no bairro Bequimão).
Eu tenho 61 anos. Eu nasci em Cururupu, cidadezinha daqui do Maranhão. Eu vivi lá a
minha infância.....praticamente a infância toda lá. Quando eu vim pra cá eu já tinha
18 anos. Eu vim pra casa de parente. Eu vim estudar aqui e fiquei na casa de parente.
Até porque.....lá o estudo era fraco, e meu pai era de pouca condições, então eu
morava na casa de parente aqui. Vim pra estudar, pra continuar estudando. Só fiz até
o segundo grau. O meu pai era pescador. A minha mãe, dona de casa e ajudava
também. Ela ajudava assim na roça, mas ela não era de trabalhar direto na roça. Ela
dava sempre uma ajuda porque meu pai além de trabalhar na pescaria ele também
trabalhava na roça. Era mais a farinha, pro nosso consumo. Não era pra ele vender
ou....viver só daquilo. Ele tinha...da pesca era pra ele vender. Ele vendia. Passava 15
dias fora de casa pescando aí voltava por 15 dias, aí tornava a voltar. Aí nesse
intervalo ele ia na roça, ele fazia um pouco de farinha pra gente não ter que comprar.
Eu vim pra São Luís. Eu morava no Bairro de Fátima junto com uma prima do meu pai.
Aí depois essa minha prima ela foi pra Belém [Pará]. E eu fiquei aqui no São Francisco
na casa de outra prima. Tava terminando o Segundo Grau quando eu engravidei.
Terminei o colégio e o que é que eu fiz? Eu fui embora pro interior. (Joana - 61 anos, é
branca, reside em São Luís há 38 anos, atualmente no bairro São Francisco).
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Nestas primeiras lembranças aparecem personagens e situações
significativas como as experiências com suas famílias de origem, os arranjos
familiares de outrora, as recordações da escola, do trabalho. Como já
aparecem nas lembranças da infância, o núcleo familiar é marcado pela
distinção hierárquica de papéis, nos quais, em geral o pai aparece como o
personagem que encarna a autoridade maior e a mãe aparece como aquela
que gerencia o lar, cuida dos filhos e filhas e toma as decisões consideradas
importantes na educação destes.
O pai de Rosário controlava os filhos mais que do que a mãe, talvez
porque esta trabalhasse na fábrica e passasse o dia todo fora de casa, o que
desconstrói a concepção de que todas as mulheres viviam dentro do lar
assistidas por maridos provedores. Assim, coube à avó paterna o cuidado dos
netos. Delegar os cuidados de uma criança às mulheres, situação que parece
ser bastante comum no contexto das décadas de 1940 a 1960, reforçava a
noção de que aquelas saberiam cuidar destes “naturalmente”, como se uma
das condições primordiais de ser mulher fosse a de ser predestinada a cuidar
dos filhos e do marido. Também é importante destacar que nos casos em que
as mães trabalhavam fora de casa, como é o caso da mãe de Rosário, avós
e/ou tias assumiriam cuidar das crianças.
De acordo como Margareth Rago (1985) no período de 1890 a 1930
todos os discursos voltavam-se para priorizarem a ocupação das mulheres com
a atividade da educação, com a formação do caráter das crianças com a
destilação de valores morais, concebendo-se, a partir de então, a maternidade
como traço da “natureza feminina”.
Jurandir Freire (1994) afirma que discursos produzidos pela medicina
higienista no Brasil do século XIX afirmavam que a vocação natural das
mulheres seria a maternidade, de acordo com suas disposições físicocorporais. Nesta construção, vai se consolidando uma distinção entre “modelo
de homem” e “modelo de mulher”, “natureza masculina” e “natureza feminina”,
como pólos opostos e excludentes que embora tenha se disseminado como a
“norma”, “o modelo” tenham encontrado, em contraposição, a muitas outras
7
formas práticas de convivência familiar nas mais diversas camadas sócioeconômicas.
As narrativas continuam e enfatizam a configuração de um sistema
binário de relações de gênero que, em geral, preconiza o masculino e o
feminino a atributos demarcados como opostos e excludentes, sobretudo na
vivência conjugal.
A minha vida foi dentro de casa cuidando de menino porque casei e com um ano de
casada já tinha filho. No outro ano, outro filho. Ainda não tinha nem feito um ano!! A
minha vida....eu perdi minha mocidade, pra completar, cuidando de meus filhos.
Nunca paguei ninguém. Nunca levei filho pra casa de mamãe pra ela cuidar. Eu aqui
nessa casinha criei meus filhos tudinho. Todos eles. Fui mãe e pai dos meus filhos. O
marido saía de manhã pro serviço, almoçava pra lá mesmo. Eu é que ia pra colégio, eu
é que ia pra reunião, eu é que ia pra todo lado com meus filhos. Então, eles são mais
apegados a mim do que ao pai (risos). (Francisca).
Rosário também enfatiza:
Meu marido não queria pra mim trabalhar, nem terminar de estudar. Se eu quisesse
estudar que não tivesse procurado marido e casado. Era pra cuidar dos filhos. E eu
não estudei mais, nem trabalhei. Não queria pra mim estudar, nem fazer nada...nem
trabalhar. Aí, mesmo assim, eu trabalhava em casa, eu fazia unha, eu costurava e
ajudava ele, mas tudo em casa. Aí eu comecei a fazer cursos e com isso aí ele não se
importava. Eu fiz curso de cabeleireiro, de manicure. Nesse tempo no SENAC não se
pagava nada, era grátis. Eu fiz lá. Ele não queria que eu trabalhasse porque ele disse
que ele conhecia e via como era esse negócio de patrão com empregada, que tomava
gosto e até meu pai também falava isso. Ele não queria pra mim trabalhar porque ele
trabalhava numa repartição e sabia de patrão que ficava tomando gosto. E ele dizia:
“Não, mulher minha não vai trabalhar!” (Rosário).
Rosa acrescenta:
(...) Na família é uma coisa muito importante esse controle, essa firmeza, saber os
deveres que a mãe deve ter. Esses deveres são distintos, mas muitas vezes a mãe
absorve. No meu caso foi assim. O Fernando [marido falecido] sempre deixava a meu
critério. Ora, reunião de pais e mestres? Nunca o Fernando assistiu uma. Eu sempre
falava: “Os meninos só tem mãe?”. Ele dizia que eu estava mais inteirada, mais
próxima, que cuidava mais deles. A educação maior dependeu de mim mesma. Ele
dava apoio e tudo. (Rosa).
Estes relatos realçam modos de construção e atribuição dos papéis de
gênero num sistema de marcação que parece como fixo e sem mobilidade,
cujo vetor é a naturalização da diferença sexual. Esta marcação distinta entre
masculino e feminino é, conforme afirma Judith Butler (2003), construída por
atos, gestos e significações constantemente reiteradas e o espaço privado
8
aparece nas narrativas como privilegiado para a construção da feminilidade via
divisão de tarefas.
Francisca também apresenta as maneiras de expressão do corpo que,
em conformidade com os padrões sociais de conduta das décadas de 1940 e
1950, orientavam modos e qualidades socialmente esperados das mulheres
através do processo de socialização.
Até roupa naquele tempo era diferente. Eu tinha um vestido, que o zíper era de lado e
às vezes ele abria um pouco e isso causava a maior coisa se o corpo aparecesse.
Precisava ver....minissaia, vestido cavado, era tudo coisa das mulheres lá de baixo,
que eles chamavam de mulher da vida. Nesse tempo o Quartel era lá embaixo, lá na
Vinte e Oito 5. Meu marido trabalhava lá no Quartel, nesse tempo, na Polícia
(Francisca).
Segundo esta rememoração, era necessário que as mulheres tivessem
consciência de que a conduta social mantida diferenciava as mulheres em
mulheres virtuosas e mulheres devassas. Usar roupas provocativas, por
exemplo, poderia associar às mulheres à fama “de leviana, namoradeira,
vassourinha ou maçaneta (que passa de mão em mão), enfim, de garota fácil”
(BASSANEZI, 2007, p. 612) (Grifos da Autora).
Carla Bassanezi (1996 e 2007) e Sandra Sousa (1998) apresentam
algumas seções e colunas de revistas e jornais que eram destinadas às
mulheres e circularam, em caráter local e nacional, entre as décadas de 1940 a
1960. Essas publicações transmitiam mensagens que reforçavam o controle
sobre as mulheres no que se refere às roupas consideradas provocativas, à
vaidade, aos cuidados dedicados com decoração da casa, às leituras
aconselháveis, ao modo de se comportar frente ao namoro, casamento, criação
de filhos e possíveis relações extraconjugais dos maridos6.
5
A Zona de Baixo Meretrício (ZBM) de São Luís ficava localizada no centro da cidade. As
chamadas pensões eram gerenciadas pelas madames e reuniam muitas mulheres, que nos
dias de hoje são denominadas de profissionais do sexo, em casarões localizados em sua
maioria na Rua Afonso Pena, Rua da Palma, Rua 28 de Julho e Rua da Estrela. Algumas
daquelas pensões mais conhecidas foram a Pensão da Maroca e a Pensão da Lolita.
6
Jornal das Moças, Querida, Você, Vida Doméstica, O Cruzeiro e Revista Feminina foram
algumas das revistas de publicação nacional estudadas por Carla Bassanezi (2007). A Página
Feminina (1950), do jornal O Imparcial; O Diário nos Assuntos Femininos (1952), do Diário
Popular; Suplemento Feminino (1959), do Diário da Manhã, A Coluna Feminina (1960), do
Jornal do Dia e o Jornal do Povo (1963) foram algumas das seções e colunas jornalísticas
maranhenses analisadas por Sandra Sousa (1998).
9
Ficava mal à reputação de uma jovem, por exemplo, usar roupas
muito ousadas, sensuais, sair com muitos rapazes diferentes, ou ser
vista em lugares escuros ou em situação que sugerisse intimidades
com um homem. Os mais conservadores ainda preferiam que elas
só andassem com rapazes na companhia de outras pessoas –
amigas, irmãos ou parentes, os chamados seguradores de vela
(BASSANEZI, 2007, p. 612).
Grande parte daquelas publicações legitimou socialmente a construção
dos papéis de mãe e esposa, o que reforçou a concepção de que às mulheres
caberia ao âmbito privado7. Não destoando das orientações contidas naqueles
jornais e revistas, Rosário e Francisca contam, a seguir, alguns dos cuidados
com aparência física e beleza que socialmente são associados como
marcadores da feminilidade
Tem uma colega da minha neta que veio aqui e perguntou se eu tinha 70 anos, porque
eu sou dura. Não aparento!(risos). Minha neta diz que eu sou toda vaidosa! E eu passo
uma coisinha no rosto, uns cremes, um batom leve, porque eu nunca gostei de batom
forte, só mesmo pra mudar a cor. Passar um perfume eu também gosto. Pintar meu
cabelo! Desde moça que eu pinto meu cabelo (risos). Tem vezes que eu gosto de fazer
uma limpeza de rosto. Eu uso produto da Avon e da Jequiti, e também vendo. Eu vendia
tudo que era cosmético, mas agora só esses. Então eu tô nesse meio e uso. Uso
perfume, uso creme, hidratante. Isso tudo eu uso. Eu sou vaidosa, mas tem muitas
mulheres que perdem a vaidade. Tem senhora que não gosta, fica mesmo natural.
Agora eu, desde nova, uso. Eu gosto de me arrumar. Gosto de usar secador. Gosto de
rímel, mas só daquele transparente. Ele é bom porque não mancha. (Rosário).
Ontem a colega ligou dizendo que não ia ter aula, aí eu fui na casa da minha irmã,
aqui no Angelim, levar uma calça pra ela ajeitar. Eu tô chegando e outra colega liga
perguntando se eu não vou pra aula. Eu estranhei porque me avisaram que não ia ter,
mas na mesma hora mandei minha irmã descer e nós pegamos o ônibus correndo.
Ainda chegamos lá pelas 15:00 horas e tava todo mundo já no auditório e as colegas
guardaram nossos lugares lá. Quando eu cheguei todo mundo ficou me olhando porque
eu fui mais arrumada né. Na verdade eu tava indo pra casa da minha irmã, aí ligaram
dizendo que ia ter aula, fui assim mesmo. Eu sempre fui vaidosa, quer dizer, desde
novinha não, mas depois, quando eu tava já saindo com minha irmã, eu me arrumava
mesmo. Eu fazia até sinal de lápis no rosto (risos). Hum...tudo pra ficar bonita. Eu sair
de casa sem pintura e sem perfume, é a mesma coisa de que eu tá nua, nua, nua.
Tenho que sair arrumada, direitinho. Eu não gosto de vestido, mas uso um ou outro
quando me dão. Não gosto de saia, é usando bermuda o tempo todo, ou então calça.
Uso minhas roupinhas e não to nem aí, mas menino....hum! Eu uso o que eu gosto.
Quando vou sair é usando cheia de balangandãs, mas eu gosto (risos). (Francisca).
Estas mulheres citam quais são as coisas que mais lhes despertam
interesse no cuidado de seus corpos. Percebo que acessórios e roupas da
7
Contrariando esta perspectiva, Michelle Perrot (1989) e Maria Bernardete Flores (1995)
afirmam que as memórias das mulheres podem revelar acontecimentos significativos que se
referem à conjuntura política, social e/ou econômica.
10
moda, modelos de cortes de cabelo, maquiagem e outros produtos de beleza,
são alguns dos recursos que foram socialmente constituídos como sendo
próprios para as mulheres, consolidando a concepção de que eram assuntos
que somente interessariam a elas e reforçando a perspectiva de uma “natureza
feminina”. Esta perspectiva vem sendo modificada contemporaneamente,
sobretudo, pelos homens das gerações mais novas que já apresentam
interesse frente a alguns daqueles elementos, a exemplo de algumas
reportagens transmitidas na mídia televisiva. Com isso se percebe um pouco
da flexibilização que os papéis de gênero tiveram nas últimas décadas, embora
estas duas perspectivas ainda (co)existam.
Tais cuidados com a expressão do corpo podem ser considerados como
um dos atos ou gestos performáticos, ressaltados por Judith Butler (2003), que
não são simples singularidade. São, na verdade, todos os atos que são citados
e reiterados constantemente e elencam traços marcadores da feminilidade em
oposição à masculinidade.
Como notamos, a socialização de homens e mulheres naturaliza traços
da masculinidade e feminilidade em identidades opostas num sistema de
relações heteronormativas. De acordo com Branca Moreira Alves et al. (1980),
a identidade feminina foi caracterizada por alguns atributos, tais como timidez,
docilidade, fragilidade, pureza enquanto que a identidade masculina foi
caracterizada pela coragem, tenacidade e virilidade. Outros elementos que
configuram a identidade feminina estão atrelados ao desconhecimento a
respeito da sexualidade e das transformações corporais que acontecem com
as mulheres. Nesse sentido, sentimentos como medo, vergonha e insegurança
expressariam um pouco do que as mulheres pensariam a respeito, por
exemplo, da primeira menstruação, das experiências erótico-sexuais vividas
com namorados, maridos e/ou parceiros e da menopausa.
Os relatos de Joana, Rosário, Francisca e Rosa sobre o momento de
sua primeira menstruação também são marcados tanto pelo desconhecimento
quanto pelas recriminações e ocultações que, em geral, as mães faziam sobre
aquele momento.
11
Eu sempre fui muito retraída. É até um avanço eu sair agora com o Sr. Luís. Outra
coisa que não se falava era sobre menstruação. Nessa época minha mãe foi muito
calada. A não ser com alguma colega que a gente falava e eu com muita vergonha de
perguntar. Eu não tinha coragem assim... e depois o pessoal podia falar: “Essa menina
tão saliente. Quer saber das coisas antes do tempo”. Então, eu me reservava. Fiquei
esperando. Menstruei com treze anos, aí falei pra mamãe e ela disse: “Não, isso é
assim mesmo. A menina tem que ficar moça. Agora você é moça”. Aí tinha as
recomendações: “não comer isso, não comer aquilo. Não podia comer limão, não podia
comer azedo”. Era tanta coisa (Rosa).
Acho que foi com 15 anos que eu menstruei. Não se conversava sobre isso não. Nada,
nada. Nunca. Minha mãe não falava e meu pai, piorou. Eu fui criada assim, sem saber
nada. Quando eu menstruei, eu pensava que tinha me cortado. Eu pensava que era
corte e perguntei pra uma prima minha, também naquele tempo, não sabia o que era.
Ninguém respondia quando a gente perguntava, tinham vergonha de falar (Rosário).
Eu acho....eu não tenho certeza, não tô lembrada, mas acho que foi na idade de 13
anos que eu menstruei. Foi nessa faixa. A minha mãe sempre teve vergonha de contar
as coisas. Conversar com a gente, se abrir com a gente. Ninguém contava, era assim
como algo vergonhoso. Eu não sabia de nada. Eu lembro assim porque quando eu
menstruei eu não sabia nem o que é que era. Quer dizer, não sabia entre aspas,
porque eu já olhava minha mãe aqui e acolá, visto que elas usavam panos, não era
absorvente. Eu olhava e criança sempre é curiosa e eu perguntava, mas elas não
queriam nem responder o que é que era aquilo. Quando elas respondiam, respondiam
errado. Era assim: “Ah, isso aí. Isso é meu. É que eu uso e tudo...”, mas não dizia o que
era, qual era a finalidade. Aí quando eu menstruei eu me assustei. Eu não sabia o que
é que era, mas tinha mais ou menos a idéia, já imaginava né? A gente conversava, eu
e minhas primas. Às vezes as primas mais velhas, que menstruava primeiro, contava
que nós iríamos passar por isso. Porque do jeito que era minha mãe, eram minhas
tias. E nos primeiros dias eu escondi. Eu fiquei escondida, toda sem jeito. Depois que eu
falei pra minha mãe e ela ficava com vergonha. Ela não olhava nos meus olhos.
(Joana).
Foi de 15 pra 16 anos que eu menstruei. Foi perto, um pouco depois que minha avó
morreu. Todo mundo lá de casa falava pra minha avó pra ela me dar um remédio
caseiro que eu com 15 anos não tinha vindo nada. E ela não me dava, dizia que na
hora certa viria. E de lá pra cá nunca passou de três dias. Nunca, nunca, nunca. Não
sei nem o que foi cólica (risos). Quando eu pensava que não, minha roupa já tava suja
e eu me espantava: “Vixe, já?” (risos). Agora ninguém falava nada. Minha mãe mesmo
não falou. Minha avó também, ela era uma cabocona do interior e não gostava de
falar dessas coisas. A gente acabava aprendendo era com as colegas (Francisca).
As narrativas de Rosa, Joana, Francisca e Rosário demonstram que
falar sobre menstruação, bem como manifestar alguma curiosidade sobre a
sexualidade era um comportamento desaprovado às mulheres no contexto das
décadas de 1940 e 1950. Estas mulheres contam que tinham medo de
perguntar e contar que tinham menstruado, porém o desconhecimento sobre o
assunto não era total, visto que as informações chegavam até elas
observando, aqui e ali, que o mesmo acontecia com suas mães e tias. Tinham
uma breve idéia do que poderia ser, mas sempre que perguntavam; as
respostas geralmente eram evasivas. As reações das mães, avós e tias,
12
envoltas de mistérios e segredos, acabaram por consolidar ideais de pureza e
inocência ao comportamento socialmente esperado das mulheres como
“essências” ou “naturezas” biologicamente determinadas, no que se refere às
vivências da sexualidade.
No que se refere às primeiras experiências sexuais, Rosário e Joana
burlaram o que era considerado como comportamento normativo das mulheres,
para o contexto nas décadas de 1940 e 1950, ao narrarem que as tiveram com
namorados. No caso de Joana, as experiências com um namorado ocasionou a
gravidez do seu primeiro filho. Sua narrativa ressalta que ser mãe solteira
representaria uma ofensa social e desonra para famílias daquela época.
Nesses casos, era muito comum que as moças escondessem a gravidez como
estratégia para adiar uma possível reprovação social.
Eu tive relações antes de casar, mas..... Foi com o primeiro namorado, eu tinha 16
anos. Eu não casei porque ele foi embora. Ah, mas meu pai quase me mata e me batia.
Foi horrível. Eu nunca fiquei grávida ou tive filho, mas quando eu fui casar eu contei
pro meu futuro marido, pra não dizer que eu tinha enganado. Se enganasse era pior.
Nesse tempo era ruim! Não tomei nada porque eu só fiz essa vez mesmo. Só foi aquela
relação e acabou, não vi mais ele. Também fiquei escondida, sem falar nada (...)
Depois que eu arrumei esse namorado, que eu contei pra ele, ele foi e contou pra
minha mãe. Aí foi aberto e ele disse que queria casar comigo, que ela não se
preocupasse que eu não ia ficar prejudicada. E foram 46 anos de casados (Rosário).
Quando eu descobri que tava grávida, eu escondi. Eu passei cinco meses grávida e
escondendo. Ninguém sabia. Eu acredito que como era a primeira gestação, eu não
tinha quase barriga. E eu apertava, né. Amarrava um pano pra ninguém saber. Aí
depois ficou muito difícil pra mim, porque o povo ia falar: “Ah, é mãe solteira. Não vai
morar com o pai do filho dela (em tom de reprovação)”. Não contei nada e quando ele
foi saber.....assim, eu morava aqui na época, que eu estudava aqui, tava terminando o
Segundo Grau quando eu engravidei. Terminei o colégio e o que é que eu fiz? Eu fui
embora pro interior e quando ele soube eu já tinha tido a criança lá. Ele nunca
procurou assim....e também eu não quis mais, não quis mais....não procurei
aproximação. Ele sabe, conhece, mas eu também nunca procurei. Eu assumi. Eu
trabalhava e eu mesma assumi. Eu trabalhava lá mesmo no interior. Eu ganhava
pouquinho, mas dava e com a ajuda dos meus pais fui levando. (...) Eu tive um
namorado lá em Cururupu. Foi mais ou menos um ano, um ano ou pouco mais de um
ano que a gente namorou. E quando eu vim pra cá que eu conheci o pai do meu
primeiro filho. Eu tinha 16 anos quando perdi a virgindade, mas não foi com o pai do
meu filho mais velho. Foi com o de lá [Cururupu]. Nos não chegamos a morar juntos.
Naquela época ninguém conversava, era cheio de dúvidas. É como eu falei, a gente
tinha até medo de tocar no assunto. A gente não tinha orientação nenhuma. Falar
nisso aí era...sobre relações....não se tinha nem conhecimento. Naquela época era um
problema ser mãe solteira. Tinha muito problema, e como tinha! Por isso que os pais
tinham tantos cuidados (Joana).
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Por outro lado, seguindo os conselhos e normas sociais daquela época,
Francisca e Rosa contam que tiveram suas primeiras experiências sexuais com
rapazes que se tornaram seus maridos somente após o casamento.
Eu casei logo. Foi rápido, dois meses. Namorei, noivei e casei. Eu tinha umas
paquerinhas de longe, de longe na época, mas minha filha esse aí foi meu primeiro
homem fixo, com que eu perdi a virgindade, com ele que eu casei, com ele tive meus
filhos. E tô aqui, ano que vem, o outro, tô fazendo quarenta anos de casada
(Francisca).
Eu trabalhava na loja que era dele. Eu era balconista, comerciária. Na época, eu
trabalhava lá e ele era solteiro. A gente teve um namoro e eu tinha muito medo,
justamente, da língua do povo. Isso me comprometia muito, porque eu tinha medo. (...)
Agora desde que ele chegou em Santa Inês, tinha aquele flertezinho, aquele namorico.
Depois que eu fui pra loja dele ficou mais sério e eu fiquei com medo. Eu tinha medo de
me casar e não dar certo. Aí eu tinha medo. Porque ele...a nossa diferença de nível, e
ele um homem já maduro e eu uma menina muito jovem e não tinha conhecimento de
nada. Assim, era muito....precisava de mais conhecimento mesmo. Eu não conhecia
nada da vida. Não tive orientação, não sabia fazer. Não tive....[pausa]. Relações
sexuais era um outro assunto que a mãe da gente não falava. Moçinha não tinha que
saber. Por isso eu era muito ingênua quando me casei. Não tinha conhecimento de
nada. Depois, lendo, que eu vi algumas coisas (Rosa).
Sobressaem-se, nas narrativas, a desinformação e o desconhecimento
sobre a sexualidade. Ao falar que tinha medo que a união não desse certo,
Rosa ressalta sua preocupação com a falta de conhecimento e orientação
sobre o exercício das práticas sexuais. A ingenuidade, registrada em seu
relato, constitui como um dos atributos que são estipulados à conduta das
mulheres frente ao exercício da sexualidade. De acordo com Branca Moreira
Alves et al. (1980), na divisão dos papéis de gênero exigia-se que elas fossem
castas, passivas e inibidas sexualmente para que os homens as envolvessem
e conduzissem nos jogos de prazer e sedução. Desse modo, Rosa e Joana
continuam registrando a “falta de conhecimento” e “’vergonha” ao narrarem
como eram os encontros íntimos com seus maridos:
Eu fiquei viúva de marido vivo, durante muito tempo. O Fernando fumava muito, bebia
muito e por ser mais velho do que eu, ele perdeu a atividade sexual, ele brochava. Aí
ele ficava chateado, mas eu sempre dizia que não tinha nada não, que não era a
principal coisa, quando na verdade é! É uma das principais, mas pra mim ajudá-lo pra
ele não cair em depressão eu ajudava. Na cabeça dele ele queria, mas o membro não
ajudava. Aí não realizava. E nisso passou foi muito tempo. Quando ele morreu, já fazia
muito tempo que a gente era irmão. Que não tinha mais...da parte dele não tinha. E eu
me conformava e acho que também não tinha vontade. Eu não sentia prazer. Não
sabia o que era orgasmo. Só fui saber dessas coisas bem depois, lendo, conversando
com as amigas. No começo ele que ajudava, mas eu ficava muito acanhada. Muito,
muito, muito. Pra te ser sincera, nunca tomei banho junto com ele. Nunca fiquei
despida na frente dele, pelada. Sempre foi assim reservado. Naquele momento e
14
pronto. Ali, era sem luz. Era tudo sem intimidade. Ele não era assim carinhoso, como
eu vejo o povo falando. Às vezes era brusco, muito avançado, mas aí terminava e não
era assim de ter aquele carinho, como eu vejo sobre o preparo, as preliminares. Eu leio
muito sobre isso. Eu olho hoje que passou tanto tempo e ficou por isso (risos). Agora
que eu já tenho o conhecimento e tudo, só falta experimentar mesmo e saber (risos)
(Rosa).
Antes eu também não procurava meu marido. Eu achava que aquilo era vergonhoso,
porque eu fui ensinada assim: “Que o homem que tinha que procurar a mulher”. Então
era vergonhoso se uma mulher procurasse o marido! Era assanhamento! Era isso, era
aquilo. Então eu não procurava porque eu tinha vergonha. Depois, um dia, ele
perguntou pra mim porque eu não procurava ele. Ele chegou e perguntou pra mim se
eu não sentia vontade? Foi aí que eu me abri. Eu disse que sentia, mas tinha vergonha.
Ele disse que eu não devia sentir vergonha. Ai que mudou, melhorou. Antes eu não
tinha coragem de chegar e tomar a iniciativa. Eu tinha que esperar. Eu achava que era
assim, que tinha que ser assim. Porque eu fui ensinada assim. Eu não falava nada.
Hoje já mudou. Hoje eu aprendi que a gente tem que falar o que gosta, o que agrada,
que dá prazer. Tem que dizer o que a gente acha, o que a gente gosta. Hoje em dia
tudo é diferente. A gente vê na televisão, a gente lê. Eu gosto muito de ler. Às vezes
vejo alguma entrevista. É bom se informar e saber mais (Joana).
Estes trechos de relatos registram que estas mulheres foram
socializadas de modo que não revelassem preferências e/ou desgostos nos
encontros íntimos e nem demonstrassem interesse pelas práticas sexuais
comportando-se de maneira considerada ousada, naquele contexto, ao
“procurarem os maridos”. No entanto, ainda é possível perceber uma
flexibilização nos papéis de gênero na medida em que Joana conta que seu
comportamento modificou-se e hoje já toma iniciativa e conversa sobre as suas
preferências nas práticas sexuais com seu marido. Rosa, assim como Joana,
ainda narram que adquiram mais informações sobre assuntos considerados
como da “intimidade” lendo revistas e assistindo matérias exibidas na mídia
televisiva.
Estas mulheres também ressaltam alguns dos problemas fisiológicos
que podem interferir nas práticas da intimidade de pessoas idosas, tais como a
impotência sexual e a menopausa8. Rosário, Francisca, Joana e Rosa
apresentam algumas das complicações vividas com o período da menopausa.
Suas narrativas corroboram das assertivas de Ricardo Iacub (2007). Este
autor destaca que apesar dos sintomas característicos (a diminuição das taxas
hormonais de estrógeno e progesterona, interrupção da ovulação, suspensão
8
Os especialistas da área da saúde destacam que tanto a impotência sexual como a
menopausa podem acontecer em qualquer momento da idade adulta, pois são processos
fisiológicos e, como tais, são difíceis de serem precisados cronologicamente. Assim, algumas
pessoas podem senti-los mais cedo e outras, mais tarde (Butler e Lewis, 1985).
15
do ciclo menstrual, calor excessivo e mudanças abruptas de humor), nem
todas as mulheres os sentirão, uma vez que a menopausa é um processo
fisiológico que comporta variações orgânicas, tal como se percebe nos trechos
a seguir:
E quando eu entrei na menopausa, eu nem sabia. Eu nem fiz tratamento. A minha mãe
também nunca fez tratamento. Nunca ouvi ela falar. Eu me consultei porque eu pensei
que tava grávida. Com 45 anos começou a menstruação a parar, aí eu pensei que tava
grávida. Eu ia até tomar remédio, que minha prima disse que tinha um muito bom pra
descer, mas aí na outra semana veio a menstruação. No dia que eu fui comprar o
remédio, desceu. Ai começou a vir de novo normal, mas tratamento eu não fiz. A única
coisa que eu sinto hoje é uma quentura na cabeça. (...) Agora mesmo, mês retrasado
eu fiz preventivo e a doutora disse que tinha um problema de ressecamento, que não
tava úmida, tava seca né, e passou um remédio. Tinha também uma inflamaçãozinha,
mas aí eu cuidei e tá tudo certo agora. Não tenho coceira, não tenho corrimento.
Quando eu era mais jovem, eu tinha, mas agora parou, não tem nada. Sempre eu faço
também exame de sangue, pra cuidar a saúde. Tem até que marcar. Agora meu
marido não era assim. Ele reclamava que eu só vivia no medico (risos) (Rosário).
Eu sempre tive uns problemas de saúde, mas nessas coisas de mulher não. Por incrível
que pareça, eu não sentia cólica, só tive dor de parto, nem na menopausa eu num senti
nada como eu vejo o povo falando aí de uns calores (risos). Cheguei até a tomar Cálcio,
mas não tomei hormônio. Cálcio eu cheguei a tomar uns três vidros, e pronto. Eu faço
meus exames de rotina e nunca dá nada. Agora eu vou fazer de novo, ne?. Nem
ressecamento na vagina eu sinto, mas sabe por quê? Eu não sinto nada de inflamação
ou de outra coisa porque minha avó, tu sabe o que ela fazia? Ela fazia, fazia não, ela
mandava buscar lá nos matos pra mim comer Jatobá. Eu comia e eu gostava tanto
daquela massinha. Ela é dessa grossura [gesticula mostrando] e quando tá no ponto de
comer você quebra, que a casca é dura, e come normal mesmo (Francisca).
Percebe-se que o processo da menopausa foi marcado pelo
desconhecimento para todas elas. Esta situação se aproxima das idealizações
dos papéis de gênero, destacadas por Branca Moreira Alves et al. (1980),
segundo as quais as mulheres desconheceriam os próprios processos de
mudanças corporais.
Rosa e Joana ainda vivenciaram o período menopáusico com alguns
problemas. O tratamento de reposição hormonal, feito até hoje, ajudaram
Rosa a driblar as complicações que sentia, sobretudo, as hemorragias. Para
Joana, o ressecamento vaginal foi registrado como a maior implicação da
menopausa, interferindo principalmente nas relações sexuais com seu marido,
tal como se percebe:
Tô me sentindo ótima (risos). Com regime e sem passar fome, sem deixar de me
alimentar bem e estou controlando todas as taxas. Agora mamografia também. Eu
faço acompanhamento ginecológico. Já estou com data marcada pra levar resultado
16
de mamografia e ultrasonografia. A mamografia eu faço de ano em ano e a
ultrasonografia faz de seis em seis meses. Acredita que eu entrei na menopausa com
trinta e cinco anos? Isso mesmo. Foi muito cedo, muito precoce. Com trinta e cinco
anos eu já estava na menopausa. Eu sofri muito porque tive hemorragia, mas eu
comecei a fazer o acompanhamento. Daí eu comecei a fazer reposição hormonal. E
isso eu faço ate hoje. Sempre fazendo, então os médicos recomendam que a gente tem
que se cuidar (Rosa).
Eu vim parando aos poucos. Tinha mês que eu menstruava, tinha mês que não. Aí eu
passava três meses sem menstruar e quando eu menos imaginava vinha. Eu não
cheguei a ter....assim.....calor, aquele calor insuportável! E às vezes baixava uma
depressão....um início de depressão. Em outro tempo eu jamais falaria ou chegaria pra
falar isso pra médica! Hoje em dia eu já chego e falo pra ela a situação. Quando a
pessoa entra na menopausa o prazer diminui, mesmo pelo fato dos hormônios que
mudam tudo. E a gente sente a dificuldade na penetração. Quando a vagina da pessoa
tá ressecada, ela não vai sentir prazer. Ela vai sentir é dor ou arder. Então, hoje em
dia já tem os cremes que a gente pode usar. E isso já melhora muito. No meu caso eu
já uso creme direto e eu deveria tomar hormônio, mas aí como eu já sou operada do
seio a médica achou melhor eu não usar hormônio. Eu já tirei um nódulo. No começo
eu não falei nadinha. A mudança é muito brusca. Eu não cheguei logo e me abri com
meu marido não. Logo de imediato, não. Eu passei em alguns médicos, que eu também
não tinha coragem de falar dessa dificuldade. Aí foi quando eu conheci a Dra. Socorro
e ela começou a fazer perguntas e aí eu comecei a me soltar mais. Eu já tive coragem
de perguntar as coisas. Eu já tinha passado em outras médicas, mas mesmo assim não
falava. (...) Com ela não precisou nem eu chegar e falar logo. Depois que eu conversei
com ela aí que eu já fui conversar com meu marido. Aí ele entendeu minha dificuldade.
Antes eu vinha seguindo o mesmo exemplo da minha mãe. Assim, não era o mesmo, o
mesmo [bem enfática], mas muita coisa veio mudando aos poucos. Às vezes é um a
opinião aqui de uma colega.....Eu tenho algumas colegas que conversam comigo e já
dou até certos conselhos com as colegas que vem e se abrem comigo. Quer dizer, já
converso porque antigamente eu tinha vergonha, eu não falava. Eu tinha vergonha
porque eu aprendi assim. Eu não procurava porque achava que era vergonhoso, que o
certo era o homem procurar, mas hoje mudou (Joana).
Expor as dificuldades e angústias nas práticas sexuais causadas pelo
ressecamento vaginal a alguns ginecologistas se constituiu uma tarefa
impossível para Joana, uma vez que a vergonha a rondava. Conversar com
seu marido sobre suas preferências mais íntimas também era algo
“impensável” para ela. Estas atitudes indicam vínculos com elementos dos
processos de sua socialização, e das demais moças, que nasceram nas
décadas de 1930 a 1950, contexto no qual perpassavam alguns discursos
como “mulheres são educadas para fazer isto e não fazer aquilo”.
Nesse
sentido, ao projetarem, igualarem
e compararem
seus
comportamentos aos de seus familiares, amigos e outras pessoas que foram
conhecidas ao longo de suas vidas, Rosa, Joana, Francisca e Rosário
registram variados processos de mudanças e permanências nos padrões
idealizados para os papéis de gênero.
17
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As narrativas de Joana, Rosário, Francisca e Rosa articulam, através da
rememoração, experiências vividas no passado às da atual conjuntura e
apontam para a construção da divisão de especificidades de gênero polarizada,
segundo a qual o vetor das diferenças sexuais justificariam as atribuições dos
papéis de gênero e consolidariam a distinção entre “natureza feminina” e
“natureza masculina” em pólos excludentes e opostos.
Elas nos fazem perceber que as especificidades de gênero são
construídas ao longo das diferentes etapas da vida. Os atributos que
configuram a masculinidade e a feminilidade vão sendo apresentados,
distintamente, a meninos e meninas, desde a infância, a fim de que estes
comecem a assimilar e se comportar de acordo com o que é/será esperado
socialmente de homens e mulheres ao longo de suas vidas.
Assim, o sistema binário do gênero vai sendo constituído a partir das
vivências cotidianas com o grupo familiar através de atos performáticos
constantemente reiterados, tais como a hierarquia do núcleo familiar (papéis
materno e paterno), as brincadeiras demarcadas, especificamente, “para
meninos” e “para meninas”, a vigilância dos pais sobre os horários das
brincadeiras, o controle das escolas a respeito das vestimentas e dos modos
de se comportar, sobretudo, das meninas e os cuidados e controles frente aos
namoros juvenis.
Entretanto, se algumas vezes o sistema de demarcações dos papéis de
gênero aparece polarizado e fixo, em outras projeta mudanças e mobilidades
forjadas ao longo da passagem do tempo nas práticas cotidianas, perceptíveis
no modo de criação dos filhos, netos e bisnetos, nos valores e concepções que
contemporaneamente circulam entre as variadas gerações. Desse modo, em
alguns casos a flexibilização destes papéis é ressaltada como positiva e em
outros como negativa. Essa avaliação depende, em suma, dos referenciais
(religiosos, familiares e morais) que direcionam as vivências de Rosário, Joana,
Francisca e Rosa.
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