Autor (es) - EGAL 2017

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UMA VISÃO GEOGRÁFICA: O AGRONEGÓCIO E O PROCESSO DE
TERRITORIALIZAÇÃO NA BACIA DO PRATA
Vera Lucia Fortes Zeni
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e bolsista do CNPq – [email protected]
Dr. Luiz Fernando Scheibe
Pesquisador do CNPq e Professor Emérito da UFSC nos Programas de Pós-Graduação em Geografia e
Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC –
[email protected]
,
Dra. Marcilei Andrea Pezenatto Vignatti
Professora da Universidade Comunitária Regional de Chapeco - UNOCHAPECÓ – [email protected]
Eixo temático: Geografia política, globalização, integração e dinâmicas territoriais
Resumo
Desde a chegada dos primeiros europeus, a Bacia do Prata tem sido um sistema natural
provedor de matérias primas de interesse do capital global, que necessita de espaços
para reproduzir e acumular. Inicialmente foi a transferência para a Europa de milhões de
quilos de prata oriundos de Potosí na Bolívia, para manter o poder das cortes europeias
através da ampliação de novos territórios no planeta. Potosí já foi uma das cidades mais
ricas do mundo e é hoje uma das mais empobrecidas. Os países ribeirinhos Brasil,
Paraguai, Uruguai, Bolívia e Argentina compartilham os rios Paraguai, Uruguai e Paraná e
as águas subterrâneas do Sistema Aquífero Integrado Guarani/Serra Geral, que compõem
essa bacia do Prata que é a segunda maior da América Latina, de cuja área abrange 17%,
com seus 3,1 milhões de km2.. Além do extrativismo mineral, que continua em todo o
continente, desde meados do século passado foram gestadas outras formas para
reconfiguração das escalas de poder para usufruir dos bens naturais, desta vez tendo
como aliado o desenvolvimento de tecnologias de ponta, para produção de energia por
hidrelétricas, projetos petrolíferos e o agronegócio (agrobusiness), o qual estabeleceu
fronteiras agrárias reconfigurando novos territórios através das lavouras de soja, de
milho, de trigo, de arroz, criações de suínos e bovinos, juntamente com toda a cadeia
produtiva exercida pela agroindústria, indústria e comércio, que fornecem insumos para a
produção rural. Por exemplo, os fabricantes de fertilizantes, defensivos químicos,
equipamentos, transporte, combustível, beneficiamento e venda dos produtos
agropecuários até o consumidor final. O resultado destas disputas nos territórios pelas
corporações internacionais - exportadoras de água, sol e suor através de seus produtos - ,
é a privatização de bens que são propriedade da coletividade, onde os donos dos meios
de produção internalizam seus lucros e externalizam seus custos com a sociedade. Esta
extração ocorre sem levar em conta os limites físicos das bacias hidrográficas, com sérias
implicações sociais/ambientais e impactos pelo uso da água, ar, solo, clima, crises de
saúde pública e danos a outras gerações. Este artigo objetiva analisar as diferentes
territorialidades de poder na bacia do Prata, em especial o agronegócio, usando os
conceitos de território e territorialidade como ferramenta intelectual metodológica. Essa
investigação está em andamento é parte de tese de doutorado em Geografia, fazendo
uso de pesquisa bibliográfica e documental através de fontes procedentes de
levantamentos em órgãos governamentais dos países abrangidos pela bacia e instituições
independentes.
Palavras-chave: Bacia do Prata. Território de poder. Agronegócio.
1 INTRODUÇÃO:
A Bacia do Prata vivenciou vários ciclos econômicos, nos quais um determinado produto
foi fundamental para um conjunto de transformações que influenciaram não só a
economia, mas também a geopolítica dos países ribeirinhos , a sociedade, a demografia,
a cultura, a ocupação e a definição de territórios.
A paisagem desta bacia está sendo reinventada constantemente, e aquela imagem de
espaço primitivo e improdutivo, registrada na chegada dos primeiros europeus, deu
espaço a uma região produtiva que modifica sua fisionomia a partir da introdução de
práticas agrícolas modernas, por grandes empresas.
Os impactos ambientais nos ecossistemas da Bacia do Prata advindos das intervenções
antrópicas em busca do bem estar econômico são constantes, demonstrando a formação
de relações de poder nesta região, com suas mutações, que foram se estruturando
através das relações sociais e das inserções pela utilização dos recursos naturais na
organização das fronteiras, com ênfase na necessidade de compartilhar as águas
superficiais e subterrâneas. O uso compartilhado dos principais rios acaba suscitando a
percepção de que este recurso atua como um elemento de vital importância para a
manutenção das relações entre os países ribeirinhos, seja para delimitar a arquitetura de
suas fronteiras políticas como para usufruir dos benefícios econômicos e sociais
propiciados pela água.
Por outro lado, pelos interesses muitas vezes contraditórios, sucederam-se distintas fases
de conflito, resolvidos através de cooperação pelos tratados e acordos na história da
formação territorial da bacia:
Todo o território é produzido e produto das relações de determinada
coletividade com o meio e, ao mesmo tempo, das relações entre os atores no
interior da coletividade, mediadas por organizações. Tanto as organizações
como as relações são múltiplas, complexas e contraditórias, sendo todas
marcadas pelo poder. Essas relações de poder criadoras do território, e que o
sustentam, são temporais e, portanto, históricas. As temporalidades diversas
conflituosas existentes no território são resultado do processo de
desterritorialização, sendo que o território guarda diversas temporalidades
(ESPINDOLA, 2012, p.190).
Principais vítimas desses conflitos, os povos originários – os “índios” - foram os primeiros
a serem desterritorializados: segundo Haesbaert (2009, p.367): “desterritorialização para
uns, é na verdade, reterritorialização para outros (manisfestando seu profundo sentido
relacional); mas o que parece desterritorialização em uma escala ou nível espacial pode
estar surgindo como reterritorialização em outra”.
A partilha do território da América do Sul é realmente complexa e pontilhada por
conflitos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Entre os povos
europeus, inicialmente as “bulas papais” ditavam o direito internacional - os impérios
com maiores posses detinham melhor relacionamento com a igreja, além de maior poder
em conquistar a posse das terras “descobertas”, portanto, antes mesmo de chegarem na
América, suas terras já estavam sendo divididas entre os “imperadores”.
As disputas pelas áreas obrigavam a constantes mudanças nas formas de legalização de
poder da época. Na condição contemporânea essas formas de poder atuam sob influência
de grupos econômicos ligados à atuação do Estado, com seu papel regulamentador
(nunca neutro) na organização territorial.
Usando como ferramenta intelectual o conceito de território, para reflexão de ordem
teórica metodológica, este artigo objetiva analisar o papel do agronegócio no processo
de territorialização da Bacia do Prata.
2 O conceito de território e a Bacia do Prata
A categoria de análise do conceito de território evoluiu concomitantemente ao processo
de renovação da ciência geográfica que superou a dicotomia entre o binômio
sociedade/natureza, em que o conceito de território camuflava a análise das relações
sociais.
Segundo Saquet (2015-a, pág.38), na geografia essa transição se dá a partir dos anos de
1950 até o final da década de 1970, em que foram superadas abordagens positivistas e
neopositivistas, pragmáticas, quantitativas e descritivas. Até então, o conceito de
território era negligenciado em favor do conceito de região, entendido como recorte
espacial com características meramente físicas e humanas, essencialmente técnico e
superficial, mascarando análises mais profundas das relações sociais. Conforme o mesmo
autor.
Esse movimento de reconhecimento do conceito de território como método para analisar
as mudanças socioespaciais que estavam ocorrendo no mundo, a complexidade do
capitalismo, surge sobretudo nos anos 1950/60, pós segunda-guerra mundial.
A partir de seus estudos sobre a evolução do conceito, é possível organizar o Quadro 1:
Quadro 01: Contribuições dos debates teóricos metodológicos de abordagens e
concepções do conceito de território:
Autor (es)
Giusseppe Dematteis
(1964-2008)
Compreensão de
Território
Compreensão de
Territorialidade
Produto histórico de
relações econômicas,
políticas e culturais
(sociedade-e-natureza),
Conjunto de relações
sociais definidas
historicamente:
econômicas, culturais e
evolvendo o poder, as
desigualdades, as
identidades e as redes
(transescalaridade e
fluxos)
Como movimento, fluxos
na rotação de capital
politicas.
Como fronteiras e frentes
de ocupação/povoamento:
economia geopolítica.
Significa: relações de
poder: alteridade e
exterioridade.
Francesco Indovina e
Donatella Calabi
(Década de 1970)
Produto e condição das
relações capitalistas de
produção junto com a
atuação do Estado.
Corresponde às relações
capital-trabalho,
vinculadas à reprodução e
valorização do capital.
Alberto Magnaghi
(1970-2011)
Produto e condição de
relações de poder e
normas.
Corresponde às relações
políticas e capital-trabalho
na apropriação e no uso de
território.
Arnaldo Bagnasco
(1970-1990)
Construído
espaciotemporalmente.
Corresponde às relações
econômicas, políticas e
culturais entre as
diferentes classes sociais.
Gilles Deleuze e
Félix Guattari
(1970-1990)
Transformações sociais e
TDR (territorializaçãodesterritorializaçãoreterritorialização).
Homem = sujeito histórico Corresponde ás relações
que pensa, trabalha, cria e capital-trabalho,
organiza o território.
vinculadas à reprodução e
valorização do capital
Resultado das ações de
Vinculada à ação do
cada sociedade
Estado, ao mercado, aos
demarcando e controlando regionalismos à ação de
o espaço; jurídica, cultural uma autoridade.
e economicamente..
Massimo Quaini
(1964-2010)
Jean Gottmann
(1947-1980)
Claude Raffestin
(1967-2010)
Fonte: Elaborado pelos autores com base em Saquet 2015 e suas pesquisas sobre o
conceito de território entre os anos 2006 e 2011.
Desde de 1960, na Itália, por exemplo, diferente do que ocorreu no EUA, um
dos fatores que influenciou na redescoberta do território, foi a luta de
trabalhadores nos anos 1968/69, no chamado triângulo industrial,
especialmente em Turim, em virtude da localização da FIAT [...].A redescoberta
deste conceito a partir de um processo socioespacial se dá em meio ao conflito
social, inerente á organização da fábrica-cidade, do trabalho e dá reprodução
do capital (SAQUET, pag.40, 2015-a).
“Em vez de modelos descritivos, é proposta uma análise territorial, apreendendo as
conexões existentes entre as partes territorialmente diferenciadas” (SAQUET, 2015-a,
PAG.61).
No Brasil entre os anos 1960 e 1980, segundo Saquet (2015), o eixo central dos debates
foi pautado no conceito de espaço geográfico como categoria de aplicação da ciência
geográfica. Os primeiros estudos do conceito de território foram de Goldenstein e Seabra
(1982) e Bertha Becker (1983):
Porém, é com a obra de Santos (1988), no meu entendimento, que
se dá um salto mais significativo, neste momento e lugar [...].uma
abordagem materialista dialética do espaço geográfico, com seu
conceito principal destacando a atuação dos agentes do capital e
do estado [...] sua ênfase econômica indica o reconhecimento da
política, da cultura, da natureza, no espaço e na configuração
territorial (SAQUET, pag.91, 2015-a).
É nesse debate que o território assume centralidade e passa a ser observado e
pesquisado não somente como elemento físico, mas produto de relações e construções
sociais .Porto Gonçalves (2012) enriqueceu esse conceito demonstrando possibilidade
de compreender as relações da sociedade com a natureza, cerne da problemática
ambiental:
O território é igual à natureza mais cultura através das relações de poder, e essa
é uma das principais contribuições da América Latina para a ecologia política. A
partir dessa perspectiva, o debate ambiental requer a explicitação das relações
sociais e de poder que lhes são constitutivas (PORTO-GONÇALVES, 2012, p.34).
Outro autor que contribui com as acepções do conceito é o geógrafo Marcelo Lopes de
Souza (1995), afirmando que o território é definido e delimitado por e a partir de relações
de poder, emergindo questões do tipo “Quem domina, governa ou influencia e como
domina, governa ou influencia esse espaço” para o autor essa foi sua primeira
aproximação, em sua mais recente obra “Os conceitos Fundamentais da pesquisa sócioespacial” (2013), essa abordagem recebe um refinamento, incluindo a dimensão culturalsimbólica na conceituação. No entanto de forma alguma Souza nega as transformações
advindas do exercício das relações de poder e projeção destas relações no espaço, aponta
o autor:
A defesa de uma identidade por estar associada a uma disputa por recursos e
riquezas, no presente e no passado; e a cobiça material não é, de sua parte,
descolável do simbolismo e da cultura (capitalismo também é cultura- ainda
que uma pobre cultura). [...] Dependendo das circunstâncias e também do
ângulo a partir do qual observamos, uma dimensão particular de fato pode
aparecer [...], ainda que todas as dimensões das relações sociais sejam
importante e devam ser levadas em conta na análise SOUZA, 2013, p.101).
A mesma analogia que Marcelo Lopes de Souza concebe sobre conceito relacionado as relações
de poder , também é uma constante no debate sobre território elaborado por Rogério Haesbaert
(1997), para esse autor o território é concebido a partir de uma tríplice abordagem:
jurídico-política, segundo a qual o território é visto como um espaço delimitado e
controlado sobre o qual se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter
estatal; econômico, o autor destaca a desterritorialização em sua perspectiva material,
como produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capital-trabalho; e
cultural, que prioriza dimensões simbólicas e mais subjetivas, na qual o território visto
fundamentalmente como produto da apropriação feita através do imaginário e/ou
identidade social sobre o espaço.
Assim, além do caráter do poder estatal, o autor destaca o aspecto humano da identidade
social, bem como os aspectos econômicos da relação capital-trabalho, todos os presentes
na constituição do território e o controle sobre o mesmo:
Numa visão mais tradicional esse “controle” é feito, sobretudo entre áreas ou
zonas, áreas estas que são demarcadas através de um limite ou fronteira, sejam
eles mais ou menos definidos. “Desterritorializar” poderia significar, então,
diminuir ou enfraquecer o controle dessas fronteiras [...], aumentando assim a
dinâmica, a fluidez, em suma, a mobilidade, seja ela de pessoas, bens materiais,
capital ou informações, (HAESBAERT, 2009, p. 235).
Haesbaert (2009, p.127) amplia o raciocínio “muito mais que uma coisa ou objeto, o
território é um ato, uma ação, uma relação, um movimento (de territorialização e
desterritorialização), um ritmo, um movimento que se repete sobre o qual existe
controle”.
Portanto esse conceito de território formulado pela geografia moderna é flexível e
dinâmico, ganhando sentido e movimento. Conforme Haesbaert (2011, p.21) “A própria
história do pensamento geográfico é esclarecedora a esse respeito: território só vai
emergir como categoria analítica muito mais tarde do que o espaço.”
Conforme o consagrado geógrafo Milton Santos, o importante é saber que a sociedade
exerce permanentemente um diálogo com o território usado, e este diálogo inclui as
coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual:
Na verdade, eu renunciei à busca desta distinção entre espaço e território.
Houve um tempo em que a gente discutia muito isso: “o espaço vem antes”,
“não, o que vem antes é o território”. Eu acho que são filigranas que não são
indispensáveis ao verdadeiro debate substantivo. Eu uso um ou outro,
alternativamente, definindo antes o que eu quero dizer com cada um deles.
Agora, a retificação que ando fazendo é que não serve falar de território em si
mesmo, mas de território usado, de modo a incluir todos os atores (2009
[2000], p.26).
Diante do debate teórico dos principais pesquisadores das concepções de território,
considera-se importante observar alguns aspectos relevantes na Bacia do Prata que são
pertinentes de aplicação desta abordagem.
O grande território da Bacia do Prata abrange quase todo o centro sul brasileiro
(1.415.000 km²), seguido pela Argentina com uma extensa região do seu centro norte
(920.000 km²), todo o Paraguai (410.000 km²), o sudeste da Bolívia (205.000 km²), grande
parte do Uruguai (150.000 km²). É formada pelas bacias dos rios Paraguai, Paraná e
Uruguai e pode ser subdividida em sete sub-bacias: Alto Paraguai, Baixo Paraguai, Alto
Paraná e Baixo Paraná, Alto Uruguai e baixo Uruguai e a sub-bacia do Rio da Prata, no
estuário (Figura 1).
Figura 1: Bacia do Prata
Fonte : Base cartográfica: CIC Plata – organizado pelos autores, arte final: Cartografia
Braga e Ricardini.
Os países platinos não apenas partilham alguns dos mais extensos rios do continente, eles
abrigam em suas entranhas o imenso território das águas subterrâneas, um dos maiores e
mais importantes sistemas aquíferos do mundo, o Sistema Aquífero Integrado
Guarani/Serra Geral, que tem uma área de 1.087.879 Km.2.
Conforme dados da Agencia Nacional de Águas - ANA (2016), 70% do PIB desses países é
gerado nesta bacia, onde se localiza 50% da respectiva população, totalizando 110
milhões de habitantes. Abrange 57 cidades com mais de 100.000 habitantes, incluindo as
capitais: Buenos Aires, Brasília, Assunção, Montevidéu e Sucre - capital administrativa da
Bolívia.
Na perspectiva dos dados econômicos e populacionais, na contemporaneidade esse
território é ambiente propício para a formação de diferentes territorialidades,
constituídas a partir dos múltiplos usos da água: navegação, energia, agricultura,
pecuária, pesca, turismo, indústria, usos domésticos entre outros. Neste espaço estão
localizados os principais centros de gestão econômica e política destas nações, a exemplo
das duas grandes metrópoles São Paulo e Buenos Aires que concentram pólos industriais
com grandes corporações privadas, sendo a elas vinculadas a circulação e distribuição
destas produções de amplo alcance espacial, que necessitam de matéria prima/natureza,
infraestrutura e mão de obra.
Essa realidade resulta em múltiplos impactos das grandes corporações sobre a
organização espacial, segundo Corrêa (2005, pag.229):
A manutenção, o desfazer e a recriação das diferenças espaciais constituem o
principal impacto. Resultam elas da ação das corporações multifuncionais,
segmentadas, multilocalizadas e dotadas de grande escala de operações e
poder econômico e político, sobre uma organização espacial prévia, já desigual.
Para o geógrafo Milton Santos (2013 [1994], pag.17): “A história do homem sobre a Terra
é a história de uma ruptura progressiva entre o homem e seu entorno”
Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se
descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de
novos instrumentos para tentar dominá-lo. A natureza artificializada marca uma
grande mudança na história humana da natureza. Hoje com a tecnociência,
alcançamos o estágio supremo desta evolução, (SANTOS, 2013 [1994], pag.17).
Algumas territorialidades presentes nestas transformações espaciais se referem a formas
tradicionais de uso da terra e de reprodução social, mas também se encontram usos
pertinentes a demandas da reprodução capitalista hegemônica nos dois maiores biomas
presentes no ecossistema da Bacia do Prata: o Bioma do Chaco no Paraguai e o Pantanal
no Brasil.
Conforme Riveros (2005) o grande Chaco, está localizado entre 17º e 33º de latitude sul e
60º e 65º de longitude oeste, é uma vasta planície que se encontra no norte de Argentina
(520 000 km2), no sudeste da Bolívia (90 000 km2), noroeste do Paraguai (230 000
km2)com una pequena área no sudoeste do Brasil (9 000 km2).
No Paraguai a população do Chaco representa 2,5% da população do país, com presença de cerca
de quinze diferentes povos indígenas que estão em perigo de desaparecer devido à presença de
companhias petrolíferas e agroindustriais que vão silenciosamente invadindo seus territórios
ancestrais (ORTEGA, 2013, pág.07). Esse autor sugere que a venda das terras chaquenhas iniciou
na década de 1920 com a vinda dos migrantes menonitas1; confirma esse fato a autora Torraca
(2006), ressaltando que esses imigrantes tiveram privilégios fundamentais para o
desenvolvimento e fortalecimento de suas colônias, e que conseguiram o direito de usufruir das
terras, dos recursos naturais e da mão-de-obra indígena do Chaco com total apoio do governo,
fato que “provocou a expulsão de vários paraguaios de suas terras; o imigrante foi visto como
fornecedor de capital, como mão-de-obra de qualidade livre e barata e também se esperava que
ele proporcionasse o desenvolvimento a baixo custo” (TORRACA, 2006, pag.32).
Esses migrantes oriundos da Europa ocuparam inicialmente as terras da América do
Norte:
Esta nova fase de transição pode ser sintetizada em duas etapas:
primeiramente foram ocupadas as terras da América do Norte expandindo-se
pelas regiões do Canadá, México e Estados Unidos. Na segunda fase, ocorreu a
ocupação da América do Sul, direcionando-se para as terras do Paraguai, da
Bolívia e Brasil. (TORRACA, 2006, pag.32, tradução nossa).
Atualmente os menonitas aparecem entre os proprietários de um dos maiores grupos de
empresas frigoríficas que controlam o mercado exportador de carne do Paraguai:
A presença dos menonitas no Chaco provocou um dos acontecimentos mais
desastrosos para os povos indígenas; é uma forma peculiar de apropriação do
território de um “povo” por “meios pacíficos” porém com impacto maior, com
consequências a longo prazo. Puderam “domesticar” os indígenas a través da
1
Os menonitas formam um segmento religioso que surgiu durante o período da Reforma Protestante.
manipulação da religião, da utilização de mecanismos de obediência e relações
de respeito aos mais velhos, hierarquizada a través da cultura (ORTEGA, 2013,
pág.62, tradução nossa).
Para Saquet (2015a, pag.111), “o território envolve, ao mesmo tempo, as relações
efetuadas pelo homem na natureza/ambiente, estudando os grupos, as comunidades e
suas percepções/sentimentos do território”.
A expansão do soja, e do gado sobre os territórios indígenas e campesinos, é a
mesma lógica de apropriação dos meios de produção, separando de seus meios
de subsistências e cultura das populações. Desta maneira existem novas
populações carentes de bases materiais de sobrevivência, que estão obrigadas
a depender do mercado, e buscam formas de obter ingressos nas cidades ou
zonas rurais urbanizadas. O novo território ocupado pelo mercado, se exige que
tenha nova mão de obra “livre” submissa a qualquer tipo de trabalho,
competindo com o outros, expulsos anteriormente. Desta maneira se mantem
a competência entre a nova e velha força de trabalho que continua forçando-os
a aceitar as regras do mercado (ORTEGA, 2013, pág. 39/40, tradução nossa).
À semelhança dos imigrantes menonitas, outros empresários estrangeiros, na década de
1990, foram atraídos para a região do Chaco, devido aos baixos valores das terras,
carência de matérias primas, facilidades promovidas pelo governo paraguaio a exemplo
da inexistência de legislação tributária ou trabalhista e oferta de mão de obra barata.
Resultado desta lógica é que as maiores exportações do Paraguai são efetuadas por
empresas estrangeiras brasileiras, uruguaias e de outros grupos internacionais.
O governo central não faz absolutamente nada para defender os indígenas em
vez disso, apoiou as empresas estrangeiras, principalmente petrolíferas com a
liberação de vastos territórios para a exploração de petróleo e gás.
Posteriormente, no final do século XX, com a expansão do modelo de
monocultura, com uso intensivo de insumos químicos, máquinas e sementes
transgênicas, se realiza uma ofensiva de grande envergadura para o Chaco. Os
campos de gado da região oriental, vão deixando suas terras para o plantio de
soja, arroz (ORTEGA, 2013, pág.8, tradução nossa).
Diante dessa realidade ficam evidentes os aspectos da territorialidade no ecossistema do
Chaco, coexistentes no tempo e espaço, envolvendo situação de conflito e
transformações na economia (capital), na cultura e na política (estado), significando a
leitura das relações sociais de territorialização, reterritorialização e desterritorialização
nessas áreas da Bacia do Prata. As melhores terras passaram a pertencer a proprietários
individuais ou empresas instaladas no Chaco. O modo violento da apropriação das terras
indígenas provocou resistências no território, derivando em desaparecimentos, mortes e
expulsão dos habitantes (ORTEGA, 2013, pág.57). A condição da reprodução das relações
de produção capitalistas é a permanente separação dos povos e etnias das condições
materiais de existência - natureza incluída, além do caráter comunitário do modo de vida
e de produção (PORTO-GONÇALVES, 2012, p.35). Desta forma sempre existe relações
conflituosas no território, seja no Chaco, no Pantanal e em outros espaços da Bacia do
Prata, territorialidades de poder exercida pelo capital geram outras territorialidades que
se opõe as estas, são como movimentos sociais de reforma agrária, sindicais entre
outras.
Cria-se um espaço relacional envolvendo a natureza e a sociedade intercedida pelo
trabalho, segundo Milton Santos (2013 [1994], pag.33): “o embate ancestral entre a
necessidade e a liberdade dá-se pela luta entre uma organização coercitiva e o exercício
da espontaneidade. O resultado é a fragmentação”, ou seja, a tribo unindo os homens
pela “cooperação na diferença”. Ou ainda:
Agora, especulamos que o conceito “território” como habitat dos indivíduos
poderia fechar esta evolução através da plena submissão do indivíduo cultural,
controlando não apenas suas terras, mas “protegendo” e “conservando” suas
tradições também. Aplica-se, destarte, todo um arcabouço de dominação e
apropriação que divide o espaço geográfico em áreas de “poder” e de
“identidades” SAHR ; SAHR 2008,pag 154).
Outro aspecto da territorialidade da Bacia do Prata corresponde ao ecossistema Pantanal.
Declarado Patrimônio Nacional pela Constituição Brasileira de 1988, faz parte do
chamado Sistema Paraguai-Paraná de Zonas Úmidas, um complexo que abrange, além do
Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Situado no interior da Bacia do Alto
Paraguai (BAP), ocupa uma área aproximada de 200 mil km2, dos quais 70% no Brasil, 20%
na Bolívia e 10% no Paraguai (SCHLESINGER, 2014, pág.7).
Como mais um exemplo de que em muitos espaços da bacia a legislação não protege o
povo e seus recursos naturais, o autor Schlesinger (2014) denuncia que as maiores
ameaças ao Pantanal hoje estão nas áreas de planalto e são oriundas das monoculturas,
pecuária, mineração, hidrelétricas e siderurgia e todo o aparato estrutural promovido
pelo Estado de para promover a expansão capitalista. Para esse autor,
O desmatamento de áreas de nascentes, o assoreamento dos rios, a
contaminação e a alteração do pulso natural das águas e a forte redução da
quantidade de peixes são as principais consequências. Deste conjunto de
ameaças, destaca-se o crescimento da área plantada com soja em áreas não
inundáveis da Bacia do Alto Paraguai. Atualmente (2014), cerca de 10% do total
da área plantada com soja em todo o Brasil encontram-se nesta região. [...] na
Bacia do Alto Paraguai, não há qualquer dispositivo legal capaz de conter a
expansão da soja. Associada à expansão da soja não só na BAP, mas também
em seu entorno, encontra-se outra grande ameaça: o projeto de extensão da
hidrovia Paraguai-Paraná até o município de Cáceres, em Mato Grosso, onde a
soja seria o principal produto a ser embarcado. Ao mesmo tempo, com a
presença da hidrovia, pode-se esperar um novo impulso à expansão da soja em
todo seu entorno (SCHLESINGER 2014, pág.5, grifo nosso).
Para o autor os diversos dispositivos do novo Código Florestal, como a redução das áreas
de preservação permanente (APPs) às margens dos rios, expõem ainda mais a região ao
crescimento desordenado de atividades predatórias.
Por que tanta soja? A soja é a cultura agrícola que, globalmente, vem
crescendo em ritmo mais acelerado nas últimas décadas, estimulada pelo forte
aumento do consumo de carnes, principalmente nos chamados países
emergentes. Estima-se que 90% da soja produzida no mundo tenha como
destino a fabricação de farelo utilizado em rações animais, como fonte de
proteínas (SCHLESINGER 2014, pág.19, grifo nosso).
Neste processo, o antigo território foi dividido, sendo relevantes as áreas que passaram a
produzir produtos agropecuários industrializados ou semi-industrializados, voltados para
a exportação em grande escala, gerando uma situação de privilégio econômico e uma
nova classe de empresários agrícolas e agroindustriais, com grande concentração de
terras e de renda, conforme Gatti; Sobrinho (2006):
A expansão da cultura da soja foi um dos principais responsáveis pela
introdução do conceito de agronegócio no país, não só pelo volume físico e
financeiro envolvido, mas também pela necessidade da visão empresarial de
administração da atividade em si, por parte dos produtores, fornecedores de
insumos, processadores da matéria-prima e negociantes, de forma a manter e
ampliar as vantagens competitivas da produção( GATTI; SOBRINHO 2006, s/p,
grifo nosso).
Nesta nova geografia do poder, causada em grande parte pelas atividades econômicas e
produtivas, além dos efeitos nas relações sociais avultam os impactos ambientais,
especialmente nas águas:
É na região das nascentes do rio Paraguai que estão situadas as três maiores
propriedades produtoras de soja e milho do município (Alto Paraguai). As
fazendas Sete Lagoas e Paraguaizinho, operadas pelo grupo argentino El Tejar,
ocupam, juntas, 3,9 mil hectares naquela área. A fazenda Sete Lagoas deve seu
nome à existência, originalmente, de sete lagoas formadas pelas águas das
nascentes do rio Paraguai. Hoje, restam apenas quatro delas. As outras três,
cercadas até às margens por pastagens e lavouras de soja e milho, secaram em
consequência do desmatamento. O Grupo Vanguarda, cujo maior acionista é
Otaviano Pivetta, um dos maiores produtores de soja do Brasil, cultiva soja e
milho na Fazenda Terra Mãe, que se estende por 3,2 mil hectares, nessa mesma
região (SCHLESINGER, 2014, pág.28).
Outro efeito histórico foi nos cultivos locais, necessários à demanda interna para
alimentação básica da população através das pequenas propriedades; essas sofreram os
impactos causados pelos grandes cultivos da agricultura comercial agroexportadora, o
que muitas vezes gera desemprego e demanda de boa parte desses pequenos
agricultores migram para as cidades aumentando o desemprego. Historicamente há
necessidade de proteção social governamental. Citando como exemplo o Chaco
TORRACA, 2006, pag.34, conclui. “Desse modo entende-se que o Chaco nunca pode
desenvolver seu potencial devido à ausência de políticas públicas que possibilitassem a
exploração da região pelos campesinos, porque, na maioria das vezes, o Estado fortaleceu
a formação de latifúndios em detrimento da população local”.
A convivência, embora cada vez menor, dos dois modelos de produção nas áreas desses
dois biomas, faz com que os mesmos comportem na realidade dois tipos de territórios, o
do agronegócio e os dos camponeses e indígenas, cada vez mais descontínuos, com suas
características particulares. Como pode ser observado na figura 2.
Figura 2: Diferentes tipos de paisagem resultantes dos usos diferenciados no Pantanal;
Fonte: Elaborado pelos autores com base nas imagens do Google Earth - imagem esquerda: Município de
Diamantino-MT (14º11’13.96¨S e 56º32’47.28¨O).Disponível em: https://www.google.com.br/maps/@14.3992385,-56.4540793,11888m/data=!3m1!1e3 <url>. Acesso em:08.02.2017. Imagem direita Município
de
Porto
Espiridião-MT.
(15º58’47.30¨S
e
58º53’56.07¨O).
Disponível
em:
https://www.google.com.br/maps/@-15.5807303,-58.3926691,189160m/data=!3m1!1e3.
Acesso
em:08.02.2017
Nos elementos da paisagem observam-se os espaços produzidos pelas relações sociais,
porém, existe um certa distinção entre as diferentes realidades que mantem sua
individualidade, para Souza (2013, p.35) “como projeção espacial de relação de poder, o
território é no fundo em si mesmo, uma relação social, mas especificamente, uma relação
social diretamente espacializada”, na imagem 2 observa-se essa relação de materialidade
do espaço e sua relação social, o seja o espaço social está intrínseco no espaço
geográfico.
Há diferença entre o modelo do agronegócio e a agricultura campesina e
indígena. Os territórios do campesinato e os territórios do agronegócio são
organizados de diferentes formas, a partir de diferentes relações sociais. O
território do agronegócio é para a produção de mercadorias, enquanto as
comunidades campesinas e indígenas organizam seus territórios para a
subsistência, precisando desenvolver as dimensões da vida. Esta diferencia se
expressa na paisagem, onde podem ser observadas as distintas formas de
organização dos territórios. A paisagem do território do agronegócio é
homogênea, enquanto o território campesino é heterogéneo (ORTEGA, 2013,
pág.50, tradução nossa).
3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
O ponto de partida deste artigo foi uma visão geográfica: o agronegócio e o processo de
territorialização na Bacia do Prata, sendo demonstradas algumas nuances da realidade
social e sua relação com o conceito teórico de “território” e a formação de
territorialidades, ligada às relações de poder.
A separação entre as ciências humanas e as ciências naturais, além das
especializações no interior de cada um desses campos, corresponde à
separação (expulsão) dos camponeses e dos povos originários da natureza,
além da destruição das suas comunidades, dos seus territórios e suas
territorialidades (PORTO-GONÇALVES, 2012, p.19).
Importante refletir que essa trajetória de evolução histórica do conceito é paralela às
diferentes espacializações na sua historicidade, não somente na bacia mas na escala
planetária. Não é possível pensar no conceito de território sem levar em conta questões
de cunho temporal: na partilha do mundo existiu e ainda existe a submissão dos povos
conquistados, sendo que todos os países da América Latina foram colônias das nações
europeias2.
E assim como escreveu Galeano (1980, p.34): “Entre 1503 e 1660, chegaram ao Porto de
San Lúcar de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata
transportada para a Espanha em pouco mais de um século e meio, excedia três vezes o
total das reservas europeias.” Hoje as grandes organizações que comandam o capital
continuam enviando em outros formatos os recursos naturais - muito “ouro azul”
chamado água está embutido nos produtos ou usado para gerar energia para as grandes
indústrias . Para Milton Santos (2013 [1994], pag. 43), “hoje os lugares se diferenciam e
hierarquizam-se exatamente porque são todos mundiais. Os tempos também, as
temporalidades hierárquicas e temporalidades subalternas”.
Hoje, os territórios transformam-se de acordo com o ritmo das novas
técnicas e isso ocorre tanto na cidade como no campo. A agricultura
tornou-se uma atividade como outras, sujeita a modificações velozes,
cujo efeito na paisagem é considerável. As paisagens agrárias e urbanas
sofrem logo a influência do terceiro estado da natureza, aquele sintético
ou cibernético que começou com a química moderna na metade do
século XIX e é caracterizado, hoje, pelo desenvolvimento da
biotecnologia através da manipulação genética (RAFFESTIN, 2008,
pág.24)
2
Ver, por exemplo “A ecologia política na América Latina: reapropriação social da natureza e reinvenção
dos territórios” (PORTO-GONÇALVES, 2012).
Essa realidade leva à reflexão de Milton Santos (2013 [1994], pag. 35) “a vida não é
produto da Técnica, mas da Política, a ação que dá sentido a materialidade”; para esse
Geógrafo “uma geografia refundada, inspirada nas realidades do presente, pode ser um
instrumento eficaz, teórico e prático, para a refundação do Planeta”.
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