160/469 Atenção Farmacêutica (Pacientes em uso de enfuvirtida) – Pesquisa (das múltiplas falhas de uso) Percepção de pacientes com HIV sobre o uso de enfuvirtida: estudo de casos realizados em um Centro de Saúde de Santa Catarina* Patients’ perception with HIV about the enfuvirtide use: cases study made in Santa Catarina’s Health Center Fernanda Gaspar de Souza1; Rogério Sobrosa de Mello2 & Dayani Galato2 RESUMO – O objetivo deste estudo foi o de compreender a percepção de pacientes na utilização da enfuvirtida (T20) atendidos em um Centro de Atendimento a pacientes com HIV/AIDS. Foram entrevistados 5 pacientes que utilizavam essa medicação no local de estudo, com vistas a conhecer o perfil clínico, a utilização da medicação e a sua percepção. Todos os pacientes eram mulheres com múltiplas falhas terapêuticas e que utilizam T20 há 14,6 meses em média. A terapia foi composta de 3 a 5 anti-retrovirais, com média de 11,6 doses diárias. Todas tiveram melhora imunológica e consideram o preparo da medicação e a via de administração desconfortável. A percepção das pacientes sobre o uso da medicação é uma mistura de “amor”, por ter melhorado a resposta clínica, e por outro lado, um sentimento de “ódio”, por ser de difícil manejo. Dessa forma, essa medicação é uma alternativa terapêutica em pacientes com múltiplas falhas terapêuticas; no entanto, deve ser utilizada de forma assistida pela equipe de saúde para garantir a adesão terapêutica. PALAVRAS-CHAVE – Enfuvirtida, HIV, AIDS, anti-retroviral, T20. SUMMARY – This study wants to know the profile and the perception understanding from the patients using enfu- virtide (T20) assisted in a HIV Attendance Center. For that, cases studies were made with patients in enfuvirtide use (T20). Five patients who used this medication were interviewed. All the patients were women with multiple therapeutic flaw and use T20 for 14.6 months in average. The current therapy is composed by 3 to 5 antiretroviral, with 11.6 daily doses in average. All of the women had immunological improvements and consider the medicine preparation and the administration ways uncomfortable. The patients’ perception about the medicine use is a mixture of “love” for having improved its clinical answer, and on the other side a feeling of “hate”, for being difficult handling and adverse painful reactions. This way, the medication is an alternative in patients with multiple therapeutical flaws; however, the health team must assist its use to guarantee the therapeutical adhesion. KEYWORDS – Enfuvirtide, HIV, AIDS, antiretroviral, T20. INTRODUÇÃO C om o surgimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), iniciou-se também um grande problema de saúde pública no Brasil onde, entre 1980 e 2007, foram notificados 407.211 casos de AIDS (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007). No início, esses pacientes estavam fadados a terem uma sobrevida pequena em função da escassez de medicamentos. Políticas relacionadas aos medicamentos a serem utilizados para essa terapia e que garantissem seu acesso universal e gratuito trouxeram novos desafios (SEIDL & et al., 2005), entre eles, a de promover a adesão terapêutica. Os dados de adesão terapêutica dos doentes de AIDS descritos na literatura tem apresentado valores entre 37% a 85,8%; esses valores dependem dos medicamentos em uso e das características demográficas da população em estudo (CARVALHO & et al., 2003; WHO, 2003). Estudos recentes têm apresentado que em virtude da rápida replicação e pela capacidade de mutação que o vírus HIV apresenta, para que se possa garantir a supressão viral e a estabilização da doença é necessário que o paciente apresente uma adesão superior a 95% do tratamento (WHO, 2003). A subadesão a esses tratamentos por parte dos pacientes com HIV leva ao aparecimento de resistência à terapia farmacológica que pode ser transmitida a outras pessoas (LOWE & et al., 2004; WHO, 2003; DENSAI & MATHUR, 2003) Os pacientes com múltiplas falhas terapêuticas aos esquemas anti-retrovirais têm atualmente poucas opções efetivas para resgate. A enfuvirtida (T20), um inibidor de fusão peptídico de administração subcutânea, é atualmente uma alternativa disponível para o tratamento desses pacientes (ESPONA & et al., 2005; CHEARSKUL & et al., 2006). Alguns trabalhos foram publicados a respeito da enfuvirtida, tendo como ênfase a descrição do mecanismo de ação (ESPONA & et al., 2005; BRIZ & et al., 2006; CHEARSKUL & et al., 2006), perfil farmacocinético (ESPONA & et al., 2005; STOCKER & et al., 2006; CHEARSKUL & et al., 2006) e desenvolvimento de resistência (ESPONA & et al., 2005; BRIZ & et al., 2006). A pouca informação sobre o uso da enfuvirtida no Brasil (SANTOS, 2006) e também de pesquisas que avaliem a percepção dos pacientes motivou a realização desta pesquisa. Portanto, o objetivo deste estudo foi o de compreender a percep- Recebido em 19/5/2008 Núcleo de Pesquisa em Atenção Farmacêutica e Estudos de Utilização de Medicamentos Curso de Farmácia – Universidade do Sul de Santa Catarina 2 Curso de Farmácia e de Medicina - Universidade do Sul de Santa Catarina *Projeto financiado pelo CNPq 3 308 Rev. Bras. Rev. Farm., Bras. 89(4): Farm., 308-310, 89(4), 2008 308 ção da utilização da enfuvirtida dos pacientes atendidos em um Centro de Atendimento à pacientes com HIV/AIDS de Santa Catarina. TABELA I Perfil do tratamento com anti-retroviral (ARV) Características do tratamento MÉTODOS Este estudo foi caracterizado como uma pesquisa qualitativa de estudo de caso. O estudo foi realizado em um Centro de Atendimento Especializado para portadores de HIV/AIDS localizado em Santa Catarina. Atualmente nesse serviço existem 716 pessoas cadastrados com essa doença, sendo que destes, em torno de 250, estão em tratamento e 5, desta pesquisa, utilizam a enfuvirtida. A coleta de dados foi realizada através da consulta aos prontuários dos pacientes e através de entrevistas individuais. Foram coletadas informações a respeito do perfil do paciente como: idade, gênero, escolaridade, estado civil, comportamento sexual e ocupação. Quanto ao perfil clínico, foi investigado a forma de transmissão, o tempo de diagnóstico e informações referentes à adesão aos tratamentos anteriores. Em relação ao tratamento atual foi avaliado o número de medicamento, doses diárias, classes terapêuticas adotadas, efeitos adversos e parâmetros clínicos (CD4 e carga viral) anteriores ao tratamento com enfuvirtida e os atuais. Quanto à enfuvirtida especificamente, foram coletados informações sobre o preparo, armazenamento e administração do medicamento. Para a percepção dos pacientes foi realizada uma entrevista utilizando duas perguntas norteadoras: Como está a sua saúde? Como está a sua vida com o uso de enfuvirtida? RESULTADOS E DISCUSSÃO B C D E Tempo de tratamento total 6 anos 2 anos 10 anos 10 anos 11 anos Tempo com T20 20 meses 12 meses 13 meses 24 meses 4 meses Número de medicamentos 4 5 3 5 5 Medicamentos anti-retrovirais atuais Tenofovir, Atazanavir, Lamivudina e Enfuvirtida Tenofovir, Lamivudina, Nevirapina, Didanosina, Enfuvirtida Tenofovir, Atazanavir, Lopinavir + Ritonarir, Lamivudina e Enfuvirtida Número de doses1 7 7 13 Efeitos adversos Parâmetro clínico anterior ao uso de T20 Parâmetro clínico atual 1 2 3 Pacientes A Tenofovir, Atazanavir Lopinavir + Lopinavir + Ritonarir, Ritonarir, Saquinavir, Lamivudina e Enfuvirtida e Enfuvirtida 13 18 Nódulos, dor e Nódulos, Nódulos e dor Nódulos e dor vermelhidão coceira e dor CD42 = 8 CD4 = 51 CD4 = 188 C.V3= 1.100.000 C.V = 30.000 C.V = 68.000 CD4 = 372 C.V <50 CD4 = 389 C.V <50 CD4 = 128 C.V = 65.000 CD4 = 259 CD4 = 270 C.V. <50 C.V = 10.462 CD4 = 340 C.V.= 11.798 CD4= 550 C.V. < 50 Número de doses = número de unidades de medicamentos administradas em 24 horas; CD4 = Linfócito T auxiliador; C.V. = Carga Viral sive, as condições clínicas, conforme relatos: "Minha saúde esta 100% boa, antes era uma fraqueza, anemia... jogava-me na cama... aquele mortuário. Agora tenho vontade de sair e andar... é como se tivesse colocado gasolina..." (A). Segundo MARTÍNEZ & et al., (2005) os pacientes infectados por HIV resistentes a fármacos de diversas classes terapêuticas de anti-retrovirais, podem conseguir com o uso da enfuvirtida associada a outros anti-retrovirais a supressão da carga viral e o aumento de Linfócito CD4. Esses benefícios aumentam a expectativa de vida e segundo esses mesmos autores, é uma opção cuja avaliação econômica mostrou ser eficiente. A evolução esperada dessas pacientes em falência clínica, caso não tivessem utilizado essa medicação seria a complicação do quadro clínico que poderia, inclusive, levá-las ao óbito. No entanto, elas descrevem o problema do desconforto de preparar e usar essa medicação: "É chato, tem que preparar o remédio, virou rotina, acho complicado..." (D) "É terrível estar Todos os pacientes em uso de enfuvirtida são mulheres entre 39 e 48 anos, com média de 44,2 anos de idade que se denominaram heterossexual e com tempo de diagnóstico de 4 a 11 anos. Quanto ao estado civil, A e D são casadas, B e E, divorciadas e C, viúva, sendo que todas têm escolaridade superior a 5 anos e relatam que contraíram o vírus por relação sexual. A respeito de terapias anteriores, três pacientes referiram ter problemas de adesão devido às reações adversas (A, C e D), sendo que C também alegou que a não aceitação da doença contribuiu para a não adesão. B e D referiram adesão, no entanto, apenas B foi infectada por vírus já multirresistente às terapias anti-retrovirais convencionais. O perfil do tratamento com anti-retroviral está apresentado na Tabela I e características da administração TABELA II da enfuvirtida pelas pacientes está descrita Perfil na administração da Enfuvirtida na Tabela II. O tempo de preparo da medicaPacientes Características ção, segundo o relato das pacientes, varia de da Administração 10 a 40 minutos. Todas referem respeitar o A B C D de Enfuvirtida intervalo de 12 horas entre as doses, com exceção da paciente C que depende de um proAbdômen Abdômen Abdômen, braço Abdômen Local de aplicação fissional da saúde para realizar as aplicações. e braço e perna e glúteo e perna As reações adversas são usadas como Depende um um critério para a seleção do local no momenDepende de Se auto-aplica em Depende de Aplicações profissional familiares situações especiais* familiares to da aplicação, ou seja, aplicam-se onde há da saúde um menor número de nódulos ou que os mesGelo antes da Uso tópico de mos não estejam doloridos. Segundo relato, Manejo para aplicação e antiinflamatórios Não utiliza Uso tópico de diminuir as as reações se mantêm durante o tratamento, após bolsas de e bolsas de nada antiinflamatórios reações adversas que podem, às vezes, ser amenizadas pelo água quente água quente manejo adotado. No preparo Quanto à percepção ao uso da medicação Participa Participa Não participa Participa da medicação injetável, todas afirmam que a medicação me* Quando está fora de casa ou na ausência do familiar lhorou a resposta imunológica e para 4, incluRev. Bras. Farm., 89(4), 2008 Nódulos, coceira, dor e vermelhidão E Abdômen, braço e perna Se auto-aplica sempre Uso tópico de antiinflamatórios e bolsas de água quente Participa 309 amarrada naquilo, já deixei de tomar quando não estava afim ou estava cheia de caroço, isso não é freqüente... se o resultado cair daí eu não posso mais falhar" (A). "... dá uma depressão estas injeções... toma muita picada, te pica e te pica e não tem cura... dá uma revolta" (C). "O que mexe com a gente é saber que é a ultima cartada" (E); "melhorou a minha saúde, mas é claro que a gente quer se livrar disso tudo" (B). Avaliando os resultados desses estudos de caso, observase que a terapia com enfuvirtida conseguiu realizar o resgate terapêutico das 5 pacientes. No entanto, fica evidente que a necessidade de preparo diário do medicamento, a via de administração e as reações adversas no local da aplicação são fatores que podem influenciar na adesão ao tratamento, pois dificulta as atividades sociais, confirmando os dados da literatura (CHEARSKUL & et al., 2006; SANTOS, 2006; RIBERA & et al., 2007). Outro ponto que merece destaque é a dependência de outros para a realização das aplicações. Foi relatado pela paciente D a não adesão (não aplicação do medicamento) quando o familiar está ausente, o que pode estar refletido na carga viral. Já no caso da paciente C, o aumento pequeno no CD4 pode ser reflexo da administração em local não indicado pelo laboratório produtor, além de não adotar rigorosamente o intervalo de 12h entre as doses, fato este que ocorre por depender da disponibilidade de um profissional da saúde. É consenso entre as pacientes que a medicação oral é muito mais prática (mesmo que em algumas situações chegue a 16 doses diárias). No entanto, quatro das cinco pacientes podem ter desenvolvido resistência em função da não adesão terapêutica às terapias anteriores. A participação da equipe de saúde no monitoramento clínico e na motivação desses pacientes é importante para que haja adesão à enfuvirtida. CONCLUSÃO Os resultados desta pesquisa indicam que a enfuvirtida pode ser uma opção terapêutica em pacientes com múltiplas falhas terapêuticas, levando ao aumento de Linfócitos CD4 e à diminuição da carga viral. No entanto, a via de administração desse medicamento (que exige cuidados no preparo, causa reações adversas e muitas vezes exige a presença de uma outra pessoa para a aplicação) é apontada como principal dificuldade da adesão terapêutica. Portanto, mesmo que a medicação aumente a expectativa de vida dos pacientes, nem sempre ela é acompanhada do aumento da qualidade de vida segundo o relato das pacientes, e a participação da equipe de saúde é importante para que a adesão seja mantida. AGRADECIMENTOS Agradecemos aos profissionais de saúde vinculados ao Centro de Saúde e, em especial, aos pacientes que contribuíram nesta pesquisa. 310 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS DA PESQUISA Este trabalho foi realizado de acordo com as recomendações da Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Sul de Santa Catarina sob o código 06.122.4.03.III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. BRIZ, V; POVEDA, E & SORIANO, V. 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