TRADIÇÃO OU NÃO: AS RELAÇÕES ENTRE TRADIÇÃO MUSICAL

TRADIÇÃO OU NÃO: AS RELAÇÕES ENTRE TRADIÇÃO MUSICAL E
MERCADO MUSICAL A PARTIR DE DOIS DISCOS DE DANIEL
Victor Creti Bruzadelli1
RESUMO: Em tempode de internet e pulverização de conteúdos via web, discutir o
conceito de indústria cultural se tornou cada vez mais um terreno pantanoso, sobretudo
quando nos referimos à indústria fonográfica. A possível crise do mercado musical se
inicia em meados da década de 1990 e faz com que todas as formas clássicas de
acumulação de capital vinculadas ao mercado de bens simbólicos tenham de ser
repensadas procurando-se outras maneiras de se lucrar. É justamente nesse contexto que
o cantor Daniel se torna figura cativa para o mercado da música. Sua carreira nos
permite nos permite perceber todo um complexo de relações musicais, econômicas e
simbólicas que se encontravam em xeque no final da década de 1990. De cantor
sertanejo (com seu parceiro falecido João Paulo) à cantor romântico, Daniel sempre
esteve nas mass media com uma maneira bastante expressiva. Várias foram as táticas
mercadológicas utilizadas pela indústria para que os números de vendagens não
caíssem. Esse artigo se propõe a pensar uma dessas estratégias de vendagem: a
retomada da tradição musical sertaneja em sua obra.
PALAVRAS-CHAVE: Indústria fonográfica; tradição; cantor Daniel; música sertaneja
e música popular.
“Dinheiro a gente perde; tradição não!”
(Inezita Barroso)
“Quando comecei a dupla com João Paulo, meus modelos eram Chitãozinho
e Xororó. Hoje, procuro me espelhar em Roberto Carlos.”
(Daniel)
“Sabemos que o Brasil é um país de grande tradição musical”, enuncia Renato
Ortiz na primeira linha do prefácio da obra de Márcia Tosta Dias dedicada à
compreensão da indústria fonográfica brasileira (ORTIZ apud DIAS, 2008, p. 11).
Parafraseando-a, afirmo que o Brasil é um país de grandes tradições musicais. Se a
autora se refere à importância do Brasil enquanto produtor e divulgador de gêneros,
estilos e canções populares, afirmo que muitos desses gêneros populares foram
elencados ao status de tradição musical ao longo da formação e consolidação da
indústria fonográfica brasileira no século XX.
Essa noção de tradição musical brasileira sempre foi um elemento presente nos
discursos de críticos, artistas, empresários do ramo e nas conversas “de botequim” de
indivíduos que discutem apaixonadamente o tema da música popular brasileira. No
entanto, só na última década do século passado – passados quase 100 anos das primeiras
1
Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, campus
Goiânia, nível mestrado. Professor de história da rede particular de Goiânia. Email: [email protected].
1
gravações musicais no Brasil2 – é que esse tema tem sido incluído nas discussões
acadêmicas3 e, sobretudo, na historiografia brasileira. O conceito de tradição será
“reinventado” através dos escritos de Eric Hobsbawn e Terence Ranger na obra “A
invenção das tradições” organizado por ambos no publicado originalmente na décade de
1980, chegando no Brasil só na segunda metade da década de 1990. Como se percebe, a
obra se propõe a discutir as questões relativas ao processo de formação e invenção das
tradições.
Ainda no início do livro, Hobsbawn defende que
Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente
reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado (HOBSBAWN, 2002, p. 9).
A tradição, quando inventada, necessita de algo que a dote de veracidade e que a
justifique enquanto realidade acontecida, para que seja reconhecida enquanto tal
(PESAVENTO, 2003, p. 95), daí a necessidade da história e/ou do Estado corroborarem
tais modelos. Esse processo de invenção das tradições é “essencialmente um processo
de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que
apenas pela imposição da repetição” (HOBSBAWN, 2002, p. 12).
Ao analisar a “tradição” da música popular brasileira, o historiador Marcos
Napolitano, compreende que ela está sedimentada sobre um eixo que se inicia com o
samba, perpassa a bossa nova e finda com a MPB (NAPOLITANO, 2007, p. 6), três
gêneros considerados autenticamente nacionais. É claro que este constructo intelectual
exclui uma infinidade de outros gêneros e estilos que podem fazer parte da tradição
musical brasileira, como a moda de viola, o xote, o lundu, entre outros. Desta forma,
compreendemos que, para que algum projeto estético alcançasse o status de tradição
musical, outros tiveram que ser colocados em lugar de menor importância, evidenciando
que “a história da música popular no século XX revela um rico processo de luta e
conflito ideológico” (NAPOLITANO, 2005, p. 18). Desta forma, em consonância com
Napolitano e Wasserman, compreendo “a categoria da autenticidade, não como um
“O esperto [Frederico] Figner logo percebeu o potencial da novidade, sobretudo para o mercado
musical, incrementado pela invenção do disco de cera, e passou a fazer gravações de música brasileira a
partir de janeiro de 1902, num estúdio improvisado na rua do Ouvidor, 105.” (NAPOLITANO, 2007,
p.14).
3
Uma feliz exceção a esse hiato na produção acadêmica brasileira, antes da última década do século XX e
no início do próximo, pode ser encontrada na obra de Ortiz (1988).
2
2
traço inerente ao objeto ou ao evento ‘original’, mas uma reconstituição social, uma
convenção que deforma parcialmente o passado, mas que nem por isso deve ser pensada
sob o signo da falsidade” (2000, p. 168).
Esses gêneros musicais que estão “excluídos” dessa tríade musical proposta por
Napolitano, no entanto, são constantemente lembrados como gêneros musicais regionais
(tradição regional) e muitas vezes são retomados por músicos, críticos e pesquisadores
que se dedicam a tentar compreender a música brasileira de maneira mais ampla. Mas,
no geral, o que se considera a tradição musical brasileira é efetivamente esses três
gêneros.
Como exposto anteriormente, para que o samba, a Bossa Nova e a MPB
alcançassem a condição de receptáculos da tradição musical brasileira, tornando-se
referenciais simbólicos do Brasil e do próprio brasileiro, foi necessário um processo
lento de afirmação e constante reafirmação destes gêneros4 como “coisas nossas”, como
diria Noel Rosa, excluindo ou suprimindo uma infinidade de “outras bossas”. Para
Peter Burke, este é, inclusive, um dos mais fundamentais problemas com que nos
deparamos ao problematizar as tradições: pensar “o que” e “como” foi escolhido para
fazer parte da tradição e “o que” e “como” outras informações foram excluídas
(BURKE, 2005). Neste sentido, é necessário que se perceba que o
processo de invenção e consagração dessa tradição [musical brasileira] não se
deu sem conflitos, contradições e mediações das mais diversas, que, em
linhas gerais, acompanham a própria formação da nossa moderna identidade
nacional. Como toda identidade historicamente criada, muitos elementos
foram excluídos, muitos projetos foram agregados, formando um mosaico
complexo que dispõe lado a lado diversos fatores culturais: o local e o
universal, o nacional e o estrangeiro, o oral e o letrado, a tradição e
modernidade (NAPOLITANO, 2007, p. 6).
A noção de tradição, segundo Burke (2005) está diretamente relacionada à ideia
de cultura, já que pressupõe um conjunto de práticas e valores passados de uma geração
à outra. Ou seja, quando pensamos as tradições de determinado povo, temos que
As discussões a respeito da categoria “gêneros musicais” estão distantes da alçada do historiador, sendo
mais próxima das discussões dos musicólogos, ainda que sempre busquemos nos certificar de tais leituras.
Entretanto, entendemos que tanto o samba (e suas várias vertentes) quanto a bossa nova estão mais
próximos de tal classificação do que a chamada MPB. Amparamo-nos na conceituação de Napolitano,
segundo o qual: “A MPB passou a ser vista [a partir da década de 1970] cada vez menos como um gênero
musical específico e mais como um complexo cultural plural, e se consagrou como uma sigla que
funcionava como um filtro e organização do próprio mercado, propondo uma curiosa e problemática
simbiose entre valorização estética e sucesso mercantil” (NAPOLITANO, 2005, p. 72, grifos meus).
4
3
problematizar a própria cultura em que este está inserido e (re)produz. Entretanto, este
mesmo historiador afirma que a transmissão de uma tradição de uma geração à outra
significa, necessariamente, uma “criação contínua” (BURKE, 2005, p. 130) ou uma
recriação desta. “Neste sentido, a tradição é compreendida como atividade de seleção,
valoração, interpretação e afirmação do acervo cultural legado pelo passado”
(COUTINHO, s/d, p. 2).
Desta forma, acreditamos que toda a constituição de uma tradição é um projeto
que se vincula muito mais ao futuro que ao passado, já que ela definirá, num momento
posterior, todo um conjunto de referências a serem seguidas, discutidas e reverenciadas.
Assim sendo, a ideia de tradição coloca em contato as três distintas noções de tempo:
passado, presente e futuro. O passado seria o produtor daquela tradição, ainda que visto
de maneira mitificada e idealizada – por isso mais distante, do ponto de vista do uso
pragmático, que o presente e futuro, onde a tradição seria instrumentalizada. O presente
seria o momento em que se elevaria aquele conjunto de referências passadas (ou
inventadas) aos status de tradição e se reproduziria este constructo; todavia, essa
tradição constituída visaria um futuro produzido a partir dela e problematizado por
elementos vindos daquela matriz. Ou seja, a tradição, enquanto projeto, inventa um
passado, um presente e um futuro, mas sempre tendendo a criar de forma mais definitiva
esta última temporalidade. Essa noção de tradição encontra ainda mais espaço num
mundo “em processo acelerado de transformações políticas, econômicas e sociais como
é o mundo deste último quartel do século XX, [tornando] indispensável identificar os
contornos temporais e estruturais da consciência pessoal e coletiva que embasa o
discurso e a ação dos homens de hoje” (MARTINS, 1992, p. 60). Desta forma, já que a
tradição vincula as três temporalidades, pensá-la é buscar conhecer as ações dos
homens. “A ideia de ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ referencia a experiência da
construção social humana na noção de tempo, e o futuro, ou, os futuros, projetam as
inquietações que habitam o imaginário de homens e mulheres quanto às transformações
do corpus social do qual fazem parte” (MARTINS, 2004, p. 251).
Da maneira que compreendo aqui o conceito de tradição, ele se aproxima de
outros dois que nos são fundamentais: memória e história. Isso fica muito claro nos
dizeres de Jörn Rüsen,
“A memória torna o passado significativo, o mantém vivo e o torna uma parte
essencial da orientação cultural da vida presente. Essa orientação inclui uma
perspectiva futura e uma direção que molde todas as atividades e sofrimentos
4
humanos. A história é uma forma elaborada de memória, ela vai além dos
limites de uma vida individual. Ela trama as peças do passado rememorado
em uma unidade temporal aberta para o futuro, oferecendo às pessoas uma
interpretação da mudança temporal. Elas precisam dessa interpretação para
ajustar os movimentos temporais de suas próprias vidas.” (RÜSEN, 2009,
p.164, grifo meu)
Neste sentido, buscamos refutar a postura apresentada por Eduardo Granja
Coutinho, segundo o qual, há uma divisão no campo de estudo das tradições culturais
em dois grandes grupos: aqueles que apresentam uma postura “objetivista” da tradição –
a tradição vista como algo inerte e “intacta” no tempo – e aqueles que optam por uma
visão “subjetivista” do conceito – visto somente como constructo social elaborado no
presente com fins hegemônicos e nunca contra-hegemônicos. Segundo o autor,
As concepções metafísicas da cultura, sejam elas objetivistas ou subjetivistas,
enfatizam, cada qual, uma dessas dimensões da tradição, tendo em comum o
fato de desconsiderarem a articulação entre elas, isto é, o processo pelo qual
o homem através de sua práxis criadora transforma ativamente a realidade
sócio-cultural (s/d, p. 1).
Para o autor, as pesquisas em ciências humanas que buscam compreender o uso
do passado no presente, excluem de suas compreensões o caráter ativo do indivíduo que
problematiza essa tradição. Entretanto, muitos são os trabalhos que apresentam a
tradição como algo vivo, dinâmico e não “fossilisado”5. Nesse sentido, acredito que a
melhor forma de compreender o conceito de tradição e de seu uso é a partir da relação
estabelecida entre as concepções “objetivistas” e as “subjetivistas”.
Em geral, as obras de arte – dentre elas a música, nascem da tensão entre
inovação e tradição. É da fricção destes dois termos que surgirá um objeto artístico
novo. A inovação é a parte em que o artista põe em funcionamento seu “gênio criador”,
sua inspiração e seu projeto artístico. Entretanto, a inovação é perpassada por aspectos
da tradição, como os processos de formação do artista (por exemplo, se frequentou ou
não cursos regulares de música, no caso da canção), os meios de difusão de sua arte (se
a música é ou não gravada; se sim, em qual tipo de mídia), o conjunto de técnicas e
objetos que ele utilizará para produzi-la (procedimentos de gravação, instrumentação,
gênero em que irá compor), entre outros. Neste sentido, afirma Greenblatt que “a obra é
o produto de uma negociação entre um criador ou uma classe de criadores e as
5
A titulo de exemplo, podemos citar, Napolitano (2007), Paranhos (2003), Vianna (2007), Napolitano;
Wasserman (2000), Sousa (2008), entre diversos outros trabalhos que apresentam esta perspectiva de uso
do passado.
5
instituições e práticas da sociedade” (GREENBLATT apud FALCON, 2002, p. 88).
Desta forma, quaisquer canções que façam parte de uma determinada tradição podem
ser ressignificadas e recriadas ao dialogarem com artistas de outros tempos. Neste
mesmo sentido, Paranhos nos alerta que
canção alguma é uma ilha, mantida em regime de clausura, como se fosse
possível cortar os fios que a ligam a outras canções e a mil e um discursos e
referências sociais. Sem que se perca de vista sua singularidade, quando
ampliamos a escala de observação de um artefato cultural, pode-se verificar
que, dialeticamente, tudo está em interconexão universal, como que
dialogando entre si. No caso específico de uma canção, ela, para dizer o
mínimo, está permanentemente grávida de outras canções, com as quais
entretém um constante diálogo, seja ele implícito ou explícito, consciente ou
inconsciente (PARANHOS, 2007, p. 1-2).
No sentido apontado por Paranhos, vamos percebendo, assim como afirma
Greenblatt, que o universo artístico, com ênfase no musical, se afirma sempre a partir de
um dialogismo muitas das vezes vinculado à tradição. Esta fato se torna ainda mais
interessante quando percebemos a onipresença da indústria cultural no ambiente musical
brasileiro a partir da década de 1970.
Indústria cultural é um conceito elaborado pelos sociólogos alemães Theodor W.
Adorno e Max Horkheimer, na obra “Dialética do esclarecimento”, que busca
compreender o fenômeno da mercantilização da arte e, mais especificamente, a música
popular. Ao se referir especificamente a Adorno, Napolitano afirma que ele
“vislumbrava a música popular como a realização mais perfeita da ideologia do
capitalismo monopolista: indústria travestida em arte” (NAPOLITANO, 2005, p. 21).
Com uma visão um tanto aristocrática e romântica da arte, dividindo-a em erudita e
folclórica de uma lado e a música industrial de outro, Adorno vê a canção popular –
intimamente ligada à indústria fonográfica – como algo que deturpa tanto a qualidade
artística da música erudita quanto a autenticidade da folclórica, domesticando-a
(ADORNO, 1986, p. 92-93).
Para Adorno, o termo indústria cultural diz, basicamente, respeito a duas coisas:
a inserção das tecnologias no processo de “fabricação” da música (técnicas de gravação,
gestão financeira, maneiras de distribuição), bem como, e mais importante, a
organização da produção cultural segundo a lógica do capital e do lucro. Ou seja, a
indústria cultural seria a responsável por ordenar o mercado de canções segundo uma
ótica financeira, dando mais centralidade ao valor de troca de uma obra, minimizando
6
seu valor de uso. Para que a venda de canções se torne mais eficaz, a indústria cultural
se utiliza das técnicas mais avançadas de organização da indústria, como a divisão do
trabalho, a racionalização e a inserção de tecnologias na produção e, sobretudo, um
poderoso esquema de marketing e distribuição do produto.
Segundo Adorno, este cenário de construção artística leva, no limite, à
estandardização da música, diminuindo a parcela de criação individual do artista – ainda
que ela exista –, tornando a arte algo esvaziado de sentido e dos demais aspectos
subjetivos relacionados à produção artística. Numa postura diferente, Edgar Morin
afirmará que a
indústria
cultural
fundamental
entre
deve
suas
constantemente
estruturas
suplantar
uma
contradição
burocratizadas-padronizadas
e
a
originalidade do produto que ela fornece. Seu fundamento se fundamenta
nesses
dois
antitéticos:
burocracia-invenção,
padrão-individualidade
(MORIN apud ORTIZ, 1999, p. 147).
A indústria cultural, a todo instante, busca definir-se e valorizar apenas como um
instrumento artístico construindo, dialeticamente, uma obra de arte marcada pela
ideologia do consumo, pelos modismos, por uma passividade alienada frente ao mundo
da arte. Nos dizeres de Dias,
O esquematismo da produção na indústria cultural e sua subordinação ao
planejamento econômico promovem a fabricação de mercadorias culturais
idênticas; pequenos detalhes atuam sempre no sentido de conferir-lhes uma
ilusória aura de distinção. A obra de arte, que era anteriormente veículo da
ideia, foi completamente dominada pelo detalhe técnico, pelo efeito,
substituída pela fórmula (DIAS, 2008, p. 31).
Como havia alertado Renato Ortiz anteriormente, a indústria cultural precisa
promover o “novo”, ainda que essa novidade seja elaborada seguindo os mesmos
parâmetros e princípios estéticos e políticos anteriores. Ao criar a novidade, a indústria
promove o consumo daquele produto. Ao não se distanciar muito das fórmulas
consagradas pelos lucros das grandes vendagens as gravadoras impedem um possível
estranhamento frente ao inusitado, que poderia ameaçar o sucesso monetário da
gravação. A base de reprodução econômica e ideológica dessas empresas é, portanto,
(re)criação do mesmo através de novas roupagens – moda – que em quase nada se
afastam do original. Nesta perspectiva, naturalizam um discurso liberal para que possam
efetivar seus lucros. “Os promotores da diversão comercializada lavam as mãos ao
7
afirmarem que estão dando às massas o que elas querem” (ADORNO; HORKHEIMER
apud DIAS, 2008, p.33).
Nessa lógica de mercado, a produção cultural ficaria pressionada por uma
necessidade de se reinventar, mas a ruptura com o passado não poderia ser muito radical
ou profunda. Isso gera um fato interessante no mercado musical brasileiro: alguns
músicos utilizam gêneros musicais anteriores para criar um clima de “autenticidade” em
músicas que muito se distanciam do anterior. Esse fenômeno fica evidente quando
analisamos a chamada “música sertaneja romântica” da década de 1990, que em vários
momentos tenta se aproximar da música caipira.
A música caipira e suas variações perpassam todo o século XX e as elas são
atribuídas, de maneira muito constante uma certa autenticidade. Esse fator pode estar
vinculado à própria história de formação e afirmação dos diversos gêneros caipiras. Um
dos motivos da sua pretensa autenticidade seria talvez o fato de que o caipira – assim
como a primeira proposta identidade nacional brasileira, elaborada ainda nos primeiros
anos do IHGB – teria uma natureza miscigenada e, consequentemente, forte. Como
atesta Nepomuceno “A mistura do sangue do índio com o do colonizador e dos negros
escravos resultou num homem forte, que se achava capaz de amoldar-se a outras fôrmas
culturais” (1999, p. 33). Outro elemento que talvez ateste essa autenticidade é o fato de
essas músicas terem se associado aos festejos católicos populares, permitindo uma
grande capilaridade na sociedade e cultura brasileira, sendo presente em praticamente
todo centro sul do país. Essa presença ubíqua tem também o dado de a viola – principal
instrumento caipira – ter estado presente, segundo Nepomuceno, tanto nas rotas
bandeirantes quanto nas rotas tropeiras e, posteriormente entre os boiadeiros, que
interligaram o Brasil nos séculos XVIII, XIX e XX (NEPOMUCENO, 1999, p. 80).
No Brasil, o amplo e diversificado repertório musical produzido
especialmente a partir da entrada da indústria fonográfica no país, no início
do século XX, revela múltiplas configurações identitárias. Especialmente o
segmento reconhecido como música caipira ou sertaneja, composto por
produções que se remetem às tradições e à vida do homem do campo do
interior da região sudeste do Brasil (ZAN, 2008, p. 3).
O principal instrumento caipira, inclusive, daria nome à “expressão musical mais
típica do caipira”: a moda de viola, que “caiu no gosto popular” e tornou-se “o cartãode-visita da música rural na cidade” (NEPOMUCENO, 1999, p. 68). As primeiras
gravações deste gênero datam de 1929 e são, na verdade, um conjunto de compilações
de letras e músicas anônimas encontradas, sobretudo, no interior de São Paulo. Essas
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modas de viola se caracterizariam por serem cantadas em duos, com andamentos lentos,
versos longos, bastante narrativos e tom recitativo que são entremeados por refrãos ao
longo da canção. A partir de então, um sem número de duplas sertanejas passam a
gravar o que a crítica, os artistas e os produtores musicais convencionaram chamar de
“música sertaneja de raiz”, evidenciando um possível apelo à uma tradição original.
A indústria cultural, ao longo do século XX, foi se apropriando dessa produção
artística sertaneja – de raiz ou não – das maneiras mais diferenciadas. De Catulo da
Paixão Cearense, por volta de 1910, à Gusttavo Lima, um século depois, a música
sertaneja esteve presente como produto viável ao consumidor, seja na era das partituras
ou das gravações em cera, LP’s, festivais da canção, telenovelas, cinema, CD’s e MP3.
Este caminho, obviamente não foi homogêneo, mas o que se percebe constantemente é
que essa música se reinventou e se adaptou aos mais diferentes contextos históricos e
meios de difusão do objeto artístico, atraindo um variado público apreciador dessas
canções. Essas canções compõe, apesar de o nome nos dar uma impressão integradora,
um corpus documental bastante heterogêneo, tanto nos aspectos propriamente musicais
(não-verbais) quanto nos poéticos.
Esta percepção nos leva a uma outra indagação: É possível perceber algum
elemento comum a todas essas manifestações musicais que se (auto)intitulam
sertanejas? Uma resposta propriamente estético-musical nos parece impensável, no
entanto, um caminho pode ser encontrado nos discursos elaborados pelos agentes
musicais e pelo público consumidor deste tipo de canções: todas essas canções
acreditam ser portadoras de elementos “autênticos”, por mais que pareçam distantes das
matrizes culturais do sertão.
Segundo o psiquiatra Richard Peterson, ao refletir sobre a música country dos
EUA, afirma que “a autenticidade [ou raiz] não é um traço inerente ao objeto ou ao
acontecimento que se declara autêntico; trata-se de fato de uma construção social que
deforma parcialmente o passado” (PETERSON apud VIANNA, 2007, p. 35). Na
verdade, a ideia de “autenticidade” deforma uma construção feita sobre o passado
(história ou memória) que nem sempre condiz com uma história numenal (história
acontecida). Nesse sentido, a autenticidade pode ser encarada também como um apelo à
tradição e à raiz.
Por mais que este apelo seja corrente em discursos dos mais variados, ao
observarmos as mais distintas produções musicais este argumento não se sustenta, como
reforça José Roberto Zan, a respeito da interferência das questões técnicas de gravação
9
no produto final das canções, “quando se transformaram em artistas urbanos [os
sertanejos] não puderam gravar as mesmas músicas que cantavam na fazenda. O
próprio disco de 78 rpm impunha uma limitação de tempo à música, pois comportava
aproximadamente 3 minutos de gravação em cada lado” (ZAN, 2008, p.4). Neste
sentido, a música do sertão, ao ser apropriada pelo mercado de bens simbólicos, já
estaria desterritorializada e, portanto, em processo de ruptura com aquele mundo onde
originalmente eram produzidas.
Nas décadas de 1980 e, principalmente 1990, as transformações sociais oriundas
do recrudescimento cada vez maior do regime militar no decênio anterior e o
desenvolvimento rápido da indústria fonográfica no Brasil – com sua crescente
segmentação – fez surgir um novo gênero de origem rural: o “sertanejo romântico”,
também denominado de “sertanejo pop” ou “neo sertanejo”. Duplas como Zezé di
Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó, Jean e Giovani, João
Paulo e Daniel, entre diversas outras começam a disputar o mercado nacional de
música, não estando mais restritos ao universo do interior do centro-sul do país. E nem
poderiam amis estar restritos a este ambiente, vinham com um fôlego de modernização
bastante grande. O chapéu de palha e a viola, dos antigos caipiras, foram sendo
substituídos por cabelos bem penteados e aparados e instrumentos elétricos como
guitarras e contrabaixos. Os artistas vão buscar referências musicais em outros estilos
musicais que não propriamente a moda de viola, o country music americano e a Jovem
Guarda da década de 1960 são diluídos no meio de uma música híbrida, marcadamente
romântica, e com cada vez menos elementos próximos da música caipira.
Estes sertanejos românticos encontram um ambiente propício para difusão de
seus novos produtos: a indústria fonográfica, sobretudo as majors, buscavam
avidamente novidades que pudessem se tornar atraentes ao grande público consumidor.
Isso pode ser expressado pela análise dos números de vendagem dos chamados gêneros
sertanejos no mercado musical brasileiro: entre os anos de 1965 e 1989, entre os 50
discos brasileiros mais vendidos anualmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
figuram apenas 7 LP’s sertanejos; enquanto que entre os anos de 1990 e 1999, na
mesma pesquisa, temos 34 discos do mesmo gênero (tendo o ápice o ano de 1996, com
10% do mercado musical, de acordo com o índice NOPEM)6. O crescimento é
6
Estes números se apoiam no índice NOPEM (Nelson Oliveira Pesquisas de Mercado), criado em 1965
para pesquisar a vendagem de discos nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Por mais problemática
que seja este índice, ele é o único que se estende do período de sua criação até o fim do século XX. No
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impressionante e se se torna ainda mais fantástico quando percebemos que a pesquisa de
mercado é feita somente nas duas principais cidades do país. Possivelmente, apesar de
não podermos afirmar com certeza, o consumo dos discos caipiras e sertanejos era
imensamente maior nos sertões e interiores do país. Estes discos, segundo Vicente, eram
comercializados no
formato dos ‘discos populares’, de preços bastante inferiores àqueles
adotados na comercialização de discos de MPB e música internacional. Na
minha opinião, as empresas internacionais parecem não haver demonstrado,
antes dos anos 1990, capacidade de explorar adequadamente os mercados
vinculados a segmentos regionais, tanto que sua inserção mais vigorosa se
deu, nessa época, especialmente após a venda de gravadoras tradicionais do
setor, como a Continental, adquirida pela Warner em 1994, e a Copacabana,
absorvida pela EMI em 1992 (VICENTE, 2008, p. p.118).
Compondo essa lista em 1997 aparece a dupla João Paulo & Daniel, com o
álbum João Paulo & Daniel volume 8 – com vendagem estimada em mais de 750 mil
cópias7. A dupla que havia se formado na cidade de Brotas, no interior de São Paulo, no
ano de 1985, só conseguiu alcançar o sucesso somente no ano de falecimento de João
Paulo (num acidente de carro entre São Paulo e sua cidade natal). A carreira solo de
Daniel foi rapidamente engatilhada através da Warner que, segundo Nepomuceno,
acreditava que ele “estava a destinado a se tornar [seu] menino de ouro”
(NEPOMUCENO, 1999, p. 213). No ano seguinte já estava sendo lançado o primeiro
disco do cantor que receberia o seu próprio nome (imagem 1).
O disco receberá o prêmio da ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de
Discos) com o “Disco de Diamante”, premiação máxima do órgão que representava na
época uma vendagem acima 1 milhão de cópias vendidas. Neste disco, um conjunto de
canções do universo romântico com levadas pop são gravadas, contando com solos de
guitarras, presença de baixo e bateria. As composições são assinadas por músicos como
Peninha, famoso por um sentimentalismo exagerado, e Lulu Santos, ícone do pop rock
brasileiro. A análise da capa do disco já nos remete a um universo moderno, com uma
foto do cantor, num fundo que parece ser uma tela abstrata. O pouco que é possível
que se refere ao pequeno recorte espacial da pesquisa, vale ressalvar que estes dois estados eram os
responsáveis por cerca de dois terços do mercado nacional de discos, além do fato que lojas de discos de
regiões mais afastadas compravam LP’s de lojas nas duas capitais para revenderem em suas regiões. Estes
dados encontram-se disponíveis em VICENTE (2008).
7
Estas informações foram retiradas de quatro fontes distintas: 1) o site do cantor Daniel
<http://www.daniel.art.br/>, acesso em 15/03/2014; 2) na obra de NEPOMUCENO (1999); 3) no artigo
de VICENTE (2008); e 4) no site coletivo Wikipédia <http://pt.wikipedia.org/wiki/>, acesso em
15/03/2014.
11
perceber das vestimentas do cantor mostram um paletó e camisas pretas, muito distante
dos costumeiros chapelões e camisas xadrez dos antigos caipiras. O olhar do cantor na
foto busca reforçar o tom romântico presente em canções como Adoro amar você e
Peão apaixonado, que compõe o repertório do disco. Segundo Nepomuceno, com este
disco, o cachê de shows do cantor mais que duplicou.
O hit8 Adoro amar você, inclusive, tornou-se sucesso imediato e impulsionou
ainda mais a carreira já solidificada do cantor. Analisemos a canção:
Adoro amar você
(Peninha/ Elias Muniz)
Tá no meu paladar
Tá no meu olhar, olhando
Seu amor, meu amor
Fica latejando em mim
Tá no meu coração
Na luz do luar, “luando”
Fui me entregando
Dessa vez me pegou
Nunca foi tão bom assim
Quando não “tô” legal
Se estou mal eu te chamo
Quando me sinto em paz
Eu te amo, te amo
“Tô” afim de ficar com você
Mais uns 200 anos
Venha cá, menina
Vem dizer que me ama
Na vida, na morte
Na dor e na cama
O meu corpo precisa do seu
E a minha alma te chama
Ah! Eu adoro amar você
Como eu te quero
Eu jamais quis
Você me faz sonhar
Me faz realizar
Me faz crescer
Me faz feliz
O amor que existe
Entre nós dois
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A presença do hit, segundo Márcia Tosta Dias, é algo é contínuo e persistente na história da música
popular a partir da indústria cultural. Isso se deve, entre outras coisas, ao “esquematismo da produção na
indústria cultural e sua subordinação ao planejamento econômico [que] promovem a fabricação de
mercadorias culturais idênticas; pequenos detalhes atuam sempre no sentido de conferir-lhes uma ilusória
aura de distinção. A obra de arte, que era anteriormente veículo da ideia, foi completamente dominada
pelo detalhe técnico, pelo efeito, substituída pela fórmula. Estes atingem igualmente o todo e a parte,
fazendo com que não exista nenhuma conexão entre eles, além da harmonia artificial. Essa mesmice, no
entanto, acaba sendo o motivo de regozijo: ao ser apresentado [...] o sempre mesmo ponto alto da canção,
surge o contentamento por meio do reconhecimento” (DIAS, 2008, p. 31)
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É tudo que eu sonhei
Pra mim
É mais do que paixão
É mais do que prazer
Amor que não tem fim!
A canção inicia com um solo de guitarra que rapidamente será entrecortado por
um riff de teclado, os dois instrumentos vão criando uma sensação de gradação
preparando o ambiente para a introdução da canção. As primeiras estrofes são cantadas
de maneira com uma voz que revelam um dramático que é ainda aumentado nos refrãos,
fato que acompanhado pela intensidade sonoro dos solos de guitarra, com o intuito de
teatralizar de maneira bastante evidente o sofrimento do eu-lírico da canção. Nestes
mesmos refrãos aparecem a voz de backing vocals femininas que reforçam verbalmente
a ideia e os sentimentos expressos pela canção. Os instrumentos musicais tipicamente
sertanejos, como a viola, não aparecem; os andamentos e ritmos tradicionais são
deixados de lado, bem como a estrutura de canto em vozes em terça maior. Como se
pode perceber, o sertanejo Daniel não apresenta nada de sertanejo.
Para esta canção, inclusive, foi gravado um videoclipe no mesmo ano. A
maneira como ele é elaborado também busca modernizar a figura do músico, tal qual
um ícone pop da cultura do cinema. O vídeo apresenta apenas o cantor em um ambiente
fechado decorado por uma pintura similar ao background da capa disco, com closes em
seu rosto e olhar em diversos instantes. Alguns efeitos visuais são utilizados tanto para
reforçar o caráter melodramático da música e intimista do videoclipe quanto para
demonstrar a atualidade daquele produto. O principal deles é o fato de o artista, em
alguns momentos do clipe, aparecer em preto e branco enquanto o fundo mantem-se
colorido; outro seriam os jogos de luz que destacariam o olhar do cantor em momentos
em que essa palavra era citada no canto.
Para Márcia Tosta Dias, na aceitação de um produto-canção, é necessário que o
público se reconheça nele. Quando se trata de um hit, este fator se torna ainda mais
imprescindível (DIAS, 2008). O videoclipe utiliza-se de alguns clichês para acelerar e
facilitar esse reconhecimento, como o close do olhar quando de sua aparição na letra,
como supra citado; ou o sentimentalismo exagerado e forçado através do gestual do
cantor que, a cada vez que inicia o canto do refrão, fecha uma das mãos atraindo-a em
direção ao peito (coração?) como forma de expressar o quanto adora amar o seu objeto
de desejo.
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No entanto, esta postura de extremo romantismo é rompida em outro projeto
musical de Daniel. No ano 2000, o cantor lança outro disco, que também terá uma
vendagem bastante expressiva – “Disco de Platina”, segundo a ABPD, ou seja, com
mais de 250 mil cópias vendidas –, intitulado Meu reino encantado (imagem 2). Neste
álbum, Daniel gravará músicas consideradas clássicas do universo sertanejo, como
Moreninha linda e Cuitelinho. Todas as canções do disco são gravadas contando com
parcerias, algumas delas com músicos de grande renome e credibilidade no universo
caipira, como Tinoco (da dupla Tonico & Tinoco), Pedro Bento e Zé da Estrada,
Milionário e José Rico, entre outros9. O sucesso do disco junto ao público e à crítica
alavancou a produção de mais dois discos vinculados ao mesmo projeto: Meu reino
encantado II, em 2004, e Meu reino encantado III, no ano seguinte.
A capa do álbum também nos permite perceber a busca de ressignificação de si
mesmo e de seu projeto artístico. A arte gráfica mostra o cantor abraçado a uma viola
caipira – é possível perceber as seis cordas duplas – tendo ao fundo uma belíssima foto
de alguns cavaleiros montados ao pôr do sol. O instrumento fundamental da música
caipira é ali retomado, desde a capa às canções, como que tutelando seu retorno às
“raízes” do gênero musical. Tal concepção é ainda mais reforçada pela contracapa do
disco (figura 3), que traz uma imensa boiada sendo guiada por um peão de boiadeiro
tocando um berrante. A busca das raízes, no entanto, não representa uma ruptura total,
já que a roupa trajada pelo músico na capa do disco parece-nos contemporânea ao
período da gravação e não efetivamente um retorno à tradição caipira.
A canção que dá título ao disco é gravada como a primeira faixa do álbum e se
tornou o principal single do cantor naquele ano. Segue a letra da canção:
Meu reino encantado
(Valdemar Reis/ Vicente F. Machado)
Eu nasci num recanto feliz
Bem distante da povoação
Foi ali que eu vivi muitos anos
Com papai mamãe e os irmãos
Nossa casa era uma casa grande
Na encosta de um espigão
Um cercado pra apartar bezerro
E ao lado um grande mangueirão
9
O cantor regionalista Almir Sater também fará participação especial no disco cantando a sua Tocando
em frente (em parceria com Renato Teixeira), gerando uma espécie de tutela ao disco, como algo de
qualidade para além do universo sertanejo. O disco ainda traz uma homenagem póstuma à seu parceiro
João Paulo, com a canção Poeira da estrada.
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No quintal tinha um forno de lenha
E um pomar onde as aves “cantava”
Um coberto pra guardar o pilão
E as traias que papai usava
De manhã eu “ia no” paiol
Um espiga de milho eu pegava
Debulhava e jogava no chão
Num instante as galinhas juntava
Nosso carro de boi conservado
Quatro juntas de bois de primeira
Quatro cangas, dezesseis canzis
Encostados no pé da figueira
Todo sábado eu “ia na” vila
Fazer compras para semana inteira
O papai ia gritando com os bois
Eu na frente ia abrindo as porteiras
Nosso sítio que era pequeno
Pelas grandes fazendas cercado
Precisamos vender a propriedade
Para um grande criador de gado
E partimos pra a cidade grande
A saudade partiu ao meu lado
A lavoura virou colonião
E acabou-se meu reino encantado
Hoje ali só existem três coisas
Que o tempo ainda não deu fim
A tapera velha desabada
E a figueira acenando pra mim
E por último marcou saudade
De um tempo bom que já se foi
Esquecido em baixo da figueira
Nosso velho carro de boi
Como se pode perceber, canção conta a história das lembranças de infância do
eu-lírico, no seu pequeno sítio em algum canto do sertão do Brasil e elabora uma
narrativa a respeito das atividades do menino sertanejo junto a seu pai. A canção é
interpretada por Daniel e seu pai, José Camilo, o que reforça ainda mais o caráter idílico
dos fatos que a canção narra. Ao lembrar da infância e do sertão da infância, Valdemar
Reis e Vicente F. Machado provavelmente lembram-se não de um sertão como ele de
fato era (“sertão-coisa”), mas sim um sertão imaginado e elaborado segundo os critérios
nostálgicos (“sertão-ideia”)10.
10
Para o antropólogo Sidney Valadares Pimentel existem duas categorias para se entender o sertão nas
ciências sociais. A primeira, já encontrada em escritos desde início da colonização é a mais difundida e o
vê como um lugar distante de centros urbanos, espaço não-civilizado, onde há um vácuo de moral e
inteligência, categoria denominada “sertão-coisa”. Uma segunda, não o vê com algo concreto ou palpável,
aqui ele é uma “ideia ou um conjunto de ideias sobre que se fala de fora, mas como se o dono da fala se
expressasse de dentro”, este é o “sertão-ideia”. Nessa última perspectiva o sertão “assume uma
diversidade que não possuía antes” (Pimentel, 2006: p. 11-12). Ainda na última acepção, ele pode ser
considerado um conjunto de símbolos, de costumes, de modos de falar, entre outros.
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Neste sentido, temos um sertão imaginário descrito através de imagens
bucólicas, modelo típico da canção caipira, sobretudo a moda de viola. Nísia Trindade
Lima, ao retomar a etnografia sertaneja construída por Roquette Pinto, lembra que a
relação com a natureza parece ser o aspecto mais valorizado do sertanejo (LIMA, 1999,
p. 130-131). Esse fator simbólico é ainda mais marcante, quando notamos que o mundo
encantado é, na verdade, a terra natal do eu-lírico (Eu nasci num recanto feliz/ Bem
distante da povoação/Foi ali que eu vivi muitos anos). Segundo Mircea Eliade os
simbolismos ligados à terra natal relacionam-se, nas diversas religiões pré-cristãs, à
ideia de “centro do mundo” e lugar de equilíbrio e perfeição do mundo (ELIADE, 1992,
p. 38-39).
No entanto, esse lugar idílico é rompido devido a presença do desenvolvimento
capitalista da região que acaba expulsando os pequenos proprietários para outro lugar,
provavelmente a cidade. A canção é uma espécie de retorno àquele ambiente, por parte
de um caipira desterritorializado que sofre com um banzo peculiar por estar longe de
seu “reino encantado”. Quando dizemos encantamento, lembramos efetivamente das
teorias de Max Weber a respeito do desencantamento de mundo na modernidade,
processo esse que o eu-lírico é obrigado a passar ainda que sentindo saudade de seu
lugar de origem. “Por sermos seres de memória, por lembrarmos, mantemos com o
tempo uma relação particular, uma relação não apenas racional, mas sensível, não
apenas objetiva, mas subjetiva, uma relação marcada pela aceitação e pela repulsa”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 117-118) e é justamente essas duas últimas
forças que impelem o eu-lírico a cantar, para fixar aquelas memórias no tempo.
Daniel, ao interpretá-la ao lado de seu pai, “respeita” o tom saudosista da canção
mantendo os mesmos aspectos musicais das gravações consagradas dessa canção feitas
por Tião Carreiro & Pardinho e João Mulato & Douradinho. A viola é o principal
instrumento e é tocado à maneira dos antigos violeiros enquanto que a impostação vocal
busca se aproximar das gravações originais. Ao gravar essa canção Daniel não rompe
com os desígnios da indústria cultural que busca sempre a “falsa novidade” dos hits, ele
na verdade, atende a uma outra exigência dessa indústria: a necessidade de legitimação
externa dos discursos por ela proferidos. Daniel torna-se novamente sertanejo por gravar
música caipira: “mata-se” a saudade do sertão e vende-se mais discos, objetivo final
dessa indústria.
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ANEXOS:
Imagem 1: Capa do disco Daniel, do cantor homônimo, lançado em 1998.
Imagem 2: Capa do disco Meu reino encantado, de Daniel, lançado em 2000.
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Imagem 3: Capa do disco Meu reino encantado, de Daniel, lançado em 2000.
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