O que é realmente o socialismo e qual o seu maior problema

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O que é realmente o socialismo e qual o seu
maior problema
por Jesús Huerta de Soto, quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Não há nada mais
prático do que
uma boa teoria.
Por isso,
proponho-me a
explicar em
termos teóricos o
que é o
socialismo e por
que ele não
apenas é um erro
intelectual, como
também é uma
impossibilidade
Sim, vivemos sob o socialismo
científica.
Mostrarei por que ele se desmoronou — ao menos o socialismo real — e por que o
socialismo que segue existindo na forma de intervencionismo econômico nos países
ocidentais é o principal culpado pelas tensões e conflitos de que padece o mundo atual.
Ainda estamos vivendo em um mundo essencialmente socialista, não obstante a queda do
Muro de Berlim; e continuamos tolerando os efeitos que, segundo a teoria, são próprios
da intervenção do estado sobre a vida social.
Para definir o socialismo, é necessário antes entendermos o conceito de "função
empresarial". Os teóricos da economia dizem que a função empresarial é uma
capacidade inata do ser humano. Não estamos nos referindo aqui ao empresário típico
que leva adiante um empreendimento. Estamos nos referindo, isso sim, à capacidade
inata que todo ser humano tem de descobrir, criar, tomar conhecimento das
oportunidades de lucro que surgem ao seu redor e atuar de modo a se aproveitar das
mesmas.
Com efeito, etimologicamente, a palavra 'empresário' evoca o descobridor, alguém que
percebe algo e aproveita a oportunidade. Em termos mais figurativos, seria a lâmpada
que se acende.
A função empresarial é a mais essencial das capacidades do ser humano. Essa
capacidade de criar e de descobrir coisas é o que, por natureza, mais nos distingue dos
animais. Neste sentido geral, o ser humano, mais do que um homo sapiens é um homo
empresario.
Quem seria, portanto, um empresário? Não se trata apenas de Henry Ford ou de Bill
Gates, que sem dúvida alguma são grandes empresários no âmbito comercial e
econômico. Um empresário é toda e qualquer pessoa que tenha uma visão criativa, uma
visão revolucionária. Madre Teresa de Calcutá, por exemplo. Sua missão era ajudar aos
mais necessitados, e ela buscava fazer isso de forma criativa, unindo voluntários e
canalizando os desejos de todos para o seu objetivo. Por isso, Teresa de Calcutá foi um
exemplo paradigmático de empresário.
Portanto, entendamos a função empresarial como sendo a mais íntima característica de
nossa natureza como seres humanos, a característica que explica o surgimento da
sociedade e o seu desenvolvimento como uma extremamente complicada rede de
interações. A sociedade é formada por inúmeras relações de interação e troca entre
indivíduos, relações estas que são empreendidas porque, de alguma forma, imaginamos
que estaremos melhor após elas. Todas estas relações são impulsionadas por nosso
espírito empresarial.
Todo ato empresarial produz uma sequência de três etapas.
A primeira consiste na criação da informação: quando um empresário descobre ou cria
uma ideia nova; quando ele gera em sua mente uma informação que antes não existia.
Para colocar essa descoberta em prática, ele parte para a segunda etapa, que é quando
ele combina recursos para satisfazer necessidades. Se, de um lado, ele percebe que há
um recurso barato e mal aproveitado, e, do outro, ele descobre que há demandas que
podem ser satisfeitas com este recurso, ele irá atuar de modo a coordenar este
"desarranjo". Ele irá comprar barato o recurso, utilizá-lo, transformá-lo, e vendê-lo a um
preço maior, satisfazendo assim a demanda que ele havia percebido.
Desta forma, a informação é transmitida a todos, o que nos leva à terceira e última
etapa, que é quando os agentes econômicos, atuando de maneira descoordenada,
observam, aprendem e descobrem que devem conservar e economizar melhor um
determinado recurso porque alguém o está demandando.
Estes são os três planos que completam a sequência: criação de informação, transmissão
de informação e, o mais importante, o efeito de coordenação gerado pelas duas etapas
anteriores.
Desde o momento em que acordamos e nos levantamos da cama até o momento em que
voltamos a dormir, disciplinamos nosso comportamento em função das mais distintas
necessidades, em função das necessidades de pessoas que nem sequer conhecemos; e
fazemos isso por iniciativa própria porque, seguindo nosso próprio interesse empresarial,
sabemos que assim saímos ganhando. É importante entendermos tudo isso porque, em
contraste, vejamos agora o que é o socialismo.
O socialismo deve ser definido como sendo "todo e qualquer sistema de agressão
institucional e sistemática contra o livre exercício da função empresarial". O socialismo
consiste em um sistema de intervenção que se impõe pela força, utilizando todos os
meios coercitivos do estado.
O socialismo poderá apresentar determinados objetivos como sendo bons, mas terá de
impor estes objetivos supostamente bons por meio de intervenções coercivas que
provocarão distúrbios neste processo de cooperação social protagonizado pelos
empresários. Sendo assim — e essa é sua principal característica —, o socialismo funciona
por meio da coerção. Esta definição é muito importante porque os socialistas sempre
querem ocultar sua face coerciva, a qual é a essência mais distintiva de seu sistema.
A coerção consiste em utilizar a violência para obrigar alguém a fazer algo. De um lado
temos a coerção do criminoso de rua que assalta um indivíduo qualquer; de outro temos
a coerção do estado, que é a coerção que caracteriza o socialismo. Quando a coerção é
aleatória, não sistemática, o mercado tem, na medida do possível, seus próprios
mecanismos para definir direitos de propriedade e defender-se da criminalidade.
Porém, se a coerção é sistemática e advém institucionalmente de um estado que detém
todos os instrumentos do poder, a possibilidade de nos defendermos destes instrumentos
e evitá-los é muito reduzida. É neste ponto que o socialismo manifesta sua realidade em
toda a sua crueza.
O socialismo não deve ser definido unicamente em termos de propriedade pública ou
privada dos meios de produção. Isso é um arcaísmo. A essência do socialismo é a
coerção, a coerção institucional oriunda do estado, por meio da qual se pretende que um
órgão planejador se encarregue de todas as tarefas supostamente necessárias para se
coordenar toda uma sociedade.
A responsabilidade é retirada à força dos indivíduos — que são naturalmente os únicos
responsáveis por sua função empresarial, e que almejam seus objetivos e querem
alcançá-los utilizando os meios mais adequados para tal — e repassada a um órgão
planejador que, "lá de cima", pretende impor por meio da coerção sua visão específica de
mundo e seus objetivos particulares.
[N. do E.: no Brasil, pense nas agências reguladoras que cartelizam todo o mercado e
impedem a livre iniciativa e a livre concorrência, em todos os ministérios que impõem a
agenda de seus integrantes sobre toda a população brasileira, em toda a burocracia que
atrapalha o empreendedorismo dos pequenos, e em toda a carga tributária que impede o
surgimento de novas empresas].
Nesta definição de socialismo, vale enfatizar que é irrelevante se este órgão planejador
foi ou não eleito democraticamente. O teorema da impossibilidade do socialismo se
mantém intacto, sem nenhuma modificação, independentemente de ser democrática ou
não a origem do órgão planejador que quer impor à força a coordenação de toda a
sociedade.
Definido o socialismo desta maneira, expliquemos então por que ele é um erro
intelectual.
O socialismo é um erro intelectual porque é impossível que o órgão planejador
encarregado de exercer a coerção para coordenar a sociedade obtenha todas as
informações de que necessita para fornecer um conteúdo coordenador às suas ordens.
Este é o grande paradoxo do socialismo, e o seu maior problema. O planejador da
economia necessita receber um fluxo ininterrupto e crescente de informação, de
conhecimento e de dados para que seu impacto coercivo — a organização da sociedade —
tenha algum êxito.
Mas é obviamente impossível uma mente ou mesmo várias mentes obterem e
processarem todas as informações que estão dispersas na economia. As interações
diárias entre milhões de indivíduos produzem uma multiplicidade de informações que são
impossíveis de serem apreendidas e processadas por apenas um seleto grupo de seres
humanos.
Os teóricos da Escola Austríaca de Economia, Mises e Hayek, elaboraram quatro
argumentos básicos no debate que mantiveram durante a primeira metade do século XX
contra os teóricos da economia neoclássica, os quais nunca foram capazes de entender o
problema inerente ao socialismo.
E por que não foram capazes de entendê-lo? Pelo seguinte motivo: eles acreditavam que
a economia funcionava exatamente como nos livros-textos de faculdade. Mas o que os
livros-textos ensinam em relação ao funcionamento da economia de mercado é
radicalmente falso e fictício. Tais manuais baseiam suas explicações sobre o mercado em
termos matemáticos que supõem um ajuste perfeito. É como se o mercado fosse uma
espécie de computador que ajusta de maneira automática e perfeita os desejos dos
consumidores à ação dos produtores. O modelo ideal dos manuais é o da concorrência
perfeita, descrito pelo sistema de equações simultâneas de Walras.
Quando era universitário, minha primeira aula de economia foi com um professor que
começou sua explanação com a seguinte e espantosa frase: "Suponhamos que todas as
informações sejam conhecidas". E logo em seguida ele se pôs a encher o quadro-negro
com funções, curvas e fórmulas. Esta é exatamente a hipótese da qual partem os
neoclássicos: todas as informações são conhecidas e nada se altera; tudo é estático. Mas
esta hipótese é radicalmente irreal. Ela vai contra a característica mais típica do
mercado: a informação nunca é conhecida por todos; ela está dispersa pela economia.
Ela não é um dado constante que está ali para ser consultado a qualquer momento. O
conhecimento dos dados surge continuamente em decorrência da atividade criativa dos
empresários: novos fins são almejados, novos meios são criados e utilizados. Logo,
qualquer teoria econômica construída a partir deste pressuposto irreal está fatalmente
errada.
Os economistas neoclássicos pensaram que o socialismo era possível porque supuseram
que todos os dados necessários para elaborar o sistema de equações simultâneas de
Walras e encontrar sua solução eram "conhecidos". Não foram capazes de apreciar o que
ocorria neste mundo que tinham de investigar cientificamente; por conseguinte, não
conseguiram entender o que realmente se passava.
Somente a Escola Austríaca seguiu um paradigma distinto. Ela nunca supôs que as
informações já estavam dadas e eram conhecidas por todos. Ela sempre considerou que
o processo econômico era impulsionado por empresários que continuamente incorrem em
transações e descobrem novas informações. Somente ela foi capaz de entender e
explicar que o socialismo era um erro intelectual. Ela desenvolveu seu argumento
utilizando quatro enunciados: dois podem ser considerados "estáticos" e os outros dois
podem ser considerados "dinâmicos".
Em primeiro lugar, a Escola Austríaca afirma, como já dito, ser impossível o órgão
planejador coletar e utilizar corretamente todas as informações de que necessita para
imprimir um conteúdo coordenador às suas ordens. O volume de informações que os
seres humanos manejam e com as quais lidam diariamente é imenso, de modo que é
impossível gerir o que sete bilhões de seres humanos têm na cabeça. Embora os
neoclássicos não tenham sequer conseguido entender este argumento, ele é o mais fraco
e o menos importante. Ao fim e ao cabo, nos dias de hoje, com toda a capacidade
informática existente, é um pouco mais fácil lidar com volumes imensos de informação.
O segundo argumento é muito mais profundo e contundente. A informação com que lida
o mercado não é objetiva; não é como a informação que se encontra impressa em um
catálogo. A informação empresarial possui uma natureza radicalmente distinta; ela é
uma informação subjetiva, e não objetiva. Ela é tácita, por assim dizer. Ela é do tipo
"sabemos algo, temos a técnica, a prática e o conhecimento, mas não sabemos no que
tudo isso consiste detalhadamente."
Explicando de outra forma: é como a informação necessária para andar de bicicleta. É
como se alguém quisesse aprender a andar de bicicleta estudando as fórmulas físicas e
matemáticas que expressam o equilíbrio que mantém o ciclista enquanto ele pedala. O
conhecimento necessário para saber andar de bicicleta não é adquirido desta forma, mas
sim mediante um processo prático de aprendizagem, normalmente bem acidentado, que
finalmente permite entender como se equilibra sobre uma bicicleta, além de detalhes
fundamentais, como o de que, ao fazermos as curvas, temos de nos inclinar para não
cairmos. É bem provável que Miguel Indurain desconheça os detalhes das leis da física
que o permitiram vencer o Tour de France por cinco anos consecutivos, mas ele
indubitavelmente possui o conhecimento de como se anda em uma bicicleta.
A informação implícita não pode ser moldada de maneira formalizada e objetiva;
tampouco pode ser transmitida corretamente a um órgão planejador. Só é possível
transmitir a um órgão planejador — de modo que este assimile e imponha uma coerção,
dando um conteúdo coordenador às suas ordens — uma informação unívoca que não dê
brechas a mal entendidos. Porém, a esmagadora maioria das informações das quais
dependemos para sermos bem-sucedidos em nossas vidas não é objetiva; não é
informação de catálogo. É informação subjetiva e tácita.
Mas estes dois argumentos — que as informações são extremamente volumosas e que
possuem um caráter subjetivo — não bastam. Existem outros dois, de caráter dinâmico,
que são ainda mais contundentes e cuja implicação inevitável é a impossibilidade do
socialismo.
Nós seres humanos somos dotados de uma inata capacidade criativa. Continuamente
descobrimos coisas "novas", almejamos objetivos "novos", e escolhemos meios "novos"
para alcançá-los. É impossível transmitir a um órgão planejador a informação ou o
conhecimento que ainda não foi "criado" pelos empresários. O órgão planejador pode se
empenhar o quanto quiser em construir um "nirvana social" por meio de uma publicação
diária de decretos e da imposição da força. Mas, para fazer isso — ou seja, para se
alcançar o "nirvana social" — ele tem de saber exatamente o que ocorrerá amanhã. E o
que vai ocorrer amanhã dependerá de uma informação empresarial que ainda não foi
criada hoje, e que não pode ser transmitida ainda hoje para que nossos governantes nos
coordenem eficientemente amanhã. Este é o paradoxo do socialismo, a terceira razão.
Mas isso ainda não é tudo. Existe um quarto argumento que é definitivo. A própria
natureza do socialismo — que, como dito, se baseia na coerção, no impacto coercivo
sobre o corpo social ou a sociedade civil — bloqueia, dificulta ou impossibilita a criação
empresarial de informação, que é precisamente aquilo de que necessita o governante
para dar um conteúdo coordenador às suas ordens.
Esta é a demonstração em termos científicos do motivo de o socialismo ser teoricamente
impossível. É impossível o órgão planejador socialista coletar, apreender e colocar em
prática todas as informações de que necessita para imprimir um conteúdo coordenador
aos seus decretos. Esta é uma análise puramente objetiva e científica.
Não é necessário pensar que o problema do socialismo está no fato de que "aqueles que
estão no comando são maus". Nem mesmo anjos, santos ou seres humanos genuinamente
bondosos, com as melhores intenções e com os melhores conhecimentos, poderiam
organizar uma sociedade de acordo com o esquema coercivo socialista. Ela seria
convertida em um inferno, já que, dada a natureza do ser humano, é impossível alcançar
o objetivo ou o ideal socialista.
Todas estas características do socialismo têm consequências que podemos identificar em
nossa realidade cotidiana. A primeira é seu poder de encanto. Em nossa natureza mais
íntima, sempre encontramos o risco de ceder ao socialismo porque seu ideal nos tenta,
porque o ser humano sempre tende a se rebelar contra sua natureza. Viver em um
mundo cujo futuro é incerto é algo que nos inquieta, e a possibilidade de controlar este
futuro, de erradicar a incerteza, nos atrai.
Em seu livro A Arrogância Fatal, Hayek diz que, na realidade, o socialismo é a
manifestação social, política e econômica do pecado original do ser humano, que é a
arrogância. O ser humano sempre teve o devaneio de querer ser Deus — isto é,
onisciente. Por isso, sempre, geração após geração, temos de estar em guarda contra o
socialismo, continuamente vigilantes, e entender o fato de que nossa natureza é criativa,
do tipo empresarial.
O socialismo não é uma simples questão de siglas, abreviações, sindicatos ou partidos
políticos em determinados contextos históricos. O socialismo é uma ideia que está e
sempre estará se infiltrando de maneira insidiosa em famílias, comunidades, bairros,
igrejas, empresas, movimentos, partidos políticos de todas as ideologias etc. É
necessário lutar continuamente contra a tentação do estatismo porque ele representa o
perigo mais original que há dentro dos seres humanos, nossa maior tentação: crer que
somos Deus.
O socialista acredita ser genuinamente capaz de superar o problema da impossibilidade
da coleta, da apreensão e da utilização de informações dispersas, problema esse que
desacredita totalmente a essência do sistema que ele defende. Por isso, o socialismo
sempre decorre do pecado da soberba intelectual. Por trás de todo socialista há um
arrogante, um intelectual soberbo. E isso é algo fácil de constatarmos ao nosso redor.
O socialismo não é somente um erro intelectual. É também uma força verdadeiramente
antissocial, pois sua mais íntima característica consiste em violentar, em maior ou menor
escala, a liberdade empresarial dos seres humanos em seu sentido criativo e
coordenador. E, como é exatamente isso o que distingue os seres humanos dos outros
seres vivos, o socialismo é um sistema social antinatural, contrário a tudo o que o ser
humano é e aspira a ser.
Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o
principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos
mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor de A Escola
Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial , Socialismo, cálculo econômico e função
empresarial e da monumental obra Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos.
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