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evsPUC GO
ISSN 1983-781X
Revisão sistemática: as principais
complicações do acidente botrópico
Systematic review: the main complications of accident bothropic
Karla Camargo dos Santos,1, Mariana Miranda de Almeida1, Anita de Moura Pessoa2,
Vera Aparecida Sadd3, Nelson Jorge da Silva Júnior3
1Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Escola de Ciências Médicas, Farmacêuticas e Biomédicas. Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Saúde. Avenida Universitária, 1069 – Setor Universitário. CEP 74605-010 – Goiânia – GO.
2Universidade Federal de Goiás. Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia e Biodiversidade. Rua 235, s/n – Setor Universitário. CEP
74605-050 – Goiânia – GO.
3Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Saúde. Escola de Ciências Médicas,
Farmacêuticas e Biomédicas. Avenida Universitária, 1440 – Setor Universitário. CEP 74605-010 – Goiânia - GO.
, Goiânia, v. 43, n. 1, p. 71-78, jan./mar., 2016
Resumo: Os acidentes ofídicos representam grave problema de saúde pública nas regiões tropicais devido à sua elevada
incidência e morbimortalidade, especialmente os causados por jararacas. O presente artigo teve por objetivo conhecer,
por meio de revi­são da literatura, as principais complicações dos acidentes botrópicos. Foi realizada uma revisão sistemática através da análise de artigos científicos sobre o tema, com artigos de revisão, originais e casos clínicos escritos
nos idiomas português, inglês datados entre o período de 2004 a 2015. O veneno botrópico é uma mistura de peptídeos
e proteínas farmacologicamente ativas, que induzem sintomas clássicos, aliado às frequentes infecções locais, trazendo
diversas complicações a vítima. O veneno da jararaca fica armazenado no local da picada, causando forte lesão proteolítica com complicações locais como a dor, o edema, equimoses, bolhas, necrose, abscessos, celulite, erisipela, síndrome
compartimental e déficit funcional e nas sistêmicas: a hemorragia, nefrotoxicidade, choque circulatório e insuficiência
renal aguda. .
Palavras-chave: Acidentes com serpentes. Bothrops. Complicações.
Abstract: Snakebites pose serious public health problem in the tropics because of its high incidence and mortality, especially those caused by pit vipers. This study intended to know, through literature revisal, the main complications of Bottrop’s accidents. A systematic review was performed by analyzing scientific papers on the subject, with review articles,
case reports and documents written in Portuguese, English dating from the period 2004 to 2015. Bottrop’s venom is a
mixture of pharmacologically active peptides and proteins, which induce classic symptoms, combined with the frequent
local infections, bringing several complications the victim. In bothropic accidents, the venom is retained at the bite site,
causing strong proteolytic injury with local complications such as pain, swelling, bruising, blisters, necrosis, abscesses,
cellulitis, erysipelas, compartment syndrome and functional deficit, and in systemics: the hemorrhage, nephrotoxicity,
circulatory shock and acute renal failure.
Keywords: Accidents with snakes. Bothrops. Complications.
Autor correspondente: [email protected]
Recebido: janeiro, 2016 | Aceito: fevereiro, 2016 | Publicado: outubro, 2016
Este artigo está licenciado com uma Licença Creative Commons.
Atribuição Sem Derivações 4.0 CC BY-NC-ND.
Ribeiro, C. L. B. et al. – Perfil bioquímico de Sapajus ...
corrido entre o acidente e o atendimento médico, fato
INTRODUÇÃO
esse que pode acarretar na complicação do acidente 6.
Estima-se que anualmente ocorram cerca de
Diante da importância que o acidente botrópico
2,5 milhões de acidentes com serpentes em todo o
representa em nosso meio, com agravantes clínicos im-
mundo, onde 250.000 dos casos evoluem para sérias
portantes, o presente artigo teve por objetivo conhecer,
complicações e 85.000 para mortes
por meio de revi­são da literatura, as principais compli-
1
.
Nos últimos
10 anos (2003 a 2013), foram notificados cerca de
cações dos acidentes causados por jararacas.
307.770 acidentes ofídicos no Brasil, e 90% atribuídos a serpentes do gênero Bothrops, que representa
MATERIAL E MÉTODOS
o grupo das jararacas, evidenciando assim sua grande
relevância na área médica2.
O presente trabalho trata-se de uma revisão sis-
Pertencentes à família Viperidae, as jararacas
temática através da análise de artigos científicos sobre
compreendem um grupo de aproximadamente 30 espé-
o tema, utilizando para tal fim os endereços LILACS,
cies, e estão distribuídas por todo o território nacional,
SCIELO, BIREME, GOOGLE ACÂDEMICO, e as Bi-
dentre esse grupo, as principais espécies são: Bothrops
bliotecas da Pontifícia Universidade Católica de Goiás
atrox (encontrado na Amazônia, principalmente, em
e Universidade Federal de Goiás com os seguintes des-
beiras de rios e igarapés); Bothrops erythromelas
critores: Acidentes com serpentes, Veneno Bothrops e
(abundante nas áreas litorâneas e úmidas da região
Complicações Bothrops. Foram considerados artigos
Nordeste); Bothrops jararaca
(grande capacidade
de revisão, artigos originais e casos clínicos escritos
adaptativa, ocupa e coloniza áreas silvestres, agrícolas
nos idiomas português, inglês e espanhol datados entre
e periurbanas, sendo a espécie mais comum da região
o período de 2004 a 2015.
Sudeste); Bothrops jararacussu (é a espécie que pode
Foram excluídos artigos cujos textos não se re-
alcançar maior comprimento - até 1,8m - e a que pro-
ferenciavam ao tema. A etapa seguinte consistiu da lei-
duz maior quantidade de veneno dentre as serpentes
tura na íntegra dos artigos identificados e selecionados,
do gênero, predominante no Sul e Sudeste); Bothrops
focando no tipo de estudo e as complicações.
moojeni (principal espécie dos cerrados, capaz de se
Os resultados obtidos das pesquisas foram es-
adaptar aos ambientes modificados, com comporta-
truturados de forma resumida, objetivando abranger
mento agressivo e porte avantajado); e Bothrops alter-
todas as informações consideradas importantes para o
natus (vive em campos e outras áreas abertas, desde a
tema proposto, e posteriormente realizada a análise e
região Centro-Oeste até a Sul) .
interpretação das informações para discussão e descri-
3
As serpentes jararaca são mais ativas no perí-
ção do texto final.
odo da noite, e durante os meses quentes. As fêmeas
RESULTADOS
termorregular e se proteger. As fêmeas tendem a ser
maiores e mais volumosas que os machos. Para se
Foram encontrados 72 artigos sobre o tema, e
aquecer as jararacas utilizam o calor da superfície do
após a leitura dos resumos, 38 foram excluídos por não
solo durante a noite .
tratarem diretamente do assunto, resultando assim em
4
O veneno desse grupo pode induzir efeitos fi-
34 artigos para leitura geral.
siopatológicos graves, incluindo distúrbios hemostá-
A Tabela 1 apresenta os trabalhos analisados
ticos que podem causar coagulopatias, alterações das
para essa revisão sistemática a partir do ano de 2004.
funções plaquetária, plaquetopenia, além dos efeitos
Dentre os selecionados, 12 ressaltam sobre as compli-
locais proteolíticos, com perda tecidual como a sequela
cações locais e sistêmicas do veneno da jararaca, que
mais significativa, geralmente acompanhado de infec-
é o objetivo deste estudo, desmembrados em nove ar-
ções secundárias .
tigos científicos, uma dissertação, uma monografia e
5
O quadro clínico desenvolvido pela vítima de-
um livro. O conjunto de obras reflete questões sobre as
pende da quantidade de veneno inoculado, da localiza-
complicações do veneno da jararaca, o que tem tornado
ção da picada, da idade e, especialmente, do tempo de-
foco de atenção para a clínica e saúde pública em geral.
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grávidas tendem a se manter áreas onde conseguem se
72
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Tabela 1. Síntese dos estudos encontrados na revisão sistemática sobre as principais complicações do acidente botrópico
Autores
Ano
Tipo
OLIVEIRA, F. N. 9
2010
Artigo cientifico
CABRAL, M. A. F. 11
2011
Monografia
Universidade de Brasília
Livro
Animais peçonhentos no Brasil:
biologia, clínica e terapêutica dos
acidentes
, Goiânia, v. 43, n. 1, p. 71-78, jan./mar., 2016
FRANÇA, F. O. S. & MÁLAQUE, C.
2009
M. S. 22
73
Periódico
Titulo
Accidents caused by Bothrops and BothRevista da Sociedade Brasileira de
ropoides in the State of Paraiba: epidemiMedicina Tropical
ological and clinical aspects
Estudos dos potenciais terapêuticos do
veneno da serpente Bothrops Jararaca.
Acidente botrópico
MAROTTA, A. M. et al.26
2006
Artigo cientifico
Revista Biociência.
Insuficiência renal aguda após acidente
botrópico: um relato de caso
CINTRA, C. A. et al. 27
2014
Artigo cientifico
Enciclopédia Biosfera, Centro
Científico Conhecer
Acidentes ofídicos em animais domésticos. Enciclopédia Biosfera,
JORGE, M.T. et al. 28
2004
Artigo cientifico
COSER, A. et al.29
2015
Artigo cientifico
Rev. Ciênc. Méd. Biol.
Acidentes ofídicos nas mesorregiões do
estado de Santa Catarina.
PAULA, R. C. M. F. 30
2010
Dissertação
Universidade de São Paulo. São
Paulo
Perfil epidemiológico dos casos de acidentes ofídicos hospital de doenças
tropicais de Araguaína - TO (Triênio
2007-2009).
BUCARETCHI, F. et al31
2010
Artigo cientifico
Clinical Toxicology
Compartment syndrome after Bothrops
jararaca snakebite: monitoring, treatment, and outcome
MARTINES, M. S. et al.32
2014
Artigo cientifico
PlosOne
Effects of Schizolobium parahyba Extract on Experimental Bothrops Venom-Induced Acute Kidney Injury.
SANTOS, M. F. L. et al. 33
2009
Artigo cientifico
J. Bras. Nefrol.
Insuficiência renal aguda em acidentes
ofídicos por Bothrops sp. e Crotalus sp.:
revisão e análise crítica da literatura.
CASTRO, I. et al.34
2004
Artigo cientifico
Toxicon
Bottrop’s venom induces direct tubular
renal injury: role for lipid peroxidation
and prevention by antivenom.
Failure of chloramphenicol prophylaxis
to reduce the frequency of abscess forTransactions of the Royal Society
mation as a complication of envenomof Tropical Medicine and Hygiene
ing by Bothrops snakes in Brazil: a double blind randomized controlled trial.
Foi observado nesses artigos da tabela 1, que
alguns autores citavam tanto as complicações locais
Tabela 2. Tipos de complicações nos acidentes
botrópicos
como as sistêmicas. Assim desses 12 artigos exami-
Tipos de complicações
nados, as complicações locais representaram 85,7% e
Necrose
8
Infecção local
3
Síndrome compartimental
4
Déficit funcional
1
Insuficiência Renal Aguda
5
Hemorragia
2
as sistêmicas 64,2% dos casos relatados, separados em
seis categorias básicas (Tabela 2).
TOTAL
Quantidade citadas
23
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finalmente, o grupo P-IV com os domínios tipo desin-
DISCUSSÃO
tegrina, rico em cisteína e lectina tipo-C5.
Os venenos de serpentes estão dentre os mais
As enzimas da metaloproteinases são os prin-
complexos produtos conhecidos, contendo 20 ou mais
cipais fatores hemorrágicos causadores dos mais drás-
componentes diferentes, com uma grande variedade
ticos efeitos provocados pelo veneno e, por isso, são
de enzimas (fosfolipases A2, metaloproteinases, seri-
geralmente chamados de fatores hemorrágicos 4.
noproteinases, L-aminoácido oxidases, entre outros),
A hemorragia local desencadeada por metalo-
e uma parte não proteica (composta por carboidratos,
proteinases presentes nos venenos das serpentes, é uma
lipídeos, metais, aminoácidos livres, nucleotídeos, en-
das características mais importantes do envenenamen-
tre outros)7.
to. O mecanismo pelo qual a hemorragia é desencadea-
Nas jararacas, mais de 90% do peso seco do
da no local da picada tem participação de dois eventos
veneno é constituído por uma mistura de variados pep-
que parecem estar fortemente relacionados: a degrada-
tídeos e proteínas farmacologicamente ativas que indu-
ção enzimática da membrana basal e também o efeito
zem uma grande diversidade de sintomas nos pacientes
direto sobre as células endoteliais dos capilares15-16.
acidentados e auxiliam a digestão de uma presa “não
As serinoproteases são enzimas capazes de hidrolisar ligações peptídicas utilizando mecanismos co-
.
As toxinas do veneno botrópico são responsá-
valentes de catálise, através de uma tríade de resíduos
veis pelos efeitos locais e sistêmicos sobre os sistemas
formada por histidina, ácido aspártico e serina (His, Asp
hemostático e cardiovascular. Estão envolvidas nesta
e Ser). A organização desses resíduos em uma conforma-
ação, aminas biogênicas pré-formadas do tipo hista-
ção espacial gera um sítio catalítico muito bem caracte-
mina, peptídeos de baixo peso molecular e proteínas
rizado, que define esse grupo de proteases17. Em função
como a fosfolipase A, esterases, proteases, enzimas
da atividade catalítica, agem no sistema de coagulação
liberadoras de cininas (calicreínas, cininogenases)
sanguínea, promovendo alterações na hemostasia, o que
e lectinas. Diversas toxinas do veneno têm atividade
pode contribuir para uma hemorragia local e sistêmica18.
indireta, induzindo ou liberando potentes autacóides,
As serinoproteases presentes no veneno botró-
como a bradicinina, prostaglandinas, leucotrienos e
pico são caracterizadas como enzimas que tem ativida-
prostaciclinas11-13.
de do tipo trombina e de maneira geral afetam a cascata
O veneno botrópico possui também capacidade
de coagulação pela ativação dos componentes sanguí-
de ativar fatores de coagulação sanguínea, ocasionan-
neos envolvidos na coagulação, fibrinólise e agregação
do consumo de fibrinogênio e formação de fibrina in-
plaquetária e também pela degradação proteolítica das
travascular, induzindo frequentemente a incoagulabili-
células, causando um desequilíbrio no sistema he-
dade sanguínea .
mostático da presa19,10. A trombina libera os fibri-
5
As metaloproteinases são hidrolases do tipo
nopeptídeos A e B do fibrinogênio convertendo-o a
endopeptitases que dependem da ligação com um me-
fibrina. A trombina também intervém no processo he-
tal, geralmente o zinco, em seu sítio catalítico para a
mostático, agindo como ativadora de componentes da
manifestação das atividades enzimáticas são responsá-
cascata de coagulação14.
veis pela mionecrose no local da picada, hemorragias
As fosfolipases são proteínas importantes em
e reações inflamatórias, sendo classificadas em quatro
uma série de atividades celulares, já que hidrolisam
grupos conforme seus domínios estruturais: P-I, PII,
fosfolipídios de membrana, gerando precursores de
PIII e P-IV
mensageiros como prostaglandinas, tromboxanas,
5,14
.
O grupo P-I apresenta somente o domínio me-
leucotrienos e outros importantes mediadores de fe-
taloprotease, com cerca de 24K de massa molecular
nômenos fisiológicos envolvidos, principalmente, em
e pouca ou nenhuma atividade hemorrágica. O grupo
processos inflamatórios.11 As fosfolipases A2 (PLA2)
P-II apresenta além do domínio metaloprotease, o do-
presentes nos venenos de serpentes apresentam diver-
mínio desintegrina. O grupo P-III é considerado como
sos efeitos fisiológicos como neurotoxicidade, mioto-
o de maior atividade hemorrágica, apresentando domí-
xicidade, hipotensão e hemorragia interna, atividade
nio tipo desintegrina e um domínio rico em cisteína e
antiplaquetária, anticoagulante e inflamatória, no en-
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triturada”
5,8- 10
74
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tanto, nem todas apresentam todos esses efeitos. Elas
As principais complicações locais são: absces-
catalisam a hidrólise na ligação 2-acil éster de fosfoli-
so, necrose e síndrome compartimental11. O abscesso,
pídios, liberando como produtos os lisofosfolipídios e
a celulite e erisipela podem ser observados no local da
ácidos graxos livres
inoculação, e estas infecções são frequentes, devido às
15
.
O processo de fosfolipases resulta na liberação
condições propícias ao crescimento bacteriano provo-
do ácido araquidônico, precursor de prostaglandinas,
cado pela reação inflamatória aguda, assim como pela
tromboxanos e leucotrienos, iniciando uma série de
presença de abundante flora bucal nas serpentes cons-
reações inflamatórias. As PLA apresentam efeito an-
tituída por grande número de bactérias anaeróbicas e
ticoagulante pela hidrólise e destruição da superfície
gram-negativas28,11.
de membrana necessária para a formação do complexo de coagulação
variável (de 1 a 20,6%) geralmente limitada ao teci-
pelo aumento da permeabilidade microvascular com
do subcutâneo, podendo comprometer estruturas mais
recrutamento de leucócitos para os tecidos e liberação
profundas como tendões, músculos e ossos. A intensi-
de mediadores inflamatórios, iniciando desordens in-
dade e a extensão da necrose estão fortemente ligadas
flamatórias locais e sistêmicas em humanos. Além de
à utilização de torniquetes e à demora entre o acidente
modificar a microviscosidade da fase lipídica da bica-
e a administração da soroterapia29. Em casos extremos
mada hidrofóbica de membranas, afetando a atividade
pode ser necessária a amputação de parte do membro
funcional de enzimas ligadas à membrana21.
acometido22. As picadas em extremidades como os de-
.
As desintegrinas são peptídeos de baixo peso
molecular, ligando às integrinas, proteínas de super-
luem para grangrena30.
Sobre a síndrome compartimental, ela é defini-
ciação e ativação celular, impedindo que as integrinas
da como o aumento da pressão dentro de um compar-
para se acoplarem a outras células, podendo bloquear o
timento fechado, por onde transcorrem músculos, ner-
principal receptor de fibrinogênio mediador da associa-
vos e vasos, comprometendo a circulação sanguínea
ção plaquetária induzida por colágeno e por adenosina
regional, resultando em anormalidades da função neu-
difosfato3, 17.
romuscular. Além disso, ela é considerada uma compli-
ser causa direta da ação de PLA miotóxicas em mem-
cação rara, porém quando ocorre é precoce e necessita
de rápida intervenção
branas plasmáticas das células musculares ou causa in-
A fisiopatologia da síndrome compartimen-
direta da ação de metaloproteinases hemorrágicas que
tal induzida pelo veneno difere da do trauma, o que
degeneram vasos e causam isquemia e desorganizam
resulta a partir de um aumento da pressão dentro do
os fosfolipídios, induzindo influxo de Ca agindo na
compartimento afetado. Além disso, ela é caracterizada
membrana sarcoplasmática
por dor intensa (desproporcional ao trauma), ausência
2+
8
.
, Goiânia, v. 43, n. 1, p. 71-78, jan./mar., 2016
dos tem maior risco de apresentarem necrose que evo-
fície celular responsáveis pela proliferação, diferen-
A mionecrose presente na picada de cobra pode
No acidente botrópico, as manifestações lo-
de sintomas neurológicos, distúrbios moderados no
cais, se evidenciam nas primeiras horas após a picada,
músculo perfusão, e pressões moderadamente elevadas
com a presença de edema, dor, eritema e equimose
compartimento (30-40 mmHg), onde a taxa de absor-
que progride ao longo do membro acometido. Esses
ção de veneno varia de acordo com a região da picada
sintomas podem ter sido provocados tanto pela ação
(por exemplo, membros, tronco ou cabeça) e do tipo de
do veneno, quanto pela infecção local
tecido no qual o veneno é introduzido (por exemplo,
22-24
.
As mar-
cas de picada nem sempre são visíveis, assim como
intradérmica, subcutânea, ou muscular) 31.
o sangramento nos pontos de inoculação das presas,
O déficit funcional são lesões de nervos, ten-
além disso, as bolhas com conteúdo seroso ou sero
dões, músculos e ossos. Ocorrem direta e indiretamen-
hemorrágico podem surgir na evolução e dar origem
te, em consequência a isquemia e a necrose tecidual,
à necrose cutânea
podendo acarretar alterações de sensibilidades e motri-
25-26
.
Efeitos do veneno como por
exemplo, anticoagulantes, neurotóxicos, miotóxicos,
vasculotóxicos e proteolíticos, podem gerar compli-
75
Quanto a necrose, sua incidência é bastante
Iniciam a cascata inflamatória
20
cações severas e irreversíveis
27
.
cidade no membro acometido.
Além do quadro de envenenamento local, o
quadro sistêmico é extremamente importante. Peque-
Ribeiro, C. L. B. et al. – Perfil bioquímico de Sapajus ...
nos sangramentos como gengivorragia, micro hematú-
quase sempre nas primeiras 24 horas do acidente, po-
ria, púrpuras (equimoses em locais longe das picadas,
dendo evoluir, porém, com redução do débito urinário
devido a injeções intramusculares ou pequenos trau-
apenas no segundo ou terceiro dia. A lesão renal mais
matismos) e sangramentos em feridas recentes podem
comum no acidente botrópico é a necrose tubular agu-
ocorrer nos casos leves e moderados. Com menor fre-
da, porém alguns casos evoluem com necrose cortical
quência pode ocorrer hematúria macroscópica, hemop-
bilateral. Além disso, alguns pacientes desenvolvem
tise, epistaxe, sangramento conjuntival, hipermenorra-
necrose cortical bilateral e evoluem para doença renal
gia e hematêmese .
crônica, com necessidade de terapia renal substitutiva
5
Em alguns casos o quadro sistêmico pode evo9
de manutenção33-34.
luir para complicações, dentre elas as mais comuns,
O choque circulatório é considerado raro e apa-
são o choque e insuficiência renal aguda, assim como
rece nos casos graves. Sua patogênese é multifatorial,
as complicações locais podem acompanhar a evolução
podendo decorrer da liberação de substâncias vasoa-
das lesões, sendo a gangrena a mais temida complica-
tivas, do sequestro de líquido na área do edema e de
ção para a extremidade, a qual habitualmente resulta
perdas por hemorragias.
de acidentes graves. A insuficiência renal aguda (IRA)
é uma complicação frequente da picada de serpentes
CONSIDERAÇÕES FINAIS
do grupo botrópico com relevante morbidade e mortalidade32.
O acidente botrópico se não bem tratado, pode
A IRA é uma das mais graves complicações do
agravar o quadro clinico do paciente, haja vista que o ve-
acidente botrópico, geralmente com oligúria, variando
neno fica armazenado no local da picada, causando forte
de 1 a 3 semanas, com média de cerca de duas sema-
lesão proteolítica, e complicações locais e/ou sistêmicas,
nas, podendo haver proteinúria e hematúria no sedi-
severas e irreversíveis. O quadro clinico basicamente
mento urinário e necessidade de diálise além de ser
consiste em dor e edema local, podendo haver equimose,
uma relevante causa de letalidade nos pacientes que so-
bolhas, necrose e formação de abscessos, como também
brevivem a ação inicial da picada. A IRA, geralmente
celulite e erisipela, e em casos mais graves, formação de
do tipo pré-renal, pode se instalar como consequência
síndrome compartimental e/ou déficit funcional. Devido
de vômitos e má hidratação do paciente, existindo rela-
a ação hemorrágica e nefrotóxica, choque circulatório e
tos de necrose cortical, bilateral, dos rins. A IRA ocorre
insuficiência renal aguda podem acontecer.
REFERÊNCIAS
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de Botucatu-SP: Caracterização enzimática, bioquímica e farmacológica. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. 77p.
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Ribeiro, C. L. B. et al. – Perfil bioquímico de Sapajus ...
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Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Toxinologia, Instituto Butantan. 143p.
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79p.
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