OS SOFISTAS Julian Dutra Antes de Sócrates e Platão, precisamos falar do movimento sofístico do Século V a.C. Os Sofistas eram professores de diversas disciplinas que eram contratados para ensinar homens jovens as artes necessárias para a vida política e também importantes para algumas profissões. Os sofistas ensinavam, por exemplo, gramática, retórica (a arte da persuasão, isto é, do convencimento através da palavra), oratória (a arte de discursar em público), legislação, política, economia e poesia, dentre outras áreas. Ao contrário dos filósofos, os sofistas não tinham por objetivo a investigação sobre problemas filosóficos e tampouco buscavam a verdade acerca da natureza ou sobre os seres humanos. Seu interesse era, no mais das vezes, prático: queriam ensinar artes úteis para os cidadãos, não prepará-los para a busca da verdade. De fato, um exercício sofista importante consistia em tentar tornar o argumento mais fraco no mais forte, sem indagar pela verdade dos fatos envolvidos neste argumento, mas somente observando seu potencial persuasivo. De modo geral, os sofistas não tinham por objetivo ensinar teses políticas ou defender ideias próprias sobre ética ou política, por exemplo. Sua intenção era a de vender os conhecimentos que capacitavam um indivíduo a defender qualquer ponto de vista que ele adotar. É por essa falta de compromisso com a verdade e pelo fato de que mercantilizam o conhecimento, sujeitando-o aos interesses práticos das pessoas, que os filósofos irão tecer duras críticas aos sofistas. Isso, porém, não significa que os sofistas não influenciaram os filósofos. Devemos direcionar nossa atenção para o fato de que, mesmo antes de Sócrates, os sofistas estavam discutindo temas humanos que seriam analisados por ele. Então, apesar da relação antagônica com os filósofos, temos de reconhecer que os Sofistas exerceram importante influência sobre estes últimos, ao iniciarem as discussões humanistas que farão Sócrates entrar para a história da filosofia. Temos de reconhecer, também, que muitas teorias filosóficas do período são construídas em resposta a algumas ideias sofistas. Tomemos por exemplo uma ideia de Protágoras de Abdera (490 a.C – 415 a.C) que, junto a Górgias de Leontini (485 a.C – 380 a.C), foi um dos sofistas mais famosos da época. Para Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”. Isto significa que, para ele, verdade e a falsidade são medidas que dependem das opiniões dos homens, não dos fatos do mundo. Essa ideia ficou conhecida como relativismo e possui importantes implicações filosóficas. Ao defender o relativismo, Protágoras afirma que não existem verdades morais, apenas opiniões sobre certo e errado (isto é, não existem fatos morais ou verdades absolutas de moralidade) nem mesmo que a beleza seja algo real, mas que dependente somente dos olhos de quem vê. Evidentemente, tais ideias podem ter consequências práticas muito sérias: ao dizer que a moralidade é relativa, assumimos que algumas violações morais graves, como o estupro e a pedofilia, não são sempre errados. Embora pareça óbvio que a moralidade relativizada seja um problema, temos de reconhecer que vivemos em uma época extremamente relativista, tanto na moral quanto na arte, e que a ideia de Protágoras ecoa ainda em nosso tempo. Entretanto, há quem tenha combatido o relativismo já na Grécia Antiga. É hora de falar um pouco sobre Sócrates e Platão. O PENSAMENTO DE SÓCRATES Julian Dutra “Só sei que nada sei” Sócrates Nascido em Atenas durante o Século V a.C – quando esta cidade alcançou seu maior esplendor durante a Antiguidade – Sócrates (470/369 a.C – 400/399 a.C) foi responsável por uma mudança importante no curso histórico da Filosofia, introduzindo temas novos para a investigação filosófica e propondo novas ideias, que influenciariam todos os principais pensadores depois dele. A filosofia antes de Sócrates, frequentemente chamada de Pré-Socrática, tinha por objetivo a discussão de problemas filosóficos sobre a Natureza. Depois de Sócrates, entretanto, a Filosofia passa a discutir cada vez mais aquilo que é próprio do Ser Humano, isto é, cada vez mais ela passa a ser uma filosofia humanista, voltada para temas humanos, como a ética, a política, a linguagem, a arte e a religião, dentre outros temas próprios da vida humana. Isso ocorre principalmente após a morte de Sócrates, pelo fato de ele ter sido o criador da Filosofia Moral (também conhecida como Ética), a área da filosofia que trabalha com problemas filosóficos relacionados aos temas da justiça, das virtudes, da vida em coletividade e da boa vida, e por ter lançado questões novas sobre, por exemplo, a linguagem, a religião e a beleza, que serão desenvolvidas por pensadores posteriores (Platão, por exemplo, é o fundador da filosofia política). Esta mudança temática na filosofia é chamada, por alguns historiadores, de virada humanista na filosofia grega antiga. O curioso é que Sócrates não nos deixou absolutamente nada escrito, pois não publicou nenhum livro durante sua vida. Sabemos algo de sua biografia e de suas ideias graças a dois discípulos seus. Devemos aos diálogos publicados pelo filósofo Platão (428 a.C – 348 a.C) muitas das informações que possuímos sobre as ideias de Sócrates, que aparece em praticamente todas as suas obras. Para preservar a experiência da investigação filosófica na prática, Platão optou por escrever diálogos entre personagens. Isto se deve, em parte, ao fato de Platão querer preservar nos seus textos o método socrático (isto é, a maneira de filosofar de Sócrates), que possuía duas partes: uma negativa, de crítica e refutação (conhecida como ironia) e a outra construtiva, que consistia na busca de uma resposta para um problema através do questionamento sistemático (conhecida como maiêutica). Cabe destacar, ainda, sua obra Apologia de Sócrates. O segundo discípulo de Sócrates que devemos mencionar é Xenofonte (430 a.C – 355 a.C). Este possui duas obras importantes sobre seu mestre: um livro também chamado Apologia de Sócrates e outro intitulado Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates. A principal questão do pensamento socrático é “O que é viver bem?”. Sócrates investiga várias das respostas habituais para essa pergunta: viver bem é buscar por prazeres, ter relacionamentos e trabalhar. Contudo, Sócrates entende que, além desses aspectos, uma vida bem vivida deve observar a Justiça e os deveres que ela nos impõe: isto é, para Sócrates, não é possível vivermos bem a vida sem sermos justos. Entretanto, por sua vez o reconhecimento de nosso dever de sermos justos nos impõe, segundo Sócrates, duas questões: O que é, afinal, a Justiça? E, igualmente importante, o que é ser justo, na prática? Reconhecendo que o tratamento socrático da primeira questão é muito complexo para os nossos propósitos, irei discutir, neste texto, apenas a segunda questão. Para Sócrates, há uma maneira correta de sermos justos. Isso significa que os indivíduos não podem praticar a justiça conforme lhes aprouver e que há apenas uma maneira correta de sermos pessoas justas. A observação de nossos deveres morais (sejam eles quais forem – observe que este é o objeto de investigação da primeira pergunta, que estamos deixando de lado neste texto), segundo Sócrates, deve ser constante. Não podemos praticar a injustiça em nenhum momento de nossas vidas. Contudo, para Sócrates, se queremos ser pessoas justas, isto é, pessoas capazes de praticar a justiça da maneira correta, temos de possuir um determinado tipo de caráter. Segundo o pensamento socrático, só conseguiremos ser justos se possuirmos quatro virtudes que dependem umas das outras para serem realmente virtuosas (isso é dizer que sozinhas essas características não são virtuosas, pois não são necessariamente boas se não as possuímos conjunto): Justiça, Coragem, Autocontrole e Piedade. Essa ideia ficou conhecida como Teoria da Unidade da Virtude, embora Sócrates nunca tenha usado essa expressão. Para Sócrates, uma pessoa pode ter algum conhecimento da justiça e, até certo ponto, ser justa. Contudo, sem as virtudes do autocontrole e da coragem, um indivíduo não consegue praticar a justiça em situações onde suas emoções e desejos lhe afastam daquilo que é certo ou em situações arriscadas, que nos causam medo. Um indivíduo incapaz de se controlar poderá agir conforme impulsos emocionais injustos, cedendo à raiva desproporcional, por exemplo. Um indivíduo que não possui a virtude da coragem não praticará a justiça quando a ação justa estiver envolta em riscos pessoais. Para Sócrates, isto é inaceitável, pois, como vimos, temos a obrigação de sermos justos todo o tempo. E isto, para ele, só será possível quando possuímos essas quatro virtudes em conjunto. No fundo, essa lição socrática nos ensina quais virtudes amplificam nossa capacidade de agir corretamente. Platão e Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) irão aumentar essa lista de virtudes, discordando, inclusive, em alguns pontos. Sócrates também comentou sobre a importância do autocontrole para o nosso sucesso pessoal. Antecipando em dois milênios algumas das conclusões alcançadas pelo famoso Experimento do Marshmellow, realizado diversas vezes a partir da década de 1970, Sócrates afirmou que o autocontrole é um traço de caráter absolutamente importante para a realização pessoal. Tarefas de longo prazo como projetos pessoais demandam disciplina, uma vez que, no caminho, sempre haverá distrações. Somente o indivíduo disciplinado ou autocontrolado será capaz, segundo Sócrates, de conquistar grandes feitos e realizar grandes ações. Nesse sentido, Sócrates também destaca a importância do conhecimento e da aprendizagem para vivermos bem. Sem conhecimento, conforme Sócrates, iremos fracassar em todos os nossos planos. Nosso sucesso, segundo ele, depende muito do quanto sabemos sobre o que queremos fazer. Buscar conhecimento constantemente também é, portanto, componente de uma vida bem vivida. Embora as questões sobre Justiça ocupassem a maior parte do tempo de Sócrates, ele também tinha algo a dizer sobre relacionamentos. Para ele, por exemplo, a base da amizade é o benefício mútuo. Amigos beneficiam-se mutuamente e o segredo para a conquista e a manutenção da amizade está em beneficiar o outro da melhor maneira possível. E isto implica que seremos incapazes de termos amigos (ou de mantermos amizades no longo prazo) na medida em que apenas querermos receber benefícios das pessoas. Contudo, a fidelidade aos amigos, para Sócrates, não pode ser cega para a justiça – e, segundo ele, muitas vezes será preciso agir conforme nossa obrigação ética ainda que isto signifique que discordemos de nossos amigos. Outra tese interessante de Sócrates é o que conhecemos por intelectualismo socrático. Segundo Sócrates, nenhum homem realiza o mal voluntariamente para si mesmo. Mesmo aquele que comete o que outros enxergam como mal pensa estar realizando um bem para si. Todos nós, segundo ele, agimos conforme o que pensamos ser melhor para nós. Entretanto, por vezes nos enganamos ou erramos acerca do que é realmente bom para nós. Para Sócrates, porém, não faz sentido dizer que um sujeito busque o seu próprio mal. Todo o mal que fazemos, para nós mesmos ou para outros, são feitos porque se pensa que eles são, ao contrário, bens. Infelizmente, Sócrates fez diversos inimigos durante sua vida. Ao filosofar com absolutamente qualquer pessoa (ricos e pobres, mulheres e homens, escravos e homens livres, cidadãos e estrangeiros), Sócrates acabou por irritar diversos homens poderosos e influentes da sociedade ateniense. Com frequência, Sócrates, ironizando, mostrava que essas pessoas não tinham o conhecimento que pensavam possuir – contradizendo-as em público e demonstrando a fragilidade de suas opiniões. Muitos consideraram as perguntas feitas e as respostas dadas por Sócrates como uma ofensa. E o resultado das conversas, como humilhação. Aos 70 anos de idade, Sócrates enfrentou sérias acusações feitas ao tribunal ateniense por alguns cidadãos: de que ele era responsável por corromper a juventude e de negar a existência dos deuses da cidade (foi até mesmo acusado de introduzir o culto de novas divindades). Sabemos, porém, que essas acusações eram falsas. Apesar de ter se defendido honradamente diante do tribunal, Sócrates não conseguiu escapar da condenação à morte. Foi obrigado a suicidar-se através da ingestão do veneno da cicuta. Tal foi o destino do filósofo que pensava nada saber em comparação ao total de conhecimento disponível para o ser humano. Seu legado filosófico, entretanto, não morreu com seu corpo. Além da influência que exerceu entre os pensadores gregos da Antiguidade, as lições de Sócrates tem algo a nos ensinar ainda hoje.