COMPLEXO DENTINO-PULPAR: fisiologia e resposta às

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COMPLEXO DENTINO-PULPAR:
fisiologia e resposta às injúrias
Diana Gabriela Soares
Ana Paula Dias Ribeiro
André Luiz Fraga Briso
Josimeri Hebling
Carlos Alberto de Souza Costa
ooINTRODUÇÃO
Neste capítulo, abordaremos, de maneira geral, o
complexo dentino-pulpar, desde sua formação, durante
a odontogênese, passando pelas características dos tecidos que o compõem (dentina e polpa), até como esta estrutura responde às agressões que recebe durante a vida
do elemento dental. Nesse contexto, serão discutidos,
com base em evidências científicas, os possíveis danos
que determinados procedimentos clínicos podem causar no complexo dentino-pulpar e como podemos evitar, ou pelo menos minimizar, a ocorrência de lesões
nesta estrutura responsável pela vitalidade do elemento
dental. Para isso, serão abordados os materiais dentários e as técnicas amplamente empregados na Dentística
restauradora contemporânea.
COMPLEXO DENTINO-PULPAR
A dentina e a polpa são tecidos que apresentam inter-relação estrutural e funcional durante toda a vida do órgão dental. Responsáveis pela síntese e deposição da matriz
de dentina, as células da polpa, denominadas odontoblastos, permanecem com seus prolongamentos citoplasmáti-
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cos no interior dos túbulos dentinários. Consequentemente, as repercussões e os mecanismos de resposta tecidual
ocorrem de forma integrada, o que determina que a dentina e a polpa sejam entendidas e reconhecidas como integrantes de um mesmo complexo, o complexo dentino-pulpar (Figuras 1.1 a 1.3).
Odontogênese
A inter-relação dentina/polpa tem início na odontogênese. Em sítios específicos do epitélio bucal (banda epitelial primária), células proliferam para formar as lâminas dentárias. Imediatamente ao redor delas, ocorre o
fenômeno denominado condensação do ectomesênquima, em que um aglomerado de células ectomesenquimáticas determina a formação da papila dentária, responsável pela origem tanto da dentina quanto da polpa dental.
Pelo fato de as células da lâmina dentária assumirem, em
conjunto, uma estrutura cuja conformação assemelha-se
a um broto, esse estágio é chamado de estágio de botão.
Com a condensação das células do ectomesênquima, as
células localizadas no interior do epitélio continuam a se
desenvolver, caracterizando a formação de uma estrutura
que assume a forma de um capuz. Essa nova estrutura, que
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D
D
FD
FD
F
P
oo Figura 1.1
oo Figura 1.2
oo Figura 1.3
Vista geral da polpa coronária de um pré-molar humano jovem extraído. É possível
observar que a polpa (P) está envolvida pela
dentina (D), a qual é internamente revestida
por uma camada contínua de odontoblastos
(setas). Tricrômico de Masson, 32 ×.
Polpa radicular do mesmo dente apresentado na Figura 1.1. Verifica-se, nesta figura, o
tecido conjuntivo fibroso denso (FD) no
centro da polpa radicular. Tricrômico de Masson, 32 ×.
Detalhe da polpa radicular. Nota-se o contraste entre o tecido pulpar central fibroso
(FD) e o tecido pulpar periférico frouxo (F).
Observa-se aqui a camada contínua de
odontoblastos que resveste internamente a
dentina radicular (setas). Tricrômico de Masson, 180 ×.
repousa sobre a papila dentária, recebe o nome de órgão
dentário, cuja morfologia determina uma nova fase da
odontogênese, o estágio de capuz. Ao redor do órgão dentário e da papila dentária, um grupamento significante de
células ectomesenquimáticas se organiza para originar o
folículo dentário. Nesse momento, o germe dentário passa
a ser composto de: (1) órgão dentário, que dará origem ao
esmalte; (2) papila dentária, responsável pela formação da
dentina e da polpa; e (3) folículo dentário, que dá origem
aos tecidos de suporte do elemento dentário, como o osso
alveolar, o ligamento periodontal e o cemento.1
Ocorrem diversos fenômenos durante a fase seguinte
da odontogênese, chamada de estágio de campânula. Nessa etapa, diferentes estratos (epitélio dentário externo, retículo estrelado, estrato intermediário e epitélio dentário
interno) podem se diferenciar no órgão do esmalte. Já na
periferia do órgão dentário, as células mais próximas à papila dentária (epitélio dentário interno) adquirem forma
cilíndrica baixa e interagem reciprocamente com as células
do ectomesênquima, o que resulta na formação do complexo dentino-pulpar. No epitélio dentário interno, as células
relacionadas às futuras cúspides tornam-se colunares altas, dando início ao estágio tardio de campânula, além de
promover uma sinalização, por meio da membrana basal,
que passa a diferenciá-las das células mais periféricas da
papila dentária, transformando-as em pré-odontoblastos.
Esse fenômeno se inicia pela secreção de fatores de crescimento, particularmente aqueles pertencentes à superfamí-
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lia TGFβ, os quais se acumulam na membrana basal. Essas
proteínas bioativas se relacionam com os receptores de
membrana dos pré-odontoblastos, que passam a secretar
fibronectina e a expressar a proteína 165kDa, específica
para interagir com a fibronectina. A interação entre essas
moléculas resulta na diferenciação final dos pré-odontoblastos em odontoblastos, momento em que ocorre o alongamento das células e a polarização do núcleo (assumindo
a posição basal), bem como o desenvolvimento do retículo
endoplasmático rugoso que se dispõe paralelo ao longo do
eixo da célula.2
A partir desse momento, inicia-se a deposição de matriz
de dentina, composta principalmente de colágeno tipo I,
proteoglicanos e proteínas não colagenosas, como sialoproteína óssea, sialoproteína da dentina, osteocalcina, fosfoforina, osteopontina, osteonectina, entre outras. Nesse processo,
denominado dentinogênese, os odontoblastos se deslocam
centripetamente em relação à papila dentária, movimento
em que deixam para trás de seu corpo um prolongamento
citoplasmático. Durante a mineralização da matriz dentinária, os prolongamentos citoplasmáticos dos odontoblastos
são envolvidos pela matriz mineralizada, formando, assim,
os túbulos dentinários, os quais conferem a característica de
permeabilidade à dentina. Os odontoblastos se organizam
em monocamada em toda a periferia da polpa dental, formando a camada odontoblástica1 (Figura 1.4).
Essa camada de odontoblastos é forte e intimamente
unida por junções intercelulares vigorosas que funcio-
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Complexo Dentino-Pulpar o
oo Figura 1.4
Detalhe do complexo dentino-pulpar de pré-molar humano íntegro.
Aqui, vê-se que os odontoblastos, organizados em camada para revestir internamente a dentina, apresentam prolongamentos citoplasmáticos (setas) que se localizam no interior dos túbulos dentinários.
Tricrômico de Masson, 125 ×.
nam como um filtro que permite a passagem de água e de
algumas proteínas de baixo peso molecular e íons, formando, assim, o fluido dentinário, o qual preenche toda
a extensão dos túbulos dentinários. Ao mesmo tempo em
que a atividade de síntese dos odontoblastos primários
ocorre, células mesenquimais do centro da papila dentária se diferenciam em outros tipos celulares, dando origem à região central da polpa.
Dentina
A dentina é considerada um tecido parcialmente mineralizado, formado quase em sua totalidade por cristais
de hidroxiapatita, em meio à matriz de colágeno.3,4 De
3
maneira geral, tem sido demonstrado que sua composição, em volume, é de aproximadamente 55% de minerais,
30% de material orgânico e 15% de fluido.5
O tecido dentinário é depositado pelos odontoblastos
por toda a vida do órgão dental. Durante a odontogênese
até a erupção e completa formação do ápice radicular,
ocorre deposição rápida de dentina (dentina primária)
pelos odontoblastos primários. Após esse período, ocorre
uma abrupta redução na deposição de dentina pelos
odontoblastos, porém essa atividade permanece de forma
lenta por toda a vida do órgão dental. Aqui, trata-se da
dentina secundária, a qual promove uma diminuição fisiológica do volume da câmara pulpar e do canal radicular com o passar dos anos. Como os prolongamentos dos
odontoblastos estão presentes, a dentina primária e a secundária apresentam característica tubular e são também consideradas fisiológicas6 (Figura 1.5).
No tecido dentinário, é possível diferenciar, ainda, dois
tipos distintos de estruturas com composições diferentes.
Entre os túbulos dentinários, há um tecido mineralizado
com interposição de colágeno, denominado dentina intertubular. Já ao redor dos túbulos dentinários, existe um tecido dentinário altamente mineralizado (95%), que leva o
nome de dentina peritubular. A deposição de dentina peritubular promove redução do diâmetro dos túbulos dentinários da periferia (0,9 µm) até a polpa (3,0 µm), o que permite que os túbulos dentinários apresentem a característica
de cone invertido. Além disso, o número de túbulos dentinários é menor na superfície da dentina (15.000/mm2) do
que próximo à polpa (65.000/mm2). Esses fatores permitem que a morfologia da dentina adquira diferentes características de acordo com a profundidade, fato este que
apresenta repercussão direta sobre a eficácia dos procedimentos restauradores, bem como a respeito dos diversos
procedimentos clínicos sobre o tecido pulpar.4,6
B
MD
MD
A
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oo Figura 1.5
A Corte transversal na região de deposição de matriz dentinária não
mineralizada (pré-dentina) demonstrada em B. É possível observar a
presença dos túbulos dentinários que contêm, individualmente, prolongamentos citoplasmáticos (setas) dos odontoblastos. Entre os túbulos,
pode-se observar a matriz dentinária (MD) rica em colágeno. TEM.
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o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
Polpa dental
A polpa dental é constituída por um tecido conjuntivo
frouxo especializado, estruturalmente dividido em camadas: a odontoblástica; a acelular; a rica em células; e a
central. Na periferia da polpa, encontram-se células organizadas em paliçada logo abaixo da pré-dentina, conhecida como camada odontoblástica (Figura 1.6).
Os odontoblastos, quando completamente diferenciados, apresentam-se altamente polarizados (núcleo localizado próximo à região subodontoblástica) e caraterizados como células secretoras, com presença abundante do
retículo endoplasmático rugoso e complexo de Golgi.
Além disso, seus corpos celulares estabelecem entre si
numerosos contatos por meio das junções intercelulares,
as quais permitem comunicação intercelular e trocas metabólicas.7 Responsáveis pela produção contínua de dentina fisiológica (dentina secundária), quando expostas a
injúrias, essas células podem participar do processo de
esclerose dentinária e produção de dentina reacional,
bem como estão envolvidas na resposta imunoinflamatória da polpa.
Logo abaixo dos odontoblastos, encontra-se uma delgada área com nenhuma ou com poucas células, denominada zona acelular (zona de Weill). Essa camada, atravessada por prolongamentos de células adjacentes, vasos e
fibras nervosas, é parcialmente ocupada pelo plexo de
Rashkow, constituído por fibras mielínicas (A-δ e A-β) e
fibras amielínicas (fibras C). Essa estrutura nervosa se
caracteriza por numerosos filetes nervosos, originados
de um ou mais feixes nervosos centrais que penetram a
polpa pelo forâmen apical e acompanham os vasos sanguíneos em sua rota. Deste plexo alguns filetes nervosos,
ricos em receptores para dor, passam através dos odontoblastos e terminam na pré-dentina ou dentina (cerca de
100 µm dentro dos túbulos dentinários). Em virtude da
localização periférica dessas fibras nervosas de rápida
condução e baixo limiar de excitabilidade, estímulos externos que conseguem provocar rápida movimentação do
fluido dentinário promovem a ativação das terminações
nervosas na embocadura dos túbulos e na câmara pulpar,
gerando o quadro clínico de hipersensibilidade.8 Proposta por Brännström no ano de 1986, essa teoria hidrodinâmica é a mais aceita pela comunidade científica para explicar o fenômeno de hipersensibilidade dentinária.9
Junto à camada acelular, existe uma delgada área específica de tecido conjuntivo que apresenta notável
quantidade de células, a zona rica em células. Nessa região, está presente uma quantidade considerável de células mesenquimais indiferenciadas que funcionam como
um sistema de reserva e que estão diretamente relacionadas com a manutenção da camada odontoblástica e, consequentemente, com a reparação pulpar. Já foi observado
que, quando ocorre morte de odontoblastos, seja por um
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D
PD
CO
CA
CRC
P
oo Figura 1.6
Neste corte histológico de um dente humano íntegro, pode-se observar as distintas estruturas e camadas que caracterizam o complexo
dentino-pulpar: dentina (D); pré-dentina (PD); camada de odontoblastos (CO); camada acelular (CA); camada rica em células (CRC); e
região central da polpa (P). Tricrômico de Masson, 250 ×.
mecanismo natural de morte celular programada (apoptose) ou por um processo patológico, as células mesenquimais de reserva são estimuladas por meio da interação de mediadores químicos e fatores de crescimento
com receptores de membrana, o que resulta em sua diferenciação em novos odontoblastos, que agora levam o
nome de odontoblastoides.10,11 Esse processo de recrutamento e diferenciação celular ainda não está bem esclarecido, porém sabe-se que ele é distinto daquele da odontogênese, no qual a presença de células epiteliais se faz
necessária.12
A última camada, conhecida como zona central, é
constituída por um tecido conjuntivo frouxo singular, no
qual estão presentes fibroblastos, células mesenquimais
indiferenciadas, células do sistema imune (macrófagos e
linfócitos), além de capilares e fibras nervosas distribuídas de forma equilibrada na matriz extracelular. Essa matriz é composta de elementos fibrosos e da substância
fundamental (formada por proteoglicanas, glicosaminoglicanas, glicoproteínas e água), sendo o colágeno o constituinte fibroso mais abundante (Figura 1.7), e permite a
difusão de nutrientes, oxigênio e proteínas entre os componentes celulares e a microcirculação, o que lhe consagra papel importante na manutenção da capacidade de
reparação pulpar.1,2,7
RESPOSTA DO COMPLEXO DENTINO-PULPAR
AOS AGENTES IRRITANTES
Uma vez rompida a integridade do esmalte, o complexo dentino-pulpar fica exposto às diversas injúrias do
meio bucal, que compreendem desde estímulos de ori-
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Complexo Dentino-Pulpar o
5
VS
B
oo Figura 1.7
A
gem microbiana, traumática e iatrogênica (preparos cavitários e outros procedimentos clínicos) até traumas de
origem química advindos de materiais dentários. De maneira geral, esse complexo responde a esses irritantes com
a produção de dentina, tendo como principal objetivo limitar a difusão de componentes tóxicos para o tecido
pulpar, pela diminuição da permeabilidade do tecido
dentinário, bem como afastar-se da fonte agressora. Dessa forma, a resposta do complexo dentino-pulpar compreende três mecanismos básicos de defesa, que estão intimamente relacionados e que dependem do tempo e da
intensidade da agressão: a deposição de dentina intratubular; a deposição de dentina terciária; e a inflamação/
resposta imune.13,14
O primeiro mecanismo, a deposição de dentina intratubular, resulta na formação da esclerose dentinária. Esse
fenômeno é considerado um importante mecanismo de
defesa da polpa, o qual reduz e pode até mesmo obstruir
a luz interna dos túbulos dentinários, reduzindo drasticamente a permeabilidade da dentina. Essa redução no
diâmetro tubular pode ocorrer em virtude do acúmulo
de cristais de apatita provenientes da própria dissolução
da dentina no interior dos túbulos, que leva à liberação de
proteínas não colagenosas aprisionadas na dentina mineralizada, as quais podem atuar diretamente nos odontoblastos, estimulando a produção de matriz extracelular.15
Segundo Pashley e colaboradores,16 quando o dente é exposto à atrição, ocorre uma alteração no movimento de
fluido dentinário do interior da polpa para fora, com o
objetivo de conduzir e formar depósitos de minerais no
interior dos túbulos. Já nos casos de lesões de cárie, este
mecanismo também está associado à resposta dos receptores de membrana localizados nos odontoblastos e/ou
em seus prolongamentos citoplasmáticos, que seriam ativados por proteínas metabolicamente ativas provenientes
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A Detalhe da região central da polpa selecionada a partir de B. Nota-se
que, neste tecido conjuntivo frouxo, há a presença de células do sistema imune, fibroblastos (seta amarela) e vasos sanguíneos (VS) TEM.
da dissolução da dentina. Essas proteínas são liberadas
no interior dos túbulos e ativam os odontoblastos, estimulando a secreção de proteínas relacionadas à deposição de matriz dentinária. Dessa forma, os túbulos de dentina próximos ao processo de lesão por cárie podem ser
obstruídos por proteínas secretadas pelos odontoblastos
em associação com cristais do fluido dentinário e da dentina descalcificada, além dos próprios componentes internos dos túbulos.
Quando ocorre a deposição de dentina terciária na periferia pulpar em resposta a um estímulo externo, o mecanismo de defesa é conhecido como deposição de dentina
terciária, considerada patológica, cujo objetivo, de maneira
geral e simplória, seria o distanciamento dos odontoblastos
do agente agressor. A dentinogênese terciária engloba um
amplo espectro de respostas que vão desde a secreção de
uma dentina tubular, que pouco difere da dentina primária e da secundária, até a deposição de uma dentina amorfa
e atubular. Dessa forma, a dentina terciária tem sido subclassificada em reacional e reparadora em virtude dos distintos eventos biológicos que envolvem sua deposição, bem
como de suas características morfológicas.17 Em situações
em que o complexo dentino-pulpar é submetido à agressão
de baixa intensidade, os odontoblastos primários (os mesmos responsáveis pela deposição da dentina primária e da
secundária) são estimulados a depositar e mineralizar matriz dentinária, provavelmente por mecanismos associados
à inflamação de baixa intensidade. Essa dentina, denominada reacional, pouco se diferencia da dentina primária e
da secundária, apresentando, na maioria das vezes, característica tubular (Figura 1.8).
Quando a agressão é de alta intensidade, pode ocorrer
morte dos odontoblastos ou mesmo aspiração dessas células para o interior dos túbulos dentinários (desencadeando um processo de autólise). Durante esse processo,
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6
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
DRL
oo Figura 1.8
oo Figura 1.9
Dentina reacional (DRL) depositada abaixo de uma área de agressão
de baixa intensidade aplicada sobre o complexo dentino-pulpar. Nota-se a linha cálcio-traumática (setas), sendo que, abaixo dela, a matriz
de dentina reacional recém-depositada exibe túbulos dentinários evidentes. Uma camada contínua de odontoblastos também pode ser
observada. H/E, 250 ×.
Dentina reparadora (DRA) depositada abaixo de uma área de agressão de forte intensidade aplicada sobre o complexo dentino-pulpar.
Nota-se que resíduos de odontoblastos primários mortos permaneceram incluídos em uma matriz de dentina amorfa (setas oblíquas), a
qual, em uma região mais interna, apresenta alguns túbulos dentinários irregulares (setas horizontais). Essa dentina terciária reparadora
está revestida por uma delicada camada de células odontoblastoides
de variada morfologia, que foram recém-diferenciadas. Tricrômico de
Masson, 250 ×.
células mesenquimais indiferenciadas da polpa são “estimuladas” a se diferenciar em células odontoblastoides e
secretar matriz de dentina, inicialmente amorfa e, muitas
vezes, atubular, a qual caracteriza a dentina reparadora.
A deposição de uma matriz tubular por células polarizadas é observada posteriormente na superfície dessa matriz amorfa. Esse processo de reparação pulpar é mais
complexo e envolve diversos eventos bioquímicos/moleculares, que dependem diretamente das condições e características da polpa previamente à ação do agente irritante18,19 (Figura 1.9).
A diferenciação entre esses dois tipos de dentina terciária é de grande importância no estudo da biocompatibilidade dos materiais dentários. Isso porque, se determinado material resultar na deposição de dentina reparadora,
sabe-se que ocorreu a morte dos odontoblastos agredidos
e nova formação de camada de células odontoblastoides
pela diferenciação das células mensequimais indiferenciadas subjacentes. Consequentemente, um número menor de células mesenquimais permanecerá na polpa remanescente, o que pode reduzir a capacidade do
complexo dentino-pulpar de responder a agressões futuras. Como ocorre a morte dos odontoblastos, o prolongamento deles será degradado.
O último mecanismo de defesa, a inflamação/resposta imune, está relacionado à capacidade das células pulpares de induzir uma resposta inflamatória e imune frente aos agentes agressores do complexo dentino-pulpar.
Esse mecanismo envolve tanto uma resposta imune inata
quanto a adaptativa, incluindo desde o fluido dentinário
até diversos tipos celulares e suas citocinas inflamató-
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DRA
rias.20,21 O resultado final dessa resposta imune é um quadro inflamatório exacerbado, cujo objetivo principal é
eliminar os agentes agressores. Entretanto, se o agente
agressor não for eliminado, como pode ocorrer durante a
evolução do processo carioso, essa inflamação imune
eventualmente leva à destruição irreversível da polpa.21
A resposta inicial compreende o aumento da pressão
intrapulpar, resultando na exsudação do fluido dentinário. Quando a dentina é exposta, a pressão positiva da
polpa dental limita a invasão dos túbulos dentinários por
bactérias e seus produtos, bem como de outras substâncias nocivas, prevenindo, pelo menos durante um período curto inicial de tempo, que cheguem até o tecido pulpar.22 Em polpas injuriadas, observou-se um alto
conteúdo de anticorpos no interior dos túbulos dentinários próximos à região afetada, possivelmente como forma de reagir aos antígenos de forma específica ou não.14
Outro fenômeno frequentemente encontrado nessa situação específica é a precipitação de proteínas plasmáticas
de alto peso molecular no interior dos túbulos dentinários, entre eles o fibrinogênio, que podem reduzir a permeabilidade da dentina.23
Por estarem localizados na periferia da polpa e, consequentemente, em contato direto com a pré-dentina e com a
dentina, por meio de seus prolongamentos, os odontoblastos representam o primeiro grupo celular a entrar em contato com os agentes agressores que podem se difundir pelos tecidos mineralizados do dente. Apesar de sabermos
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que a principal função dos odontoblastos é a síntese e posterior mineralização da matriz dentinária, estudos recentes demonstraram a participação desse tipo celular no processo de reconhecimento de padrões moleculares associados
aos patógenos, na produção de citocinas e quimiocinas e
na regulação do fluxo sanguíneo pulpar.20,21,24
Os odontoblastos expressam receptores do tipo Toll
(“Toll-like receptors”), que induzem a fase efetora da resposta imune inata pela ativação da via NF-κB, resultando
em secreção de citocinas pró-inflamatórias e quimiocinas, na produção de peptídeos antimicrobianos e na maturação das células dendríticas.25,26 Além disso, essas células são responsáveis pela produção de certas
quimiocinas, como as CCL2 (que participam da quimiotaxia de células dendríticas imaturas), os monócitos, os
macrófagos ativos etc., para o sítio injuriado.24 Com relação à participação dos odontoblastos na microcirculação,
foi demonstrado o aumento na expressão da quimiciona
pró-angiogênica CXCL2 quando essas células foram estimuladas com LTA (ácido lipoteicoico), o que pode contribuir para o aumento na vascularização durante o processo inflamatório, particularmente em virtude de sua
posterior ligação a receptores nas células endoteliais.27
Esse mesmo estímulo (LTA) sobre células odontoblastoides e outras células pulpares resultou em aumento na
produção do fator de crescimento endotelial vascular
(VEGF), um importante indutor de angiogênese e permeabilidade vascular.28 Essas células também podem
produzir a enzima NADPH-diaforase, envolvida na produção de óxido nítrico, um potente vasodilatador.29,30
Outros componentes dessa resposta imune pulpar são
os neuropeptídeos, responsáveis por alterar múltiplos processos, como a permeabilidade vascular e a vasodilatação
no local da injúria.31 Entre os neuropeptídeos mais comumente encontrados no tecido pulpar, estão o peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP), a substância P
(SP), a neuroquinina (NKA) e o polipeptídeo vasoativo
intestinal (VIP). O resultado final da inflamação neurogênica é um aumento transiente na pressão tecidual intersticial e na movimentação do fluido dentinário em sentido
contrário à polpa, sendo considerado, como descrito anteriormente, um fator protetor do complexo dentino-pulpar. No entanto, caso o tecido pulpar não consiga absorver
esse excesso de fluido intersticial por meio dos sistemas
linfático e circulatório, um aumento nos níveis dos neuropeptídeos somado ao edema persistente podem levar à dor
e possível necrose local na polpa.32,33
Os demais participantes da resposta imunoinflamatória pulpar incluem células típicas do sistema imune, como
células dendríticas, macrófagos, linfócitos T e B, além de
suas citocinas e quimiocinas. As células dendríticas são
consideradas a população mais importante no reconhecimento e na apresentação de antígenos do tecido pulpar.
Diante da captura, do processamento e do reconhecimento
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7
dos produtos de patógenos, essas células em estado imaturo iniciam um processo de maturação funcional e migram
até os nódulos linfáticos regionais para apresentar os antígenos aos linfócitos T imaturos.34 O processo de maturação
das células dendríticas resulta em maior produção de citocinas pró-inflamatórias, as quais sustentam o recrutamento desse tipo celular circulante imaturo, de seus precursores e também de células T para o local da injúria.35 Os
macrófagos participam da resposta pulpar na apresentação
de antígenos, na fagocitose e na modulação da resposta
imune por meio da produção de diversas citocinas e fatores
de crescimento.21 Essas células, quando ativadas, produzem TNF-α, IL-1, IL-10, IL-12, quimiocinas e vários mediadores lipídicos, como o fator de ativação de plaquetas,
prostaglandinas e leucotrienos. Com relação aos linfócitos,
são mais encontradas células T do que B no tecido pulpar.
Quando ativados, os linfócitos T participam no reconhecimento do antígeno por meio dos receptores de membrana
(células T “helper”) e atuam na eliminação de células do
hospedeiro infectadas e transformadas por vírus, induzindo a apoptose delas, além de produzir IFN-γ com objetivo
de aumentar a fagocitose (células T citotóxicas). Os linfócitos B são geralmente encontrados em lesões de cárie profunda21 e caracterizam uma resposta pulpar adaptativa, ou
seja, um antígeno específico. Além de sua função principal
em produzir anticorpos, as células B podem também atuar
como apresentadoras de antígenos, modular as funções
das células dendríticas e produzir citocinas, como IL-10,
IL-4 e IFN-γ, em resposta aos patógenos.36,37
REPERCUSSÃO DOS PROCEDIMENTOS
CLÍNICOS NO COMPLEXO DENTINO-PULPAR
A partir do rompimento da integridade do esmalte,
seja por um processo carioso ou mesmo durante a realização de um preparo cavitário, túbulos dentinários são
expostos, criando, assim, uma via de comunicação direta
entre o tecido pulpar e o ambiente externo. Com o objetivo de selar a dentina e atuar como agente de reparação
tecidual, diversos materiais dentários estão sendo empregados na Odontologia. Entretanto, esses materiais apresentam características distintas no que se refere à composição química, hidrofilicidade, resistência mecânica,
adesividade com os tecidos dentários e presença de produtos de degradação, fatores intimamente relacionados à
resposta do tecido pulpar. Dessa forma, uma característica extremamente importante na seleção do material dentário ideal é a sua compatibilidade e capacidade de interagir com o complexo dentino-pulpar, com o objetivo de
prevenir danos pulpares ou, pelo menos, contribuir para
a reparação da polpa em um curto período de tempo.
Outro fator a ser levado em consideração no que diz
respeito à repercussão de um dado procedimento clínico
no tecido pulpar é a profundidade do preparo cavitário.
16/09/2013 10:24:23
8
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
Sabe-se que, dependendo da profundidade da cavidade, o
tecido dentinário assume características completamente
distintas quanto ao número e diâmetro dos túbulos dentinários, como relatado anteriormente neste capítulo. Assim, atenção especial deve ser dada quando se está trabalhando em dentina profunda, um substrato que apresenta
elevada permeabilidade, em virtude do maior número e
diâmetro dos túbulos dentinários, o que também determina uma elevada umidade nesse tecido. Esses fatores
devem ser levados em consideração quando da escolha do
material odontológico a ser aplicado nesse tipo de substrato. Quanto maior a permeabilidade do tecido dentinário, maior a possibilidade de difusão transdentinária de
componentes dos materiais dentários não polimerizados
para o tecido pulpar. Os componentes liberados pelos
materiais que conseguem atravessar a dentina para alcançar a polpa podem desencadear reações no tecido pulpar que vão desde uma leve reação inflamatória até necrose. Dessa forma, a espessura do remanescente
dentinário (RDT – Remaining Dentin Thickness) deve ser
considerada como um importante fator a ser avaliado
quando da seleção do material dentário ideal para solucionar uma situação clínica específica.
Preparo cavitário
O procedimento clínico mais comumente praticado
pelos cirurgiões-dentistas e que pode provocar desequilíbrio entre os diversos componentes do complexo dentino-pulpar é aquele onde o esmalte e a dentina são cortados
durante a realização de um preparo cavitário. Uma vez que
esse procedimento pode gerar danos ao tecido pulpar de
intensidade variada, cuidados simples devem ser levados
em consideração e respeitados durante sua confecção.
Com o advento do condicionamento ácido dos tecidos duros dentários proposto por Buonocore,38 associado à aplicação de sistemas adesivos, os antigos conceitos
atribuídos aos preparos cavitários passaram por uma
profunda transformação. Ao deixar de ser prioridade a
forma de retenção, atualmente recomenda-se que o preparo cavitário limite-se à remoção do tecido cariado
(preparo cavitário minimamente invasivo). Sabe-se que,
quanto maior a profundidade do corte da dentina, maior
a probabilidade de dano direto aos odontoblastos pelo
corte dos seus prolongamentos citoplasmáticos presentes
nos túbulos dentinários.12 Dessa forma, com essa nova
filosofia restauradora, passou-se a valorizar a capacidade reparadora da polpa, já que o prolongamento dos
odontoblastos é preservado, aumentando o potencial de
formação de esclerose dentinária. Além disso, o corte de
dentina sadia promove exposição de túbulos sem esclerose dentinária promovida pelo processo carioso, ou
seja, ocorre exposição de túbulos com amplo diâmetro e
altamente permeáveis.13
Capitulo_01.indd 8
Turbina de alta velocidade
Convencionalmente, os procedimentos de corte dos
tecidos dentais são realizados a partir da utilização de
instrumentos rotatórios associados à turbina de alta velocidade. O contato direto da broca com as superfícies do
dente gera uma alta intensidade de calor, a qual é neutralizada pelo jato água/ar que atinge a porção ativa da broca
e dos tecidos dentários remanescentes. Sob essa condição,
a broca e o dente são refrigerados, o que impede que o
calor excessivo seja transmitido para o tecido pulpar, ou
seja, evita-se que o aquecimento venha a causar danos de
variada intensidade a esse tecido conjuntivo especializado39 (Figura 1.10).
O aquecimento do elemento dental é a principal causa
de alterações irreversíveis aos odontoblastos. O estudo
clássico desenvolvido por Zach e Cohen, em 1965, demonstrou, pela primeira vez, os efeitos produzidos pelo
calor em dentes de primatas. Os autores relataram que,
quando se aplicou uma temperatura de 5,6°C na câmara
pulpar dos dentes desses animais, 15% das polpas avaliadas sofreram necrose. Contudo, quando se elevou a temperatura para 16,5°C, 100% das polpas sofreram danos
irreversíveis.40 Durante a preparação cavitária, o aumento inadvertido da temperatura na câmara pulpar pode
ocorrer por diversos fatores. A utilização de brocas sem a
correta atividade de corte e a excessiva pressão de corte
aplicada sobre as estruturas dentárias, bem como a falta
de refrigeração, podem, isoladamente, ou em associação,
causar aquecimento e gerar sérios danos para o tecido
oo Figura 1.10
Dente humano submetido a preparo cavitário sem os devidos cuidados com a irrigação, pressão de corte da dentina e capacidade de
corte da ponta diamantada. Observa-se a ruptura da camada odontoblástica, sendo que muitos odontoblastos foram aspirados para o interior dos túbulos dentinários (setas). Nota-se a desorganização do
tecido pulpar subjacente associada à hemorragia local. Tricrômico de
Masson, 250 ×.
16/09/2013 10:24:26
pulpar. Por esse motivo, é recomendada a substituição
frequente das brocas empregadas em procedimentos clínicos.41-43 Da mesma maneira, movimentos de pressão
intermitentes devem ser aplicados sobre a estrutura dentária durante a preparação cavitária, o que reduzirá a
possibilidade de aquecimento excessivo do elemento dental. Pode-se recomendar a pressão de corte de quatro segundos com outros quatro segundos de descanso. Também devem ser obtidas adequada refrigeração das brocas
e das estruturas dentárias pela utilização de turbinas que
contenham pelo menos dois orifícios de diâmetros apropriados, os quais devem estar totalmente desobstruídos
durante o procedimento clínico de corte das estruturas
dentárias.41,44 O descuido na observação de qualquer um
desses itens poderá acarretar sérios prejuízos ao tecido
pulpar, fato que certamente justifica os cuidados a serem
tomados.
Método químico/mecânico
A remoção químico/mecânica do tecido cariado é um
método que foi proposto com o objetivo de desenvolver
procedimentos menos invasivos e mais confortáveis ao
paciente. Ele propõe a aplicação de um agente químico
que consegue atuar apenas na dentina comprometida
pelo processo carioso, amolecendo-a e facilitando, assim,
sua remoção mecânica por meio de instrumentos manuais
especialmente desenhados.45
Já foram propostos diversos métodos químico/mecânicos para remoção do tecido cariado.45,46 Atualmente,
um método patenteado e com comprovada efetividade
para essa atividade é o que emprega o Carisolv™ (Medi
Team Dentalutveckling AB, Sävedalen, Suécia), um produto que apresenta, na sua composição, três aminoácidos
com diferentes funções que interagem efetivamente na
dentina cariada: a lisina (aminoácido básico); a leucina
(aminoácido hidrófobo); e a glutamina (aminoácido ácido). Além dos aminoácidos, o Carisolv™ apresenta um
evidenciador de dentina cariada, a eritrosina (E127B),
água, hipoclorito de sódio e cloreto de sódio.
A mistura do hipoclorito de sódio com os aminoácidos, em um pH elevado, gera a formação de um aminoácido N-clorado, em que o cloro frouxamente ligado é ativado e ataca o colágeno desnaturado na lesão de cárie.47 O
hipoclorito de sódio é um agente proteolítico não específico que consegue remover componentes orgânicos e com
reconhecida atividade antimicrobiana; porém, os aminoácidos neutralizam o efeito agressivo dessa substância
sobre os tecidos sadios.48 O resultado é, basicamente, o
amolecimento da dentina cariada, deixando a dentina
subjacente, a qual, apesar da presença de poucos microrganismos, mantém seu potencial de remineralização.49 A
eficácia desse sistema na remoção do tecido cariado foi
avaliada em diversos estudos, que demonstraram que o
Carisolv™ é eficaz na remoção do tecido cariado, ao ex-
Capitulo_01.indd 9
Complexo Dentino-Pulpar o
9
cluir quase que totalmente a necessidade de anestesia local; porém, o maior tempo clínico necessário para a execução desse método foi considerado sua principal
desvantagem.50-56 Em um estudo recente, desenvolvido
com microtomografia computadorizada, ficou constatado que esse método foi mais seletivo para remoção de cárie quando comparado a outros oito métodos.57
O efeito do Carisolv™ em polpas humanas expostas foi
avaliado por Bulut e colaboradores.58 O produto foi aplicado sobre a polpa exposta por um período de 10 minutos,
tendo como controle a aplicação de solução salina. Após
uma semana, uma resposta pulpar semelhante, que consistia em suave inflamação adjacente à área de perfuração, foi
encontrada em ambos os grupos, não havendo diferença
estatística entre eles. Os autores concluíram que o Carisolv™ não causa reações adversas para o tecido pulpar de
seres humanos, sendo considerado, assim, um produto
biocompatível. Em estudo recente, Chang e colaboradores59 demonstraram que a utilização do Carisolv™ em cavidades profundas, previamente ao capeamento pulpar indireto com hidróxido de cálcio, resultou em 95,3% de
vitalidade pulpar em comparação com 87% quando o método tradicional foi empregado, uma diferença estatisticamente significativa.
Dessa forma, e segundo os autores, o método químico/
mecânico foi mais efetivo na preservação da vitalidade
pulpar do que o método tradicional quando da realização
de capeamento pulpar indireto em cavidades profundas.
Outros estudos com polpa de ratos também foram realizados, sendo observado que a aplicação do Carisolv™ em polpa exposta por períodos de 10 a 30 minutos não promoveu
alterações significativas no tecido pulpar. Além disso, foram observadas destruição tecidual superficial e necrose
de coagulação em 150 μm de profundidade, limitada à área
exposta. Segundo os autores, esse produto causa uma hidrólise alcalina dos componentes celulares da polpa, porém não decompõe o colágeno desse tecido.49,60,61
Laser Er:YAG
O sistema de ablação a ar pela utilização do laser
Er:YAG é uma alternativa para remoção do tecido cariado que tem sido bastante estudada.39,62 O laser Er:YAG
atua em um comprimento de onda cujo valor é igual ao
pico de absorção da água e muito próximo do grupo hidroxila (OH–) referente à apatita mineral encontrada
tanto no esmalte como na dentina.63-67 Esse importante
fator permite que a energia liberada pelo laser Er:YAG
seja satisfatoriamente absorvida, tanto pelo esmalte
como pela dentina,63 uma vez que ambas as estruturas
apresentam naturalmente água e cristais de hidroxiapatita na sua composição.68
Durante a aplicação desse tipo de laser na superfície
dental, a água absorve a energia eletromagnética emitida
pelo sistema de Er:YAG, transformando-a em energia tér-
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10
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
mica, passando rapidamente do estado líquido para o estado gasoso.69 Esse processo provoca intensa elevação da
pressão interna do substrato mineral, rompendo a sua estrutura pelo processo de microexplosões, um fenômeno
conhecido como ablação.63,70 É nesse contexto que o sistema de laser Er:YAG tem sido utilizado para remover tecido
cariado e realizar preparos cavitários.66,71-73 A capacidade
do sistema laser em ablacionar os tecidos dentais está diretamente relacionada a dois parâmetros: a energia por pulso; e a taxa de repetição. Assim, à medida que se aumentam
a taxa de repetição e a energia por pulso, maior é a eficácia
de remoção do tecido dentinário. Porém, como consequência, esse processo provoca aumento da temperatura do
tecido irradiado.67,74 Segundo Kilinc e colaboradores,75 contudo, o aumento na temperatura da câmara pulpar, in vitro, observado para o laser Er:YAG foi significativamente
menor que o verificado para as brocas em alta rotação, não
ultrapassando 5,5°C. Outras pesquisas demonstram que a
refrigeração pela utilização de jato água/ar previne o aumento excessivo da temperatura produzido durante o processo de ablação, resultando em um mecanismo eficiente e
seguro para procedimentos clínicos.39,76,77 De acordo com
Hossain e colaboradores,78 a refrigeração com jato água/ar
não apenas impede o aquecimento excessivo das estruturas
irradiadas, como também aumenta a efetividade de ablação.
Na literatura, não existe um consenso ou padronização
em relação aos parâmetros utilizados para realização da preparação cavitária com o uso do laser, sendo que seus estudos
empregaram diferentes parâmetros, o que torna difícil a
eleição de um método seguro e eficaz.77,79 Em estudo in vitro,
Promklay e colaboradores80 observaram que a aplicação do
laser Er:YAG, com diferentes energias de pulso (120, 300 e
500 mJ), sobre superfície de discos de dentina com 0,5 mm
de espessura não causou alterações significativas sobre fibroblastos cultivados no lado oposto dos discos. Os autores
observaram ainda que, para a energia de 500 mJ, houve aumento na produção de colágeno tipo I pelas células.
Os efeitos da preparação cavitária com laser Er:YAG
sobre polpas humanas foi avaliada por João Fernando
Kina.81 O autor empregou energia de pulso de 500 mJ,
taxa de repetição de 10 Hz e volume de água de 8,4 mL/
min. O preparo com o laser foi realizado com movimentos horizontais, lentos e contínuos, para evitar acúmulo
de energia em uma única região do preparo. A análise
histológica dos dentes submetidos à preparação cavitária
a laser e com turbina de alta velocidade não demonstrou
alterações significativas no tecido pulpar. Nessa pesquisa,
não foi mensurada a temperatura gerada durante a confecção das cavidades, entretanto o autor especulou que o
calor gerado foi baixo, pois não ocorreram danos teciduais
significativos na polpa dos pacientes, mesmo considerando que o RDT entre as paredes cavitárias e a polpa era,
em média, de 935,2 μm. Em uma análise mais detalhada,
foi possível constatar que apenas um (1) espécime de cada
Capitulo_01.indd 10
grupo experimental apresentou tecido pulpar com resposta inflamatória significativa e notável desorganização
tecidual no corno pulpar diretamente relacionado com as
paredes cavitárias. Nesses espécimes, o remanescente
dentinário entre o assoalho da cavidade e a polpa era de
214 μm, para o método com laser, e de 413 μm, para a
turbina de alta rotação. Esses dados histológicos demonstram que ambos os sistemas apresentam potencial para
causar agressões pulpares quando do corte ou da ablação
de tecido dentinário muito profundo (RDT < 0,5 mm).
Assim, os cirurgiões-dentistas devem estar atentos
quando da realização de procedimentos clínicos de preparação cavitária, especialmente quando houver a necessidade de remoção de dentina próxima à polpa. Como
anteriormente discutido, esse procedimento se torna
mais crítico quando o tecido dentinário profundo a ser
mecanicamente removido apresenta-se cariado. Nesse
caso, os possíveis danos pulpares causados pelo preparo
cavitário podem se somar ao processo inflamatório previamente instalado na polpa em decorrência da presença
de bactérias e seus produtos citotóxicos.
Quanto à morfologia da cavidade, no estudo realizado
por Kina,81 foi relatado que o sistema laser não permitiu
controle efetivo da eliminação dos tecidos mineralizados
do dente, quando foram obtidos preparos mais irregulares
do que aqueles confeccionados com turbina de alta velocidade. Segundo o autor, esse fato pode ter resultado nas exposições pulpares acidentais que ocorreram apenas neste
grupo durante a realização do experimento. Neves Ade e
colaboradores57 observaram, em estudo in vitro com microtomografia computadorizada, que a remoção do tecido
cariado com laser Er:YAG resultou em remoção não seletiva da cárie, quando comparado a outros métodos. Dessa
forma, apesar de estudos demonstrarem a ausência de efeitos adversos sobre o tecido pulpar, ainda não há evidências
da segurança na utilização desse método para remoção do
tecido cariado (já que pode resultar em remoção inespecífica do tecido dental sem efetivo controle operacional),
bem como uma definição clara dos parâmetros ideais a
serem empregados clinicamente.
Procedimentos restauradores
O procedimento restaurador visa a devolver as funções, a morfologia e a característica de cor ao elemento
dental, possibilitando o rápido reparo do complexo dentino-pulpar.17 Assim, a biocompatibilidade é uma importante propriedade a ser considerada na seleção de um
agente restaurador, especialmente quando a restauração é
realizada em cavidades profundas. Além da biocompatibilidade, pesquisas recentes têm investigado a capacidade
desses materiais dentários em interagir com o complexo
dentino-pulpar e auxiliar no processo de regeneração por
meio da modulação das respostas celulares.12 Sabe-se que,
16/09/2013 10:24:27
Complexo Dentino-Pulpar o 11
durante a dentinogênese, proteínas não colagenosas,
além de fatores de crescimento, permanecem sequestrados na dentina após sua mineralização. Quando aplicados sobre a dentina, alguns materiais apresentam capacidade de liberar moléculas bioativas desse tecido dentário
tubular, principalmente em virtude de suas características de acidez ou alcalinidade, bem como por seu potencial de atuar como agente quelante, o que pode auxiliar
no processo de regeneração pulpar. Dessa forma, nesta
seção será dado enfoque para os materiais utilizados para
restauração de cavidades profundas (capeamento pulpar
indireto), bem como para aqueles aplicados em polpa exposta (capeamento pulpar direto).
DI
DA
Capeamento pulpar indireto
Em casos de lesões profundas, o capeamento indireto
da polpa é empregado com o objetivo de manter a vitalidade pulpar: (1) detendo o processo carioso; (2) promovendo
esclerose dentinária (reduzindo a permeabilidade); (3) estimulando a formação de dentina reacional; e (4) remineralizando a dentina cariada.82 O correto diagnóstico clínico
da condição pulpar bem como a seleção do material capeador e de um material restaurador que permita adequado
selamento da interface dente/restauração são essenciais
para o sucesso desse procedimento restaurador. Como anteriormente descrito neste capítulo, atualmente preconiza-se a realização de preparos cavitários minimanente invasivos, limitados à remoção do tecido cariado. Essa remoção
deve restringir-se à camada mais superficial de dentina
cariada (dentina infectada), clinicamente apresentada
como uma dentina necrótica, destruída e desorganizada, e
pode ser feita facilmente com instrumentos manuais. A
dentina infectada é rica em microrganismos, toxinas e enzimas, não conservando estrutura histológica passível de
reorganização e remineralização.83,84
Logo abaixo da dentina infectada, encontra-se uma
estrutura dentinária contaminada (dentina afetada), que
se apresenta como uma estrutura distorcida, de coloração
alterada, mas com textura parcialmente mantida. A dentina afetada também contém microrganismos, embora
em menor número83,84 (Figuras 1.11 e 1.12).
Após remoção da dentina infectada, é recomendado
que se aplique, sobre a dentina afetada, um material dentário que apresente comprovada atividade antimicrobiana, já que este deve atuar sobre microrganismos remanescentes, inibindo sua atividade e metabolismo. Esse
procedimento permite que o processo de cárie da camada
mais profunda de dentina paralise, potencializando ou,
pelo menos, criando condições adequadas para a reparação do complexo dentino-pulpar.84,85
Tem sido relatado que o material forrador ideal deve
apresentar as seguintes propriedades: módulo de elasticidade semelhante à dentina; adesão ao substrato dentinário; atividade antimicrobiana; adequada resistência mecânica; copolimerização com o material restaurador;
Capitulo_01.indd 11
oo Figura 1.11
Visão geral de uma lesão de cárie em evolução em um dente decíduo.
Nota-se que a camada mais superficial da lesão, denominada dentina
infectada (DI), apresenta elevado número de microrganismos e sua
estrutura já está completamente desorganizada. Abaixo dela, observa-se
um menor número de microrganismos penetrando na dentina por meio
dos túbulos dentinários (setas). Esta parte da lesão, a qual, apesar de
contaminada, ainda preserva a característica tubular da dentina, leva o
nome de dentina afetada (DA). Brown & Brenn, 125 ×.
DI
oo Figura 1.12
Detalhe de uma dentina infectada (DI), a qual se apresenta desorganizada e, consequentemente, sem potencial de remineralização.
Brown & Brenn, 250 ×.
baixa solubilidade; e biocompatibilidade com o tecido
pulpar.84 Vários materiais dentários foram propostos
para o capeamento indireto, sendo que sua viabilidade de
utilização será descrita a seguir.
Hidróxido de cálcio
Os materiais a base de hidróxido de cálcio têm sido
empregados como agentes forradores e capeadores com
16/09/2013 10:24:30
12
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
elevados índices de sucesso clínico há décadas.14 Suas características, que incluem ação bacteriostática e bactericida aliada à sua alcalinidade, parecem exercer papel fundamental na paralização do processo carioso. Já foi
demonstrado que esse material promove a deposição de
dentina reacional e esclerose dentinária.86 Quando usado
para forramento de cavidades profundas preparadas em
dentes humanos ou mesmo para capeamento pulpar direto, foi demonstrado que o hidróxido de cálcio, nas suas
diferentes formulações, causa mínima resposta inflamatória pulpar, sendo considerado padrão-ouro em pesquisas.42,87-94 Apesar das vantagens do uso dos cimentos de
hidróxido de cálcio como materiais para capeamento
pulpar indireto, estes apresentam desvantagens relacionadas às suas propriedades físicas, como falta de adesão
às estruturas dentárias, baixa resistência mecânica e elevada solubilidade. Dessa forma, apesar de os cimentos de
hidróxido de cálcio (Hidro C, Dycal e outros) continuarem sendo amplamente usados na clínica odontológica
para forramento cavitário e capeamento pulpar indireto,
outros materiais têm sido propostos e estudados.
Sistemas adesivos
A aplicação de sistemas adesivos diretamente em cavidades profundas foi proposta, há alguns anos, por clínicos/pesquisadores que não recomendavam a aplicação
prévia de um agente capeador indireto biocompatível
para proteção do complexo dentino-pulpar. Porém, já
está comprovado, a partir de diversas pesquisas científicas, que esse procedimento pode causar reação inflamatória crônica persistente do tipo corpo estranho e reabsorção dentária interna associada ou não a áreas de
necrose do tecido pulpar.87 Diversos fatores estão envolvidos neste processo, os quais serão discutidos a seguir.
Atualmente, os sistemas adesivos são classificados de
acordo com o número de etapas necessárias para sua aplicação clínica e com o seu mecanismo de interação com o
substrato dentinário. O primeiro grupo de sistemas adesivos que surgiu é formado por aqueles que preconizam a
remoção completa da smear layer por meio do condicionamento ácido total. Nesse procedimento, um ácido forte
(ácido fosfórico 30 a 40%) é aplicado sobre a superfície
dentinária, promovendo descalcificação da dentina intertubular e peritubular e alargando a embocadura dos
túbulos dentinários. Em seguida, aplicam-se o primer e o
adesivo, o que resulta na formação de uma camada híbrida acidorresistente.45,95,96
O condicionamento ácido total aplicado em cavidades
muito profundas (RDT < 0,5 mm) pode resultar na exposição de uma rede de fibrilas de colágeno parcialmente
desnaturadas, entrelaçadas em meio a amplos túbulos
dentinários desobstruídos, os quais passam a permitir
uma intensa exsudação de fluido dentinário do interior
da polpa para a parede pulpar da cavidade. Mesmo após a
Capitulo_01.indd 12
remoção do excesso de água da cavidade, esse tipo de
substrato se mantém muito úmido, especialmente em
virtude da presença do fluido dentinário, sendo que este
quadro pode ser ainda mais intenso se o tecido pulpar
apresentar-se inflamado.17 Atenção especial deve ser dada
ao procedimento de secagem da cavidade. Sabe-se que,
em condições ideais, esse procedimento deve ser realizado de forma delicada, tomando-se cuidado para não desidratar e ressecar a dentina e provocar o colapso das fibrilas colágenas, o que dificulta a formação da camada
híbrida. Em substrato dentinário profundo, a secagem
excessiva da cavidade gera um rápido movimento de saída do fluido dentinário,97 o que pode provocar aspiração
do corpo dos odontoblastos para dentro dos túbulos dentinários, ocasionando a morte dessas células, que são eliminadas dentro de alguns dias.
A aplicação do sistema adesivo em um ambiente que
apresenta excesso de umidade resulta na formação de
uma camada híbrida heterogênea e de qualidade inadequada. O sistema adesivo compete com o fluido dentinário para ocupar a região desmineralizada pelo condicionamento ácido, ou seja, não consegue penetrar em toda a
área desmineralizada; dessa forma, permanecem gaps de
dentina descalcificada pobre em minerais, a qual é altamente suscetível à hidrólise. Esses gaps tornam-se, então,
sítios de falhas do mecanismo de adesão. Já foi demonstrado que as metaloproteínases da própria dentina e/ou
da saliva podem degradar a interface adesiva.98 Além disso, a ampla umidade pode interferir na polimerização
dos monômeros resinosos do sistema adesivo: aqueles
não polimerizados permanecem livres em meio ao fluido
dentinário e podem se deslocar facilmente por meio dos
túbulos dentinários em direção ao tecido pulpar.
A difusão in vitro de componentes resinosos pela dentina foi amplamente demonstrada na literatura.99-102 Costa
e colaboradores103 demonstraram que, quando o sistema
adesivo não é polimerizado, o efeito citotóxico in vitro sobre células odontoblastoides é exarcebado, ao ser comparado aos mesmos materiais submetidos à fotopolimerização.
Diversos estudos in vivo relataram que a aplicação de sistemas adesivos em cavidades profundas submetidas ao condicionamento ácido resultou na formação de longos tags de
resina e na difusão transdentinária de monômeros residuais não completamente polimerizados do material em direção à polpa.42,87,91,92,94,104 Associado à penetração de tais
glóbulos de materiais resinosos, observou-se no tecido pulpar de dentes humanos intensa reação inflamatória e desorganização da camada de odontoblastos, sendo que este
quadro não foi reversível.42 Porém, quando o substrato
dentinário não foi submetido ao condicionamento ácido,
foi observada apenas uma leve reação inflamatória.42,87
Outro procedimento clínico que pode influenciar na
difusão de componentes não polimerizados para o tecido
pulpar é a fotopolimerização do sistema adesivo. Foi de-
16/09/2013 10:24:31
Complexo Dentino-Pulpar o 13
monstrado no estudo de Hashimoto e colaboradores97
que, durante a fotopolimerização, o aumento na temperatura gerado pela luz promove inversão no sentido de movimentação do fluido dentinário dentro dos túbulos, ou
seja, este passa a se deslocar em direção à câmara pulpar,
o que pode ocasionar maior difusão de monômeros residuais para o interior da polpa.
Os sistemas adesivos apresentam, na sua composição,
diversos monômeros resinosos, como HEMA (2-Hydroxyethyl methacrylate), Bis-GMA (Bisphenol A-glycidyl
methacrylate), TEGDMA (Triethylene glycol dimethacrylate) e UDMA (uretano dimetacrilato), os quais apresentam reconhecida citotoxicidade sobre células de mamíferos em cultura.42,105-108
Ratanasathien e colaboradores106 descreveram a seguinte sequência decrescente de citotoxicidade: Bis-GMA
> UDMA > TEGDMA >>> HEMA. Apesar de sua menor
toxicidade em relação aos demais monômeros resinosos,
o HEMA é o principal monômero presente nos sistemas
adesivos. Já foi demonstrado que uma concentração de 16
μmol/L de HEMA causou efeito inibitório irreversível sobre a síntese de DNA, proteínas e metabolismo celular
sobre fibroblastos em cultura.109 Contudo, os sistemas
adesivos apresentam uma concentração de 4.000 μmol/L
de HEMA, número muito maior que o empregado no estudo de Hanks e colaboradores.109 Além disso, esse monômero apresenta elevada hidrofilicidade e baixo peso
molecular, o que pode facilitar sua penetração e difusão
pelos túbulos dentinários. Acredita-se, então, que uma
concentração considerável de HEMA possa atingir a câmara pulpar após aplicação do sistema adesivo em cavidades profundas condicionadas, ou seja, esse monômero
provavelmente é o principal responsável pelos efeitos deletérios no tecido pulpar após aplicação dos sistemas adesivos.
Já o Bis-GMA, apesar de sua elevada citotoxicidade,
apresenta elevado peso molecular e é um monômero hidrofóbico, o que limita sua difusão pelos tecidos dentários.110
Foi demonstrado por estudos in vitro que o contato
direto de monômeros resinosos com diferentes tipos celulares promoveu aumento na produção de espécies reativas de oxigênio (EROs), além de diminuição da atividade
de antioxidantes intracelulares, desencadeando o processo de estresse oxidativo celular, seguido de morte celular
por apoptose.111-115 Quando em contato com o tecido pulpar, os monômeros resinosos desencadeiam uma reação
inflamatória crônica. Podem ser vistos macrófagos na
periferia da polpa relacionada à área de aplicação do sistema adesivo, células que apresentam capacidade para
fagocitar os componentes dos materiais resinosos; porém, as enzimas lisossomais produzidas por elas não conseguem digerir esses produtos, o que resulta em uma reação inflamatória persistente (Figuras 1.13 e 1.14).
Um segundo grupo de sistemas adesivos disponíveis
para uso clínico leva o nome de adesivos autocondicionantes, os quais têm por objetivo modificar a smear layer
e incorporá-la no processo de adesão.88 Como a smear
layer não é removida, acredita-se que a difusão de com-
oo Figura 1.13
Dente humano submetido a preparo cavitário muito profundo (RDT =
287 µm). Após condicionamento ácido total, um sistema adesivo foi
aplicado sobre todas as paredes cavitárias. Observa-se a desorganização da camada odontoblástica, sendo que as células morreram por
aspiração para o interior dos túbulos dentinários ou por contato direto
com componentes resinosos que se difundiram por meio dos túbulos
dentinários. Tricrômico de Masson, 250 ×.
Capitulo_01.indd 13
oo Figura 1.14
Detalhe de uma área da Figura 1.13, em que um macrófago apresenta grande quantidade de glóbulos de material adesivo que alcançaram
a câmara pulpar. TEM.
16/09/2013 10:24:32
14
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
ponentes monoméricos a partir desses materiais em direção à câmara pulpar possa ser minimizada. Com o objetivo de avaliar a segurança da aplicação de adesivos
autocondicionantes em cavidades profundas, Souza Costa e colaboradores92 realizaram estudo em dentes humanos. Os autores observaram presença de glóbulos de material resinoso não polimerizado em direção ao tecido
pulpar em apenas dois dos 15 espécimes estudados, associada à intensa reação inflamatória, sendo que esses espécimes apresentaram RDT menor que 300 μm. Cetingüç e
colaboradores102 demonstraram que a penetração de
HEMA pelos tecidos dentais a partir de sistemas adesivos
ocorre na seguinte ordem crescente: condicionamento
ácido + aplicação do sistema adesivo > adesivo autocondicionante > aplicação do sistema adesivo sem condicionamento ácido. Porém, no mesmo estudo, foi mostrado
que, quanto menor é o RDT, maior é a difusão de HEMA
a partir de sistemas adesivos autocondicionantes. Em estudo recente, foi demonstrado que a aplicação de diferentes sistemas adesivos autocondicionantes sobre discos de
dentina in vitro resultou em difusão significativa de monômeros resinosos – sendo o HEMA o principal componente encontrado –, o que produziu redução significativa
da viabilidade de células odontoblastoides semeadas na
superfície oposta dos discos de dentina.116 Outros estudos
demonstram que pode ocorrer nanoinfiltração na camada híbrida confeccionada sob substrato úmido.117,118 Dessa forma, a degradação da camada híbrida e a consequente liberação de monômeros resinosos podem ocorrer com
o decorrer do tempo e, assim, exacerbar os danos ao tecido pulpar.92
Tem sido demonstrado que os monômeros advindos
dos sistemas adesivos podem interferir no metabolismo
celular causando danos ao DNA, com a ativação consecutiva de mecanismos de reparo e, eventualmente, apoptose
celular.119 Mais recentemente, alguns estudos observaram
um retardo na resposta do sistema imune inato frente a
agentes agressores como o LPS (lipopolissacarídeo) causado pelos monômeros resinosos em virtude da redução
da ação das MAP-kinases e, consequentemente, redução
de mediadores inflamatórios.120 Esse achado indica que
os monômeros podem interferir na resposta inflamatória, permitindo que o sistema imune atue de forma mais
branda. Essa ação de supressão dos sintomas inflamatórios pelos monômeros ainda permanece em questionamento, pois, apesar de poder favorecer a regeneração tecidual, também pode levar a um quadro de sépsis em razão
da dificuldade em reverter o processo infeccioso.120 Outra
particularidade dos monômeros foi observada no estudo
de Galler e colaboradores,121 em que demonstrou-se que
células pulpares expostas a baixas concentrações de
TEGDMA apresentaram redução na expressão de genes
relacionados à mineralização, como o colágeno tipo 1, a
fosfatase alcalina, a silaproteína óssea, a sialofosfoproteí-
Capitulo_01.indd 14
na da dentina, entre outros. Os autores sugerem que esse
fenômeno ocorreu porque não houve energia suficiente
para a diferenciação celular, já que a maioria da energia
disponível foi utilizada para reaver as reações oxidativas,
impedindo, portanto, a formação de barreira mineralizada.121 Assim, como o advento desses materiais é recente e
poucos estudos estão disponíveis na literatura, parece
ainda ser de bom-senso, para situações clínicas de cavidade profunda, utilizar materiais forradores que definitivamente apresentem boas propriedades biológicas.
Cimento de ionômero de vidro
As indicações de um material forrador vão muito
além de proteger a polpa dos possíveis efeitos tóxicos dos
materiais dentários. Na atualidade, sabe-se que um agente forrador/base pode ser utilizado para: (1) inibir a atividade bacteriana na dentina afetada por cárie após remoção da dentina infectada; (2) diminuir a área a ser
restaurada com resina composta, determinando uma importante redução na quantidade de material restaurador
a ser aplicado na cavidade, bem como o número de incrementos necessários; e (3) regularizar o assoalho cavitário.
Apesar de sua comprovada eficácia para capeamento indireto em cavidades profundas, as desvantagens do hidróxido de cálcio anteriormente descritas neste capítulo
(falta de adesão micromecânica ou química à dentina,
não copolimerização com os materiais resinosos, elevada
solubilidade e baixa resistência mecânica) demonstram
que esse material, apesar de amplamente utilizado, parece não se enquadrar no perfil atual de um forrador ideal.
Diante disso, os cimentos de ionômero de vidro,
modificados ou não por resina, têm sido propostos
como material forrador/base cavitário, pois apresentam propriedades mecânicas e módulo de elasticidade
semelhantes à dentina, além de comprovada atividade
antimicrobiana pela liberação de flúor, reduzida solubulidade, adesão ao substrato dentinário e copolimerização com materiais resinosos.122-124 Além disso, tem sido
demonstrado que a interação química entre componentes dos cimentos de ionômero de vidro com o tecido dentinário gera a formação de cristais na embocadura dos
túbulos dentinários,125 o que pode reduzir a permeabilidade da dentina, especialmente quando se trata de cavidades profundas. Porém, poucos são os estudos disponíveis na literatura que avaliaram a biocompatibilidade
desses materiais em cavidades profundas. Duque e colaboradores126 demonstraram que a aplicação do cimento
de ionômero de vidro modificado por resina Vitrebond®
(3M ESPE, St. Paul, Minnesota, Estados Unidos) em cavidades profundas preparadas em dentes de primatas
não causou reação inflamatória no tecido pulpar. Os autores relataram apenas a ocorrência de discreta deposição de dentina reacional na região da polpa relacionada
com o assoalho cavitário. Pesquisas com dentes huma-
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Complexo Dentino-Pulpar o 15
oo Figura 1.15
oo Figura 1.16
Dente humano submetido a preparo cavitário muito profundo. Após
tratamento das paredes cavitárias com um primer (ácido poliacrílico +
HEMA) e restauração com o CIV Vitremer®, o dente foi extraído e processado para análise microscópica. Observa-se a intensa reação inflamatória pulpar mediada por células mononucleares em meio a numerosos vasos sanguíneos dilatados e congestos. A dentina apresenta
áreas de reabsorção interna (setas). Tricrômico de Masson, 250 ×.
Neste dente humano, o CIV Vitrebond® foi aplicado sobre o assoalho
cavitário antes do tratamento da dentina com primer e restauração da
cavidade com Vitremer®. Notam-se aqui a manutenção da integridade
da camada odontoblástica e a ausência de inflamação e desorganização tecidual. Tricrômico de Masson, 250 ×.
nos também apresentaram resultados animadores a respeito desse material.89,94 Quando Vitrebond® foi aplicado
em cavidades muito profundas (RDT < 0,3 mm), o tecido
pulpar manteve suas características histológicas de normalidade. Atualmente, nosso grupo de pesquisa avaliou
a aplicação do cimento de ionômero de vidro Vitremer®
em cavidades profundas após tratamento das paredes
cavitárias com um primer fornecido pelo próprio fabricante. Essa pesquisa foi proposta em virtude da dificuldade encontrada em algumas situações clínicas, particularmente em Odontopediatria, de se aplicar um CIV
para forramento cavitário, seguido do uso de outro CIV
para restaurar a cavidade. Assim, talvez um único cimento, como o Vitremer®, pudesse ser empregado com
segurança, independentemente da profundidade da cavidade, reduzindo o tempo clínico e o custo da restauração.
Todavia, os resultados negativos observados na polpa,
caracterizados por persistente inflamação e desorganização tecidual (dados ainda não publicados), desencorajaram a indicação desse procedimento clínico (Figuras
1.15 e 1.16). Novas pesquisas com diferentes CIVs estão
em andamento com o objetivo de demonstrar os efeitos
de diferentes materiais ionoméricos sobre o tecido pulpar, o que fornecerá ao clínico opções para a seleção do
material forrador/base cavitário.
Estudo in vitro realizado por Souza Costa e colaboradores127 demonstrou que alguns cimentos cimentos de ionômero de vidro, como Fuji II LC™ e Fuji IX GP™ (GC, Tóquio,
Japão) e Ketac-Molar™ (3M ESPE, St. Paul, Minnesota, Estados Unidos), foram menos citotóxicos para células pulpares
Capitulo_01.indd 15
em cultura do que o Vitrebond®. Em estudo com dentes de
ratos, o Fuji IX™ demonstrou boa biocompatibilidade, não
induzindo efeitos nocivos para a polpa dental desses animais.128 Pode-se especular que esses produtos apresentam
biocompatibilidade similar àquela encontrada para o Vitrebond®. Todavia, resultados de pesquisas in vitro e em animais não podem ser diretamente extrapolados para condições clínicas. Dessa maneira, como todos os procedimentos
clínicos devem ser empregados com base em evidências
científicas, parece claro que o Vitrebond® ainda permanece
como o único material forrador que atualmente cumpre a
maioria dos requisitos de um agente forrador ideal, cujas
proriedades foram comprovadas por meio de pesquisas
científicas publicadas em periódicos internacionais de forte
impacto para a área do conhecimento.
Capeamento pulpar direto
Há mais de 60 anos, o hidróxido de cálcio tem sido
utilizado como agente capeador direto de polpas expostas com o objetivo de induzir ou, pelo menos, permitir
que as células pulpares participem, de forma definitiva,
da formação de uma barreira mineralizada.12,14 A característica alcalina desse material é capaz de induzir uma
necrose de extensão limitada à superfície da exposição
pulpar, a qual estimula o mecanismo de reparação pulpar. Os passos seguintes assemelham-se àqueles descritos para a deposição de dentina reparadora, nos quais
células mesenquimais indiferenciadas da polpa são recrutadas para a região de necrose e diferenciam-se em
células odontoblastoides. Essas células recém-diferenciadas sintetizam, depositam e mineralizam uma denti-
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16
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
HC
BM
oo Figura 1.17
oo Figura 1.18
Dente humano submetido à exposição mecânica da região mais superior do corno pulpar vestibular. Sobre a ferida pulpar, foi aplicado pó
de hidróxido de cálcio (HC). Nota-se o início de formação de uma
barreira mineralizada (setas), a qual apresenta tendência de obliterar
a exposição, interpondo-se entre o material capeador e a polpa subjacente. H/E, 64 ×.
Decorridos 60 dias após o capeamento pulpar direto com hidróxido
de cálcio, uma barreira mineralizada (BM) completa foi formada, a
qual está revestida internamente por uma camada contínua de células
odontoblastoides recém-diferenciadas (setas). H/E, 86 ×.
na amorfa, formando-se, assim, a barreira mineralizada, que se interpõe entre o material capeador e a polpa
subjacente12,14 (Figuras 1.17 e 1.18).
Esse potencial reparador do hidróxido de cálcio tem
sido explicado, pelo menos em parte, por sua capacidade
de solubilizar proteínas da dentina exposta, em virtude
de sua alcalinidade, e, consequentemente, modular a resposta de células odontoblastoides a produzir dentina.129
Alguns pesquisadores demonstraram a capacidade do
hidróxido de cálcio em extrair da dentina proteínas não
colagenosas e glicosaminoglicanas, além de fatores de
crescimento, como o TGF-β1.129,130
Mais recentemente, surgiu no mercado odontológico o
agregrado trióxido mineral (MTA), um cimento composto
de micropartículas hidrófilas de vários óxidos minerais.
Em contato com água, o pó do MTA se geleifica e se solidifica, tornando-se uma barreira quase que impermeável. De
maneira geral, o mecanismo de ação do MTA é semelhante
ao do hidróxido de cálcio.12,131,132 O pH inicial desse material é cerca de 10,2, o qual, após reação de presa, eleva-se
para aproximadamente 12,5, quando, então, permanece
constante. Duas características importantes do MTA, que
podem ser consideradas vantagens quando este material é
comparado ao hidróxido de cálcio, são: (1) radiopacidade;
e (2) baixa solubilidade. Além disso, durante a reação de
presa, o MTA apresenta expansão, o que pode prevenir a
infiltração marginal de bactérias.132
Já foi demonstrado, em estudo in vivo realizado em tecido conjuntivo subcutâneo de ratos, que o MTA consegue
promover formação de granulações grosseiras caracterizadas como cristais de calcita, que surgem em decorrência da
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reação do cálcio com o dióxido de carbono do tecido conjuntivo. Esse resultado foi semelhante à reação tecidual observada para o hidróxido de cálcio.133,134 Assim, estudos in
vivo foram realizados com o objetivo principal de avaliar a
resposta pulpar frente à aplicação do MTA em exposições
pulpares. Eles demonstraram que o MTA comportou-se de
forma semelhante ao hidróxido de cálcio, ao depositar
barreira dentinária e manter a polpa subjacente com características de normalidade e livre de processo inflamatório.135-138 Estudos recentes demonstraram que o MTA,
quando em contato com cultura primária de células pulpares, aumentou de forma significativa a expressão de proteínas relacionadas com a diferenciação de células mesenquimais indiferenciadas da polpa em células odontoblastoides,
como fosfatase alcalina (ALP), sialoproteína da dentina
(DSPP), colágeno tipo I (COL1), osteocalcina (OCN) e sialoproteína óssea (BSP).139-141Além disso, foi observado que
esse material ativou a diferenciação das células pulpares
pela via de sinalização MAPK (proteína quinase ativada
por mitógenos). Dessa forma, demonstrou-se que o MTA
apresenta potencial para favorecer a reparação pulpar, estimulando a diferenciação de células da polpa em células
odontoblastoides.141 Além disso, já foi descrito que os componentes de eluição do MTA, como íons cálcio, aumentaram a proliferação de células pulpares em cultura.142
Em revisão de literatura recente, Bakland e Andreasen143 afirmaram que, apesar de o MTA apresentar-se
uma alternativa promissora para a substituição do hidróxido de cálcio para o capeamento de polpas expostas, ainda não existem estudos clínicos a longo prazo que demonstrem eficácia e segurança para esse material. Em
pesquisa recente realizada por nosso grupo de pesquisa,
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Complexo Dentino-Pulpar o 17
PRMTA
VS
P
oo Figura 1.19
oo Figura 1.20
Dente humano submetido à exposição mecânica da polpa (P) e a capeamento pulpar direto com o cimento ProRoot-MTA® (PRMTA). H/E, 64 ×.
Cinco dias após o capeamento pulpar direto com ProRoot-MTA®, grânulos de bismuto (setas), liberados pelo cimento, são observados na
matriz extracelular da polpa, próximos a um amplo vaso sanguíneo
(VS). H/E, 250 ×.
em que uma cuidadosa avaliação histopatológica de polpa de dentes humanos capeada com o ProRoot-MTA® foi
realizada, observou-se, no período de cinco dias, a ocorrência de delgada necrose de coagulação no tecido pulpar
imediatamente abaixo do material capeador. Após 60
dias da realização do procedimento operatório, verificou-se a formação de uma barreira mineralizada mais
homogênea do que aquela que havia sido capeada com
hidróxido de cálcio. Todavia, no período inicial de avaliação (cinco dias), resíduos do material capeador, caracterizado como bismuto, foram observados dispersos em
meio à matriz extracelular da polpa (Figuras 1.19 e 1.20).
Já aos 60 dias, diversos fragmentos de bismuto residual
foram observados no citoplasma de células endoteliais e
no interior de vasos sanguíneos localizados distante da
área de capeamento. Esses achados histológicos chamaram a atenção, pois esses componentes de MTA presentes
na corrente circulatória caracterizam um processo patológico de embolia local, sendo que os êmbolos poderiam
alcançar facilmente capilares da região da cabeça e do
pescoço e, talvez, ocasionar sérios problemas para a saúde geral dos pacientes. Desde então, não temos mais utilizado ou recomendado o uso do ProRoot-MTA® ou de
VS
oo Figura 1.21
oo Figura 1.22
No período de 30 a 60 dias após o capeamento pulpar com o cimento ProRoot-MTA®, grânulos de bismuto liberados do material foram
observados na parede de vasos sanguíneos da polpa (setas). Tricrômico de Masson, 125 ×.
Como demonstrado na Figura 1.21, além de se acumularem nas paredes de vasos sanguíneos (VS), fragmentos de bismuto liberados
com cimento ProRoot-MTA® também são observados no interior
desses vasos pulpares. H/E, 125 ×.
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18
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
outro tipo de MTA que contenha bismuto na sua composição como agente capeador (Figuras 1.21 e 1.22).
A utilização de outros materiais (sistemas adesivos,
cimento de ionômero de vidro etc.) como agentes capeadores diretos de polpas expostas são contraindicados. Tal
asserção foi baseada em diversos estudos realizados, especialmente nos últimos 15 anos, em dentes humanos,
nos quais demonstrou-se que o material adesivo resinoso
aplicado sobre a polpa ocasionou reação inflamatória do
tipo corpo estranho e reabsorção dentinária interna, associada à falta de diferenciação de novos odontoblastos e
consequente não formação de barreira.43,90,93,144-147
Agentes cimentantes
O uso de restaurações indiretas na Odontologia é
uma modalidade de tratamento cada vez mais comum
na atualidade. Isso se deve à excelente estética final e às
propriedades mecânicas desses materiais quando comparados àqueles usados para restaurações diretas de cavidades dentárias. Porém, uma grande desvantagem da
execução de restaurações indiretas é a necessidade de se
confeccionar preparos cavitários específicos para prover
estabilidade para a restauração, o que, muitas vezes, leva
à necessidade de corte de tecido dental sadio e, consequentemente, exposição de grande número de túbulos
dentinários altamente permeáveis. Estima-se que, dependendo do dente, cerca de 1 a 10 milhões de túbulos
dentinários são expostos quando da realização do preparo para receber uma coroa total.148 Portanto, a escolha de
um agente cimentante biocompatível é fundamental
para o êxito do procedimento clínico.
O cimento de fosfato de zinco é, até hoje, um material
amplamente utilizado na Odontologia. Apesar da falta de
adesividade, da ausência de atividade antimicrobiana e
da elevada solubilidade, esse cimento apresenta comprovada eficácia clínica, demonstrada por diversos estudos
clínicos longitudinais.148 Porém, a acidez dele é considerada um fator de risco para danos ao tecido pulpar, sendo
contraindicado para aplicação em substrato dentinário
profundo.148-151
Os cimentos de ionômero de vidro e os cimentos resinosos são alternativas amplamente empregadas para a
cimentação de restaurações indiretas.148,152
Os primeiros apresentam diversas vantagens, como
discutido anteriormente, sendo uma de suas características marcantes sua biocompatibilidade com o complexo dentino-pulpar.89,94 Sabe-se que a acidez desse tipo de
material odontológico em contato com a dentina pode
gerar a formação de cristais na embocadura dos túbulos
dentinários. Assim, não se espera a ocorrência de danos
ao tecido pulpar e sensibilidade pós-operatória quando
do uso de materiais ionoméricos como agentes cimentantes. Sua grande desvantagem é a baixa resistência
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mecânica quando comparada a de cimentos resinosos.153-156
Porém, como afirmado anteriormente, poucos são os
materiais com comprovada indicação para aplicação em
substrato dentinário profundo, sendo necessários mais
estudos para indicação desses materiais para essa situação clínica em particular.
Atualmente, uma nova categoria de cimentos resinosos, denominada cimentos autoadesivos, foi introduzida
na Odontologia. Para esses cimentos, também não há recomendação de qualquer pré-tratamento da superfície do
dente, sendo o material manipulado e aplicado em passo
único.148,152,157 O mecanismo de adesão é baseado na ação
de monômeros multifuncionais com grupamentos de ácido fosfórico, os quais simultaneamente desmineralizam e
se infiltram no esmalte e na dentina.157 Nesse protocolo, a
smear layer não é removida e a sensibilidade pós-operatória não é esperada.91 Como os cimentos resinosos autoadesivos não necessitam dos passos clínicos de condicionamento ácido e/ou fotoativação, eles se apresentam
como uma alternativa clínica interessante, pois, além de
reduzir o tempo do procedimento clínico restaurador,
seu uso poderia, hipoteticamente, prevenir a difusão
transdentinária de monômeros residuais, evitando danos
às células pulpares.91
Em um estudo in vivo realizado em pré-molares humanos íntegros, foi demonstrado que a aplicação do cimento autoadesivo Rely X Unicem™ (3M ESPE, St. Paul,
Minnesota, Estados Unidos) em cavidades muito profundas causou nenhuma ou discreta reação inflamatória pulpar.91 Nos dentes onde foi aplicado um cimento resinoso
convencional (Variolink; Ivoclar Vivadent, Schaan, Lienchstein), observou-se formação de longos tags de resina no
interior dos túbulos dentinários, associada à intensa reação inflamatória e desorganização tecidual, a qual foi persistente em análises de 60 dias após a realização dos procedimentos clínicos. Outro estudo in vitro demonstrou o
discreto efeito citotóxico do Rely X Unicem™ para células
odontoblastoides em cultura.158 Os autores expuseram as
células, durante 24 horas, aos extratos provenientes de
corpos de prova preparados com Rely X Unicem™. Os extratos obtidos após 24 horas ou 7 dias de contato dos corpos de prova com o meio de cultura causaram redução de
apenas 2,64 e 10,51% no metabolismo celular, respectivamente. Essa leve redução metabólica causada pelo Rely X
Unicem™ sobre as células odontoblastoides não foi estatisticamente diferente dos dados obtidos para o grupo-controle, em que as células não tratadas representavam 100%
de metabolismo. Os demais materiais avaliados, entre eles
hidróxido de cálcio (Dycal® – Dentsply Caulk, Milford,
Delaware, Estados Unidos), Vitrebond® (3M ESPE) e Rely
X Lutting™ (3M ESPE), promoveram redução do metabolismo celular de 78 a 91%.
Os excelentes resultados obtidos para o Rely X Unicem™ podem estar relacionados, pelo menos em parte, à
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composição desse cimento, aliados à ausência de pré-tratamento da dentina. Esse material apresenta o persulfato
de sódio como iniciador da reação de polimerização, o
qual reduz a liberação de monômeros residuais.159,160Além
disso, seu elevado nível de carga inorgânica, como a sílica
silanizada (5 a 10% em peso), pode limitar a liberação de
monômeros residuais, bem como a difusão transdentinária deles, pois o aumento na quantidade de carga em um
material resinoso previne sua degradação imediata em
ambiente úmido.161 Portanto, esse cimento parece ser
uma interessante opção para a cimentação de peças protéticas em preparações dentárias que expõem dentina
profunda.
Clareamento dental
O clareamento dental é um procedimento bastante
requisitado na atualidade, porém, o problema da sensibilidade dental, comum após esse tratamento, tem atraído a
atenção dos pesquisadores.162 Estima-se que cerca de 2/3
dos pacientes submetidos ao clareamento dental relatam
algum tipo de desconforto pós-tratamento.163 Foi demonstrado por diversos estudos in vitro164-167 que a fisiopatologia da sensibilidade dental pós-clareamento está
relacionada à penetração de peróxido de hidrogênio
(H2O2), principal componente ativo dos géis clareadores,
no tecido pulpar. Dessa forma, acredita-se que a aplicação
de géis clareadores na superfície dental promove a difusão de H2O2 e seus subprodutos de degradação, como íons
hidroxila e ânion superóxido, para o tecido pulpar, gerando uma reação inflamatória, intimamente relacionada ao
processo de dor de origem pulpar.168 Se o procedimento
de clareamento dental resulta em dano ao tecido pulpar,
provavelmente ocorre a liberação de mediadores da inflamação, como prostaglandinas, que podem excitar ou sensibilizar nociceptores pulpares.169
Diversos estudos in vitro utilizando câmaras pulpares
artificiais demonstraram elevada citotoxicidade transamelodentinária sobre células odontoblastoides quando
da aplicação de agentes clareadores com elevadas concentrações de H2O2 (20 a 38%) sobre discos de esmalte/dentina, conforme recomendado para a técnica do clareamento de consultório.170-173 Além disso, estudos in vivo
demonstraram presença de inflamação pulpar de leve a
intensa, dependendo da espessura do dente clareado, a
qual seria resultante da ação do H2O2 e seus produtos de
degradação nas células pulpares.174-176 Nesses estudos in
vivo, quando géis clareadores com 35 ou 38% de H2O2,
associados ou não à ativação por luz ou calor, foram aplicados em pré-molares, não foram observadas alterações
significativas no tecido pulpar.175-177 Entretanto, Souza
Costa e colaboradores176 observaram que, em incisivos
inferiores, três aplicações consecutivas de um gel com
38% de H2O2, resultaram em necrose de coagulação da
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Complexo Dentino-Pulpar o 19
polpa coronária desses dentes. No mesmo estudo, o procedimento clareador foi realizado em pré-molares, onde
não foram observadas alterações histológicas significativas. A espessura de dentina dos dentes foi mensurada,
sendo observado que nos pré-molares a espessura média
foi de 3,1 mm, enquanto nos incisivos a média foi de aproximadamente 1,8 mm. Resultados semelhantes a esses
foram observados por Seale e colaboradores,178 em que o
clareamento com H2O2 a 35%, associado ou não ao calor,
em caninos de cães, resultou em intensa reação inflamatória no tecido pulpar, gerando morte de odontoblastos.
A espessura de esmalte e dentina dos dentes nesse estudo
foi de aproximadamente 1,7 mm. Dessa forma, fica claro
que a espessura de esmalte e dentina apresenta importante influência sobre os efeitos agressivos dos géis clareadores, provavelmente por interferir diretamente na difusão
transamelodentinária de componentes tóxicos.
Tem sido descrito que a associação dos géis clareadores com calor ou luz, um procedimento que objetiva promover um clareamento mais rápido, visto que a luz apresenta um efeito catalítico que acelera a liberação de
OH– bem como a difusão de H2O2 pelo esmalte e pela
dentina,179 resulta em maiores índices de sensibilidade
dental.163 Porém, já foi demonstrado em estudos in vivo
que a aplicação de luz ou calor não promoveu aumento na
eficácia do procedimento clareador.180,181 Por sua vez, outros estudos demonstraram que esse procedimento pode
resultar em maior difusão de H2O2 pelas estruturas mineralizadas do dente,179 bem como em aumento da temperatura intrapulpar acima do limiar biológico das células pulpares.182 Maiores efeitos tóxicos para as células
pulpares in vitro também foram demonstrados quando o
procedimento de clareamento de consultório foi realizado associado à aplicação de luz halógena.171 Caviedes-Bucheli e colaboradores183 demonstraram, ainda, que o
clareamento de pré-molares com altas concentrações de
H2O2 associadas ao laser ou à luz halógena resultou em
aumento significativo da expressão de substância P,
quando comparado com dentes apenas clareados com o
gel. Esses achados podem explicar, pelo menos em parte,
a maior prevalência de sensibilidade dental após o clareamento associado à luz.
Diante do comprovado efeito tóxico dos agentes clareadores com altas concentrações de H2O2, a técnica de clareamento caseiro, pela utilização de géis com baixas concentrações de peróxido de carbamida (PC), parece ser
uma alternativa bastante interessante. Soares e colaboradores184 observaram que a aplicação do gel clareador com
10% de PC em discos de esmalte/dentina não resultou em
difusão de componentes tóxicos que podem promover redução significativa do metabolismo de células odontoblastoides em cultura, independentemente do número de
aplicações do produto sobre a superfície dental (1, 7 ou 14
aplicações). Em estudo similar, Lima e colaboradores185
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20
o Dentística: Uma Abordagem Multidisciplinar
relataram que a aplicação do mesmo gel por seis horas na
superfície de discos de dentina, com 0,5 mm de espessura,
não resultou em redução do metabolismo das células
odontoblastoides que estavam aderidas na superfície pulpar do disco. Esses autores observaram, ainda, que uma
única aplicação de um gel clareador com 16% de PC sobre
a superfície dental resultou em difusão significativa de
H2O2, a qual foi suficiente para causar intensos efeitos tóxicos nas células odontoblastoides.184,185 De acordo com a
literatura, a difusão de produtos do gel clareador é proporcional à sua concentração e ao seu tempo de aplicação sobre o esmalte.165-167 Portanto, o aumento da concentração
do gel clareador de 10 para 16% de PC provavelmente determinou maior difusão de componentes tóxicos do produto por meio da estrutura dental, tornando a técnica de
clareamento com PC a 16% mais tóxica para as células
odontoblastoides.
Dessa forma, pode-se concluir que a utilização de géis
clareadores com elevadas concentrações de H2O2 na sua
composição deve ser repensada em virtude do elevado risco de danos ao tecido pulpar que apresenta, especialmente
em dentes anteriores – por conta de sua reduzida espessura de esmalte e dentina –, sendo eles os dentes mais requisitados para o clareamento dental. A aplicação de agentes
clareadores com baixas concentrações de PC, que promovem liberação lenta e gradual de H2O2 para o dente,166 parece ser uma alternativa mais segura para o clareamento
dental por proporcionar um clareamento eficaz186,187 e
com menores riscos de danos ao tecido pulpar.184 Atualmente, apenas o gel clareador com 10% de PC recebeu o
selo de aprovação pela ADA, o que determina sua segurança e eficácia.188 Portanto, a eleição da melhor técnica e/
ou produto a ser empregado para o clareamento dental
deve ser baseada em evidências científicas que proporcionem maior segurança do ponto de vista biológico.
ooCONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o exposto neste capítulo, fica claro
que qualquer material dentário aplicado sobre dentes vitais exerce, não apenas uma função mecânica/estética,
mas também promove uma resposta no complexo dentino-pulpar, cuja magnitude pode resultar em estímulo
para a reparação pulpar ou até mesmo em necrose desse
tecido altamente especializado. Assim, é importante que
os cirurgiões-dentistas conheçam a fisiologia e biologia do
tecido pulpar e os efeitos negativos que os procedimentos
clínicos e as diferentes classes de materiais dentários podem causar sobre o complexo dentino-pulpar. Dessa maneira, a seleção dos materiais e das técnicas a serem usados em situações clínicas específicas deve ser baseada em
evidências científicas e clínicas. Essa ação certamente
determinará um aumento no êxito dos tratamentos restauradores usados todos os dias nos consultórios e clínicas odontológicas, fornecendo maior segurança para os
cirurgiões-dentistas e seus pacientes.
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