Relato de Caso Papilomatose da vesícula biliar associada à leucodistrofia metacromática, uma causa rara de hemobilia não traumática Papillomatosis of the gallblander associated with metachromatic leukodystrophy, a rare cause of nontraumatic hemobilia Rodrigo Fabiano Guedes Leite1, Geraldo José de Souza Lima2, Gustavo Munayer Abras1, Livio José Suretti Pires1, Eduardo Godoy Castro1, Graziella Machado Bomfim3 RESUMO 32(4):120-122 120 A principal causa de hemobilia é a lesão traumática de ramos intra-hepáticos da artéria hepática. Porém, outras etiologias são descritas. O objetivo deste artigo é apresentar uma rara causa de hemorragia digestiva secundária à hemobilia associada à leucodistrofia metacromática. Revisão bibliográfica evidenciou apenas quatro casos descritos. Unitermos: Hemobilia, Hemorragia Digestiva, Leucodistrofia Metacromática. resultando em fistulização para a árvore biliar1. Etiologias mais raras de sangramento maciço são: parasitismo ductal (Ascaris lumbricoides), neoplasias hepáticas, ruptura de aneurisma da artéria hepática (primário ou secundário ao procedimento cirúrgico), abscesso hepático, litíase biliar e lesões parietais da vesícula biliar. Vários trabalhos citam a importância da papilomatose da vesícula biliar na leucodistrofia metacromática (LDM), entretanto apenas quatro trabalhos citam a ocorrência de HDA maciça2,3,4,5. SUMMARY A LDM é uma doença desmielinizante secundária a alteração do armazenamento lisossômico causada pela deficiência da enzima arilsulfatase A. The main cause of hemobilia is the traumatic injury of intrahepatic branches of the hepatic artery. However, other etiologies are decribed. The objective of this paper is to present a rare case of gastrointestinal bleeding secondary to hemobilia associated with metachromatic leukodystrophy. Literature review revealed only four cases described. Os pacientes desenvolvem desmielinização difusa, que geralmente se inicia nos primeiros 10 anos de vida. O processo leva à demência, convulsões, anormalidades nos nervos cranianos e, finalmente, grave espasticidade e rigidez. A síndrome pode acometer sítios extraneurais, tais como fígado, rins, linfonodos, testículos, medula óssea e vesícula biliar. Keywords: Hemobilia, Gastrointestinal Bleeding, Metachromatic Leukodystrophy. RELATO DE CASO INTRODUÇÃO A hemobilia é uma rara etiologia de hemorragia digestiva alta (HDA). A maioria dos casos é secundária à lesão traumática de ramos intra-hepáticos da artéria hepática, ABGC, 14 anos, sexo feminino, portadora de LDM desde os quatro anos de idade, apresentava quadro de hemorragia digestiva (HD) há aproximadamente quatro anos, sem diagnóstico etiológico definido. Apresentou vários episódios de HD maciça, evoluindo inclusive com níveis hemantimétricos extremamente baixos 1. Membro do Serviço de Cirurgia Geral e Laparoscópica do Hospital Madre Teresa - Belo Horizonte - MG - Brasil. 2. Coordenador do Serviço de Cirurgia Geral e Laparoscópica do Hospital Madre Teresa - Belo Horizonte - MG - Brasil e Doutor em Cirurgia pela Universidade Federal de Minas Gerais. 3. Especializanda em Cirurgia Geral pelo Serviço de Cirurgia Geral e Laparoscópica do Hospital Madre Teresa - Belo Horizonte – MG - Brasil. Endereço de correspondência: Rodrigo Fabiano Guedes Leite - Avenida Raja Gabáglia, 1002 - Hospital Madre Teresa - Bairro Gutierrez - Belo Horizonte – MG - CEP 30430-142. - e-mail: [email protected]. Recebido em: 16/08/2013. Aprovado em:18/08/2013. GED gastroenterol. endosc. dig. 2013: 32(4):120-122 R. F. G LEITE, G. J. DE S. LIMA, G. M. ABRAS, L. J. S. PIRES, E. G. CASTRO, G. M. BOMFIM Foto 2: Tomografia computadorizada Foto 1 : Endoscopia digestiva alta (hemoglobina 2,5 mg/dl) e choque, com recuperação após suporte clínico. Submetida a extensa investigação endoscópica (endoscopia digestiva alta, colonoscopia, enteroscopia, cápsula endoscópica) que se mostrou inconclusiva ao longo destes anos. 32(4):120-122 Em dezembro de 2011, a paciente deu entrada em nosso serviço com novo episódio de HDA e choque hipovolêmico. Gastroduodenoscopia não evidenciou alterações gástricas, entretanto foi visualizada papila duodenal abaulada. Realizada papilotomia endoscópica com drenagem de volumoso hematoma e sangramento ativo (foto 1). Cateterização do ducto de Wirsung excluiu lesões pancreáticas (Hemossulcus pancreaticus). A paciente foi encaminhada ao Setor de Hemodinâmica, onde não foi identificado sangramento ativo pela arteriografia. Entretanto, este método identificou imagem compatível com artéria hepática esquerda acessória originada da artéria gástrica esquerda, com “borramento” da imagem em topografia de lobo hepático esquerdo. Optou-se pela embolização deste vaso. pesquisa de HD, sendo identificada manutenção do sangramento em topografia de hipocôndrio direito (foto 3). A paciente foi submetida a tratamento cirúrgico, identificandose, no transoperatório, vesícula biliar distendida, com paredes espessadas contendo focos de hemorragia parietal. Após 48 horas, a paciente apresentou novo episódio de HDA, sendo que nova arteriografia mostrou-se inconclusiva. Tomografia computadorizada de abdome identificou vesícula biliar distendida, com paredes espessadas e imagem sugestiva de volumoso hematoma intra-luminal, não identificandose nenhuma lesão hepática intra-parenquimatosa ou sangramento ativo naquele momento (foto 2). A via biliar extra-hepática apresentava-se dilatada. Colangiografia pré-operatória mostrou imagem sugestiva de cisto coledociano junto à inserção do ducto cístico sem sinais de obstrução biliar distal. Procedemos a colecistectomia e exérese do cisto coledociano, sendo posicionado dreno de Kher em T seguido de coledocorrafia e drenagem sub-hepática com drenos laminares tipo Penrose. Optamos inicialmente pela abordagem conservadora com uso de análogo de somatostatina (Octreotide), com melhora clínica e laboratorial, não havendo novos episódios de sangramento macroscópico. Em nenhum momento, a paciente apresentou alterações laboratoriais sugestivas de obstrução da árvore biliar. Realizada cintilografia para A evolução pós-operatória foi favorável, com estabilização dos níveis hemantimétricos, tendo a paciente recebido alta no 15º dia de pós-operatório após tratamento de pneumonia de aspiração. A paciente retornou ao consultório, após três semanas, clinicamente estável, sendo retirado dreno em T após realização de colangiografia de controle. Foto 3: Cintilografia GED gastroenterol. endosc. dig. 2013: 32(4):120-122 PAPILOMATOSE DA VESÍCULA BILIAR ASSOCIADA À LEUCODISTROFIA METACROMÁTICA, UMA CAUSA RARA DE HEMOBILIA NÃO TRAUMÁTICA Ao estudo anatomopatológico observou-se vesícula biliar apresentando vilos alongados na sua superfície interna (foto 4), revestidos por células colunares entremeadas por células calicifomes (metaplasia intestinal) associados a infiltrado inflamatório mononuclear e vários histiócitos. Não havia sinais de malignidade na peça cirúrgica. Tais achados são compatíveis com papilomatose da vesícula biliar. O estudo da lesão coledociana confirmou tratar-se de cisto de vias biliares. (2009) 2,3,4,5. Em todos estes trabalhos, a papilomatose da vesícula biliar foi o achado histopatológico característico. Em tais pacientes, lesões polipoides anormalmente alongadas podem apresentar focos de hemorragia devido ao potencial de torção em torno de sua base delgada. O mecanismo da colecistite crônica pode ser a obstrução recorrente do ducto cístico por coágulos ou por longas lesões polipoides prolapsadas pelo ducto cístico.3 A típica apresentação clínica da hemobilia, conforme descrita por Quinke, pode ter sua interpretação prejudicada em pacientes com LDM, em virtude do comprometimento das funções cognitivas destes pacientes que podem não se queixar de dor abdominal.2 32(4):120-122 Lesões polipoides parecem não ter sua oco rrência restrita a vesícula biliar em pacientes com LDM. Pólipos intestinais também foram descritos por Yavuz et al. como causa de hemorragia e obstrução gastrointestinal em um paciente com LDM.7 Este autor acredita haver uma tendência dos portadores da síndrome em desenvolver massas polipoides intestinais assim como ocorre na vesícula biliar. Foto 4: Vesícula biliar DISCUSSÃO CONCLUSÃO O termo hemobilia foi utilizado pela primeira vez em 1948 por Sandblom para descrever um quadro de sangramento originado da via biliar secundário a trauma. Trata-se de causa rara de HDA, sendo o trauma abdominal, contuso ou penetrante, responsável por 55% dos casos, resultando em formação de hematoma ou fístula arteriobiliar hepática. Constituem outras causas de hemobilia traumática a cirurgia hepatobiliar, a biópsia hepática percutânea, a ablação percutânea de tumor hepático e a drenagem biliar percutânea trans-hepática. A clássica apresentação que constitui a Tríade de Quinke caracteriza-se por: hemorragia digestiva alta, dor abdominal e icterícia. A obstrução biliar por coágulos resulta em dilatação biliar, justificando a icterícia e a dor abdominal tipo cólica. Casos de hemobilia não traumática são descritos, incluindo aneurismas ou pseudoaneurismas de artéria hepática ou seus ramos, abscesso hepático, coledocolitíase, pancreatite, hemossulcus pancreaticus, neoplasias hepatobiliares, parasitose da árvore biliar.1,2,6 A literatura médica contém muitos trabalhos que descrevem a importância da papilomatose da vesícula biliar na LDM, no entanto apenas quatro casos de hemobilia relacionada à LDM foram descritos na literatura: Siegel et al. (1992), Cappel et al. (1993), Vettoretto et al. (2002), Garavelli et al. O envolvimento da vesícula biliar, apesar de raro, deve ser considerado no diagnóstico diferencial da dor abdominal e da HDA em pacientes com LDM ou síndrome raras8. REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Serra, M.C.; Fortes, J.C.; Teixeira, R.L. Hemobilia pós-trauma. Rev. Col. Bras. Cir., Rio de janeiro, Vol 29, no 5 Sept./Oct. 2002. Vettoretto, N., Giovanetti, M., Regina, P. et al. Hemorrhagic cholecystitis as a likely cause of nontraumatic hemobilia in metachromatic leukodystrophy: report of a case. Ann. Ital. Chir., Vol. 72, no 6, p. 725-728, 2002. Cappel M.S., Marks M., Kirschenbaum H. Massive hemobilia and acalculous cholecystitis due to benign gallbalnder polyp. Dig. Dis. Sci., Vol. 38, no 6, p. 1156-61, 1993. Siegel E.G., Luke H., Schawer W., Creutzfeld W. Repeated upper gastrointestinal hemorrhage caused by metachromatic leukodystrophy of the gallblander. Digestion, Vol. 51, p.121-4, 1992. Garavelli L., Rosato S., Mele A. et al. Massive hemobilia and papillomatosis of the gallblander in metachromatic leukodystrophy: a life-threatening condition. Neuropediatrics, Vol. 40, no 6, p. 284-6, 2009. Lee Y., Lin H., Chen K. et al. Life-threatening hemobilia caused by hepatic pseudoaneurysm after T-tube choledochostomy: report of a case. BMC Gastroenterol., 2010. Yavus H., Yüksekkaya H.A. Intestinal involvement in metachromatic leukodystrophy. J. Child Neurol., vol. 26, no 1, p. 117-20, 2011. Rodriguez-Waitkus P.M., Byrd R., Hicks J. Metachromatic Leukodystrophy and its effects on the gallblander: a case report. Ultrastruct Pathol., vol. 35, no 6, p. 271-6, 2011. GED gastroenterol. endosc. dig. 2013: 32(4):120-122