1 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 1 15/5/2007, 17:59 Publicado em 2007 originalmente em inglês por: © Amnesty Internationtional Publications © Secretariado Internacional Peter Benenson House 1 Easton Street Londres WC1X 0DW Reino Unido www.amnesty.org Edição e tradução para o português: Programa de Língua Portuguesa da Anistia Internacional 2007 www.br.amnesty.org Índice AI: POL 10/001/2007 ISBN: 978-0-86210-427-6 Impresso no Brasil por: Algo Mais – Artes Gráficas e Editora A599a Anistia Internacional Informe 2007 – o estado dos direitos no mundo / Programa de Língua Portuguesa da Anistia Internacional. – Porto Alegre: Algo Mais, 2007. 228 p.; 16 x 22,5 cm. 1. Anistia Internacional – relatório. 2. Direitos humanos. I. Programa de Língua Portuguesa da Anistia Internacional. CDU 341.231.14(047) CIP - Catalogação na fonte: Paula Pêgas de Lima CRB 10/1229 Todos os direitos reservados. 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Abreviaturas usadas neste informe: ACNUDH – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados AI – Anistia Internacional ASEAN – Associação das Nações do Sudeste Asiático CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CERD – Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU ONG – organização não-governamental ONU – Organização das Nações Unidas TPI – Tribunal Penal Internacional UA – União Africana UNAIDS – Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids 2 MIOLO_OK.pmd Anistia Internacional - 2007 2 15/5/2007, 17:59 S U M Á R I O PARTE I PREFÁCIO LIBERDADE E MEDO 07 por Irene Khan Secretária-geral da Anistia Internacional ANÁLISES REGIONAIS ÁFRICA 23 AMÉRICAS 30 ÁSIA-PACÍFICO 36 EUROPA E ÁSIA CENTRAL 41 ORIENTE MÉDIO E NORTE DA ÁFRICA 48 PARTE II PAÍSES AFEGANISTÃO 57 ÁFRICA DO SUL 61 ALEMANHA 67 ANGOLA 70 ARÁBIA SAUDITA 73 ARGENTINA 79 BRASIL 80 CANADÁ 87 CHINA 88 COLÔMBIA 94 EGITO 102 ESPANHA 108 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA 112 FRANÇA 121 GUINÉ-BISSAU 125 ÍNDIA 126 INDONÉSIA 133 IRÃ 138 IRAQUE 144 ISRAEL E TERRITÓRIOS OCUPADOS 151 ITÁLIA 158 JAPÃO 162 MÉXICO 165 MOÇAMBIQUE 171 PAQUISTÃO 173 PORTUGAL 177 REINO UNIDO 179 REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO 185 RÚSSIA 190 SÍRIA 198 SRI LANKA 203 SUDÃO 208 TIMOR LESTE 215 UCRÂNIA 217 VENEZUELA 220 ZIMBÁBUE 223 3 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 3 15/5/2007, 17:59 4 MIOLO_OK.pmd Anistia Internacional - 2007 4 15/5/2007, 17:59 P A R T E 5 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 5 I 15/5/2007, 17:59 P R E F Á C I O 6 MIOLO_OK.pmd Anistia Internacional - 2007 6 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO IRENE KHAN SECRETÁRIA-GERAL No dia 10 de dezembro de 2006, enquanto o mundo celebrava o Dia Internacional dos Direitos Humanos, eu estava em Jayyus, na Cisjordânia. O vilarejo está agora dividido pelo Muro, ou, mais precisamente, por uma cerca de ferro bastante alta. Erguido em desafio às leis internacionais e ostensivamente para tornar Israel mais seguro, seu efeito principal foi apartar a população palestina que ali vive de seus pomares de cítricos e de seus bosques de oliveiras. Uma comunidade agrícola que era próspera está agora empobrecida. “Todos os dias tenho de passar por humilhações nos postos de controle, por impedimentos mesquinhos e por novos entraves que me impedem de chegar ao meu pomar do outro lado. Se não puder cultivar minhas oliveiras, como vou sobreviver?” protestava um bravo agricultor palestino. Enquanto escutava, eu podia ver, à distância, os esmerados telhados vermelhos e as paredes brancas de um grande e próspero assentamento israelense. Fiquei pensando se os moradores daquela região acreditavam que um muro que ameaça o futuro de seus vizinhos poderia, realmente, melhorar sua segurança. No início daquela semana, eu estivera em Sderot, uma cidadezinha no sul de Israel, que havia sido atacada por foguetes lançados por grupos palestinos em Gaza. “Estamos assustados”, disse-me uma jovem moradora. “Mas sabemos que do outro lado há mulheres como nós, que também estão sofrendo, que também têm medo e que estão numa situação pior do que a nossa. Sabemos o que estão passando e queremos viver em paz com eles. Mas, em vez disso, nossos líderes instigam nossas diferenças e provocam ainda mais desconfiança. Então, vivemos inseguros e com medo.” Esta corajosa jovem israelense entendeu o que muitos líderes mundiais não compreendem: que o medo destrói nossos sentimentos e nossa humanidade comuns. Quando vemos os outros como uma ameaça e aceitamos trocar seus direitos humanos por nossa segurança, entramos num jogo sem vencedores. Sua mensagem é sensata, em uma época em que nosso mundo está tão polarizado quanto no auge da Guerra Fria e, em 7 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 7 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO diversos aspectos, muito mais perigoso. Os direitos humanos – aqueles valores globais, princípios universais e critérios comuns que servem para nos unir – estão hoje sendo negociados em nome da segurança, da mesma forma como já foram antes. Como no tempo da Guerra Fria, as políticas são ditadas pelo medo – que é instigado, fomentado e sustentado por líderes inescrupulosos. O medo pode gerar uma força positiva para a mudança, como no caso do meioambiente, em que o alarme do aquecimento global está forçando os políticos, já atrasados, a agirem. Porém, o medo também pode ser perigoso e desagregador, gerando intolerância, ameaçando a diversidade e justificando a erosão dos direitos humanos. “O medo destrói nossos sentimentos e nossa humanidade comuns” Em 1941, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, expôs sua visão de uma nova ordem mundial, fundamentada sobre “quatro liberdades”: liberdade de opinião, de religião, do medo e da necessidade. Sua liderança inspiradora permitiu superar as incertezas e unir as pessoas. Hoje, muitos líderes passam por cima da liberdade e proclamam um repertório cada vez mais extenso de medos: medo de uma invasão de imigrantes; medo do “outro” e da perda de identidade; medo de ser explodido por terroristas; e medo dos “países do mal”, com suas armas de destruição em massa. O medo prospera sob lideranças míopes e covardes. Há, de fato, muitos motivos reais para se sentir medo, mas a forma 8 MIOLO_OK.pmd como muitos líderes mundiais estão lidando com isso é distorcida. Eles promovem políticas e estratégias que corrompem o Estado de direito e os direitos humanos, aumentam as desigualdades, alimentam o racismo e a xenofobia, dividem e prejudicam as comunidades e semeiam mais violência e mais conflitos. As políticas do medo têm-se tornado mais complexas com a emergência de grupos armados e de grandes empresas que cometem ou aceitam abusos contra os direitos humanos. Ambos, cada um a seu modo, desafiam o poder dos governos num mundo cada vez mais sem fronteiras. Governos fracos e instituições internacionais ineficazes não conseguem fazer com que essas organizações prestem contas de seus atos, deixando as pessoas vulneráveis e com medo. A história ensina que não é com medo, mas com esperança e com otimismo que se avança. Por que, então, alguns líderes promovem o medo? Porque isso permite que consolidem seu próprio poder, criando falsas certezas e fugindo de responsabilidades. O governo Howard retratou pessoas que buscavam asilo navegando em barcos furados como uma ameaça à segurança nacional da Austrália e disparou o alarme falso de uma invasão de refugiados. Isso contribuiu para sua vitória nas eleições de 2001. Após os ataques de 11 de setembro, o presidente dos EUA, George W. Bush, invocou o medo do terrorismo a fim de aumentar seu poder Executivo, sem a supervisão do Congresso nem o exame do Judiciário. O presidente Omar al Bashir, do Sudão, infundiu, entre seus apoiadores e entre o mundo árabe, o medo de que o envio de tropas de paz da ONU para Darfur seria um pretexto para Anistia Internacional - 2007 8 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO uma invasão dos EUA, nos moldes do que foi feito no Iraque. Enquanto isso, suas Forças Armadas e milícias aliadas continuaram a matar, a estuprar e a saquear impunemente. O presidente Robert Mugabe, do Zimbábue, manipulou os medos raciais para impor seu objetivo político de se apossar de terras para seus partidários. Somente um compromisso conjunto, baseado em valores comuns, pode levar a soluções sustentáveis. Em um mundo cada vez mais interdependente, os desafios globais, sejam eles a pobreza ou a segurança, a imigração ou a marginalização, exigem respostas baseadas em valores globais de direitos humanos que unam as pessoas e que promovam nosso bem-estar comum. Os direitos humanos oferecem as fundações para um futuro sustentável. Ao que parece, porém, proteger a segurança dos Estados, em vez da sustentabilidade da vida e dos meios de subsistência das pessoas, é, hoje, o interesse maior. MEDO DA IMIGRAÇÃO E DA MARGINALIZAÇÃO Nos países desenvolvidos, e também nas economias emergentes, o medo de ser invadido por hordas de pobres está sendo usado para justificar medidas cada vez mais rigorosas contra os imigrantes, os refugiados e os requerentes de asilo, desrespeitando as normas internacionais de direitos humanos e tratamento humanitário. Devido a imposições políticas e de segurança no controle das fronteiras, os procedimentos de asilo têm-se tornado instrumentos de exclusão, ao invés de proteção. Em toda a Europa, os índices de reconhecimento de refugiados vêm diminuindo drasticamente nos últimos anos, embora os motivos para que se busque asilo – violência e perseguição – continuem mais presentes do que nunca. A hipocrisia das políticas do medo é tamanha que os governos denunciam certos regimes, enquanto se recusam a proteger aqueles que fogem deles. As políticas opressoras do governo da Coréia do Norte são condenadas por governos ocidentais. Ao mesmo tempo, esses mesmos governos praticamente se calam diante da sorte de cerca de 100 mil norte-coreanos que estariam escondidos na China, centenas dos quais são deportados à força todas as semanas pelas autoridades chinesas. Os trabalhadores imigrantes alimentam a máquina da economia global. Mesmo assim, são rejeitados com força bruta, são explorados, são discriminados e são deixados sem proteção pelos governos de todo o mundo – desde os Estados do Golfo, até a Coréia do Sul e a República Dominicana. Seis mil africanos afogaram-se ou sumiram no mar em 2006, na sua tentativa desesperada de chegar à Europa. Outros 31 mil, seis vezes mais que em 2005, conseguiram chegar às Ilhas Canárias. Assim como o muro de Berlim não podia impedir quem quisesse fugir da opressão comunista, o policiamento rigoroso das fronteiras da Europa não está conseguindo deter quem tenta fugir da miséria. Em longo prazo, a resposta não está na construção de muros para deixar as pessoas de fora, mas na promoção de sistemas que protejam os direitos dos mais vulneráveis, ao mesmo tempo que respeitam a prerrogativa dos Estados de controlar a imigração. Os instrumentos internacionais oferecem esse equilíbrio. 9 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 9 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO As tentativas de enfraquecer a Convenção dos Refugiados e a Convenção sobre os Trabalhadores Migrantes, ambas da ONU e não ratificadas pelos países do hemisfério norte, são contraproducentes. Se a imigração desregulada é o medo dos ricos, o capitalismo desenfreado, impulsionado pela globalização, é o medo dos pobres. Mercados em plena expansão estão criando enormes oportunidades para alguns, enquanto aumentam o abismo entre “os que possuem” e “os despossuídos”. Os benefícios da globalização são profundamente assimétricos, tanto no plano mundial quanto dentro dos países. A América Latina é um dos lugares do mundo com maior desigualdade. Na Índia, a economia tem crescido a uma taxa maior do que sete por cento ao ano na última década. Entretanto, mais de um quarto de sua população ainda vive abaixo da linha da pobreza. “O medo prospera sob lideranças míopes e covardes” Essas estatísticas revelam o lado sombrio da globalização. A marginalização de amplas parcelas da humanidade não deveria ser tratada como o preço inevitável da prosperidade global. Não há nada de inevitável nas políticas e nas decisões que negam aos indivíduos seus direitos econômicos e sociais. O crescente conjunto de pesquisas da Anistia Internacional sobre direitos econômicos e sociais está revelando o que está por trás do medo das pessoas: de que, em muitas partes do mundo, elas estão sendo guiadas rumo à pobreza, 10 MIOLO_OK.pmd onde são confinadas por governos corruptos e empresas gananciosas. As demandas por exploração de minérios, por empreendimentos imobiliários e por turismo avançam sobre as terras da África, da Ásia e da América Latina, onde comunidades inteiras, milhões de pessoas, estão sendo expulsas à força de suas casas sem quaisquer direitos, sem compensações e sem outro lugar para onde ir. Muitas vezes, para arrancá-los da terra, é preciso excesso de força. Os deslocamentos provocados por estes empreendimentos não são um problema novo; no entanto, parece que quase nada se aprendeu com as experiências anteriores. Somente na África, desde 2000, mais de três milhões de pessoas foram afetadas, o que faz das expulsões forçadas uma das violações de direitos humanos mais difundidas e menos reconhecidas do continente. Executadas em nome do progresso econômico, essas ações, na realidade, deixam desabrigados os mais pobres entre os pobres, que geralmente ficam sem acesso a água potável, a saneamento, a saúde, a trabalho ou a educação. Faz muito que a África vem sendo vítima da ganância de governos e de empresas ocidentais. Agora, o novo desafio vem da China. Tanto o governo quanto as empresas chinesas têm demonstrado pouca consideração pelo “rastro de direitos humanos” que deixam no continente. A deferência à soberania nacional, a antipatia por direitos humanos na política exterior e uma disposição para se engajar com regimes abusivos são fatores que valorizam a China aos olhos de governos africanos. Porém, pelos mesmos motivos, a sociedade civil africana não tem sido tão acolhedora. Os padrões de segurança, de saúde e o tratamento que as empresas Anistia Internacional - 2007 10 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO chinesas dispensam aos trabalhadores estão muito abaixo das normas internacionais. Na condição de maior consumidor de petróleo do Sudão e como um de seus maiores fornecedores de armas, a China tem resguardado o governo sudanês contra as pressões da comunidade internacional, apesar de haver alguns sinais indicando que este posicionamento possa mudar. Estados fracos, empobrecidos e, muitas vezes, profundamente corruptos criaram um vazio de poder em que se movimentam corporações e outros agentes econômicos. Em alguns dos países com as populações mais pobres e mais ricos em recursos, as grandes empresas empregam seu poder descomedido para obter dos governos concessões que privam as populações locais dos benefícios desses recursos, que destroem seus meios de subsistência, que expulsam as pessoas de suas casas e que as expõem à degradação ambiental. A revolta contra as injustiças e a negação dos direitos humanos acaba por motivar protestos que são brutalmente reprimidos. A região do Delta do Níger, no sul da Nigéria, rica em petróleo e assolada pela violência nas duas últimas décadas é um exemplo típico. As corporações têm, há muito tempo, resistido vincularem-se aos padrões internacionais. As Nações Unidas devem confrontar esse desafio, desenvolvendo normas e promovendo mecanismos para que as grandes empresas assumam a responsabilidade pelo impacto que têm sobre os direitos humanos. A necessidade de haver preceitos globais e cobrança de responsabilidade efetiva torna-se ainda mais urgente na medida em que corporações multinacionais de sistemas culturais e jurídicos diversos emergem em um mercado global. A pressão por terra, madeira e recursos minerais por parte dos grandes conglomerados está ameaçando a identidade cultural e a sobrevivência diária de muitas comunidades indígenas na América Latina. Submetidos à discriminação racial e forçados a uma vida de miséria e de doença, alguns desses grupos estão à beira do colapso. Em meio a este cenário, o fracasso da Assembléia Geral da ONU, em 2006, em adotar a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, é mais uma demonstração lamentável do quanto os interesses dos poderosos prevalecem frente à sobrevivência dos mais vulneráveis. “Os direitos humanos oferecem as fundações para um futuro sustentável” Apesar de os ricos ficarem cada dia mais ricos, eles não se sentem, necessariamente, mais seguros. O aumento da criminalidade e a violência armada são uma fonte constante de medo, o que leva muitos governos a adotarem políticas que pretendem ser rigorosas com o crime, mas que, na verdade, só criminalizam os pobres, deixando-os expostos a uma dupla ameaça: a da violência das gangues e a da brutalidade policial. Níveis de criminalidade cada vez mais elevados, a violência da polícia em São Paulo e a presença do Exército nas ruas do Rio de Janeiro demonstraram a falência das políticas de segurança pública do Brasil. Oferecer segurança a um grupo de pessoas à custa dos direitos de outros é algo que 11 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 11 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO não funciona. A experiência comprova que a segurança pública se fortalece por meio de enfoques abrangentes que combinem um melhor policiamento com a disponibilização de serviços básicos, como saúde, educação e habitação para as comunidades carentes. Desse modo, elas sentirão que também podem ter lugar numa sociedade segura e estável. Em muitas nações do hemisfério norte, a discriminação se originou dos temores da imigração descontrolada e, depois de 11 de setembro, foi agravada pelas estratégias de combate ao terrorismo que visavam árabes, asiáticos e muçulmanos. O medo e a hostilidade de um lado provocaram o antagonismo e a revolta do outro. No final das contas, promover direitos econômicos e sociais para todos é a melhor maneira de se resolver os temores tanto dos ricos quanto dos pobres. Uma crescente polarização fortaleceu as posições extremistas de ambos os lados, reduzindo o espaço para a tolerância e para as diferenças. Incidentes de islamofobia e antisemitismo são cada vez mais evidentes. Em diversas partes do mundo, os sentimentos antiocidentais e anti-EUA estão mais acentuados do que nunca. Isso ficou demonstrado pela desenvoltura com que alguns grupos fomentaram episódios de violência após a publicação na Dinamarca de charges que muitos muçulmanos consideraram ofensivas. DISCRIMINAÇÃO E DIFERENÇAS DE OPINIÃO O medo alimenta a insatisfação, o que leva à discriminação, ao racismo, à perseguição das minorias étnicas e religiosas e aos ataques xenofóbicos contra os cidadãos estrangeiros ou de origem estrangeira. Quando os governos fecham um olho para a violência racista, ela pode se tornar endêmica. Na Rússia, são comuns os crimes de ódio contra estrangeiros e contra minorias, sendo que, até recentemente, esses crimes quase nunca eram processados, pois favoreciam a propaganda nacionalista das autoridades. Na medida em que a União Européia se expande para o leste, a prova de fogo de seu compromisso com a igualdade e a nãodiscriminação será o tratamento dispensado a sua própria população cigana. De Dublin a Bratislava, subsistem atitudes obstinadas contra os ciganos, que são segregados e discriminados no sistema educacional, no sistema de saúde e no de habitação, sendo, persistentemente, excluídos da vida pública em alguns países. 12 MIOLO_OK.pmd O governo dinamarquês acertadamente defendeu a liberdade de expressão, mas não declarou, de modo firme e imediato, seu compromisso de proteger da discriminação e da exclusão social os muçulmanos que vivem na Dinamarca. O presidente iraniano convocou um debate para promover a negação do fato histórico do Holocausto. O Parlamento francês adotou uma legislação que torna crime negar que os armênios tenham sido vítimas de genocídio nas mãos dos otomanos. Até onde vai o limite entre proteger a liberdade de expressão e impedir o incitamento ao ódio racial? O Estado tem a obrigação de promover a não-discriminação e de impedir os crimes raciais; isso, porém, pode ser feito sem que se limite a liberdade de expressão. Esta não deveria ser sequer Anistia Internacional - 2007 12 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO levemente restringida. Sim, ela pode ser usada para propagar mentiras bem como verdades. Entretanto, sem ela não há como argumentar contra as mentiras, nem como buscar a verdade e a justiça. É por isso que só deveria haver limitações de expressão quando houvesse uma intenção clara de incitar o ódio racial ou religioso, e não quando o objetivo fosse expressar opiniões, por mais desagradáveis que sejam. No caso Albert-Engelman-Gesellschaft MBH v. Áustria (janeiro de 2006), a Corte Européia de Direitos Humanos descreveu a liberdade de expressão como “um dos fundamentos mais essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições básicas para seu progresso e para a realização pessoal de cada indivíduo... a liberdade não se aplica apenas a ‘informações’ ou a ‘idéias’ que são recebidas favoravelmente ou consideradas inofensivas ou que não fazem diferença, mas também àquelas que ofendem, indignam ou perturbam; pois são estas as exigências do pluralismo, da tolerância e do liberalismo, sem as quais não há ‘sociedade democrática’.” A liberdade de expressão é essencial para o direito de ter opiniões divergentes. Onde não há diferença de opinião, o direito à liberdade de expressão fica ameaçado. Onde não há diferença de opinião, a democracia é sufocada. Onde não há diferença de opinião, a tirania é que ergue sua voz. Apesar disso, as liberdades de expressão e de opinião continuaram a ser suprimidas de diversas maneiras, por meio de processos contra escritores, jornalistas e defensores dos direitos humanos na Turquia, e por meio de assassinatos políticos de ativistas de esquerda nas Filipinas. Na prisão que os EUA mantêm na baía de Guantánamo, a única forma de protesto que poderia ter restado aos detentos foi a greve de fome. Em 2006, cerca de 200 presos que recorreram a ela foram alimentados à força através de tubos inseridos pelas narinas – um método especialmente doloroso e humilhante. Quando se divulgou que três homens teriam cometido suicídio, o comandante da força-tarefa estadunidense em Guantánamo descreveu o que aconteceu como uma “guerra assimétrica”. “Onde não há diferença de opinião, a tirania é que ergue sua voz” A segurança nacional tem sido usada muitas vezes como desculpa pelos governos para suprimir as diferenças de opinião. Nos últimos anos, a amplificação dos temores com o terrorismo e com a insegurança intensificou a repressão, ou sua iminência, de diversas maneiras. Abusos “ultrapassados” das liberdades de expressão, de reunião e de associação ganharam novo sopro de vida nos países do norte da África e do Oriente Médio. Nas democracias liberais, a crescente malha de leis e de políticas antiterrorismo constitui-se em uma ameaça potencial à liberdade de expressão. Em 2006, por exemplo, o Reino Unido adotou leis que criavam o vagamente definido crime de “incentivar o terrorismo”, incorporando a noção ainda mais confusa de “glorificar o terrorismo”. Nos Estados Unidos, as autoridades mostraram mais interesse em ir à caça de 13 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 13 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO quem estivesse por trás do vazamento da história publicada no Washington Post sobre os “locais negros” da CIA, do que em investigar as políticas que, em primeiro lugar, levaram à criação dessas prisões secretas, em contravenção às leis internacionais e dos EUA. A tendência autoritária na Rússia vem tendo um efeito devastador para os jornalistas e defensores dos direitos humanos. Após ter intimidado ou assumido o controle de grande parte da imprensa russa, o presidente Vladimir Putin, em 2006, voltou sua atenção às organizações não-governamentais (ONGs) russas e estrangeiras, propondo uma controvertida lei para regular seu financiamento e suas atividades. Num exercício de relações públicas praticado logo antes do encontro do G8, ele se reuniu com um grupo de ONGs internacionais, entre as quais estava a Anistia Internacional. Informado a respeito do impacto negativo de sua lei das ONGs sobre a sociedade civil russa e instado a suspendê-la até que se fizessem novas consultas e emendas, ele respondeu: “Ainda nem aprovamos esta lei para revogá-la”. Três meses depois, a Sociedade de Amizade Russa-Chechena, uma ONG de direitos humanos que atuava para denunciar as violações ocorridas na Chechênia, foi fechada com base nesta lei. Infelizmente, a Rússia não é o único país tentando silenciar as vozes independentes que falam em direitos humanos. Da Colômbia ao Camboja, de Cuba ao Uzbequistão, os governos introduziram leis que impõem restrições às organizações não-governamentais e ao trabalho dos ativistas, rotulando-os como desleais ou subversivos, processando os que ousam expor violações de direitos humanos e 14 MIOLO_OK.pmd lançando campanhas difamatórias com a ajuda de meios de comunicação inescrupulosos, num esforço para instilar o medo e para deslegitimizar o trabalho dos ativistas. Numa era de tecnologias, a Internet tornou-se a nova fronteira na luta pelo direito à liberdade de opinião. Com o auxílio das maiores empresas mundiais de Tecnologia da Informação, governos como os da Arábia Saudita, Belarus, China, Egito, Irã e Tunísia estão monitorando salas de bate-papo, deletando blogs, restringindo os mecanismos de busca e bloqueando sítios na Internet. Pessoas estão sendo presas na China, no Egito, na Síria, no Uzbequistão e Vietnã por colocarem e por compartilharem informações na rede. Todos têm o direito de buscar e receber informações e de expressar pacificamente suas idéias sem medo de interferência. A Anistia Internacional, com apoio do jornal britânico The Observer (que publicou o primeiro apelo da AI, em 1961), lançou uma campanha, em 2006, para mostrar que os ativistas que lutam pelos direitos humanos não podem ser silenciados, na rede ou fora dela, por governos ou por grandes empresas. MEDO E LIBERDADE PARA AS MULHERES A relação perniciosa que há entre discriminação e diferença de opinião fica muito mais evidente na arena das questões de gênero. Mulheres ativistas estão sendo presas por exigirem igualdade no Irã, estão sendo assassinadas por promoverem a educação de meninas no Afeganistão e estão sendo submetidas à violência sexual e ao aviltamento em todo o mundo. As que atuam sobre questões de orientação sexual e de direitos Anistia Internacional - 2007 14 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO reprodutivos têm sido ainda mais visadas, marginalizadas e atacadas. As mulheres defensoras dos direitos humanos enfrentam riscos em dobro: como ativistas e como mulheres – por seu trabalho e por sua identidade. São atacadas tanto pelo Estado quanto pela sociedade não somente porque expõem abusos de direitos humanos, mas também porque desafiam as estruturas patriarcais de poder e as convenções sociais e culturais que subjugam as mulheres, que aprovam a discriminação e que facilitam a violência de gênero. Os direitos humanos das mulheres vêm sofrendo, nos últimos anos, com uma dupla oposição: reações hostis e retrocessos. As reações contrárias aos direitos humanos num contexto de combate ao terrorismo têm afetado tanto às mulheres quanto aos homens. E, em um ambiente de medo e de fundamentalismo, os governos têm retrocedido nas suas promessas de promover a igualdade de gêneros. A violência contra a mulher – em todas as sociedades, por todo o mundo – continua sendo hoje um dos abusos mais graves e mais comuns dos direitos humanos. Se é tão forte, é por causa da impunidade, da apatia e da desigualdade. Um dos exemplos mais acintosos de impunidade é o conflito em Darfur, onde os incidentes de estupro aumentaram em 2006 com a intensificação do conflito e se espalharam às áreas vizinhas no Chade. Um dos exemplos insidiosos de apatia está na Guatemala, onde, apesar de mais de 2.200 mulheres e meninas terem sido mortas desde 2001, pouquíssimos casos foram investigados e menos ainda processados. Há muitos exemplos de desigualdade, mas um dos mais tristes é, provavelmente, os altos índices de mortalidade materna e infantil motivados por discriminação nos serviços de saúde, como é o caso, entre outros, do Peru. Bilhões de dólares estão sendo gastos para fazer uma “guerra ao terror” – mas, onde está a vontade política e os recursos para combater o terror sexual contra as mulheres? Houve indignação mundial contra o apartheid na África do Sul – e, onde está a indignação contra o apartheid de gênero que acontece hoje em alguns países? Seja o perpetrador um soldado ou um líder comunitário, seja a violência oficialmente aprovada pelas autoridades ou aceita pela cultura e pelos costumes, o Estado não pode fugir à sua responsabilidade de proteger as mulheres. “Onde está a indignação contra o apartheid de gênero que acontece hoje em alguns países?” O Estado tem obrigação de garantir a liberdade de escolha da mulher; não de restringi-la. Um exemplo disso é que o véu e o lenço usados na cabeça pelas mulheres muçulmanas viraram motivo de disputa entre culturas diferentes: o símbolo visível da opressão, de acordo com um lado; e um atributo essencial da liberdade religiosa, segundo o outro. É errado que as mulheres na Arábia Saudita ou no Irã sejam forçadas a usar o véu. Do mesmo modo que é errado que as meninas e as mulheres, na Turquia ou na França, sejam proibidas por lei de usá-lo. É uma tolice da parte dos líderes ocidentais alegar que um pedaço de pano possa ser uma barreira à harmonia social. 15 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 15 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO No exercício de seu direito à liberdade de expressão e de religião, uma mulher deveria ser livre para escolher o que quer usar. Os governos e os líderes religiosos têm o dever de criar ambientes seguros, em que cada mulher possa fazer essa escolha sem ameaças de violência ou coação. A universalidade dos direitos humanos significa que eles se aplicam igualmente às mulheres e aos homens. Essa universalidade dos direitos, tanto de entendimento quanto de aplicação, é o mais poderoso instrumento contra a violência de gênero, a intolerância, o racismo, a xenofobia e o terrorismo. MEDO DO TERRORISMO É no campo do terrorismo e do contraterrorismo que florescem as mais danosas manifestações do medo. Estejam em Mumbai ou em Manhattan, as pessoas têm o direito de se sentirem seguras, e os governos têm o dever de prover essa segurança. Estratégias mal concebidas de combate ao terrorismo têm feito pouco para reduzir a ameaça de violência ou para assegurar justiça às vítimas dos ataques, mas têm feito muito para prejudicar os direitos humanos e o Estado de direito. Impedido pelos tribunais, em 2004, de levar adiante sua política de deter as pessoas indefinidamente, sem acusação ou julgamento, o governo do Reino Unido vem recorrendo cada vez mais a deportações ou a “ordens de controle” que permitem ao ministro do Interior, efetivamente, colocar indivíduos em prisão domiciliar sem que haja um processo criminal. Assim, suspeitos são condenados sem jamais terem sido considerados culpados. A essência do Estado de direito é subvertida enquanto sua forma é preservada. 16 MIOLO_OK.pmd Em 2006, o Japão introduziu uma lei para acelerar a deportação de qualquer pessoa que seja considerada um “possível terrorista” pelo ministro da Justiça. O destino das pessoas não será mais determinado com base no que elas fizeram, mas na capacidade onisciente dos governos de prever o que elas poderão fazer! Poderes executivos arbitrários e irrestritos estão sendo buscados incansavelmente pelo governo dos EUA, que trata o mundo como se fosse um grande campo de batalha para sua “guerra ao terror”: seqüestrando, prendendo, detendo ou torturando pessoas suspeitas, seja diretamente ou com a ajuda de países tão diversos quanto Paquistão e Gâmbia, Afeganistão e Jordânia. Em setembro de 2006, o presidente Bush admitiu o que a Anistia Internacional já sabia há muito tempo – que a CIA administrava centros de detenção secretos em circunstâncias que correspondem a crimes internacionais. Nada representa tão bem a globalização das violações de direitos humanos quanto o programa de “rendições extraordinárias” do governo dos EUA. Investigações do Conselho da Europa, do Parlamento Europeu e um Inquérito Público no Canadá oferecem provas contundentes, que confirmam as constatações feitas anteriormente pela Anistia Internacional, de cumplicidade, de conivência ou de condescendência por diversos governos europeus e de outros lugares – sejam eles democráticos, como o Canadá, ou autocráticos, como o Paquistão. Nestes últimos anos, centenas de pessoas foram transferidas ilegalmente pelos Estados Unidos e seus aliados para países como a Síria, a Jordânia e o Egito, onde correm risco de serem torturadas ou de sofrerem outros maus-tratos. Algumas acabaram em Anistia Internacional - 2007 16 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO Guantánamo, em prisões dos EUA no Afeganistão ou nos ditos “locais negros” da CIA. As pessoas mantidas nesse sistema obscuro estão em risco de serem torturadas ou de desaparecerem à força. Os advogados não podem peticionar as autoridades, nem buscar recursos jurídicos ou demandar julgamentos justos para quem está mantido em detenção secreta, pelo simples fato de que ninguém sabe onde, nem por quem estão sendo mantidos presos. Pelos mesmos motivos, é impossível um monitoramento internacional. A duplicidade do discurso do governo dos EUA impressiona pela falta de vergonha. Eles condenaram a Síria como parte de um “eixo do mal”, mas transferiram um cidadão canadense, Maher Arar, a fim de ser interrogado pelas forças de segurança sírias, sabendo muito bem que ele corria o risco de ser torturado. O Paquistão é outro país que o governo dos EUA tem cortejado e com o qual conta como aliado na sua “guerra ao terror” – sem qualquer preocupação com a maneira como lidam com os direitos humanos. Felizmente, muitos países parecem estar percebendo que segurança a qualquer custo é uma estratégia perigosa e prejudicial. As instituições européias estão se tornando mais rigorosas na hora de cobrar responsabilidades, e os tribunais estão menos dispostos a sucumbir aos argumentos dos governos. O Inquérito Público do Canadá requereu um pedido de desculpas e de compensação, por parte das autoridades dos EUA, a Maher Arar, e um pedido de investigações a respeito de outros casos semelhantes. Relatórios produzidos pelo Conselho da Europa e pelo Parlamento Europeu estão mostrando a necessidade de haver um maior escrutínio dos serviços de segurança. Mandados de prisão foram expedidos na Itália e na Alemanha contra agentes da CIA. Criou-se um momento claramente propício para se pensar em transparência, prestação de contas e num fim à impunidade. Falta que os Estados Unidos enxerguem isso. No calor pré-eleitoral, o presidente Bush convenceu o Congresso a adotar a Lei das Comissões Militares, negando o efeito do julgamento feito em 2006, pela Suprema Corte, no caso Hamdam v. Rumsfeld , e tornando legal o que a opinião mundial considerou imoral. O jornal The New York Times descreveu-a como uma “lei tirânica que terá seu lugar entre os momentos mais baixos da democracia americana”. “Segurança a qualquer custo é uma estratégia perigosa e prejudicial” O governo dos Estados Unidos permanece surdo diante dos clamores mundiais para que Guantánamo seja fechado. Não demonstra qualquer constrangimento com relação à rede global de abusos que vem engendrando em nome do combate ao terrorismo. É indiferente ao infortúnio de milhares de detentos e de suas famílias, aos danos causados ao Estado de direito internacional, aos direitos humanos e à destruição de sua própria autoridade moral, que jamais esteve tão baixa em todo o mundo, enquanto os níveis de insegurança continuam mais elevados do que nunca. O juiz Brennan, da Suprema Corte dos EUA, escreveu em 1987: “Ao final de cada 17 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 17 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO crise na percepção da segurança, os Estados Unidos dão-se conta com remorso de que a revogação das liberdades civis fora desnecessária. Mesmo assim, mostram-se incapazes de impedir a si mesmos de cair novamente no mesmo erro quando uma nova crise aparece.” Um novo Congresso nos EUA traz esperanças de que as coisas ainda possam mudar; de que Democratas e Republicanos percebam um interesse suprapartidário em restaurar o respeito pelos direitos humanos, no país e no exterior, exigindo prestação de contas, estabelecendo uma comissão de inquérito e anulando ou alterando substancialmente a Lei das Comissões Militares, conforme o direito internacional. LIVRES DA VIOLÊNCIA Quando os valores globais dos direitos humanos são descartados com impunidade, interesses mais estreitos entram em cena, geralmente levados por grupos sectários étnicos e religiosos, às vezes com violência. Apesar de suas práticas com freqüência serem contrárias aos direitos humanos, em diversos países elas ganham apoio popular, pois são vistas como uma maneira de lidar com as injustiças que estão sendo ignoradas por seus governos e pela comunidade internacional. Enquanto isso, os governos não estão tendo a liderança necessária para fazer esses grupos prestarem contas de seus abusos e parecem, em vez disso, estar justamente alimentando os fatores que os fortalecem. No Afeganistão, o governo e a comunidade internacional desperdiçaram a oportunidade de construir um Estado efetivo e operante com base nos direitos humanos e no 18 MIOLO_OK.pmd Estado de direito. A extrema insegurança, a impunidade e as instituições governamentais ineficientes e corruptas, combinadas com pobreza e altos índices de desemprego, arruinaram a confiança pública, enquanto as milhares de mortes civis resultantes das operações militares comandadas pelos EUA vêm fomentando ressentimentos. O Talibã tem-se aproveitado do vácuo político, econômico e de segurança para ganhar o controle de grandes áreas no sul e no leste do país. Uma aventura militar mal conduzida no Iraque causou sérios prejuízos aos direitos humanos e ao direito humanitário, provocando rancor na população, aumentando o poder dos grupos armados e fazendo do mundo um lugar muito menos seguro. A insurgência transformou-se num conflito sectário brutal e sanguinário. O governo mostrou não estar comprometido com a proteção dos direitos humanos de todos os iraquianos. As forças policiais do Iraque, profundamente infiltradas por milícias sectárias, estão alimentando as violações ao invés de contê-las. O sistema judicial iraquiano é, calamitosamente, inadequado, como confirmou o julgamento fracassado de Saddam Hussein e sua execução grotesca. Para haver qualquer esperança de mudança nas previsões apocalípticas para o Iraque, o governo do país e aqueles que o apóiam militarmente devem estabelecer alguns parâmetros claros de direitos humanos: desarmar as milícias, reformar a polícia, revisar o sistema judicial, acabar com a discriminação sectária e garantir direitos iguais às mulheres. Anistia Internacional - 2007 18 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO Nos Territórios Ocupados da Palestina, o impacto cumulativo de medidas tomadas pelas autoridades israelenses, como as crescentes restrições à liberdade de circulação, a expansão dos assentamentos e a construção do muro na Cisjordânia, sufocaram a economia local. Os palestinos comuns estão presos em meio à luta de facções entre Hamas e Fatah de um lado, e o bombardeamento incansável do Exército israelense de outro. Na ausência de justiça e sem vislumbrar um fim à ocupação, uma população palestina predominantemente jovem caminha para a radicalização. Nenhuma trégua resistirá e nenhum processo político será bem-sucedido no Oriente Médio se não se tratar da questão da impunidade e sem que os direitos humanos e a segurança das pessoas sejam priorizados. No Líbano, as divisões sectárias se aprofundaram ainda mais após a guerra entre Israel e o Hizbollah. O fato de não se cobrar responsabilidade por abusos atuais e passados — incluindo os da guerra recente, e os assassinatos e desaparecimentos forçados ocorridos durante a guerra civil de 1975-1990 – é uma fonte de ressentimento que vem sendo explorada por todos os lados. O governo está sendo pressionado a conceder mais espaço ao Hizbollah. Há um risco real de que o país possa, mais uma vez, afundar na violência sectária. Há um comentarista prevendo um cenário de pesadelo, com Estados falidos estendendo-se do Hindu Kush à região do Chifre da África; tendo o Afeganistão e a Somália em cada ponta, e Iraque, Líbano e Territórios Ocupados no centro dessa faixa de instabilidade. Outros falam no ressurgimento de uma mentalidade “eles e nós” da Guerra Fria, em que Estados poderosos buscam combater seus inimigos através de terceiros em territórios que não os seus. São sombrias as previsões para os direitos humanos. OLHANDO À FRENTE Podemos ser seduzidos pela síndrome do medo ou tomar uma atitude radicalmente diferente: que se baseie na sustentabilidade em vez da segurança. O termo sustentabilidade pode ser mais usado por ambientalistas e economistas da área de desenvolvimento, mas é também crucial para os ativistas de direitos humanos. Uma estratégia sustentável promove a esperança, os direitos humanos e a democracia, ao passo que uma estratégia de segurança lida com os medos e os perigos. Do mesmo modo que a segurança energética é mais garantida através do desenvolvimento sustentável, a segurança humana é melhor alcançada por meio de instituições que promovam o respeito aos direitos humanos. A sustentabilidade exige que se renuncie à tradição da Guerra Fria de cada superpotência patrocinar seu círculo de ditaduras e de regimes abusivos. Significa promover lideranças íntegras e políticas esclarecidas. A sustentabilidade requer o fortalecimento do Estado de direito e dos direitos humanos – em nível nacional e internacional. As eleições têm atraído bastante atenção, sejam na Bolívia ou em Bangladesh, no Chile ou na Libéria. Todavia, como demonstram a República Democrática do Congo e o Iraque, não basta apenas criar as condições para que as pessoas depositem seus votos. Desafio maior é promover a 19 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 19 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO boa governança, que inclua uma estrutura legal e jurídica eficiente, um Estado de direito baseado nos direitos humanos, uma imprensa livre e uma sociedade civil vibrante. Um sistema democrático de direito que funcione adequadamente em nível nacional é a maior garantia de respeito aos direitos humanos. Porém, para que seja realmente justo, esse sistema deve compreender as mulheres e os pobres. A maioria da população carente vive hoje fora da proteção da lei. Incluí-los de um modo significativo requer efetivar seus direitos econômicos e sociais em programas e em políticas públicas. Em muitos países, continua-se negando às mulheres igualdade perante a lei. Que elas tenham acesso a todos os direitos humanos não é somente uma precondição para que se sustentem estes direitos, mas também a prosperidade econômica e a estabilidade social. “A sustentabilidade requer o fortalecimento do Estado de direito e dos direitos humanos” A sustentabilidade requer um novo ímpeto para a reforma dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas. Humilhada e deixada de lado por seus membros mais poderosos, ao mesmo tempo ignorada por governos como os do Sudão e do Irã, a ONU viu a credibilidade de seu Conselho de Segurança ser seriamente abalada. Porém, quando as Nações Unidas falham, a autoridade dos seus Estadosmembros mais poderosos também sai enfraquecida. Deve ser do interesse dos 20 MIOLO_OK.pmd Estados Unidos abandonarem essa atitude de aceitar somente o que lhes agrada na ONU, reconhecendo o valor do multilateralismo como um meio crucial de promover maior estabilidade e segurança através dos direitos humanos. O Conselho de Direitos Humanos da ONU parece estar apresentando alguns sintomas preocupantes de facciosidade que lembram os de sua instituição precedente. Mas ainda não é tarde para mudar. Os países-membros podem desempenhar um papel construtivo – o que alguns, inclusive, como a Índia e o México, já estão, de fato, fazendo – para que o Conselho tenha mais disposição de enfrentar as crises de direitos humanos e seja menos propenso a seletividade e manipulação política. O novo secretário-geral da ONU também deve afirmar-se mostrando liderança como um defensor dos direitos humanos. Esta responsabilidade das Nações Unidas é única e não há outra entidade que possa usurpá-la. Todos os órgãos e funcionários da ONU devem estar a altura disso. Sustentabilidade, em termos de direitos humanos, significa nutrir esperança. Dos diversos exemplos que 2006 ofereceu, podemos aprender as lições para o futuro. O fim de uma década de conflito no Nepal, e dos conseqüentes abusos dos direitos humanos, foi um exemplo claro do que se pode conseguir por meio de um esforço coletivo. A ONU e outros governos interessados, trabalhando com líderes políticos nacionais e ativistas de direitos humanos, do país e do exterior, responderam ao forte chamado do povo do Nepal. A justiça internacional é fundamental para sustentar o respeito pelos direitos humanos e, em 2006, a Nigéria, Anistia Internacional - 2007 20 15/5/2007, 17:59 LIBERDADE E MEDO finalmente, entregou o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, ao Tribunal Especial para Serra Leoa, a fim de ser julgado por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O Tribunal Penal Internacional (TPI) iniciou seu primeiro processo contra um líder militar da República Democrática do Congo por recrutar crianças soldados. O Exército de Resistência do Senhor, um grupo rebelde de Uganda, é o próximo na lista do TPI, como também o são os perpetradores das atrocidades em Darfur. Ao fazer pressão para cobrar responsabilidade tanto de grupos armados quanto de agentes dos governos, o TPI estabelece um importante precedente, num momento em que os grupos armados dão crescentes demonstrações de força, com conseqüências brutais para os direitos humanos. Uma enorme campanha de organizações da sociedade civil levou a Assembléia Geral da ONU a adotar, em 2006, uma resolução que dá início aos trabalhos para um Tratado sobre o Comércio de Armas. A proliferação de armamentos é uma imensa ameaça para os direitos humanos, e a disposição dos governos em controlar esta situação é um passo importante para que as pessoas vivam “livres do medo”. Passeatas, abaixo-assinados, envio de mensagens eletrônicas, blogs, camisetas e acessórios de campanha podem não representar muito em si mesmos. Porém, ao promover a união das pessoas, liberam uma energia de mudança que não deve ser subestimada. Darfur tornou-se uma palavra comum à solidariedade internacional graças aos esforços da sociedade civil. A matança, infelizmente, não cessou, mas este conjunto de indivíduos e de organizações interessados não permitirá que os líderes mundiais esqueçam de Darfur enquanto sua população estiver correndo perigo. Nas questões de gênero, a justiça ainda tem uma longa jornada pela frente, mas a campanha da ativista iraniana de direitos humanos e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, Shirin Ebadi, pela igualdade da mulher no Irã, ascende uma chama que não vai se apagar até que a batalha esteja vencida. É graças também à sociedade civil que a campanha pela abolição da pena de morte segue em frente, somando vitórias. O poder das pessoas vai mudar o panorama dos direitos humanos no século XXI. A esperança está bem viva. Estes desenvolvimentos positivos como muitos outros – aconteceram devido à coragem e ao comprometimento da sociedade civil. De fato, o principal sinal da esperança em transformar a paisagem dos direitos humanos é o próprio movimento que os promove – são milhões de defensores, de ativistas e de pessoas comuns, inclusive membros da Anistia Internacional, que estão a exigir mudanças. 21 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 21 15/5/2007, 17:59 A N Á L I S E S R E G I O N A I S 22 MIOLO_OK.pmd Anistia Internacional - 2007 22 15/5/2007, 17:59 Á F R I C A Em 2006, a situação dos direitos humanos em muitas partes da África continuou precária. Os conflitos armados, o subdesenvolvimento, a extrema pobreza, a corrupção amplamente difundida, a distribuição injusta dos recursos, a repressão política, a marginalização, a violência étnica e civil, e a pandemia do HIV/Aids continuaram a degradar os direitos humanos em toda a região. Embora, de um modo geral, os conflitos armados estivessem diminuindo, muitos países ainda eram afetados por eles. Em conseqüência, milhões de refugiados e de pessoas deslocadas internamente, inclusive crianças e idosos, continuaram sem abrigo, sem proteção e sem cuidados básicos. A maioria dos Estados suprimiu as diferenças e a livre expressão de opiniões. Alguns governos autorizaram ou fecharam os olhos diante de execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos, bem como da hostilização de ativistas políticos de oposição, defensores dos direitos humanos e jornalistas. Em toda a região, os suspeitos em investigações criminais continuavam correndo grave risco de tortura, tanto por causa da insuficiência de treinamento e supervisão policial, quanto pela pressão pública sobre a polícia para combater os altos níveis de criminalidade. Desfrutar de direitos econômicos, sociais e culturais, tais como o direito à alimentação, abrigo, saúde e educação, continuou sendo mera ilusão para a grande maioria das pessoas na África. A corrupção e a falta de investimentos em serviços sociais contribuíram para aprofundar a pobreza. CONFLITOS ARMADOS Pelo menos uma dúzia de países na África foi afetada por conflitos armados. A marginalização de certas comunidades, a proliferação das armas de pequeno porte, as lutas pelo poder geopolítico e o controle dos recursos naturais foram algumas das razões por trás dos conflitos. Apesar dos numerosos processos de paz e de mediação internacional, Burundi, República Centro-Africana (RCA), Chade, Costa do Marfim, República Democrática do Congo (RDC), Eritréia, Etiópia, República do Congo, Senegal, Sudão e Somália figuravam entre os países ainda em guerra ou afetados pelo conflito. Em todos eles, os civis continuaram a sofrer abusos dos direitos humanos, e as pessoas mais afetadas foram as mulheres, as crianças e os idosos. Os conflitos na RCA, no Chade, no Sudão e na Somália (com o envolvimento da Etiópia) representaram uma escalada dos conflitos na África central e do leste. Mesmo nos países onde havia processos de paz em andamento como, por exemplo, a Costa do Marfim, a RDC e o Sudão, os civis continuaram a sofrer ataques e não recebiam proteção suficiente dos seus governos. 23 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 23 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS O conflito continuou na região de Darfur, no Sudão, apesar do Acordo de Paz de Darfur. O governo sudanês não desarmou as milícias armadas, conhecidas como Janjawid, que atacaram civis no Sudão e no leste do Chade. Dezenas de milhares de darfurenses que escaparam das matanças, de estupros e de pilhagem, estavam vivendo em campos de refugiados na RCA e no Chade, sem poder retornar aos seus povoados. Até o final de 2006, ao menos 200 mil pessoas haviam morrido e 2,5 milhões foram deslocadas internamente. Grupos armados de oposição no Chade, na Costa do Marfim e no Sudão cometeram abusos dos direitos humanos; enquanto na RCA, no Chade e no Sudão eles continuaram a lançar ataques contra as forças dos seus respectivos governos, usando como bases outros países. Apesar das eleições presidenciais e legislativas na RDC, em julho e outubro, o processo de paz e a futura estabilidade do país continuaram seriamente ameaçados, em particular porque o Exército nacional não foi reformado para torná-lo uma força profissional e apolítica que respeite os direitos humanos. O novo Exército cometeu muitas violações dos direitos humanos, porém, o governo não expulsou os responsáveis de suas fileiras. Grupos armados congoleses - assim como estrangeiros, do Burundi, de Ruanda e de Uganda - presentes na RDC, também ameaçaram a paz e cometeram abusos dos direitos humanos. A falta de segurança limitou o acesso de assistência humanitária a muitas áreas no leste. A proliferação das armas de pequeno porte continuou a ser um problema 24 MIOLO_OK.pmd sério, especialmente no Burundi, na RDC, na Somália e no Sudão, contribuindo para um ciclo vicioso de violência, de instabilidade, de péssimas situações de direitos humanos e de crises humanitárias. Em Angola, o Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação em Cabinda foi assinado pelo governo e pelo o Fórum Cabindês para o Diálogo, terminando, formalmente, com o conflito armado em Cabinda. Mesmo assim, ainda persistiram os ataques esporádicos contra civis de ambos os lados. Apesar dos intensos esforços diplomáticos, notavelmente da ONU e da União Africana (UA), continuaram a ser noticiados abusos dos direitos humanos na Costa do Marfim. As forças de segurança do governo e as Forces Nouvelles (Forças Novas), uma coalizão de grupos armados que controla o norte do país desde setembro de 2002, estavam implicadas. Ambos os protagonistas adiaram várias vezes o desarmamento e a desmobilização, e o programa de reintegração continuou num impasse devido a desacordos sobre o cronograma. Na Somália, as milícias da União das Cortes Islâmicas, que haviam conquistado Mogadício em junho, foram vencidas, em dezembro, por uma força etíope que apoiava o Governo Federal de Transição, reconhecido internacionalmente. Continuaram as incertezas sobre a vinda de uma força de apoio à paz da UA para proteger este governo, conforme autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU. A disputa de fronteira entre a Etiópia e a Eritréia continuou sendo uma fonte de tensões. Anistia Internacional - 2007 24 15/5/2007, 17:59 ÁFRICA DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS A realização dos direitos econômicos, sociais e culturais continuou ilusória em praticamente todos os países na África. Economias em dificuldade, subdesenvolvimento, falta de investimentos em serviços sociais básicos, corrupção e marginalização de certas comunidades foram alguns dos fatores que impediram a realização destes direitos humanos básicos. Em países como Angola, Chade, RDC, Guiné Equatorial, República do Congo, Nigéria e Sudão, a presença de petróleo e de outros minérios continuaram arruinando, ao invés de melhorar, a vida das pessoas, devido aos conflitos, à corrupção e às lutas pelo poder. Centenas de milhares de pessoas em muitos países africanos ficaram sem teto devido a ações propositadas. Ao efetuar despejos forçados sem o devido processo legal, nem indenização adequada ou alternativas de alojamento, os governos violaram o direito humano, internacionalmente reconhecido, ao abrigo e à moradia adequada. Sabe-se que estes despejos, muitas vezes executados com força desproporcional e outros abusos, ocorreram em Angola, Guiné Equatorial, Quênia, Nigéria e Sudão. Num destes incidentes, em agosto, máquinas escavadoras chegaram sem aviso prévio a Dar al Salam, um assentamento para deslocados, 43 km ao sul de Cartum, no Sudão, e começaram a demolir as casas de cerca de 12 mil pessoas, muitas das quais haviam fugido da seca, da fome, da guerra civil entre o norte e o sul do país e, mais recentemente, do conflito em Darfur. Cerca de outras 50 mil pessoas no Sudão continuaram sob ameaça de expulsão devido à construção da represa de Meroe; em 2006, 2.723 famílias na região de Amri tiveram seis dias para evacuar suas casas, segundo informações, sem receber abrigo, alimentos ou remédios. A pandemia de HIV/Aids continuou a ameaçar milhões de africanos. De acordo com o UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids), o vírus causou 2,1 milhões de mortes em 2006, com 2,8 milhões de novas infecções, elevando para 24,7 milhões o total de pessoas que vivem com HIV/ Aids no continente. A probabilidade de mulheres e meninas na África serem infetadas com o vírus continuou sendo 40% maior do que para os homens, sendo que, muitas vezes, elas eram as principais responsáveis pelos cuidados dos doentes. A violência contra mulheres e meninas em alguns países também aumentou o risco de infecção com o HIV. Iniciativas nacionais de combate ao HIV/Aids continuaram a crescer em todo o continente. A difusão do tratamento anti-retroviral continuou, embora de forma desigual. Em junho, a UNAIDS estimou que mais de um milhão de pessoas no continente estavam recebendo terapia antiretroviral para salvar vidas – 23% dos que precisavam do tratamento. Na África do Sul, o país com o maior número de pessoas vivendo com HIV/ Aids, o governo mostrou sinais de maior abertura à participação das organizações da sociedade civil para que se consiga responder melhor à pandemia. Em maio, durante a Cúpula Especial da UA sobre HIV/Aids, Tuberculose e Malária, realizada em Abuja, na Nigéria, os governos africanos se 25 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 25 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS comprometeram a oferecer “acesso universal a tratamento, cuidados e serviços de prevenção para todas as pessoas até 2010”. Este apelo foi reiterado, embora com poucos compromissos tangíveis, durante a Reunião de Alto Nível para Revisão sobre HIV/Aids da Assembléia Geral da ONU (Revisão UNGASS), que aconteceu em seguida. Os Estadosmembros da ONU se comprometeram a trabalhar em prol do acesso universal a tratamentos, cuidados e prevenção até 2010. Em toda a região, os países estavam desenvolvendo metas e indicadores nacionais para alcançar este objetivo. em países como Burundi, RDC, Etiópia, Ruanda, Somália, Sudão e Zimbábue. A tuberculose e a malária também constituíram uma séria ameaça em muitos lugares. Em 2006, a tuberculose matou mais de 500 mil pessoas em toda a região, enquanto cerca de 900 mil pessoas na África, a maioria crianças pequenas, morreram de crises agudas de malária. A pena de morte continuou a ser aplicada de forma ampla. Havia presos condenados à morte em vários países da região, incluindo cerca de 600 pessoas em Ruanda. Entretanto, as autoridades da Tanzânia comutaram todas as sentenças de morte em 2006, e o partido no poder em Ruanda recomendou a abolição da pena capital. REPRESSÃO ÀS DIFERENÇAS DE OPINIÃO Muitos países continuaram reprimindo as opiniões diferentes. As autoridades da Eritréia, da Etiópia, de Ruanda, do Sudão, de Uganda e do Zimbábue estavam entre as que recorreram a um sistema de licenciamento/ credenciamento para restringir o trabalho de jornalistas e, conseqüentemente, infringir a liberdade de expressão. A promulgação e a aplicação de leis antiterroristas e de ordem pública, para limitar as diferenças de opinião e o trabalho dos defensores dos direitos humanos, continuaram em alguns Estados, deixando estes defensores especialmente vulneráveis 26 MIOLO_OK.pmd Na Etiópia, por exemplo, líderes dos partidos de oposição, jornalistas e defensores dos direitos humanos, que eram prisioneiros de consciência, foram julgados por crimes capitais tais como traição, tentativa de genocídio e conspiração armada. Na Eritréia, os membros de igrejas evangélicas minoritárias foram presos por causa de sua fé, enquanto ex-líderes de governo, parlamentares e jornalistas continuaram detidos sem julgamento. Receava-se que muitos estivessem mortos. PENA DE MORTE Na RDC, os tribunais militares continuaram a pronunciar sentenças de morte após julgamentos injustos. No entanto, não houve notícias de execuções pelo Estado. Na Guiné Equatorial, uma pessoa foi executada em público por homicídio. IMPUNIDADE Em muitos lugares, a polícia e outras forças públicas continuaram a cometer violações dos direitos humanos impunemente; inclusive homicídios ilegais, tortura ou outros maus-tratos. Apesar disso, alguns passos importantes foram dados para acabar com a impunidade para os crimes de guerra e Anistia Internacional - 2007 26 15/5/2007, 17:59 ÁFRICA outros crimes graves segundo o direito internacional. Depois que a situação de Darfur foi levada ao Conselho de Segurança da ONU, em março de 2005, o promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI) visitou Cartum em 2006. Os mandados de prisão expedidos em 2005 contra integrantes graduados do grupo político armado de Uganda, o Exército de Resistência do Senhor – entre os quais Joseph Kony, Vincent Otti, Okot Odhiambo e Dominic Ongwen – continuaram em vigor. Porém, os acusados não foram presos. Os líderes do grupo argumentaram que os mandados de prisão deveriam ser anulados antes de eles se comprometerem com um acordo de paz. Contudo, os mandados ainda vigoravam no final do ano. Na RDC, Thomas Lubanga Dyilo, chefe de um grupo armado de Ituri, a União de Patriotas Congoleses, foi preso e acusado de crimes de guerra – especificamente, o recrutamento e a utilização de crianças menores de 15 anos nas hostilidades. Ele foi transferido posteriormente para o TPI, em Haia, nos Países Baixos. Em março, o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, foi entregue a esse país pela Nigéria, onde estivera vivendo. Ele foi então transferido ao Tribunal Especial para Serra Leoa, a fim de que fosse julgado por crimes de guerra e por crimes contra a humanidade cometidos durante o conflito armado neste país. Além disso, três processos ainda tramitavam no Tribunal Especial envolvendo as pessoas com maior carga de responsabilidade nos crimes contra a humanidade, nos crimes de guerra e em outras sérias violações do direito internacional cometidas na guerra civil em Serra Leoa, após 30 de novembro de 1996. Na Etiópia, o julgamento do expresidente Mengistu Hailemariam, que durou 12 anos, foi concluído em dezembro, com sua condenação por genocídio, por assassinatos em massa e por outros crimes. Junto com outros 24 membros do governo militar Dergue (1974-1991), ele foi julgado à revelia enquanto esteve exilado no Zimbábue, cujo presidente, Robert Mugabe, se recusara a extraditá-lo para esse fim. Em julho de 2006, a Assembléia de Chefes de Estado e de Governo da UA pediu ao Senegal que julgasse Hissène Habré, ex-presidente do Chade, por crimes contra a humanidade, cometidos enquanto ele esteve no poder (19821990). Ele estava vivendo no Senegal desde que foi afastado do cargo. Em 2005, um juiz belga expediu um mandado de prisão internacional por tortura e por outros crimes cometidos durante sua presidência. Em novembro de 2006, o Conselho de Ministros do Senegal adotou um projeto de lei permitindo que Hissène Habré fosse julgado. Continuaram os julgamentos de proeminentes suspeitos de genocídio no Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR), que mantinha 57 pessoas detidas no final de 2006. Dez julgamentos estavam em andamento. O Conselho de Segurança da ONU pediu ao TPIR que todos fossem concluídos até o final de 2008. O Tribunal, porém, não indiciou ou processou os líderes da exFrente Patriótica Ruandesa, embora seja amplamente aceito que eles autorizaram, toleraram ou executaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade em 1994. 27 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 27 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS Em Ruanda, continuam havendo preocupações com a imparcialidade e com a justiça dos tribunais gacaca (um sistema de tribunais comunitários criados em Ruanda, em 2002, para julgar as pessoas suspeitas de crimes durante o genocídio de 1994). VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES E MENINAS A violência contra mulheres e meninas continuou amplamente difundida. No entanto, somente alguns poucos países estavam considerando a adoção de leis para combater o problema. Os parlamentos do Quênia, da Nigéria, da África do Sul e de Zimbábue continuaram a debater projetos de lei sobre violência doméstica e delitos sexuais. Na África do Sul e na Suazilândia, em particular, a grande ocorrência de violência baseada em gênero continuou a colocar mulheres e meninas em perigo de contaminação por HIV/Aids. Isso ocorria diretamente ou através de obstáculos ao acesso à informação, prevenção e tratamento. A violência de gênero, assim como o estigma e a discriminação, também dificultaram acesso ao tratamento para aqueles que já vivem com HIV/Aids. A prática da mutilação genital feminina continuou amplamente difundida em alguns países, principalmente em Serra Leoa, na Somália e no Sudão. Na RDC, mulheres e meninas foram estupradas por forças de segurança do governo e por grupos armados, tendo pouco ou nenhum acesso a tratamentos médicos adequados. Em Darfur, o estupro de mulheres pelas milícias Janjawid continuou sendo sistemático. O número de mulheres atacadas e 28 MIOLO_OK.pmd estupradas enquanto procuravam lenha perto do acampamento de Kalma, próximo a Nyala, no sul de Darfur, passou, entre junho e agosto, de três ou quatro para cerca de 200 por mês. Na Nigéria, foram noticiados casos freqüentes de violência sexual, inclusive estupro, por funcionários do governo, que os cometeram com impunidade. Na Costa do Marfim, casos de violência sexual contra mulheres foram noticiados de forma rotineira nas áreas sob controle do governo e na região dominada pelas Forces Nouvelles. INSTITUIÇÕES REGIONAIS E DIREITOS HUMANOS Apesar de o Ato de Constituição da União Africana sublinhar a importância primordial da promoção e da proteção dos direitos humanos em todo o continente, esse organismo, geralmente, não cumpriu este compromisso. A UA continuou a demonstrar uma profunda relutância para criticar publicamente os governantes africanos que deixaram de proteger os direitos humanos, especialmente no Sudão e no Zimbábue. Uma combinação entre falta de vontade política e de capacidade da UA para pôr fim aos contínuos conflitos em lugares como Darfur, junto com a apatia da comunidade internacional, que tinha a capacidade, mas não a vontade para agir, deixou milhões de civis à mercê de governos beligerantes e senhores da guerra sem escrúpulos. Embora muitas das instituições a que se refere o Ato Constitutivo da UA se tenham tornado plenamente operacionais em 2006, tiveram pouco ou nenhum impacto sobre a vida das pessoas. Entretanto, a eleição de 11 juízes para o recém-criado Tribunal Anistia Internacional - 2007 28 15/5/2007, 17:59 ÁFRICA Africano dos Direitos do Homem e dos Povos melhorou as perspectivas de desenvolvimento de uma cultura de respeito ao Estado de direito e aos direitos humanos em nível regional. O Tribunal realizou seu primeiro encontro em julho, e os juízes começaram a redigir as regras de procedimentos do órgão. Um projeto de instrumento legal relativo à criação de um tribunal que integrasse o Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos e o Tribunal Africano de Justiça estava sendo negociado no final do ano. O Mecanismo Africano de Revisão de Pares concluiu sua revisão sobre Gana, Ruanda e África do Sul, embora não tenha publicado seus relatórios. A Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, que permaneceu sendo a única entidade regional de direitos humanos que funcionava, continuou sem receber os recursos humanos, materiais e financeiros indispensáveis para responder aos muitos problemas de direitos humanos na região. De modo geral, a corrupção intensa e amplamente difundida na África continuou a contribuir para o ciclo vicioso de miséria, que se manifesta nas violações dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos – sobretudo dos direitos econômicos e sociais – em instituições e em liderança fracas, e na marginalização dos setores mais vulneráveis da população, como as mulheres e as crianças. 29 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 29 15/5/2007, 17:59 A M É R I C A S As Américas continuaram sendo uma região de extraordinária diversidade, abrigando, em seu território, algumas das populações economicamente mais privilegiadas do mundo, como ocorre na América do Norte, e alguns dos países mais pobres do mundo, como no Caribe e na América Latina. Comum, porém, a toda a região, foram os desafios políticos, sociais e econômicos, complexos e urgentes, que afetam a realização de direitos humanos fundamentais. Os Estados Unidos, inigualáveis na região e no mundo em termos militares e econômicos, continuaram a manter um discurso duplo com relação aos direitos humanos, para se empenhar na sua “guerra ao terror”. Pretendem ser líderes na promoção dos direitos humanos e do Estado de direito, ao mesmo tempo em que promovem políticas e práticas que zombam de alguns dos princípios mais básicos do direito internacional. Assim, comprometem não apenas a possibilidade de segurança a longo prazo, que tem no Estado de direito um de seus pilares básicos, mas também sua própria credibilidade na cena internacional. Em nenhum outro lugar a erosão da credibilidade e da influência dos Estados Unidos foi tão marcada quanto na América Latina. Um número crescente de países, sobretudo na América do Sul, vem buscando se dissociar dos princípios políticos, econômicos e de segurança promovidos pelos EUA, ao passo que as relações entre o país e diversos governos latino-americanos 30 MIOLO_OK.pmd têm-se tornado cada vez mais ásperas. As tensões políticas e as críticas recíprocas foram mais acentuadas entre os Estados Unidos e a Venezuela. Um aspecto distintivo de 2006 foi o contínuo fortalecimento dos processos democráticos e a consolidação das instituições democráticas. Onze países realizaram eleições presidenciais, combinadas, em alguns deles, com eleições estaduais e legislativas. As transições de poder ocorreram de forma pacífica, apesar dos questionamentos legais de candidatos vencidos, como no caso do México. De modo geral, porém, os observadores consideraram que as eleições foram justas. Cuba, o único Estado com partido único na região, também experimentou uma transição de poder, quando o irmão de Fidel Castro, Raúl, foi empossado presidente temporariamente. A transferência pacífica de poder político em tantos países foi uma conquista importante numa região há tanto tempo perturbada por instabilidade política e por campanhas eleitorais violentas. Muitos dos novos governos se elegeram com base em propostas de acabar com a pobreza, impostas por um eleitorado cada vez mais frustrado com o fracasso das políticas econômicas predominantes que pretendiam reduzi-la. A consolidação dos processos democráticos ofereceu uma oportunidade inédita para que os governos da região pudessem enfrentar Anistia Internacional - 2007 30 15/5/2007, 17:59 AMÉRICAS as violações persistentes dos direitos humanos e a pobreza generalizada. Após décadas de negligência dos profundos problemas econômicos e sociais, surgiram sinais alentadores de que alguns governos, especialmente latino-americanos, estavam deixando o plano dos compromissos retóricos com os direitos humanos para, de fato, adotar e implementar políticas econômicas e sociais que pudessem dar início ao enfrentamento das desigualdades que há muito caracterizam a região. Entre as promessas feitas por alguns dos novos governos estavam reformas para corrigir falhas estruturais, tais como a posse injusta das terras, a discriminação arraigada no sistema de justiça e a falta de acesso a serviços básicos, que estão por trás das violações de direitos humanos. Apesar disso, os avanços foram lentos e a América Latina permanece sendo um dos locais economicamente mais injustos do planeta. A pobreza continuou endêmica e o acesso a serviços básicos, como saúde e educação, continuou a ser negado ou limitado para a maioria das pessoas. As populações pobres, sobretudo nas zonas rurais, não tiveram acesso à Justiça ou a serviços essenciais; extensas áreas rurais foram esquecidas pelo Estado, deixando um grande número de pessoas isoladas e inseguras. As grandes expectativas criadas correm o risco de serem frustradas, pois a democracia e a boa governança foram ameaçadas pela debilidade crônica das instituições, e prejudicadas pela falta de independência do Judiciário, pela impunidade e pela corrupção endêmica. A sociedade civil das Américas continuou a desempenhar um papel cada vez mais importante de cobrar dos governos uma prestação de contas de seus atos, desafiando-os a enfrentar a falta de acesso aos serviços públicos e ao sistema de justiça que atinge os mais carentes. Na busca por direitos políticos, econômicos e sociais, os defensores dos direitos humanos foram um componente essencial. Seu trabalho contribuiu para evidenciar as injustiças econômicas e sociais da região, e sua atuação foi fundamental para legitimar as lutas dos setores mais vulneráveis da sociedade, como as populações indígenas, as mulheres e os gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT). A oposição pública aos governos resultou muitas vezes em protestos prolongados e em massa, os quais foram, com freqüência, respondidos de forma repressiva pelas forças de segurança. A crise política em Oaxaca, no México, por exemplo, provocada por uma greve generalizada de professores, resultou em enormes manifestações contrárias ao governo estadual, que se estenderam por vários meses. Apesar de somente alguns poucos manifestantes terem sido violentos, a reação das autoridades estaduais e de seus simpatizantes teria atingido a todos os indivíduos e organizações que se acreditava serem favoráveis ao movimento oposicionista. INSEGURANÇA E CONFLITO Os níveis elevados de crimes violentos e a falta de segurança pública continuaram a ser causa de grande preocupação. A pobreza, a violência e a proliferação das armas de pequeno porte, uma realidade diária para milhões de pessoas nas Américas, criaram e fomentaram ambientes em que os 31 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 31 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS abusos dos direitos humanos prosperam. Para lidar com as conseqüências da negligência do Estado, da discriminação e da exclusão social, os governos têm, tradicionalmente, recorrido a estratégias repressivas de imposição da lei. Como conseqüência, as comunidades pobres têm se afundado, cada vez mais, em violência e insegurança, principalmente nos grandes centros. Nas cidades de países como Brasil, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras e Jamaica, grupos criminosos armados e gangues juvenis representaram uma séria ameaça. Diversos Estados recorreram mais intensamente à “contenção” militar de alguns bairros, deixando muitos de seus habitantes expostos tanto à violência das gangues que dominam estas comunidades, quanto à violência das forças de repressão do Estado. Uma das conseqüências mais visíveis da aplicação de medidas de segurança repressivas pelos Estados foi a violência desenfreada nas prisões superlotadas e fora de controle da região. O fenômeno das prisões que se tornaram zonas de acesso proibido às forças de segurança se difundiu nas Américas Central e do Sul. No Brasil, por exemplo, um grupo criminoso que atua no sistema prisional de São Paulo orquestrou rebeliões simultâneas em cerca de 70 prisões do estado. Ao mesmo tempo, os líderes destes grupos, de dentro do sistema de detenção, ordenaram ataques criminosos por todo o estado, resultando na morte de mais de 40 agentes de aplicação da lei e em prejuízos generalizados. A polícia matou mais de 100 suspeitos nos confrontos, enquanto muitos outros morreram no que se acredita serem ações de represália típicas de grupos de extermínio. 32 MIOLO_OK.pmd Na Colômbia, que enfrenta um dos conflitos mais intratáveis do mundo, a crise humanitária prosseguiu. As forças de segurança, os paramilitares apoiados pelo Exército e os grupos guerrilheiros, foram responsáveis por vários abusos dos direitos humanos, inclusive crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Defensores dos direitos humanos, líderes sindicais, lideranças indígenas e comunitárias estiveram entre os mais vulneráveis. “GUERRA AO TERROR” Surgiram novas evidências de um padrão sistemático de abusos praticados pelos Estados Unidos e seus aliados no contexto da “guerra ao terror”, como detenções secretas, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e prolongadas em regime de incomunicabilidade, tortura e outras formas de punição cruéis, desumanas e degradantes. No final de 2006, milhares de detentos continuavam sendo mantidos sob custódia dos EUA, sem acusação nem julgamento, no Iraque, no Afeganistão e na baía de Guantánamo, em Cuba. Apesar das diversas decisões judiciais contrárias, o governo estadunidense insistiu em promover políticas e práticas incompatíveis com as normas de direitos humanos. O Congresso dos Estados Unidos, embora tivesse algumas iniciativas positivas, deu sua aprovação às violações de direitos humanos cometidas pelo país na “guerra ao terror” e transformou as péssimas políticas do Executivo em péssimas leis nacionais. Num contraste marcante com os acontecimentos positivos na América Latina, os Estados Unidos fracassaram, Anistia Internacional - 2007 32 15/5/2007, 17:59 AMÉRICAS continuamente, em fazer com que as autoridades de alto escalão de seu governo respondessem pela tortura e pelos maus-tratos praticados na “guerra ao terror”, apesar das provas de esses abusos serem sistemáticos. Uma mudança no equilíbrio de poder dentro do Congresso dos EUA, resultado das eleições de novembro, aumentou as chances de haver uma maior supervisão e investigação das ações do Executivo, bem como de melhoras na legislação. DISCRIMINAÇÃO: AVANÇOS E RETROCESSOS A violência contra as mulheres continuou disseminada por todo o continente. Os governos não defenderam leis que criminalizam a violência praticada contra a mulher, no lar e na comunidade, nem deram seu apoio e proteção às vítimas da violência. A falta de juízes e de promotores especializados na violência de gênero, a falta de unidades policiais sensíveis a esta questão e a falta de abrigos adequados e suficientes demonstraram uma profunda falta de vontade política para acabar com a violência endêmica contra a mulher. Embora houvesse indignação internacional, se mantiveram os padrões recorrentes de assassinatos de mulheres em países como Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, entre outros. Contudo, os direitos das mulheres, inclusive seus direitos sexuais e reprodutivos, entraram na ordem do dia de políticos e da sociedade civil. No Chile, por exemplo, as autoridades conseguiram permissão da Justiça para distribuir a “pílula do dia seguinte” a meninas maiores de 14 anos, sem o consentimento dos pais. No Peru, o Tribunal Constitucional decidiu que esta pílula deveria ser disponibilizada a todas as mulheres. Na Colômbia, o aborto foi descriminalizado em casos de estupro e em certas situações. Em contraste, a Corte Constitucional do Equador decidiu que a contracepção de emergência não deveria ser disponibilizada; enquanto as autoridades da Nicarágua rejeitaram uma lei que havia permitido o aborto em certos casos de estupro. Violações dos direitos de povos indígenas, inclusive violência contra mulheres e meninas, foram observadas em toda a região. Os povos indígenas continuaram a enfrentar tratamento discriminatório e um racismo arraigado. Tendo-lhes sido negada a devida proteção de seu direito a viver e a usufruir das terras e territórios vitais tanto à sua sobrevivência diária, quanto à sua identidade cultural - as comunidades indígenas acabaram, muitas vezes, numa situação de miséria e de doença. Em 2006, a tendência de reafirmação da identidade indígena continuou a crescer. Nos países dos Andes, em particular, isso se refletiu na emergência de povos indígenas como uma força política, tanto no plano nacional, como foi o caso da Bolívia, quanto a nível local. Paralelamente, divisões étnicas crescentes tornaram-se mais aparentes nos países andinos, que possuem uma maior proporção de populações indígenas. Na Bolívia, divisões étnicas agravaram-se com as demandas por maior autonomia regional dos departamentos majoritariamente não-indígenas de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando. 33 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 33 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS A comunidade GLBT continuou a ser estigmatizada, discriminada e a sofrer abusos em muitos países das Américas, embora também tenham conquistado visibilidade e alguma aceitação, principalmente nas maiores cidades. Na Nicarágua, os relacionamentos homoafetivos continuaram a ser criminalizados, ao passo que nos países do Caribe várias “leis de sodomia” ainda estavam em vigor. Em alguns lugares, porém, houve fatos positivos para garantir a igualdade de direitos perante a lei. A Cidade do México, numa decisão que foi um marco, reconheceu as uniões entre pessoas do mesmo sexo. O Congresso colombiano debateu um projeto de lei que, se aprovado, daria aos casais de mesmo sexo os mesmos direitos previdenciários oferecidos aos casais de sexos opostos. IMPUNIDADE RECUA Diversos países latino-americanos enfrentaram o legado doloroso de violações passadas dos direitos humanos. Questões referentes à verdade, à justiça e à reparação ganharam prioridade nas agendas da sociedade, do Judiciário e de alguns governos, o que fez com que várias autoridades tivessem de assumir responsabilidade pelos seus atos. Na Argentina, Miguel Etchecolatz, ex-diretor de investigações da Polícia da Província de Buenos Aires, foi condenado por homicídio, tortura e seqüestros durante o período do regime militar (1976-1983) e foi sentenciado à prisão perpétua em setembro. Os três juízes do caso decidiram que ele era responsável por crimes contra a humanidade cometidos num contexto de genocídio. 34 MIOLO_OK.pmd O ex-presidente peruano Alberto Fujimori ganhou a liberdade provisória no Chile, em maio, enquanto aguardava uma decisão da Suprema Corte de Justiça chilena sobre extraditá-lo para o Peru, onde responderia por acusações de corrupção e de violações de direitos humanos. A Suprema Corte determinou que Fujimori estava proibido de deixar o Chile e colocou-o em prisão domiciliar até que se chegasse a uma decisão. Os processos em andamento no México, de ex-autoridades acusadas de crimes contra a humanidade, cometidos nas décadas de 60, 70 e 80, continuaram a ser frustrados. Em novembro, porém, um tribunal federal ordenou nova prisão do ex-presidente Luis Echeverría, a fim de que ele fosse julgado pelo crime de genocídio, em conexão com o assassinato de estudantes na Praça Tlatelolco, em 1968. Em novembro, um juiz uruguaio ordenou a detenção e o julgamento do ex-presidente Juan María Bordaberry (1971-1976) e do ex-ministro de Relações Exteriores, Juan Carlos Blanco. Eles foram acusados em conexão com as mortes de Rosario Barredo e William Whitelaw, integrantes do grupo guerrilheiro Movimento de Libertação Nacional - Tupamaro, ocorridas na Argenina, em 1976. A decisão judicial teve recurso. A necessidade de uma Justiça mais célere foi posta em evidência com a morte do ex-presidente chileno Augusto Pinochet, no dia 10 de dezembro, sem que ele tivesse sido julgado pelas atrocidades cometidas nos 17 anos de seu governo. Poucas semanas antes de seu falecimento, novas acusações foram feitas contra ele - referentes a 35 seqüestros, um Anistia Internacional - 2007 34 15/5/2007, 17:59 AMÉRICAS homicídio e 25 casos de tortura. O expresidente paraguaio Alfredo Stroessner morreu no exílio, no Brasil, sem jamais ter ido a julgamento pelas violações generalizadas de direitos humanos cometidas durante seu governo, entre 1954 e 1989. era visto com ceticismo ou rejeição. Todavia, houve progresso com relação ao fortalecimento das parcerias comerciais dentro da América Latina. A jurisdição universal continuou a ter um papel fundamental para se lidar com o legado das violações passadas de direitos humanos cometidas na América Latina. Um juiz na Espanha expediu mandados de prisão para o ex-presidente da Guatemala, o general Efraín Ríos Montt, e vários outros ex-oficiais graduados do Exército, que foram acusados de genocídio, de tortura, de terrorismo e de detenção ilegal. Contudo, o general Efraín Ríos Montt permaneceu em liberdade depois que as autoridades guatemaltecas consideraram somente parte do caso apresentado pela Audiência Nacional da Espanha. Outros dois ex-oficiais estavam sob custódia e um terceiro era considerado fugitivo da Justiça. ACONTECIMENTOS REGIONAIS A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, os mecanismos de direitos humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), emitiram diversas decisões significativas. Caso sejam implementadas pelos Estadospartes, elas não apenas serviriam para casos particulares de negações ou de violações dos direitos humanos de indivíduos, como também estabeleceriam precedentes importantes para que houvesse uma mudança sistemática em toda a região. Não houve avanços nas negociações sobre um tratado de livre comércio para as Américas, o qual, em muitos países, 35 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 35 15/5/2007, 17:59 Á S I A - PAC Í F I C O O ano de 2006 foi um ano de eventos dramáticos e de muitas mudanças na Ásia e na região do Pacífico. Perturbações políticas criaram um ambiente de medo, de carência e de discriminação. Houve instabilidade política no Timor Leste, em Tonga e nas Ilhas Salomão; nas Filipinas, a declaração de estado de emergência provocou temores de que aumentassem os assassinatos políticos. Em Bangladesh, a violência política marcou negativamente o período préeleitoral e as eleições foram atrasadas; em Mianmar, as autoridades continuaram sua política de repressão e de encarceramento da oposição política. As negociações de paz no Sri Lanka fracassaram, e o cessar-fogo mal se manteve; milhares de assassinatos e de deslocamentos em massa ocorreram ao longo do ano e, em novembro, o cessar-fogo foi declarado extinto pelo grupo de oposição armado Tigres de Libertação da Pátria Tâmil. Houve golpes de Estado na Tailândia e em Fuji. Em meio a ansiedade, sofrimento e desespero, também surgiu esperança e oportunidade no Nepal, onde, após anos de conflito e de impasse político, as pessoas se reuniram para exigir paz, direitos humanos e uma transição democrática. Suas vozes foram ouvidas e a oportunidade para se fazer uma transição pacífica parece ter sido aproveitada quando o rei e os partidos políticos chegaram a um consenso que culminou com um inclusivo acordo de paz assinado em novembro. 36 MIOLO_OK.pmd Na região da Ásia e do Pacífico, estão seis dos 10 Estados mais populosos do mundo que, sozinhos, abrigam a metade da população mundial. Em 2006, vários acontecimentos refletiram a crescente importância da região na cena global. A influência comercial e política da China aumentaram. Ao mesmo tempo, os preparativos para as Olimpíadas de 2008 despertaram um sentimento de orgulho e algum debate. Em janeiro de 2007, o Vietnã estava prestes a se tornar o 150º membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), depois de seu ingresso ter sido aprovado pelo Conselho Geral da organização, no final de 2006. Um sul-coreano, Ban Ki-Moon, foi escolhido para ser o próximo secretário-geral da ONU. Com relação aos acontecimentos na área dos direitos humanos, o discurso dos governos nem sempre correspondeu às suas ações. Dez países da região ingressaram no novo Conselho de Direitos Humanos da ONU e fizeram pronunciamentos louváveis sobre direitos humanos. A Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) deu passos em direção ao fortalecimento da importância dos direitos humanos no seu trabalho. Contudo, a região da Ásia e do Pacífico continua sendo a única que não possui um mecanismo regional de direitos humanos, enquanto as melhoras concretas na proteção destes direitos foram poucas e irregulares. Anistia Internacional - 2007 36 15/5/2007, 17:59 ÁSIA - PACÍFICO GLOBALIZAÇÃO: PROSPERIDADE, POBREZA E IMIGRAÇÃO A globalização continuou a ter um profundo impacto sobre a região. A China e a Índia, em particular, ao mesmo tempo em que atingiram índices invejáveis de crescimento, fortaleciam seus laços econômicos comuns. Isso, porém, não trouxe benefícios para todos. Alguns projetos de industrialização e de desenvolvimento provocaram deslocamentos e abusos dos direitos humanos; milhões, entre os mais carentes, permaneceram na pobreza, pois os benefícios do desenvolvimento foram usufruídos, desproporcionalmente, pelos mais bem educados, capacitados e que moram melhor. Segundo as Nações Unidas, mais de 28 por cento das pessoas na Índia permaneceram abaixo da linha de pobreza do país. Em Bangladesh, foram 50 por cento; na Mongólia, 40 por cento e no Paquistão, 33 por cento. A desigualdade entre as áreas rurais e urbanas significa, sobretudo, que o desenvolvimento econômico ainda não teve um efeito positivo na vida de muitas populações rurais. Na Índia, por exemplo, houve aumento generalizado do desemprego, apesar de um próspero setor de serviços. E o desespero sentido nas áreas rurais refletiu-se no número perturbadoramente alto de suicídio entre os agricultores. De acordo com o governo, entre 2003 e 2006, foram 16 mil suicídios por ano, e nos 10 anos anteriores, 100 mil. Na China, ao passo que um grande número de pessoas conseguiu sair da pobreza, a disparidade entre o padrão de vida das comunidades urbanas e rurais era brutal. Relatórios publicados em 2006 estimavam que as remunerações nas cidades eram quase quatro vezes mais altas que nas áreas rurais. A expectativa de vida dos chineses nas áreas urbanas seria entre 10 e 15 anos maior que a de um agricultor, apesar das condições deploráveis de saúde e de segurança enfrentadas por muitos trabalhadores da indústria, nos mais diversos setores. O desenvolvimento econômico, tão promissor, não trouxe melhora para a vida dos muitos que são marginalizados ou que sofrem discriminação, como as mulheres e as minorias étnicas, pois as estruturas que sustentam a desigualdade permaneceram profundamente enraizadas. O processo de criação de riquezas beneficiou um número limitado de pessoas, enquanto grandes parcelas da população da região continuavam na pobreza, com pouco ou nenhum acesso à moradia e a serviços de saúde e de educação. Apesar de a globalização e o livre fluxo de mercadorias, serviços e finanças entre as fronteiras terem sido muito bemvindos na região, a imigração foi, muitas vezes, a única maneira que as pessoas encontraram para se beneficiar de oportunidades de trabalho e de rendimentos. Este movimento, porém, continuou sendo limitado e perigoso. Em muitos países da região, os imigrantes foram maltratados, sem que os governos protegessem seus direitos. Outros fatores que influenciaram os movimentos de pessoas foram os conflitos e certas formas difundidas de discriminação. Em 2006, os conflitos armados deslocaram ao menos 213 mil pessoas no Sri Lanka e 16 mil no estado de Karen, em Mianmar. Aproximadamente 150 mil refugiados permaneciam na fronteira entre a 37 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 37 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS Tailândia e Mianmar; 100 mil nortecoreanos teriam entrado na China para escapar da fome; e cerca de 7 mil refugiados da etnia hmong, do Laos, continuaram em um campo na Tailândia. PREOCUPAÇÕES COM A SEGURANÇA A “guerra ao terror” prosseguiu fazendo vítimas e tendo conexões com casos de desaparecimentos forçados, especialmente no Afeganistão e no Paquistão. No Afeganistão, a situação da segurança no sul e no sudeste deteriorou-se rapidamente. A expansão da insurgência pelo país, associada à ausência de lei, levou a uma crescente insatisfação social. A escalada do conflito resultou em mortes e em ferimentos de milhares de civis. Infrações graves do direito internacional humanitário foram cometidas por todas as partes no conflito, inclusive pelas forças de segurança internacionais e afegãs, bem como pelo Talibã. A contínua incapacidade da comunidade internacional e do governo afegão de assegurarem a boa governança e o Estado de direito reforçou a cultura de impunidade, alimentando ainda mais os ressentimentos locais. Funcionários do governo, professores e defensores dos direitos humanos, muitos dos quais mulheres, enfrentaram ameaças e ataques violentos da parte do Talibã e dos detentores do poder local que, por vezes, levaram essas pessoas à morte. A pobreza disseminada, a escassez de comida e a falta de água potável, exacerbadas pela seca, agravaram os deslocamentos internos e 38 MIOLO_OK.pmd intensificaram o sofrimento das pessoas. Na Tailândia, a violência prosseguiu nas províncias de maioria muçulmana no sul do país. Grupos armados bombardearam, decapitaram e atiraram em civis muçulmanos e budistas, entre os quais estavam monjes, professores e membros das forças de segurança. Os que tentaram intervir para conter esses abusos foram agredidos violentamente, ameaçados de morte e, por vezes, mortos. Com base num Decreto de Emergência, várias pessoas foram detidas arbitrariamente, sem acusação ou julgamento, e não tiveram acesso a advogados. Alguns foram torturados ou sofreram maus-tratos durante os interrogatórios. Na Austrália, as leis antiterroristas suscitaram diversos temores com relação à proteção dos direitos humanos. Enquanto isso, na Índia, prosseguiu o debate sobre a introdução de uma legislação de “guerra ao terror”. Um teste nuclear realizado pela Coréia do Norte, em outubro, aumentou o clima de tensão no nordeste asiático e em outros lugares, provocando temores de uma corrida armamentista na região. Ao mesmo tempo, a fome continuava a afligir as vidas de uma quantidade desconhecida de pessoas no país. Houve pedidos de mudança nas disposições constitucionais anti-bélicas do Japão, ao mesmo tempo em que, por toda a Ásia e em outros lugares, sobreviventes do sistema militar japonês de escravidão sexual, antes e durante a II Guerra Mundial, seguiram, dignamente, pedindo justiça, apesar de seu número reduzido e da falta de reparações plenas. Anistia Internacional - 2007 38 15/5/2007, 17:59 ÁSIA - PACÍFICO DIREITOS HUMANOS: DISCURSO E REALIDADE Dez Estados da região da Ásia e do Pacífico tornaram-se membros do novo Conselho de Direitos Humanos da ONU: Bangladesh, China, Coréia do Sul, Filipinas, Índia, Indonésia, Japão, Malásia, Paquistão, e Sri Lanka. Todos eles prometeram respeitar os direitos humanos, cooperar com os mecanismos e com os procedimentos especiais da ONU, criar ou manter estruturas nacionais de direitos humanos consistentes e ratificar ou observar as normas internacionais de direitos humanos. Estes compromissos, porém, ainda não haviam se concretizado no final de 2006. Relativamente poucos Estados da região, e somente um dos novos membros do Conselho de Direitos Humanos, haviam ratificado o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Os requerimentos feitos pelos relatores especiais da ONU para visitar diversos países da região continuaram sem resposta; em alguns casos, essa espera já dura mais de uma década, como é o caso da Índia, cuja solicitação do relator especial sobre a tortura para visitar o país foi feita em 1993. A trágica situação dos direitos humanos em Mianmar entrou na pauta do Conselho de Segurança da ONU pela primeira vez em 2006 e, em maio, o subsecretário-geral de Assuntos Políticos da ONU, Ibrahim Gambari, visitou o país. Enquanto isso, a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz e líder oposicionista Aung San Suu Kyi permanecia em prisão domiciliar. Prosseguiram os conflitos, a perseguição aos ativistas políticos e a utilização de trabalho forçado, ao mesmo tempo em que as autoridades desafiavam o criticismo internacional, inclusive o proveniente da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático). Apesar de alguns progressos, a região da Ásia e do Pacífico também ficou atrás na marcha global rumo à abolição da pena de morte, sendo palco de uma quantidade assombrosa de execuções. A China, a Coréia do Norte, a Índia, o Japão, a Malásia, o Paquistão, Singapura, a Tailândia e o Vietnã faziam parte de uma perturbadora lista de países da região que mantêm a pena de morte, apesar das incessantes campanhas para sua abolição, feitas dentro e fora de suas fronteiras. As Filipinas, entretanto, aboliram a pena capital em 2006, e a Coréia do Sul passou mais um ano considerando a adoção de uma legislação para abolir esta pena, enquanto manteve uma moratória não oficial sobre sua aplicação. Em várias partes da região, o espaço para as diferenças de opinião diminuiu em 2006, e a proteção dos ativistas de direitos humanos fez-se cada vez mais necessária. Nas Filipinas, por exemplo, os assassinatos políticos disseminaram o medo entre ativistas políticos e entre defensores dos direitos humanos que queriam denunciar a ocorrência de homicídios ilegais e o fato de eles não serem investigados. Práticas culturais arraigadas que restringem os direitos das mulheres e que resultam, muitas vezes, em violência contra elas, ou mesmo na sua morte, persistiram de modo generalizado por toda a região, sem, porém, que isso provocasse o necessário debate no seio da sociedade ou que fizesse parte de políticas públicas relevantes. 39 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 39 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS Prosseguiram os estupros, os casamentos forçados, os crimes “em nome da honra” e os abusos praticados contra mulheres e meninas em situações de conflitos. Em Papua Nova Guiné, a violência sexual seguiu sendo uma experiência diária para muitas delas, enquanto acusações de bruxaria resultaram em seqüestros e em assassinatos de mulheres. Apesar disso, as autoridades pouco fizeram para impedir esses crimes. No Afeganistão, os casamentos prematuros ou forçados e as práticas tradicionais, tais como oferecer adolescentes em troca da resolução de disputas, continuaram sendo uma ameaça permanente ao bem-estar de meninas e mulheres. Contudo, o trabalho desenvolvido na região pelas mulheres ativistas conseguiu resultados positivos. No Paquistão, houve emendas na legislação sobre os crimes de estupro e de violência sexual, a fim de impedir que as denúncias destes crimes não pudessem mais ser transformadas em acusações de adultério ou de fornicação. Na Índia, finalmente foi introduzida uma lei que trata da violência contra a mulher. Os direitos humanos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT) continuaram a ser considerados um assunto sensível em muitas partes da região. O ativismo em favor destes direitos, no entanto, aumentou em diversos países, como na China, na Índia e nas Filipinas. Na Índia, uma centena de personalidades públicas, dentre as quais escritores, acadêmicos e celebridades, assinaram uma carta aberta, pedindo a retirada do Código Penal do artigo 337, que criminalizava a homossexualidade; em Hong Kong, um jovem ativista gay desafiou com sucesso uma lei que determinava uma idade de 40 MIOLO_OK.pmd consentimento para as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo maior do que a exigida para os parceiros heterossexuais; e, nas Filipinas, os ativistas tiveram de lutar para que fosse adotado um projeto de lei que visava a impedir a discriminação contra as pessoas GLBT. Lideranças em questões de direitos humanos emergiram em diversos países e em diferentes níveis por toda a região. No âmbito estatal, as Filipinas atenderam aos pedidos de abolição da pena de morte. No campo popular, os nepaleses deram uma demonstração inspiradora de sua força ao optarem pela paz e pelo fim dos abusos relacionados aos conflitos. Defensores dos direitos humanos, inclusive mulheres, ambientalistas, indígenas e diversos outros ativistas, continuaram a desafiar interesses poderosos para defender direitos básicos. Coletivamente, as forças em favor dos direitos humanos demonstraram coragem e determinação, confrontando tanto o reacionarismo no interior de suas próprias sociedades quanto as múltiplas formas de repressão do Estado. A região da Ásia e do Pacífico, enfim, mostrou ter uma grande demanda e um forte potencial para avançar em todo o conjunto dos direitos humanos, tendo como um de seus principais desafios a vontade política dos governos. A dinâmica que levou alguns Estados a apresentarem suas credenciais em matéria de direitos humanos na hora de disputar o ingresso no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2006, deveria servir para impulsionar a promoção e o respeito a todo o elenco dos direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos direitos civis e políticos. Anistia Internacional - 2007 40 15/5/2007, 17:59 E U R O PA E ÁSIA CENTRAL As questões que mais preocuparam em toda a região continuaram sendo a segurança, a imigração e a condição dos Estados. O Estado mais novo da Europa, Montenegro, surgiu em junho, a partir da contínua dissolução da ex-Iugoslávia. Porém, uma decisão sobre a condição final de Kosovo, que formalmente ainda faz parte da Sérvia, foi adiada até o início de 2007. Não houve progresso significativo na resolução da situação das entidades regionais não reconhecidas internacionalmente, situadas dentro das fronteiras do Azerbaijão, Geórgia e Moldova, mas que continuam fora do controle de fato desses Estados. O Chipre ainda é uma ilha dividida. Na Espanha, o grupo armado basco Euskadi Ta Askatasuna (ETA) declarou um “cessar-fogo permanente” em março, mas o diálogo com o governo foi suspenso em dezembro, depois que uma bomba num aeroporto matou duas pessoas. Na Turquia, em 2006, as lutas entre as forças de segurança e os integrantes do grupo armado Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) intensificaram-se e houve um número maior de ataques a bomba contra civis por parte de outros grupos armados. A impunidade resultante dos conflitos persistiu em toda a região. Muitos países continuaram a exercer atração sobre as pessoas que tentavam fugir da pobreza, da violência ou da perseguição. Mudanças nos padrões imigratórios da África fizeram com que mais de 30 mil pessoas aportassem nas Ilhas Canárias; com um número desconhecido de outras que podem ter morrido quando tentavam a travessia em barcos inseguros. Mesmo assim, os Estados europeus continuaram fazendo pouco caso dos direitos de refugiados e de imigrantes, adotando posições repressivas contra a imigração irregular, como a detenção e a expulsão forçada, sem oferecer procedimentos justos e individualizados de asilo. No contexto da “guerra ao terror”, os governos também desrespeitaram suas obrigações internacionais ao mandar os imigrantes de volta a seus países, apesar do risco de sofrerem graves violações de seus direitos humanos, inclusive tortura. Mais dois países, Bulgária e Romênia, estavam prestes a se integrar à União Européia (UE) no início de 2007. Enquanto sua expansão continuou a considerar os direitos humanos como o principal teste de qualificação dos candidatos à integração, a UE como um modelo de “união de valores” parecia cada vez mais ambivalente. O Conselho da União Européia demonstrou relutância em confrontar os EUA sobre a forma como conduzem a “guerra ao terror” e mostrou não “praticar o que prega” com relação à imigração. A adoção de uma posição institucional minimalista para os direitos humanos dentro das fronteiras do bloco, com a criação de uma Agência dos Direitos Fundamentais praticamente impedida 41 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 41 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS de tratar de abusos dos direitos humanos nos Estados-membros, corroeu ainda mais sua credibilidade nacional e mundial em questões de direitos humanos. O racismo e a discriminação continuaram em toda a região. Em muitos países, o governo não rechaçou de forma convincente as idéias e as ideologias racistas e xenofóbicas por meio da implantação de programas abrangentes para combatê-las e de ações eficazes para prevenir, investigar e processar os ataques por motivos de raça. Em alguns países, foram as próprias autoridades que discriminaram as minorias ao não defenderem seus direitos. A discriminação foi muitas vezes justificada com base nas questões de identidade e de situação legal (ou da falta de uma), criando barreiras ao acesso a uma série de direitos humanos, inclusive econômicos, sociais e culturais. SEGURANÇA E DIREITOS HUMANOS Surgiram mais indícios da cumplicidade dos governos europeus no programa estadunidense de rendições, uma prática ilegal por meio da qual muitos indivíduos foram detidos ilegalmente e levados em vôos secretos para países em que sofreram crimes adicionais, como tortura e desaparecimento forçado. Ficou cada vez mais evidente, inclusive através das investigações do Conselho da Europa e do Parlamento Europeu, que muitos governos europeus adotaram uma atitude de dizer que “não viram nem ouviram nada de mais” com relação aos vôos de rendição no seu território. Alguns foram parceiros intencionais da CIA (Agência Central de Inteligência 42 MIOLO_OK.pmd dos EUA) e facilitaram os abusos. A cumplicidade de Estados como Bósnia e Herzegóvina, Alemanha, Itália, Macedônia, Suécia e Reino Unido foi variada: desde a aceitação e ocultação das rendições, das detenções secretas, da tortura ou de outros maus-tratos (e o uso das informações obtidas desta forma), até o envolvimento direto em seqüestros e em transferências ilegais. Além do mais, havia indícios de que as forças de segurança da Alemanha, da Turquia e do Reino Unido haviam se aproveitado da situação para interrogar indivíduos que haviam sido rendidos. Em outras áreas, também, a segurança tomou precedência sobre os direitos humanos fundamentais, em detrimento de ambos. Receava-se que os governos do Cazaquistão, do Quirguistão, da Rússia e da Ucrânia, ao cooperarem com o Uzbequistão em nome da segurança regional e da “guerra ao terror”, estivessem desrespeitando suas obrigações, segundo o direito dos refugiados e dos direitos humanos, ao mandar pessoas de volta ao Uzbequistão apesar do risco de sofrerem graves violações, como tortura. O governo britânico continuou a enfraquecer a proibição universal da tortura ao tentar deportar pessoas consideradas suspeitas de atividades ligadas ao terrorismo para países com antecedentes na prática de tortura ou outros maus-tratos. As autoridades britânicas procuraram confiar em “garantias diplomáticas” inerentemente indignas de confiança e ineficazes, contidas em memorandos de entendimento com Estados que possuíam históricos bem documentados de tortura. Na Turquia, a nova Lei de Combate ao Terrorismo continha disposições amplas Anistia Internacional - 2007 42 15/5/2007, 17:59 EUROPA E ÁSIA CENTRAL e draconianas que, na prática, podiam infringir as leis internacionais de direitos humanos e facilitar as violações. Pessoas indiciadas com base na atual legislação antiterrorista da Turquia continuavam a enfrentar julgamentos intermináveis, algumas delas estando detidas há mais de uma década enquanto aguardam um veredicto final para os seus casos. Contudo, além das investigações sobre as rendições, houve outros sinais de recusa à tolerância destes abusos. Em julho, num caso bastante significativo na Espanha, o Supremo Tribunal anulou uma sentença de seis anos de prisão e ordenou a libertação imediata de um homem que fora detido pelos EUA na base de Guantánamo, em Cuba. A base para essa decisão foi de que as provas obtidas durante sua estadia naquele local eram inadmissíveis. O tribunal concluiu que a base de Guantánamo constituía um limbo legal sem garantias ou controle e que, portanto, toda evidência lá originada deveria ser declarada completamente nula e sem validade legal. Em novembro, um órgão de direitos humanos da ONU confirmou que as autoridades suecas haviam sido responsáveis por múltiplas violações dos direitos humanos com referência a uma expulsão sumária para o Egito. O governo sueco reagiu, reiterando que pareceres deste tipo não tinham valor legal e continuou se recusando a oferecer reparação, tais como compensações para as vítimas. Em dezembro, promotores italianos pediram a um juiz que indiciasse 26 agentes da CIA acusados de seqüestro de um clérigo egípcio na cidade de Milão e de participação na sua rendição ao Egito, onde ele teria sido torturado. REFUGIADOS, REQUERENTES DE ASILO E IMIGRANTES Continuou a haver um padrão consistente de violações dos direitos humanos ligadas à interceptação, detenção e expulsão de estrangeiros pelos Estados, inclusive de pessoas que buscavam proteção internacional. Passado um ano, não haviam sido concluídas as investigações sobre a morte, em 2005, de 13 imigrantes, vindos do Marrocos, que foram mortos ao tentar entrar nos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla. Três outras pessoas morreram em incidentes semelhantes em julho de 2006. Homens, mulheres e crianças continuaram a enfrentar obstáculos para ter acesso a procedimentos de asilo. Na Grécia, na Itália, em Malta e no Reino Unido, pessoas foram detidas ilegalmente, enquanto outras não receberam as orientações ou o apoio legal necessários. Muitos foram expulsos ilegalmente antes de seus casos receberem a devida consideração em países como Grécia, Itália, Malta e Espanha. Alguns foram enviados a lugares onde corriam o risco de sofrer violações de direitos humanos. Em resposta aos novos padrões imigratórios, foram criadas missões conjuntas de patrulha marítima por vários países da UE, coordenadas pela agência de controle das fronteiras externas do bloco, Frontex. O objetivo dessas missões era interceptar os barcos de imigrantes no mar e mandá-los de volta a seus países de origem. Isso levantou sérias preocupações sobre o respeito por direitos fundamentais, como o direito de pedir asilo, de deixar seu próprio país e de não ser forçado a retornar para um lugar onde seus direitos humanos podem ser violados. 43 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 43 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS Novas legislações adotadas por alguns países restringiram ainda mais os direitos de requerentes de asilo e imigrantes. Na Suíça, proibiu-se o acesso a procedimentos de asilo para pessoas sem documentos de identidade nacionais. Na França, uma nova lei passou a permitir somente a emissão de vistos de residência para imigrantes que já tivessem contratos de trabalho, aumentando o risco de exploração de seus serviços. RACISMO E DISCRIMINAÇÃO Em toda a região, foi comum a discriminação por identidade contra os ciganos, que, de modo geral, continuaram excluídos da vida pública sem poder desfrutar plenamente de direitos como habitação, trabalho e serviços de saúde. Em alguns países, as autoridades não integraram totalmente as crianças ciganas ao sistema educacional, tolerando ou promovendo a criação de classes ou de escolas especiais, incluindo algumas em que o currículo era reduzido. Os ciganos, assim como os judeus e os muçulmanos, também foram vítimas de crimes de ódio cometidos por outros indivíduos. Na Rússia, um violento racismo continuou amplamente difundido. Muitas pessoas sofreram discriminação devido a sua situação legal. No Azerbaijão, as pessoas deslocadas internamente pelo conflito de NagornoKarabakh tiveram oportunidades limitadas de exercer seus direitos econômicos e sociais, por causa de um complicado processo de registro interno que vincula a permissão de trabalho e de uso dos serviços sociais à residência fixa. Em Montenegro, mais de 16 mil ciganos e sérvios deslocados de Kosovo continuaram sem poder usufruir de seus 44 MIOLO_OK.pmd direitos civis, políticos, econômicos e sociais, porque não podiam fazer seu registro civil. Problemas semelhantes foram enfrentados por milhares de pessoas na Eslovênia, todas provenientes de outras antigas repúblicas da Iugoslávia, que foram ilegalmente “apagadas” dos registros de residentes permanentes. Na Estônia, integrantes da minoria de fala russa tiveram acesso limitado ao mercado de trabalho devido à restrição dos direitos lingüísticos e das minorias. As autoridades na Letônia, na Polônia e na Rússia continuaram a fomentar um clima de intolerância contra as comunidades de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT), obstruindo eventos públicos organizados por estes grupos, com o uso de linguagem manifestamente homofóbica por alguns políticos com posições importantes. IMPUNIDADE E RESPONSABILIDADE Embora tenha havido algum progresso no combate à impunidade para os crimes cometidos no território da ex-Iugoslávia durante as guerras dos anos 90, a falta de cooperação plena com o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, assim como os esforços insuficientes dos tribunais nacionais, significou que muitos dos que cometeram crimes de guerra e crimes contra a humanidade continuaram a evadir à Justiça. A tortura e outros maus-tratos, geralmente relacionados à raça e freqüentemente usados para extrair confissões, continuaram a ser relatados por toda a região, sendo que, em alguns países, eram rotina. As vítimas descreveram uma série de abusos, entre os quais execuções simuladas, Anistia Internacional - 2007 44 15/5/2007, 17:59 EUROPA E ÁSIA CENTRAL espancamentos com socos, garrafas plásticas cheias de água, livros, cassetetes e bastões, sufocamento, privação de alimentos, água e sono, ameaças de estupro e choques elétricos em diversas partes do corpo. Entre os obstáculos que impedem que se combata a impunidade por esses abusos, se incluem as ações da polícia para burlar salvaguardas, a falta de acesso imediato a um advogado, o medo de represálias por parte das vítimas e a ausência de um sistema independente e dotado de recursos adequados para controlar e para investigar as denúncias. Especialmente em países como Rússia, Turquia e Uzbequistão, o fato de não se realizar investigações imediatas, completas e imparciais perpetuou uma cultura enraizada de impunidade. Essas falhas no âmbito nacional em alguns países fizeram com que as pessoas seguissem buscando reparação perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, aumentando a sobrecarga de casos deste órgão. PENA DE MORTE Houve um avanço considerável em direção à abolição da pena de morte em toda a região. Em junho, a Moldova aboliu por lei esta pena e, em novembro, o Quirguistão adotou uma nova Constituição que anulou as disposições anteriores sobre a aplicação da pena capital. Quando a União Soviética caiu, todos os 15 novos Estados independentes conservaram a pena de morte. Ao final de 2006, apenas dois deles ainda a aplicavam na lei e na prática. Eram Belarus e Uzbequistão, ambos ainda guardando segredo sobre o número exato de pessoas condenadas e executadas anualmente. O Uzbequistão até insistiu em que nos últimos dois anos ninguém havia sido sentenciado à morte. Entretanto, organizações nãogovernamentais confiáveis do país relataram que ao menos oito sentenças deste tipo haviam sido pronunciadas. Enquanto a Europa em geral seguia a tendência mundial de abolição, o presidente da Polônia tentou contrariar essa tendência, pedindo, em julho, que a pena de morte fosse reintroduzida em seu país e em toda a Europa. Outro aspecto pouco positivo foram as condições de detenção para os que aguardavam sua execução; acredita-se que alguns prisioneiros tenham suportado condições extremamente severas durante muitos anos. Além disso, os presos condenados à morte em países (e entidades territoriais não reconhecidas) onde houve suspensão das execuções continuaram a sofrer com a incerteza de seu destino. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A violência doméstica contra mulheres e meninas continuou sendo amplamente difundida em toda a região em todas as idades e grupos sociais. Manifestava-se através de uma série de abusos verbais e psicológicos, violência física e sexual, controle econômico e assassinatos. Geralmente, apenas uma pequena proporção das mulheres apresentava queixa contra estes abusos, pois, além de se culparem, entre outras coisas, receavam as represálias de seus parceiros abusivos; os processos por outras infrações; a “vergonha” que suas famílias passariam; a insegurança financeira; a não existência de refúgios suficientes ou de outras providências eficazes, como medidas cautelares para 45 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 45 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS garantir sua proteção e a de seus filhos; e a impunidade generalizada dos que cometem esses crimes. Com freqüência, também, as mulheres não acreditavam que as autoridades considerassem os abusos como crimes, mas, sim, como um assunto privado e que, como tais, os tratassem. A incapacidade de se ganhar essa confiança não só impediu que houvesse justiça em casos individuais, como também prejudicou os esforços para combater esses abusos em toda a sociedade, ocultando a verdadeira extensão e a natureza do problema. Apesar de ter havido algumas melhoras em termos de proteção legislativa neste sentido, ainda havia muitas lacunas importantes. Entre essas, a inexistência, em alguns países, de leis que criminalizam a violência doméstica de forma específica, e o fato de não se fazer uma coleta de dados estatísticos completos. Apesar de a nova lei sobre violência doméstica na Geórgia ser muito bem-vinda, o fato de não se ter conseguido aprovar um plano de ação nacional para combatê-la, como estipulado por lei, levantou dúvidas sobre o comprometimento das autoridades em realmente erradicarem esse mal. Na Suíça, uma nova lei permitiu que os agressores fossem expulsos de uma moradia compartilhada, caso isso fosse solicitado por uma vítima de violência doméstica. No entanto, as mulheres imigrantes que vivem na Suíça há menos de cinco anos continuaram sujeitas a serem expulsas do país se deixassem de coabitar com o parceiro nomeado no seu visto de residência. O tráfico humano, inclusive de mulheres e de meninas para prostituição forçada, continuou a prosperar onde existia pobreza, corrupção, falta de educação e de coesão social. O tráfico de 46 MIOLO_OK.pmd seres humanos para dentro da Europa e entre suas fronteiras ocorreu em profusão. Muitos Estados não fizeram com que o foco das políticas e ações nesta área incidisse sobre o respeito e a proteção aos direitos das pessoas traficadas. Porém, um fato positivo ocorrido neste sentido foi a ratificação por três países, em 2006, da Convenção do Conselho da Europa relativa à ação contra o tráfico de seres humanos, que entrará em vigor quando 10 países se tornarem parte. REPRESSÃO ÀS DIFERENÇAS DE OPINIÃO Em muitos lugares por toda a região, diminuiu o espaço para as vozes independentes e para a sociedade civil, pois as liberdades de expressão e de associação continuaram sendo atacadas. Uma restritiva lei na Turquia sobre “difamação do que é turco” amordaçou a expressão pacífica de opiniões divergentes, com um fluxo constante de ações judiciais contra indivíduos das mais variadas tendências políticas. No Uzbequistão, após os confrontos de Andijan, em 2005, em que centenas de pessoas morreram, cada vez menos vozes independentes ou divergentes conseguiram encontrar um meio de expressar sua opinião sem medo de represálias, que se davam por meio de assédio, intimidação e detenção. No Azerbaijão, as autoridades incitaram um clima de impunidade para os ataques físicos aos jornalistas independentes, prenderam outros por acusações questionáveis e assediaram os meios de comunicação independentes através de uma série de medidas administrativas. A repressão à sociedade civil continuou em Belarus, com um aumento no Anistia Internacional - 2007 46 15/5/2007, 17:59 EUROPA E ÁSIA CENTRAL número de ativistas condenados, à medida que entravam em vigor as mudanças legais que limitavam a liberdade de associação. O ataque inequívoco contra qualquer forma de divergência pacífica intensificou-se no Turcomenistão, onde as pessoas perdiam seus empregos ou eram proibidas de viajar para o exterior simplesmente por terem algum tipo de ligação com um dissidente. As autoridades atacavam os defensores dos direitos humanos, chamando suas atividades de “traição” e “espionagem”. Uma nova e controversa legislação na Rússia prejudicou a sociedade civil ao invés de ajudá-la, por dar às autoridades maiores poderes de controle sobre o financiamento e as atividades de organizações não-governamentais russas e estrangeiras. A legislação introduziu regulamentos que poderiam ser aplicados arbitrariamente, continha disposições cruciais sem uma definição legal exata e impunha sanções desproporcionais. Na Chechênia e na região do norte do Cáucaso, na Rússia, pessoas que buscavam justiça sofriam intimidação e ameaças de morte. O assassinato da proeminente ativista e jornalista de direitos humanos Anna Politkovskaya, em outubro, lembrou, de forma arrepiante, os perigos enfrentados por aqueles que, como ela, ousam fazer denúncias. Contudo, apesar das ameaças, das intimidações e das detenções, os defensores dos direitos humanos em toda a região continuaram decididos a levar adiante seu trabalho, inspirando outras pessoas a juntarem-se a eles para realizar mudanças duradouras e obter respeito pelos direitos humanos de todos. 47 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 47 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS ORIENTE MÉDIO E NORTE DA ÁFRICA Os conflitos armados e o legado de conflitos anteriores eclipsaram outros acontecimentos na região do Oriente Médio e no norte da África em 2006. Durante todo o ano, o Iraque seguiu sua marcha inexorável rumo à guerra civil, expondo, cada vez mais, suas antigas divisões políticas, étnicas e religiosas, em meio a uma violência sectária sem trégua. No fim do ano, o país se encontrava num emaranhado de matanças e de outros tipos de violência, provocadas, sobretudo, por grupos sunitas e xiitas, que ameaçavam a estabilidade de toda a região. A longa luta entre israelenses e palestinos nos Territórios Ocupados continuou a causar a morte de muitos civis, apesar do amplo reconhecimento internacional de que o conflito era uma das causas principais de instabilidade política tanto na região, quanto em outros lugares. Essa briga, que há 40 anos não se resolve, entrou em nova fase depois que o partido Hamas, ao ganhar as eleições palestinas em janeiro, venceu o Fatah, partido liderado pelo presidente palestino, Mahmoud Abbas. Os freqüentes ataques aéreos e de artilharia de Israel resultaram, principalmente no segundo semestre do ano, na morte de mais de 650 palestinos, a maioria na faixa de Gaza. Mais palestinos morreram, quase todos também em Gaza, devido às brigas mutuamente destrutivas entre os membros de grupos armados ligados aos partidos rivais Hamas e Fatah. Enquanto isso, as 48 MIOLO_OK.pmd condições sociais e econômicas dos palestinos que vivem sob ocupação israelense continuaram de mal a pior, pois Israel levou adiante a construção de assentamentos e de um muro/cerca de 700 km na Cisjordânia. Além disso, aumentou ou intensificou os bloqueios e as restrições à circulação dos palestinos, e reteve o pagamento de taxas alfandegárias devidas à Autoridade Palestina. O relacionamento conturbado entre Israel e os países árabes descambou para um conflito aberto, no mês de julho, quando um ataque contra soldados israelenses integrantes do braço armado do Hizbollah provocou uma guerra no Líbano que durou 34 dias. Aproximadamente, 1.300 pessoas foram mortas antes que o cessar-fogo, negociado internacionalmente, tivesse efeito em 14 de agosto. Civis de ambos os lados sofreram o maior impacto do conflito, especialmente no Líbano, onde cerca de 1.200 pessoas, incluindo mais de 300 crianças, foram mortas em ataques aéreos e em bombardeios de artilharia israelense. Grande parte da infra-estrutura do Líbano foi destruída ou avariada. Depois que os combates cessaram, os civis, no sul do Líbano, continuaram a ser mortos e mutilados por bombas de fragmentação, pois cerca de quatro milhões desses artefatos haviam sido lançados na área pelas forças de Israel nos últimos dias da guerra. Tanto as forças israelenses como os combatentes do Hizbollah demonstraram um descaso cruel com os Anistia Internacional - 2007 48 15/5/2007, 17:59 ORIENTE MÉDIO E NORTE DA ÁFRICA civis e cometeram graves violações dos direitos humanos e do direito humanitário internacional, inclusive crimes de guerra. As tensões entre o Irã e a comunidade internacional intensificaram-se devido à determinação do governo iraniano de ir adiante com seu programa de enriquecimento nuclear. Em dezembro, o Conselho de Segurança da ONU acordou um programa de sanções contra o Irã. IMPUNIDADE E RESPONSABILIDADE A guerra entre o Hizbollah e Israel foi travada sem que ninguém tivesse que prestar contas do que fez. Quando veio a paz, nenhum dos lados tomou qualquer medida para cobrar responsabilidade daqueles que haviam cometido crimes de guerra e outros graves abusos durante o conflito. Praticamente, não houve pressão da comunidade internacional para que o fizessem. Mas, nada disso surpreendeu, pois, simplesmente, refletia um padrão generalizado de impunidade que continua profundamente arraigado em toda a região do Oriente Médio e do norte da África. Em muitos países, as forças de segurança praticamente tiveram carta-branca para deter, intimidar e torturar adversários políticos e suspeitos criminais. Ao não fazê-las prestar contas, os governos para quem estas forças trabalhavam revelaram sua própria vontade de tolerar ou de consentir com os abusos. Em países como Egito, Jordânia, Síria, Tunísia e Iêmen, os suspeitos políticos e de terrorismo eram julgados em tribunais especiais e militares. Em muitos casos, eram condenados com base em confissões controversas, por juízes que, raramente, mostravam interesse em investigar as alegações de que os réus haviam sido torturados durante a detenção provisória. Estes tribunais tinham a intenção de passar uma aparência de legitimidade, mas os sistemas abusivos dos quais eram parte – baseados na detenção prolongada em regime de incomunicabilidade, na tortura ou em outros maus-tratos e na obtenção de confissões – estavam, fundamentalmente, podres. Condenavam, impunham sentenças longas, inclusive a pena de morte, mas não faziam justiça. A impunidade também foi o lema na Argélia, que, nos anos 90, passou por um conflito interno em que se estima terem morrido 200 mil pessoas. Muitas foram mortas por grupos armados ou pelas forças de segurança do governo, enquanto milhares de outras foram torturadas em custódia ou se tornaram vítimas de desaparecimentos forçados depois de serem detidas. Na maioria dos casos, os indivíduos que cometeram os crimes permaneceram desconhecidos e, em 2006, surgiram mais evidências de que as autoridades argelinas pretendiam que isso continuasse assim mesmo. O governo do presidente Bouteflika decretou medidas de anistia que conferiam imunidade legal aos membros dos grupos armados e às forças de segurança responsáveis por graves abusos, bem como aos seus mentores políticos. Ao mesmo tempo, tornou-se um crime acusar as forças de segurança de violar os direitos humanos, o que significa que as vítimas e sobreviventes dessas violações poderiam ser presas por exigirem justiça. No vizinho Marrocos, o governo continuou a tratar diretamente de 49 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 49 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS algumas das injustiças do passado. O Conselho de Direitos Humanos foi encarregado, pelo rei Mohamed VI, de continuar acompanhando o trabalho inovador realizado anteriormente pela Comissão de Igualdade e Reconciliação, que havia investigado os desaparecimentos forçados e outras graves violações dos direitos humanos cometidos entre 1956 e 1999. O Conselho começou a informar a algumas famílias os resultados de suas investigações. Porém, este progresso foi demasiadamente lento, mesmo em se tratando de um processo que visasse apenas obter e divulgar a verdade e não responsabilizar ou fazer justiça. No Iraque, o ex-presidente Saddam Hussein e sete outros indivíduos foram julgados por violações dos direitos humanos referentes à matança de 148 pessoas, na cidade de Al Dujail, após uma tentativa de assassinato contra Saddam Hussein, em 1982. O julgamento foi anunciado como um exercício de responsabilização e, assim, deveria ter sido. Na prática, porém, foi injusto e prejudicado por interferências políticas. Seu resultado foi uma conclusão predeterminada, e a câmara de apelações do tribunal não passou de um órgão de endosso. Saddam Hussein foi condenado à morte e executado em dezembro. O julgamento havia sido uma oportunidade para começar vida nova no Iraque e para passar a determinar responsabilidades através da Justiça, sem recurso à pena de morte. Foi uma oportunidade espetacularmente desperdiçada. TERROR E TORTURA A tortura e outros maus-tratos continuaram a ser amplamente difundidos em vários países da região, entre os quais Argélia, Egito, Iraque, Irã 50 MIOLO_OK.pmd e Jordânia. Esses abusos também foram relatados no Kuait, na Líbia, no Marrocos, na Arábia Saudita, na Síria, na Tunísia e no Iêmen. Os EUA e alguns de seus aliados europeus ainda se mostravam bem dispostos a colaborar com as autoridades argelinas na “guerra ao terror”, apesar das medidas de anistia vergonhosas da Argélia e de seus péssimos antecedentes em matéria de direitos humanos. O governo britânico fez uma tentativa mal-sucedida de obter um “memorando de entendimento”, como os que havia assinado com o Líbano, a Líbia e a Jordânia, que possibilitava enviar de volta à força, do Reino Unido a estes países, pessoas suspeitas de terrorismo que não haviam sido julgadas, mesmo com o risco de serem torturadas. Estes acordos, baseados não em lei, mas apenas em “garantias diplomáticas” de que as pessoas repatriadas não seriam torturadas ou executadas, eram sintomáticos da vontade dos EUA e de alguns países europeus de participar, ativamente, na erosão de salvaguardas essenciais dos direitos humanos que, anteriormente, eles próprios haviam ajudado a desenvolver e às quais proclamavam aderir há muito tempo. Os principais símbolos desta tendência corrosiva foram o campo de detenção dos EUA na baía de Guantánamo, em Cuba, onde a maioria dos internos provinha da região do Oriente Médio e do norte da África, e as rendições secretas de supostos terroristas pelo governo estadunidense, nas quais foram cúmplices vários governos destas regiões. Pouco a pouco, foram emergindo informações sobre esta tenebrosa conspiração multilateral de detenções e interrogatórios secretos de supostos terroristas e suas transferências Anistia Internacional - 2007 50 15/5/2007, 17:59 ORIENTE MÉDIO E NORTE DA ÁFRICA ilegais de um país para outro, indicando o envolvimento íntimo de órgãos de segurança e serviços secretos egípcios, jordanianos e sírios, entre outros, com a CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA). Três iemenitas, libertados mais de um ano depois de serem devolvidos da custódia dos EUA de volta ao Iêmen, contaram que ficaram presos por muito tempo em locais desconhecidos, como suspeitos na “guerra” que os Estados Unidos fazem contra o “terror”. Outros suspeitos semelhantes foram repatriados para o Kuait, a Líbia, o Marrocos, a Arábia Saudita, o Iêmen e outros países, depois de passarem anos na base de Guantánamo. Alguns foram libertados posteriormente. Entretanto, outros foram acusados de delitos relacionados ao terrorismo nos seus países de origem. No Iraque, a força multinacional comandada pelos EUA continuou a deter milhares de pessoas sem acusação ou julgamento, embora grupos de detentos tenham sido soltos, periodicamente, no decorrer do ano. Após o escândalo da tortura e de outros abusos em Abu Ghraib, em 2004, a maior preocupação era com a situação arriscada das pessoas detidas pela polícia iraquiana e por outras forças de segurança, pois algumas de suas unidades eram constituídas, na sua maioria, por partidários dos grupos armados xiitas. Houve relatos constantes de tortura e de outros maus-tratos aos detentos mantidos por algumas dessas forças; e as autoridades iraquianas não demonstraram muita vontade de investigar ou de tomar providências contra aqueles que abusavam dos prisioneiros. DIREITOS DA MULHER As mulheres continuaram em posição subordinada em toda a região, tanto no aspecto legal e político quanto na prática, pois uma cultura arraigada de discriminação sexual continuou a prevalecer. Contudo, ocorreram alguns avanços que foram encorajadores para o crescente movimento pelos direitos da mulher. No Kuait, as mulheres participaram, pela primeira vez, das eleições nacionais; e, em Bahrein, 18 mulheres se candidataram às eleições para a Câmara dos Representantes, embora só uma tenha sido eleita. O governo marroquino anunciou que retiraria suas reservas à Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e tomou medidas para reforçar a legislação sobre violência doméstica; e Omã acedeu à CEDAW. Na Arábia Saudita, houve certa movimentação em prol da criação de um tribunal especializado para tratar de casos de violência doméstica, apesar de as mulheres continuarem a ter de enfrentar formas de discriminação bastante difundidas, como as severas restrições à sua liberdade de circulação. Estes e outros avanços representaram um passo à frente, embora curto e hesitante, que mostra o quanto ainda precisa ser feito para dar um significado real à noção de direitos da mulher. Os assassinatos “em nome da honra” persistiram na Jordânia, na Autoridade Palestina, no Iraque, na Síria e em outros Estados onde os que cometem estes atos se beneficiam de leis que atenuam seus crimes. Em toda a região, as mulheres não recebiam proteção suficiente contra outros tipos de 51 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 51 15/5/2007, 17:59 ANÁLISES REGIONAIS violência na família. Houve ainda relatos preocupantes sobre o tráfico de mulheres em Omã, Qatar e outros Estados. No Irã, o Conselho dos Guardiães, composto exclusivamente por homens, considerou inelegíveis ao menos 12 mulheres que desejavam se candidatar nas eleições para a importante Assembléia de Peritos. Os manifestantes que pediam o fim da discriminação legal contra as mulheres foram dispersados com violência pelas forças de segurança. Apesar disso, as corajosas ativistas dos direitos da mulher neste país não ficaram nem um pouco desanimadas. Elas lançaram uma campanha para coletar um milhão de assinaturas em apoio à sua exigência de acabar com a discriminação legal. DISCRIMINAÇÃO A discriminação com base na religião, na etnia, na orientação sexual e em outros motivos foi intensa em vários países da região, enquanto o sectarismo religioso no conflito iraquiano fez recrudescer as tensões entre sunitas e xiitas. No Irã, membros das minorias árabe, azerbaijana, curda e baluchi estavam ficando cada vez mais inquietos com a discriminação e com a repressão constantes que tinham de enfrentar, enquanto membros das minorias religiosas baha’í, sufi nimatullah e cristã foram detidos ou hostilizados por causa de sua fé. Os baha’is também sofreram discriminação no Egito, onde se exigia que declarassem ter outra religião a fim de que pudessem obter documentos oficiais, como carteiras de identidade e certidões de nascimento. Na Síria, prosseguiu a discriminação contra a minoria curda, deixando milhares de 52 MIOLO_OK.pmd curdos sírios efetivamente sem Estado e, portanto, sem acesso igual aos direitos sociais e econômicos básicos; enquanto que no Qatar, os casos de cerca de duas mil pessoas privadas de sua nacionalidade nos anos anteriores continuavam sem solução. As autoridades israelenses impuseram ainda mais medidas discriminatórias contra os palestinos que vivem sob a ocupação militar de Israel, inclusive com o reforço do sistema de estradas segregadas e postos de controle, criados em nome dos colonos israelenses residentes nos Territórios Ocupados. REFUGIADOS, SOLICITANTES DE ASILO E IMIGRANTES Não foi surpresa que o conflito no Iraque e a guerra entre o Hizbollah e as forças israelenses tenha causado o deslocamento interno de grandes fluxos de refugiados para os países vizinhos. Tanto em Israel quanto no Líbano, a maioria dos deslocados voltou aos seus vilarejos e seus bairros quando os combates cessaram, embora muitos libaneses que voltaram tenham encontrado suas casas destruídas e seus campos e pomares infestados por bombas de fragmentação não detonadas. No fim do ano, ainda havia cerca de 200 mil libaneses deslocados. A Síria, e também a Jordânia, absorveram a maioria dos refugiados que escaparam da violência no Iraque; há estimativas de que mais de meio milhão de iraquianos tenham se refugiado na Síria até o fim de 2006. No Líbano, cerca de 300 mil refugiados palestinos que, em sua maioria, escaparam dos eventos que envolveram a criação do Estado de Israel e a guerra árabe-israelense de 1948, continuaram a levar uma existência Anistia Internacional - 2007 52 15/5/2007, 17:59 ORIENTE MÉDIO E NORTE DA ÁFRICA precária, sendo tolerados, mas longe de serem plenamente aceitos pelas autoridades libanesas que continuaram a lhes negar certos direitos básicos. No norte da África, refugiados e imigrantes dos países do sul, muitos dos quais buscavam entrar nos países da União Européia, podiam ser detidos e expulsos sumariamente pelas forças de segurança no Marrocos, na Argélia e na Líbia. Houve mais três mortes de imigrantes pelas forças de segurança na cerca fortificada da fronteira entre o Marrocos e o enclave espanhol de Melilla. Até mesmo os refugiados cuja condição era reconhecida foram levados e expulsos pela polícia do Marrocos, quando teriam sido abusados e roubados. Na Líbia, as autoridades anunciaram que as expulsões de imigrantes aumentaram dez vezes em comparação a 2004. No Golfo, e em outros lugares, os trabalhadores imigrantes tiveram seus direitos desrespeitados em situações que combinavam proteção legal inadequada, empregadores exploradores e complacência dos governos. Entretanto, no Kuait, onde houve reclamações sobre o tratamento de cidadãos do sudeste asiático e das Filipinas, uma nova legislação foi introduzida para oferecer certo nível de proteção aos trabalhadores domésticos imigrantes; e, nos Emirados Árabes Unidos, o governo anunciou novas medidas para melhorar as condições de vida e de trabalho destes trabalhadores. Em Omã, o direito dos trabalhadores de formar sindicatos foi estabelecido em lei pela primeira vez, embora os trabalhadores domésticos tenham sido excluídos. PENA DE MORTE Esta forma máxima de pena cruel, desumana e degradante foi aplicada, extensivamente, por quase toda a região, apesar de a Argélia, o Marrocos e a Tunísia terem se abstido de realizar execuções. No Irã, ao menos 177 pessoas foram executadas, incluindo um menor de idade e três outros cujos crimes foram cometidos quando tinham menos de 18 anos. Houve pelo menos 39 execuções na Arábia Saudita, a maioria de estrangeiros. O Bahrein levou a cabo três execuções, as primeiras desde 1996. Neste caso também, os executados eram estrangeiros. A execução de Saddam Hussein, bem no fim do ano, foi especialmente significativa e controversa, devido ao momento escolhido e à maneira grotesca e degradante como foi executado. O sentimento que se difundiu por esta e outras regiões foi de que isso representou apenas a “justiça do vencedor” e um ato de vingança, em vez de determinar responsabilidades e fazer justiça de verdade. DIFERENÇA DE OPINIÃO Os limites para as diferenças de opinião continuaram a ser bastante restritos, na maior parte da região, por governos que não toleram oposição e por outras forças ansiosas para controlar os debates. Na maioria dos países, os meios de comunicação operaram dentro de limites rígidos e sob ameaça de ações criminais, caso insultassem ou ofendessem autoridades ou funcionários do governo. Jornalistas foram processados com base em leis de difamação na Argélia, no Egito e no Marrocos, enquanto no Irã, os jornais continuavam a ser fechados e os jornalistas detidos e agredidos. O Estado também passou a controlar o uso da Internet. Em Bahrein, o governo proibiu diversos sítios; na Síria, as autoridades 53 Anistia Internacional - 2007 MIOLO_OK.pmd 53 15/5/2007, 17:59