A importância da história natural baconiana para a química de R

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A importância da história natural baconiana para a química de R. Boyle e a
filosofia natural de R. Hooke
Profa. Dra. Luciana Zaterka
(Estudos Pós-Graduados em História da Ciência – PUC-SP/CESIMA, FAPESP)
[email protected], 011 8298-5555.
Palavras-chave: Francis Bacon, história natural, Royal Society
Francis Bacon (1561-1626) inspirado pela tradição do maker’s knowledge,
acredita que para conhecermos algo temos que fazê-lo, e que quando fazemos algo é
porque o conhecemos. Neste sentido, o homem deverá operar ou transformar a
natureza por meio de experimentos e isso só será possível se conhecer a causa de um
determinado efeito para ser capaz de produzir este efeito operando sobre sua causa.
Desta maneira, conhecimento e operação são registros inseparáveis e talvez o âmbito
operativo seja tão (ou mais) importante que o âmbito especulativo. Para atingir tal
objetivo, Bacon fornece à história e, especialmente à história natural, um lugar
privilegiado.
De fato, sabemos que a proposta baconiana, pelo menos no seu aspecto
metodológico, só é possível se original e fundamentalmente construirmos uma
história experimental da natureza, ou seja, uma investigação exaustiva de todos os
dados empíricos que se possam observar, coletar e classificar. Assim, todos os
dados, todas as histórias naturais, mesmo as chamadas “curiosidades” ou “raridades”
coletadas pelos diversos pensadores, artesãos, artífices e virtuosos da Royal Society
têm seu lugar garantido neste empreendimento filosófico. Desta maneira, a história
natural possui um lugar privilegiado no empreendimento baconiano: “Pois o
conhecimento é como uma pirâmide, onde a história é a base; assim, na filosofia
natural, a base é a história natural” 1. Mas Bacon não se detém aqui. Além de
1
BACON, Advancement of Learning, in Works, III, p. 356.
afirmar que com relação à filosofia natural a base da pirâmide é a história natural, ou
seja, a acumulação dos fatos e o registro exaustivo dos mais variados assuntos, em
seguida ele acrescenta que a pirâmide estreita-se para a física, e depois para a
metafísica (formas e causas finais), e enfim atinge Deus. Lembremos, ainda, que a
importância da história natural para o empreendimento baconiano pode ser notada
pelo seu Sylva Sylvarum, um livro que é por excelência uma “coleção de coleções” 2.
Os chamados commonplace books – os livros de compilação – fornecem o registro
ou a compilação dos materiais, e que são, o primeiro e fundamental passo do método
baconiano. É por isso que em De dignitate et augmentis scientiarum, ele afirma:
“Dificilmente pode haver qualquer coisa mais útil mesmo para as ciências mais
antigas e populares do que uma ajuda segura para a memória; ou seja, um bom e
instruído Compêndio de Citações... Eu defendo cuidado e trabalho nas entradas das
citações para ser um assunto de grande uso e apoiar o estudo; como que fornecer
material para invenção, e ajustar a visão de julgamento... Mas ainda que seja
verdade que dos métodos e estruturas das citações que até agora tenho visto não há
nenhum de qualquer valor, todos eles carregando em seus títulos meramente a face
de uma escola e não de um mundo, e utilizando divisões vulgares e pedantes, não
tais como penetrar no âmago e coração das coisas” 3. Em outras palavras, devemos
iniciar a busca pelo conhecimento pela sua fundação, ou seja, “preparar uma
História Natural e Experimental, suficiente e boa 4. A pergunta, então, que
poderíamos formular, é como Bacon sugere que se faça a compilação destes dados,
como construir, de fato, uma “boa” História Natural e Experimental da Natureza?
Em Parasceve ad historiam naturalem et experimentalem (1620), ele fornece
uma pista: não devemos seguir os modelos de homens como Teofrasto, Dioscórides
ou Plínio, pois histórias supersticiosas e “simples” descrições de espécies são perda
2
BACON, Sylva Sylvarum, in Works, II, pp. 325-673.
De Dignitate e Augmentis Scientiarum, in Works, IV, p. 435; grifo nosso.
4
No seu Descriptio Globi Intellectualis, Bacon afirma: “A História natural deveria ser a fundação da
filosofia”, compreendendo, como sabemos, a terceira parte da sua Grande Instauração; cf. BACON, Glob.
Intell., BW Works, VI, pp. 108-9; cf. GAUKROGER, S., Francis Bacon and the Transformation of EarlyModern Philosophy, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p. 193.
3
de tempo; devemos sim adotar um método mais “quantitativo”. Neste sentido, tudo
que for relacionado aos corpos e às virtudes da natureza deve ser, tanto quanto
possível, numerado, pesado, medido e definido; neste sentido, Bacon vincula
claramente a história com o método experimental 5. De fato, lembremos que o autor
do Novum Organum afirma que as histórias não podem ser meros catálogos de fatos
empíricos, nem devem se restringir às coisas imediatamente úteis, mas a história
natural deve fornecer luz à descoberta das causas 6. Tal objetivo, segundo ele, só
pode ser atingido se dissecarmos, alterarmos, atormentarmos a natureza por meio de
experimentos, pois assim os homens poderiam se aproximar das causas escondidas
por meio dos efeitos manifestos observados na natureza 7.
Neste sentido, a história natural lida principalmente com os constituintes mais
fundamentais da natureza. E o interessante é que Lorde Verulâmio classifica a
própria natureza em três estados 8: os processos naturais (ou gerações), os monstros
na natureza (ou preter- geração) e a natureza modificada pelo domínio do homem
(ou as artes). Esta última é a natureza confinada, atormentada, modificada por meio
de experimentos humanos. Bacon, então, “anuncia” a relação íntima, fundamental e
constituinte da primeira etapa de seu método – a história natural – com a
experimentação. Em outras palavras, Bacon enfatiza o uso da história natural como
parte constitutiva da nova filosofia experimental seiscentista inglesa.
Com o objetivo de elucidar alguns aspectos desta proposta baconiana,
especialmente o lugar que o pensador atribui à história natural, consideremos então
como esta noção de história natural inspirou alguns dos homens de ciência da Royal
Society, especialmente a química de R. Boyle e a filosofia natural de R. Hooke.
Boyle deixa manifesta sua posição metodológica, de forte inspiração
baconiana, nos seus Advertisements de Experimenta & Observationes Physicae
5
Percebemos que a tradicional dicotomia racionalismo x empirismo esconde de fato questões mais
profundas. Bacon acredita que a experiência deve ser fundante do conhecimento, porém isto não significa
negligenciar o uso da razão, afinal ele é um pensador seiscentista e, portanto racionalista.
6
BACON, F., The Plan of The Work, in Works, IV, pp. 22-33.
7
SARGENT, Rose-Mary, The Diffident Naturalist Robert Boyle and the Philosophy of Experiment,
Chicago/London, The University of Chicago Press, 1995, p. 51.
8
BACON, Preparative Towards a Natural and Experimental History, in Works, IV, p. 253.
(1691): “Vós discernireis depressa que os capítulos seguintes não poderiam ter a
pretensão de ser tratados completos... E de fato não foram planejados senão para
serem memórias sobre os vários assuntos particulares de que tratam, como podem
servir à História Natural sólida que foi nobremente projetada e está sendo ainda
prosseguida pela Royal Society. Portanto, desde então (pelo menos em nossa
época), nenhum escritor que conheço tem tão cedo e tão bem insistido tanto na
necessidade da História Natural, como promovido diversas partes dela por
preceitos e espécimes, como o ilustre Lorde Verulâmio, que não hesitarei no modo
ou maneira de escrever estas minhas curtas coleções, usando freqüentemente
alguma coisa de sua autoridade e exemplos...” 9. Boyle, então, na esteira de Bacon,
acredita que para interpretarmos corretamente o livro da natureza, inicialmente
temos que coletar e registrar os fatos observados. No caso do químico inglês, estas
compilações serviriam como a base mesma na qual as futuras teorias, ou melhor, as
futuras hipóteses, especialmente àquelas que explicariam as qualidades dos corpos
seriam construídas: por exemplo, a história natural poderia fornecer dados para
corroborar sua hipótese corpuscular da matéria. Aqui mais uma vez notamos como a
história natural e a experimentação – além é claro do trabalho cooperativo – são
ferramentas complementares e indispensáveis para o homem atingir o conhecimento
e, portanto, o domínio sobre a natureza. Esta perspectiva é retomada na obra de
Robert Hooke (1635-1703), amigo e colaborador de Boyle. Hooke, nas suas Obras
Póstumas, deixou um manuscrito inacabado, provavelmente de 1667, intitulado A
Method for Improving Natural Philosophy, no qual apóia manifestamente os
preceitos metodológicos baconianos: “Um método que faz uso... destes meios e
auxílios da natureza humana para compilar uma história filosófica; consistindo de
uma descrição exata de todos os tipos de operações naturais e artificiais, ou método
de fazer experimentos e observações para a prossecução e exame de qualquer
questão filosófica... Um método para descrever, registrar, e ampliar estes
9
BOYLE, Robert. The Works of Robert Boyle, ed. Michael Hunter e Edward Davis, London, Pickering &
Chatto, 1999, 14 vols; daqui por diante Hunter e Davis, seguido do volume e página; aqui, vol. 11, p. 373.
particulares assim coletados, como para se tornarem os materiais mais adaptados
para o crescimento de axiomas e aperfeiçoar a filosofia natural” 10. Portanto,
semelhantemente a Bacon, o autor da Micrografia (1665) afirma tanto a necessidade
de uma história filosófica como a necessidade de se fazer experimentos para nos
aproximarmos do conhecimento da obra de Deus. A importância da memória na
obra de Hooke pode ainda ser notada pelo seu grande interesse na publicação de
atlas, em seus relatos de viagens, nas suas paixões por esquemas para caracterizar a
ordem natural e seu cuidado com os diários. Todas estas atividades tinham como
objetivo ordenar sistematicamente os fenômenos naturais e, assim, na base da
filosofia experimental de Hooke, encontra-se a tarefa de colecionar dados para
construir histórias naturais
11
. Nesta perspectiva, parece-nos que tanto para Bacon
como para Boyle e Hooke, para estabelecermos o retrato da natureza temos que nos
aproximar das causas próximas de seus sintomas ou efeitos pelo método a posteriori
– e aqui, sem dúvida, a história natural possui um lugar privilegiado - e não as
causas remotas que dependem intrinsecamente das essências ou formas que para nós
serão sempre desconhecidas.
Bibliografia
1. BACON, Francis, The Works of Francis Bacon. Trad. James Spedding, Robert
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2. BOAS HALL, Marie, Robert Boyle on Natural Philosophy: An Essay with
Selections from His Writings, Bloomington, Indiana University Press, 1965.
3. BOYLE, Robert, The Works of the Honourable Robert Boyle, ed. Thomas Birch.
London, 1772, 6 vols.
4. BOYLE, Robert, The Works of Robert Boyle, ed. Michael Hunter e Edward
Davis, London, Pickering & Chatto, 1999, 14 vols.
10
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Reprint, 1969, p. 7.
11
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(1992), 47-61.
5. DUCHESNEAU, Françoise, L’empirisme de Locke, La Haye, Martinus Nijhoff,
1973.
6. HOOKE, R., The Posthumous Works of Robert Hooke, M.D.S.R.S., London,
1705; New York, Johnson Reprint,1969.
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England, 2005.
8. LOCKE, John, An Essay concerning Human Understanding, ed. Peter Nidditch,
Oxford, Clarendon Press, 1979.
9. LYNCH, T. William, Solomon’s Child – Method in the Early Royal Society of
London, California, Stanford University Press, 2001.
10. MULLINGAN, L., “Robert Hooke’s ‘Memoranda’: Memory and Natural
History”, Annals of Science, 49 (1992), 47-61.
11. PELTONEN, M. (Ed.), The Cambridge Companion to Bacon, Cambridge,
Cambridge University Press, 1996.
12. SARGENT, Rose-Mary, The Diffident Naturalist Robert Boyle and the
Philosophy of Experiment, Chicago/London, The University of Chicago Press, 1995.
13. ZATERKA, Luciana, A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII:
Francis Bacon e Robert Boyle, São Paulo, Humanitas/FAPESP, 2004.
14. ZATERKA, Luciana. “Robert Boyle e o projeto baconiano de ciência: a questão
do salitre”, In: XV Reunión Internacional da Red de Intercámbios para la Historia y la
Epistemologia de las Ciencias Químicas y Biológicas, Buenos Aires, FEPAI, 2005, cd-rom.
15. ZATERKA, Luciana. “Locke, Boyle e a filosofia corpuscular”, AFHIC 2006, no
prelo.
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