1 Desculpas e sociedade - DBD PUC-Rio

Propaganda
1
Desculpas e sociedade
Levando em consideração o fato de que a linguagem incorpora processos
sociais, a visão sociológica das desculpas chama a atenção para o modo como
uma sociedade é regulada e impõe a obrigação de reparo de uma ação danosa às
relações sociais. Como fato social, pedir desculpas por uma infração é uma
contingência das relações sociais, e Tavuchis (1991: p. 2) considera um ato
simbólico enraizado na sociedade com talvez força maior que explicações,
defesas, justificativas ou medidas legais. Admite que suas investigações não
foram sistematizadas tampouco guiadas teoricamente, pois as desculpas são um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610581/CA
componente invisível de um padrão normativo difuso que conforma nossas
expectativas e sensibilidades. O que há de concreto na vida social no contexto das
desculpas é o conhecimento e a legitimidade de uma regra que foi quebrada, a
admissão de culpa e da responsabilidade por essa violação, a expressão de
remorso ou arrependimento acompanhada da preocupação maior de que a
desculpa será aceita (op.cit., p 3). Entretanto há uma aparência de simplicidade no
processo: a) algo acontece; b) algo é dito, praticado, julgado e interpretado como
ofensivo; c) exigem-se desculpas; d) presume-se que sejam aceitas; e e) o ofensor
é perdoado. A vida continua, e mesmo que a memória registre que uma tensão
possa permanecer, passa-se uma esponja (op. cit.: p. 4).
1.1
Contexto histórico e cultural das desculpas
Etimologicamente o termo corresponde em inglês a apology, que era
entendido na Grécia antiga com uma clara distinção entre “desculpar-se” e “pedir
perdão” (BEKERMAN). O termo não constituía um ato verbal per se: era restrito
ao ambiente forense, não pertencendo, portanto, ao contexto social e correspondia
à réplica (apo-logos) do advogado de defesa após a acusação (logos) do promotor
durante num julgamento.
15
Os gregos tinham como princípio um rígido código de honra, e a violação
a esse código não poderia ser reparada por uma expressão verbal, mas por um ato
concreto de compensação, ainda que o ato infracionário não significava a exclusão
do ato verbal que acompanhava o ato da entrega de um bem material em
substituição ao princípio de honra violado.
Tavuchis registra os três primeiros significados partindo da raiz grega
apologia para assentar as bases histórico-semânticas: i) em 1533, no sentido
formal, tinha o sentido de defesa contra uma difamação praticada de forma direta,
indireta ou mesmo potencial contra uma pessoa ou instituição; ii) no aspecto
informal, por volta de 1583, uma explicação ou justificativa por um incidente; iii)
em 1594, evolui para justificativa endereçada a uma pessoa atingida por ofensa
não-intencional, associada ao sentimento de remorso e tomada de consciência pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610581/CA
ofensa praticada.
O moderno sentido do termo corresponde a um ato voluntário de
reconhecer que não há argumentos que justifiquem qualquer ato verbal danoso ao
outro. Oferecer desculpas, não importando seu grau de sinceridade, por outro
lado, é solicitar à parte ofendida o seu aceite às ponderações apresentadas no
sentido de aplacar a ofensa e obter o perdão, (TAVUCHIS: 1991, p. 19)
Blum-Kulka & Oshtain (1987: p. 197) desenvolvem pesquisa transcultural
com falantes nativos em contato com estrangeiros na aquisição de uma segunda
língua numa perspectiva pragmática, nas a variedade de interesses e aplicações
torna difícil a tarefa de traçar uma linha conceitual em função das diferenças entre
culturas. O uso da linguagem em contextos predefinidos varia de uma cultura para
outra, e mesmo de momentos para momentos em atos de fala. De acordo com os
autores, o quadro metodológico fundamenta-se na assunção de que a diversidade
dos atos de fala se processa sob pelo menos três modalidades: a) variabilidade
situacional e intracultural – numa dada cultura, as formas de se dirigir a um
superior tendem a ser em termos menos diretos do que as dirigidas a inferiores na
hierarquia social e vice-versa; b) variabilidade transcultural – no interior de um
mesmo grupo, de uma determinada cultura, os membros podem ser mais ou
menos diretos que os membros de outra cultura; c) variabilidade individual –
numa mesma sociedade, os padrões de fala dependem de variáveis individuais,
tais como, sexo, idade e escolaridade .
16
Se direcionarmos o olhar para o a dimensão social das desculpas no
contato com outras culturas, ressalta-se a variabilidade cultural e situacional de
como se processam as interações sociais, conforme ilustra o relato de Tanaka em
It’s not my fault2 Em Canberra, na Austrália, viveu uma experiência sui generis.
Havia comprado uma luminária de mesa, e em casa percebeu que a lâmpada
estava quebrada. Ao retornar à loja para reclamar, o vendedor não se alterou e
simplesmente balbuciou “I see. Do you want to exchange it?”. O que lhe pareceu
um insulto para os padrões japoneses, que em tal situação se mostrariam
consternados e pediriam sinceras desculpas, motivados pela crença de que o
cliente é intocável e precisa ter todas as expectativas plenamente satisfeitas,
constatou que na Austrália o erro é do consumidor que não percebeu o defeito, e
que ao vendedor culpa alguma deveria ser imputada. Para os japoneses, nessa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610581/CA
circunstância, não se trata de uma responsabilidade pessoal do vendedor, apenas é
o desejo da manutenção de um ambiente de harmonia.
Blum-Kulka & Oshtain (op. cit. p. 196) asseguram ser quase universal o
significado cultural de a desculpa ser uma forma de polidez para se reparar uma
ofensa por uma quebra de normas sociais de convivência. O que difere
culturalmente é quando se deve desculpar, e como; de que contexto deriva a
necessidade de desculpar-se e que formas linguísticas são apropriadas para cada
situação.
Pelos estudos realizados, definem os autores que se percebem diferenças
de padrões dos eventos de fala em função dos elos sociais envolvidos na situação.
Fica evidente, por exemplo, que solicitações dirigidas a superiores hierárquicos
numa determinada cultura apresentam construções linguísticas indiretas, podendo
ser entendidas como mais polidas em outra. No que cabe à diversidade individual,
no interior de uma mesma cultura, deve ser levado em conta que os atos de fala se
submetem a variáveis, tais como idade, sexo ou nível de escolaridade, conforme já
especificado anteriormente.
Após essa breve incursão nas raízes históricas e culturais das desculpas, no
capítulo seguinte serão apresentados os pressupostos teóricos dos atos de fala com
base nos estudos de Searle (1969) e Austin (1975).
2
<www2.warwick.ac.uk/fac/soc/al/.../spencer-oatey>
Download