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CASOS CLÍNICOS
/ SÉRIE DE CASOS
Síndroma de Leriche num Doente Infectado pelo Vih
Sónia Carvalho1, Sandra Tavares1, Paulo Almeida 2, Pedro Sá Pinto2, Fernando Guimarães2
RESUMO
Com a maior sobrevida dos doentes infectados pelo VIH graças à eficácia da terapêutica anti-retrovírica, as complicações a longo prazo, nomeadamente as doenças cardiovasculares têm-se assumido como problema de importância crescente. Para além da doença coronária também a doença arterial periférica parece mais prevalente nos
doentes infectados pelo vírus. Além dos factores de risco tradicionais, a própria infecção pelo VIH bem como a exposição a terapêutica anti-retrovírica têm sido implicadas
na doença aterosclerótica. Os autores descrevem o caso de um jovem infectado pelo VIH, sem experiência prévia de tratamento, com exuberante doença aterosclerótica
aortoilíaca configurando a síndroma de Leriche.
PALAVRAS-CHAVE: Síndroma de Leriche; infecção pelo VIH
LERICHE SYNDROME IN AN HIV-INFECTED PATIENT
ABSTRACT
The survival of HIV infected patients has significantly increased due to highly effective antiretroviral therapy, and long term complications, namely cardiovascular
diseases, became an increasing health problem. Besides coronary heart disease, peripheral arterial disease seems also more prevalent in patients infected by this virus. In addition to traditional risk factors, HIV infection and antiretroviral therapy exposure have been associated with atherosclerotic disease. The authors report
the case of an HIV-infected young adult patient, previously not treated, with open aortoiliac atherosclerotic disease (Leriche’s syndrome).
KEY-WORDS: Leriche´s syndrome; HIV infection
INTRODUÇÃO
Foi demonstrada uma elevada prevalência de doença
coronária nos doentes infectados pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), que se torna um problema de importância crescente, com a maior sobrevida proporcionada pela terapêutica anti-retrovírica.1,2
A doença coronária nestes pacientes relaciona-se com
factores de risco tradicionais, possíveis efeitos do vírus,
e alterações metabólicas produzidas pela terapêutica
anti-retrovírica, em especial os inibidores da protease
(IP).3 O panorama está menos bem estudado no que
toca à doença arterial periférica (DAP), mas vários estudos têm mostrado que a prevalência de aterosclerose nos doentes infectados pelo VIH pode ser superior
à dos doentes com características semelhantes não
infectados.4
A Síndroma de Leriche, devida à oclusão arterial
aortoiliaca, caracteriza-se por claudicação dos glúteos,
coxas e região gemelar, estando frequentemente associada a impotência sexual masculina.5
CASO CLÍNICO
Um homem de 40 anos dependente de heroína por
via intravenosa nos últimos seis anos foi referenciado em 2006 à Consulta de Medicina Interna do
Hospital de Vila Real por infecção pelo VIH tipo
1. Apresentava também infecção crónica pelo Vírus
da Hepatite C e tabagismo (40 unidades maçoano). Negava hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia. Referia dor na região lombo-sagrada, dor e
diminuição de força nos membros inferiores e parestesias na região perineal, que se acentuavam com
a marcha. Negava febre ou sudorese, mas tinha ano-
rexia, astenia e perda de peso há alguns meses (não
quantificada). Ao exame físico, apresentava-se emagrecido, com peso 55 Kg, altura 1.70 m; os sinais
vitais eram normais (TA membro superior: 135/80
mmHg; TA membro inferior: 130/80 mmHg;
Fc: 80 bpm); na pele dos membros superiores e inferiores tinha sequelas de cauterização de trajectos
venosos relacionadas com o uso de drogas por via
injectável; não apresentava adenopatias; a auscultação cardíaca e pulmonar era normal; o abdómen
era normal à palpação e sem sopros à auscultação;
no exame neurológico observava-se hipoestesia nos
membros inferiores e no períneo; não apresentava
fasciculações nem atrofia muscular. Admitiu-se a
possibilidade de síndrome da cauda equina e foram
solicitadas electromiografia (EMG), radiografias da
coluna e Ressonância magnética nuclear (RMN)
da espinal medula.
As análises de sangue não revelaram alterações
do hemograma, coagulação e bioquímica, salvo
discreta elevação das transaminases (AST: 45U/L,
[normal entre 12-28 U/L]; ALT: 55U/L, [normal
entre 7-41 U/L] e da aldolase (9,0 U/L, [normal
entre1,5-8,1 U/L]; a velocidade de sedimentação
(VS) era 35 mm (normal <15 mm); a contagem de
linfócitos T CD4+ era 443/mm3 e a carga vírica do
VIH era igual a 105.000 cópias RNA/ml. A EMG
mostrou alterações sugestivas de polineuropatia
sensitivo-motora. O doente não realizou os outros
exames solicitados e faltou subsequentemente a repetidas convocatórias. Foi reavaliado mais de dois
anos depois (2008), altura em que foi admitido no
hospital por infecção respiratória e emagrecimento.
Estava integrado num programa de substituição de
opiáceos por metadona. Analiticamente apresentava hemoglobina 10.2 g/dl, leucócitos 2.700/mm3
1 . Centro Hospitalar de
Trás-os-Montes e Alto Douro –
Hospital de Vila Real
2 . Hospital Geral de Santo
António
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(neutrófilos 55%, linfócitos 33%, monócitos 9.6%),
plaquetas 238.000/mm3 (150.000-450.000/mm3)
e a VS de 80 mm (<15 mm). Nessa altura a contagem de CD4+ era 128/mm3 e a carga vírica do VIH
282.000 cópias/ml. O colesterol total era de 186
mg/dl ( < 200 mg/dl), as fracções HDL e LDL respectivamente 25.3 mg/dl (>40 mg/dl) e 89.1 mg/
dl (<100 mg/dl), e os triglicerídeos 358 mg/dl (<150
mg/dl). Do ponto de vista respiratório o doente melhorou rapidamente com amoxicilina / ácido clavulânico. Excluiu-se tuberculose. Iniciou-se terapêutica anti-retrovírica combinada com zidovudina,
lamivudina e nevirapina. Em avaliação posterior o
doente referiu a persistência de dor ao nível da região
pélvica e glútea, associada a parestesias e disestesias
na região perineal, com sensação “como se fosse de
borracha”, sic e com cerca de dois anos de evolução.
Apresentava nesta altura claudicação intermitente
para distâncias inferiores a 50 m. Quando questionado o doente admitiu que tinha impotência sexual
há cerca de três anos. Na avaliação clínica dos pulsos
arteriais periféricos constatou-se que as artérias femorais eram como “tubos” rígidos sem pulsatilidade, e os pulsos distais eram dificilmente palpáveis,
embora não apresentasse sinais de isquemia.
A tomografia axial computorizada (TAC) abdominopélvica contrastada mostrou extensas calcificações ateromatosas da aorta infra-renal e da porção
proximal das ilíacas, invulgares no grupo etário,
sugestivas de estenose aórtica significativa (Fig.1 e 2).
Estes achados foram confirmados por Ecodoppler,
que mostrou alterações sugestivas de oclusão da aorta abdominal e a presença de circulação colateral.
Na sua porção distal as artérias ilíacas apresentavam
permeabilidade, tal como as artérias femorais comuns, superficiais e profundas e poplíteas, embora com fluxo de tipo parvus tardus com acentuada
diminuição da amplitude da velocidade do pico
sistólico.
O doente foi medicado com clopidogrel e pentoxifilina, além de manter a terapêutica combinada de
zidovudina, lamivudina e nevirapina e a profilaxia
de infecções oportunistas com cotrimoxazol. Foi
prontamente referenciado à consulta de Cirurgia
Vascular do hospital central de referência, onde foi
submetido a revascularização aorto-bifemoral com
prótese de Dacron após realização de aortografia
que mostrou doença aórtica oclusiva justa-renal
com reabilitação femoral bilateral, e ainda oclusão
da artéria mesentérica inferior. O pós-operatório
decorreu sem complicações e o paciente teve notável recuperação da sua sintomatologia, apenas
persistindo certo grau de disfunção eréctil. Teve
alta medicado com a mesma terapêutica de ambulatório.
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Infelizmente, revelou sempre má adesão à consulta
e à terapêutica anti-retrovírica e abandonou seguimento. Nota: Já na preparação deste manuscrito,
esteve internado no nosso hospital por pneumonia
por Pneumocystis jiroveci, que evoluiu favoravelmente. Apresentava candidíase oral e a contagem de
CD4+ era de apenas 33 /mm3. Do ponto de vista
vascular encontrava-se assintomático. Foi medicado
com tenofovir, emtricitabina, efavirenz e cotrimoxazol. Compareceu a consulta programada
DISCUSSÃO
Com a introdução da terapêutica anti-retrovírica
de alta eficácia (HAART) diminuíram de forma
drástica a mortalidade e a morbilidade associadas
às infecções oportunistas, permitindo a muitos doentes uma sobrevida longa e melhor qualidade de
vida.2 Como contraponto, tem-se assistido a uma
prevalência crescente de doenças cardiovasculares
nesta população.1-3 Embora se admita haver alguma
participação do vírus em si na patogénese da aterosclerose, esta tem sido relacionada sobretudo com
factores de risco tradicionais e uma complexa rede
de alterações metabólicas produzidas pela própria
terapêutica anti-retrovírica, em especial por regimes
baseados em inibidores da protease.6-11
A doença arterial periférica (DAP) parece ter prevalência aumentada nos doentes infectados pelo
VIH relativamente a doentes de grupos de controlo, o que tem sido posto em evidência com estudos
de aterosclerose subclínica avaliada pela medição
ultrassonográfica da espessura das camadas íntima e média (IM) da carótida.7,12,13,14,15,16 Embora
alguns estudos tenham mostrado uma maior progressão da doença arterial em doentes infectados
pelo VIH relativamente a um grupo de controlo14,17, outros não o confirmaram.18,19 Um trabalho
desenhado para minimizar vieses relacionados
com factores de risco tradicionais não encontrou
diferenças em ambos os grupos ao fim de quase
três anos.18 Contudo, noutro estudo recente em doentes infectados pelo VIH que utilizou como método de detecção de DAP o índice de pressão arterial
tornozelo-braço (Ankle-Brachial blood pressure
Index, ABI), previamente validado, constatou-se
uma prevalência de DAP de 20.7%, elevada comparativamente com a prevalência na população geral que ronda os 3% aos 60 anos.17 Nesta coorte de
92 doentes, com mediana de 49.5 anos de idade,
os autores consideraram haver doença arterial se o
ABI em repouso fosse <0.90 ou se após o exercício
mostrasse uma redução de pelo menos 25%. Todos
os doentes que cumpriam um destes critérios foram
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Figura 1: Corte axial de TAC abdominal com contraste digestivo
Figura 2: Corte axial de TAC abdominal com contraste digestivo
posteriormente submetidos a estudo por Duplex
scan (ultrassonografia que permite obtenção de imagem artificial colorida do fluxo sanguíneo) da aorta
abdominal e artérias dos membros inferiores, para
confirmar e localizar as lesões. Constatou-se que
todos os doentes com ABI em repouso <0,90 o Duplex scan mostrou doença aterosclerótica das artérias
ilíacas e femorais.17 Alta prevalência de aterosclerose
subclínica foi também demonstrada noutro ensaio,
que estudou, através da medição ultrassonográfica
da espessura das camadas IM da carótida, o papel
da HAART em infectados pelo VIH estratificados segundo os critérios de Framingham por
grupos de risco cardiovascular muito baixo, baixo, e moderado a alto.20 Observou-se aterosclerose
carotídea subclínica em 26.6%, 35.3% e 76.5%,
respectivamente. A exposição à HAART foi um
factor predictivo independente de aterosclerose carotídea em todos os grupos.20
Admite-se que a infecção pelo VIH per se possa ter
alguns efeitos na patogénese da aterosclerose, resultando em disfunção endotelial. Um estudo muito
recente comparando a espessura IM da carótida de
um grupo de indivíduos infectados pelo VIH nãoprogressores de tipo elite (imunidade preservada e
cargas víricas espontaneamente baixas, mesmo indetectáveis) com a de um grupo de pessoas não infectadas e de resto sem outras diferenças, nomeadamente quanto a factores de risco vascular, mostrou
um aumento significativo no primeiro grupo. Este
achado leva a concluir que existe responsabilidade
da própria infecção no processo aterosclerótico.21
Já antes foi demonstrado que doentes não tratados
apresentam aumento dos marcadores de activação
endotelial, como moléculas de adesão intercelular
(ICAM-1) ou vascular (VCAM-1) e o factor de
Von Willebrand, e que os níveis destes marcadores
diminuem com a instituição da terapêutica antiretrovírica.22 Por outro lado, existe evidência de que
a proteína Tat do VIH pode promover a secreção
pelos monócitos de uma proteína quimioatractiva
(MCP-1), que desempenha um papel importante
no desenvolvimento da aterosclerose.23,24
Para lá destes aspectos específicos, tal como na
população em geral, também nos pacientes infectados pelo VIH a prevalência de DAP, evidenciada através da medição da espessura das camadas
íntima e média da carótida, é maior em presença
dos factores de risco tradicionais, como a idade, a
relação aumentada do perímetro cintura-anca, o
tabagismo, a hipertensão, a hipercolesterolemia e o
consumo do álcool.25
e endovenoso observando-se aorta infra-renal
completamente preenchida por placa de cálcio (seta).
e endovenoso observando-se aorta infra-renal com placa
cálcica circular e lúmen trombosado (seta).
CONCLUSÃO
Casos de Síndrome de Leriche têm sido descritos
em doentes infectados pelo VIH, em geral já em
tratamento anti-retrovírico.5,26 O nosso caso constitui um exemplo de doença arterial grave e prematura num doente jovem com infecção pelo VIH e sem
experiência prévia quanto a terapêutica anti-retrovírica. Poderão ter contribuído para a sua ateromatose
oclusiva, a elevada carga tabágica e a dislipidemia,
além da própria infecção pelo VIH.
A Síndroma de Leriche, devida à oclusão arterial
aortoilíiaca, caracteriza-se por claudicação dos glúteos, coxas e região gemelar, estando frequentemente
associada a impotência sexual masculina.5
O caso que descrevemos ilustra a importância de
uma história clíinica detalhada e de um exame físico
adequado (no qual se destaca a avaliação dos pulsos
periféricos) para o reconhecimento pronto de uma
grave doença arterial. Enfatizamos ainda a utilidade
de métodos complementares não invasivos, como o
ecodoppler, para o diagnóstico precoce de doença
aterosclerótica, nomeadamente em indivíduos com
infecção pelo VIH.
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Correspondência:
Sandra Tavares
Centro Hospitalar Trás-os-Montes e Alto Douro
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5000- Vila Real
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