OS PROFISSIONAIS DA ÁREA DE SAÚDE QUE EXERCEM ATIVIDADES INSALUBRES TAMBÉM SÃO DETENTORES DO DIREITO DE ACUMULAREM CARGO PÚBLICO Introdução a) O direito ao trabalho É notório que o profissional que atua na área de saúde é submetido a condições extremas, seja por encarar o estado emocional precário do paciente e daqueles que o acompanham, seja por estar exposto a ambientes nocivos, os quais podem causar efeitos deletérios à sua saúde. Desta forma, a jornada de trabalho que estes profissionais exercem tem caráter especial. Além disso, percebem adicionais remuneratórios que objetivam ressarcir os possíveis prejuízos físicos, que, por ventura, possam ocorrer. Mesmo diante desses aspectos, da legislação específica que limita a carga horária máxima semanal que cada profissional de saúde pode exercer, e do ambiente insalubre, acabam realizando mais jornadas de trabalho em outras instituições. Os motivos são diversos, decorrente, por exemplo, da falta de profissionais qualificados, até questões subjetivas, como auferir mais renda. Uma indagação surge: esse profissional pode realizar mais jornadas de trabalho, tendo em vista sua jornada ser reduzida devido aos riscos do ambiente? E ainda, se tal jornada pode ser realizada, ou seja, se é decretada como legal, pode o profissional de saúde acumular dois (2) cargos públicos? Esta é uma resposta com muitas ressalvas, haja vista compreender diversas matérias, seja sob a égide do Direito Administrativo como do Direito do Trabalho. Apura-se na jurisprudência brasileira, manifestação da Justiça Comum, Estadual e Federal, diversa da Justiça do Trabalho, o que demonstra o quão tormentosa é a questão. Vejamos. A Constituição Federal, promulgada em 05/10/1988, comumente definida como Constituição Cidadã, trouxe uma amplitude ao denominado Direitos Fundamentais, insculpindo em seus dispositivos direitos alicerçados por princípios humanitários. Notadamente, tais direitos são essenciais para a formação de uma sociedade mais justa e solidária, pois como Carta Magna dispõe: o Estado brasileiro tem por objetivo assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça1... No rol dos direitos sociais abarcados pela Carta Maior, encontramse assegurados direitos como à saúde, à alimentação e ao trabalho, por exemplo. O direito ao trabalho, segundo PEDRO LENZA2, se trata de importante instrumento para implementar e assegurar a todos uma existência digna, conforme estabelece o art. 170, caput. O Estado deve fomentar uma política econômica não recessiva, tanto que, dentre os princípios da ordem econômica, destaca-se a busca do pleno emprego. Portanto, o trabalho é algo essencial para o homem, seja na esfera econômica, social ou biológica, pois se assenta como um dos pilares da evolução humana. Assim, a luz da razoabilidade, nenhum homem pode ter cerceado seu direito ao trabalho por se 1 Constituição da República Federativa do Brasil, de 05/10/1988. – Preâmbulo. 2 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 15ª Ed. – Editora Saraiva. 2011 1 tratar como um dos pressupostos da dignidade da pessoa humana. Deve-se lembrar que o significado do emprego, bem como as conseqüências em que sua perda pode causar na vida de uma pessoa e da sua família, pois por meio dele chefes de família, homens ou mulheres, criam condições para subsistência tanto de si como de sua prole. b) A diferença entre trabalhadores públicos e privados GUIMARÃES3 DEOCLECIANO define trabalhador como pessoa que presta serviço a empregador, mediante salário que esse lhe paga pela prestação, em caráter permanente, se serviços de seu ofício, ou aquele que emprega sua energia física ou intelectual na produção de um trabalho útil. Tais serviços podem ser exercidos para empregadores ou empresas cujo capital é formado por particulares, iniciativa privada, ou de origem estatal, denominados serviços públicos. Desta forma, os trabalhadores podem ser classificados com públicos, onde recebem a denominação de agentes públicos e privados, denominados empregados ou funcionários. A CF/88, em seu art. 37, inc. I e II dispõem as regras para o exercício de funções públicas, tendo como ponto fulcral a aprovação em concurso público e condições para exercer a respectiva função, nos termos da lei. Ressalta-se que a administração pública, de acordo com DI PIETRO4, é gerida por órgãos definidos como uma unidade que congrega atribuições exercidas pelos agentes públicos que o integram com o objetivo de expressar a vontade do Estado. Assim a 3 GUIMARAES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico, 9ª Ed. – Editora Rideel. 2007 4 DI PIETRO, Maria Sílvia Zanella – Direito Administrativo. 15ª Ed. – Editora Atlas. 2003 administração pública é distinguida como entidades da administração direta, constituída pelas entidades federativas e entidades da administração indireta, constituída por autarquias, fundações governamentais e empresas estatais. Destarte, todas as pessoas físicas incumbidas, de maneira definitiva ou transitória, cujo exercício tem alguma função estatal são definidas como agentes públicos (HELY LOPES 5 MEIRELLES ). Portanto, os agentes podem ser classificados em: agentes políticos, os quais exercem atividades tipicamente governamentais, e servidores públicos, que, segundo BANDEIRA DE MELLO6, abarca todos aqueles que entretêm com o Estado e suas entidades da Administração indireta, independentemente de sua natureza pública ou privada (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedade de economia mista) relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual sob vínculo de dependência. As espécies abrangidas pela denominação servidor estatal são: 1. Servidores estatutários, submetidos ao regime estatutário, ou seja, declarado por lei, e, portanto, titulares de cargos públicos; 2. Empregados públicos, contratados sob regime trabalhista (CLT) e ocupantes de emprego público; e 3. Servidores temporários, contratados em caráter especial, temporário, para atender à necessidade especificam e excepcional do interesse público. c) A definição dos trabalhadores que exercem atividades na área de saúde O profissional da área de saúde atua em prol da vida. Sendo assim necessita de conhecimentos específicos, obtidos através de cursos técnicos e de 5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª Ed. – Editora Malheiros. 2002 6 BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo - Ed. Malheiros. 2003 2 graduação, tendo como alicerce as ciências médicas. Tal ramo profissional compreende não somente os médicos, mas também enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, fonoaudiólogos, dentistas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, biomédicos, farmacêuticos, entre outros. Devido à grande atenção dada à saúde, é de se observar que o médico não é o único profissional que tem competência e responsabilidade em cuidar da saúde dos pacientes. Sua responsabilidade é enorme, haja vista que a maioria dos procedimentos realizados nestes fica sob a ordem e tutela daquele. Contudo, como visto o médico não atua só, haja vista que diversos procedimentos são realizados por profissionais que atuam concorrentemente a ele (art.XVII, Capítulo I, do Código de Ética Médica)7, resultando na formação do que se denomina equipe multidisciplinar. Dentre estas profissões que promovem à saúde, tratam e recuperam pacientes, há particularidades, pois cada profissional exerce sua atividade de forma individualizada, porém sincrônica com o médico. As principais profissões não médicas ou paramédicas de nível superior no Brasil, consideradas profissões de saúde são: enfermeiros, fisioterapeutas, biomédicos, biólogos, farmacêuticos, nutricionistas. Porém, nota-se que a forma de atuação e leque de serviços prestados por esses profissionais variam ao longo da história e das definições da política nacional de saúde. As profissões de nível médio no Brasil começaram a ser reconhecidas como profissões a partir da Constituição de 1937 com vistas à produção industrial. Considera-se o técnico industrial uma das primeiras 7 Resolução CFM N. 1.931, de 17/09/2009. profissões e modelo para as profissões de nível médio. O Decreto-lei N. 20.931/1932 regulamentou, à época, o exercício da medicina, odontologia e veterinária e das profissões de farmacêutico, enfermeiro. Além de parteira, optometristas, práticos de farmácia, massagistas e duchistas (profissionais das casas de banho) cujos aprendizados e habilitação correspondiam ao técnico de nível médio e elementar somente regulamentado a partir de 1937. Segundo OLIVEIRA8, a questão da formação dos agentes de nível médio e elementar no Brasil, após a Constituição de 1937, só veio ser regulamentada a partir de 1971, através da Reforma do Ensino de 1º e 2º graus, consideradas respectivamente como habilitação plena e parcial. d) A jornada de trabalho dos profissionais de saúde e os riscos da profissão Entende-se por jornada laboral aquela em que o empregado fica submetido à disposição do trabalhador, sob sua ordem a um determinado período legalmente regulado. A legislação brasileira acolhe, segundo AMAURI MASCARO9, a teoria restritiva do tempo efetivamente trabalhado, o tempo em que o empregado permanece, mesmo sem trabalhar, à disposição do empregador e quando, em casos especiais, manda computar como de jornada de trabalho o tempo em que o empregado se locomove para atingir o local de trabalho. 8 OLIVEIRA, TELMA D.T. A capacitação para o trabalho dos agentes auxiliares de saúde de nível médio e elementar na Bahia. Ba, UFBA, FAMED, Mestrado em Saúde Comunitária, Dissert. Mestrado, 1988. 9 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 24ª Ed. – Editora Saraiva. 2009 3 Diante disso, observa-se que o regime laboral dos profissionais de saúde é regulado por legislação específica a cada profissão, tendo em vista o relevante fato de atuarem em ambientes nocivos, definidos como insalubres ou periculosos. Atividades insalubres são aquelas que, por sua natureza, condição ou método de trabalho, expõem os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos, a teor do art.189 da CLT (AMAURI MASCARO10). Neste esteio, o respectivo autor define como periculoso a prestação de serviços em contato permanente com inflamáveis em condições de risco acentuado, estendidos para atividades com explosivos (CLT, art. 193), energia elétrica (Lei N. 7.369/85) e radiações ionizantes (Portaria do então Ministério do Trabalho N. 518/2003). Fato é que grande parte dos profissionais desta área realizam duplas jornadas de trabalho, tanto em instituições públicas como privadas. Tal situação é vivenciada devido ao fato do regime da jornada de trabalho ser reduzido. O motivo que levam esses profissionais a se submeterem a essa maratona laboral são diversos. Pode se citar, por exemplo, a elevação de renda, objetivando proporcionar mais conforto a sua família, ou ainda, a falta de profissionais qualificados. Mas o que evidentemente propícia tal prática é o simples fato de não haver em nosso ordenamento jurídico a vedação à outra jornada de trabalho, apenas o limite que a jornada deve ser realizada. Logo, pode-se deduzir, através do princípio da legalidade, que tudo aquilo que a lei não proíbe, permite. Portanto, não resta dúvida que por todos os fatores apresentados, bem como pela própria 10 Ibidem. Pg. 1104. necessidade de mão de obra especializada, o profissional da área de saúde tem o direito de realizar uma segunda jornada de trabalho, devendo, tanto o empregador como o próprio empregado, sopesar os riscos advindos de tal prática. e) O profissional de saúde e a cumulatividade de cargos públicos Conforme dispõe o art. 37 da CF/88, inc. XVI: “é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observando em qualquer caso o disposto no inc. XI”. Depreende-se do dispositivo que a cumulação de cargos públicos não é permitida pela legislação brasileira, entretanto, consta no referido artigo, exceções em que pode ocorrer tal acúmulo. As alíneas a, b e c formam o rol que contemplam as profissões excluídas da vedação. A alínea c11, que é o fulcro deste estudo, permite o acúmulo de dois (2) cargos públicos aos profissionais privativos da área de saúde, com profissões regulamentadas. Observa-se que para acumular cargo público a jornada de trabalho não é pressuposto. Assim, tal fator não obsta o direito do agente público que exerce profissão regulamenta na área de saúde, acumular mais um emprego público. 11 Art. 37- A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: Inc.XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observando em qualquer caso o disposto no inciso XI: c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. 4 Conclusão A nosso ver, não resta dúvida que os profissionais de saúde, que em sua maioria, são submetidos à legislação específica, a qual regulamenta a profissão, podem acumular até dois cargos públicos, independentemente de qualquer âmbito (Federal, Estadual ou Municipal), devendo apenas ser considerado, para tanto, três (3) pressupostos essenciais: 1- Ser profissional da área de saúde com profissão regulamentada; 2- Ter sido aprovado em concurso público, obedecidas às especificações legais; 3- Não haver incompatibilidade de horários, ou seja, os horários não podem se interpolarem ou coincidirem, bem como a soma das duas remunerações não exceder o teto do funcionalismo público, art.37, inc. XI12. Para ilustrar tal assertiva, o Nobre Des. Rui Stoco assevera, “a Carta Magna, por força da regra geral esculpida no art.37, inc.XVI, e, que tem caráter geral e universal, não proíbe a 12 Art. 37, inc. XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como li-mite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o sub-sídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tri-bunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos; cumulação remunerada de dois cargos privativos de médico ou de outros profissionais de saúde com profissões regulamentadas, (...) desde que obedecida à única condição exigida, ou seja, de haver compatibilidade de horários13” REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Vade Mecum. Editora Saraiva. 2011; 2. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 15ª Ed. – Editora Saraiva. 2011; 3. GUIMARAES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico, 9ª Ed. – Editora Rideel. 2007; 4. DI PIETRO, Maria Sílvia Zanella – Direito Administrativo. 15ª Ed. – Editora Atlas. 2003; 5. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª Ed. – Editora Malheiros. 2002; 6. BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo - Ed. Malheiros. 2003; 7. OLIVEIRA, TELMA D.T. A capacitação para o trabalho dos agentes auxiliares de saúde de nível médio e elementar na Bahia. Ba, UFBA, FAMED, Mestrado em Saúde Comunitária, Dissert. Mestrado, 1988; 8. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 24ª Ed. – Editora Saraiva. 2009; Do Autor: Edison Ferreira Magalhães Jr. Graduando em Direito (10º Semestre) pelo Centro Universitário FIEO – UNIFIEO; Técnico em radiologia do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo – USP. 13 TJSP, AC DIR.PÚBLICO 143.517-5/1-00, 3ª CAM. 5