Olimpíadas: corpos divinos dançam? Angela Lângaro Becker Neste ano de Olimpíadas e Paraolimpíadas, corpos e seus movimentos centralizam nossos olhares admirados. Seres humanos ganham status divinos, como na origem das Olimpíadas da Grécia Antiga, em que os jogos olímpicos aconteciam no santuário de Zeus e seu nome decorria do Monte Olimpo, residência das divindades. Um dos grandes objetivos das Olimpíadas na Antiguidade era a união das cidades-estados. As pessoas viajavam de vários pontos do Mundo Grego para participar ou assistir aos Jogos, inspirados pelo sentimento de pertencerem à mesma cultura ou religião. No espaço de tempo em que duravam as Olimpíadas havia a Trégua Sagrada. Mensageiros iam de cidade em cidade para anunciar as datas das competições e comunicar a proibição das guerras, possibilitando que a paz e a segurança fossem garantidas neste período. A beleza das habilidades performáticas aproxima o corpo humano do que não é palpável, do divino, do que é espiritual no corpo. O movimento de superar os limites de um corpo real produz a proximidade com a imortalidade. A sensação se dá como se estar vivo não dependesse nem das leis sociais, nem das necessidades de trabalho, nem do transcorrer do tempo e muito menos da inevitabilidade da morte. Esse deslumbramento nos faz enxergar os deuses nos próprios homens, como na mitologia grega. Assim se produz nas olimpíadas uma certa mimesis entre divindade e humanidade que glorifica a vida imortal. Contemplar a imortalidade é o que sustenta o encantamento dos espetáculos olímpicos. Apolo é o inspirador dos Jogos Olimpicos, exaltando a disciplina do corpo de uma forma hegemônica, buscando nele a exatidão, a perfeição e a beleza. Para isso, é preciso quantificar de forma padronizada com medidas e pesos supostamente proporcionais e simétricos, desempenhos individuais de diferentes atletas, advindos de diferentes culturas. É uma aposta idealizada na educação disciplinar do corpo, na direção de um modelo único de juventude, força e forma. Mas o que agrada Apolo, deus da perfeição e da razão, não agradaria a Dionísio, deus do imprevisível e do irracional. Dionísio promove os festivais de dança, cujas coreografias revelam o modo de ser de cada povo a partir de seu contexto histórico e cultural. O dançar de cada cultura revela a intensidade de suas diferentes interpretações do mundo, suas vivências, seus sentimentos. É no dançar que podem ser reconhecidas as diversidades subjetivas. Na beleza das Olimpíadas, se pode compartilhar o encantamento dos corpos divinos padronizados e ainda usufruir de uma espécie de “Trégua Sagrada”, período em que deixamos de lado pensamentos bélicos em relação a nossos problemas sociais. Mas, junto com Dionísio, na defesa do irracional do corpo, ressalto aqui a importância do dançar. O filósofo e crítico de arte Georges Didi-Hubermann afirma que se conhece um povo, pela sua maneira de dançar, pois a dança e a musica não são isoladas das circunstancias antropológicas. Ele nos diz que a palavra falada é a pátria da razão, enquanto o gesto e a dança são a pátria do sentimento. Por isso dançar não é isolável de nenhum momento humano. Mesmo a morte se dança na coreografia do lamento dos vivos, como nos desenhos de movimentos encontrados nas paredes dos sarcófagos. Porque a gente dança? Quase sempre para estar junto, para sentir junto. Somos vários e diferentes, mas juntos. Festas rituais, satisfações esperadas, procissões fúnebres, orações dançadas, seja qual for o ritual de passagem, o importante é fazer massa e comemorar num passo comum. Na dança, a estética não é racional, é sensorial. Sua forma não é dada por um modelo de corpo perfeito, ao contrário, a dança repensa e reinventa o corpo. A dança é povoada de sonhos, de imagens, de fantasmas, de memória. Talvez por isso os estados não se ocupem em promovê-las como fazem com as olimpíadas. Estas não revelam histórias, são impessoais, apesar das histórias reais escondidas no esforço de cada atleta que dá sua vida para alcançar o modelo ideal, sempre inatingível. Para humanizar o corpo, é preciso ver algo de divino nele, mas se o mimetizamos com os deuses, padecem com o silêncio. Somente o corpo humano com seus enigmas pode falar de si, mesmo que esta linguagem não use palavras. É o acontecimento narrado pela dança que faz o movimento do bailarino. Seu corpo é suporte para os fantasmas daquela história. Foi dentro deste espírito dionisíaco que pude debater a respeito do filme Tango de Carlos Saura(1988), no ultimo seminário “O Divã e a Tela” a convite de Robson Pereira e Enéas de Souza. “O tango é um pensamento triste que se pode dançar” diz Jorge Luis Borges num poema intitulado “Dança Canalha”. Suas origens remetem a prostíbulos, velhos estábulos, arenas de galos de rinha, partidas de “jogo do osso”, pátios de terra batida e bailes de domingo. Dançado em duplas masculinas, ficou marcado por uma coreografia combativa e desafiadora. Também sensual quando retratava o espírito dos bordéis, suas ousadias eróticas. Só mais tarde, a música tocada por violão, flauta e violino agregou o bandoneón, através dos imigrantes alemães e italianos. Suas primeiras letras faziam jus ao seu local de origem, descrevendo situações libidinosas sobre os prostíbulos e as meretrizes. As pessoas de boa índole tinham aversão ao tango, até este ser levado pelos imigrantes a Paris. Desde então, ganhou estilos de dança de salão, mas dizem que sempre conservou nas coreografias certa canalhice trivial, certo gosto de infâmia.Tempos depois veio a ser considerado uma expressão típica artística de todos argentinos. E nas palavras de Borges, ouvimos a tristeza nostálgica das lembranças vividas com intensidade nos tempos em que surgiu: “Pareceria que sem o crepúsculo e as noites de Buenos Aires seja impossível fazer um tango e que para nós Argentinos, no céu nos espera a ideia platônica do tango, sua forma universal. Que este gênero afortunado tenha, mesmo que seja modesto, seu lugar no universo.”